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Revista Subjetividades

versão impressa ISSN 2359-0769versão On-line ISSN 2359-0777

Rev. Subj. vol.14 no.2 Fortaleza ago. 2014

 

ARTIGO ORIGINAL

 

Enquanto a gente espera: histórias de saúde-doenças-cuidados em uma unidade básica de saúde

 

While we wait: histories of health-diseases-cares on a basic health unit

 

Mientras esperamos: historias de salud-enfermedades-cuidados en una unidad basica de salud

 

Alors que nous attendons: des histoires de la santé-maladies-soins dans l'unité de santé de base

 

 

Carlos Winston Guedes BezerraI; Lucy Mary Barros SiqueiraII

IPsicólogo do Centro de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas da Regional II de Fortaleza, Tutor Virtual do Curso de Especialização em Saúde da Família da UNASUS/UFC, Tutor do Projeto Caminhos do Cuidado, Especialista em Psicopatologia Clínica pela UNIP
IIEnfermeira da Unidade Básica de Saúde (UBS) do Cruzeiro em Carnaubal-CE, Especialista em Saúde da Família pela UNASUS/UFC

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A proposta de humanização no Sistema Único de Saúde (SUS) prima por valorizar o envolvimento dos sujeitos em seus processos de produção de saúde, não entendida simplesmente como ausência de doenças, mas mantendo relações com os aspectos sociais, econômicos e culturais da população. Portanto, acreditamos que a clínica aí pensada deve se deslocar do/para o sujeito para uma clínica com os sujeitos, em que o ato de cuidar perpasse o vínculo, a escuta, a comunicação e a corresponsabilização dos envolvidos. Com isso, desenvolvemos um trabalho grupal de sala de espera na Unidade Básica de Saúde (UBS) do bairro Cruzeiro, em Carnaubal - CE de junho de 2010 a novembro de 2012. Objetivamos com essa prática: apresentar aspectos do trabalho grupal em sala de espera com enfoque na educação popular em saúde e propor a contação de histórias como um instrumento de trabalho na Atenção Básica (AB). O trabalho se centrou nos ditos e nas histórias de saúde-doenças-cuidados que os participantes compartilharam nos encontros, coletadas por nós a partir de apontamentos in loco que serviram para alicerçar os conteúdos e as histórias mnemicamente trabalhadas e que se tornaram o material final de nossa discussão, análise e interpretação. Concluímos que a sala de espera pode ser um espaço continente de conversação, reflexão e compartilhamento de experiências entre os sujeitos (usuários e profissionais), em que estes podem dar voz ao seu pensar, despertar associações entre suas histórias e contribuir para a circularidade do saber sobre seus processos de saúde-doenças-cuidados.

Palavras-chave: sala de espera; humanização; saúde; doença; educação popular em saúde.


ABSTRACT

The proposed humanization of the Unified Health System (UHS) prime for value individuals involved in the production of health, considering that it is not the absence of disease but relates to social, economic and cultural aspects of population. Therefore, the treatment must move the clinic to / from subject to with subjects that the act of caring include bonding, listening, communication and co-responsibility of those involved. That way, we development a working group of the waiting room at Basic Health Unit (BHU) Cruzeiro in the neighborhood of Carnaubal - CE of June of 2010 until November of 2012. Considers, in this practice, aspects of group work in the waiting room with a focus on popular education in health and we propose the storytelling as a working tool in Primary Care (PC). The work focuses on the sayings and stories in the health-diseases-cares participants to share in the meetings, collected it for us in appointments in loco that served to build the contents and the histories mnemonically works and through final material of our discussion, analysis and interpretation. We conclude that waiting room (WR) is a continent for a conversation, reflection and sharing of experiences among the subjects (users and professionals), they can give voice to their thoughts, awaken associations between their stories and contribute circularity to know about the processes of health-diseases-cares.

Keywords: wait-room; humanization; health; disease; popular health education.


RESUMEN

La propuesta de humanización del Sistema Único de Salud (SUS) prima por valorar lo envolvimiento de las personas en sus procesos de producción de salud, teniendo en cuenta que esta no es la ausencia de la enfermedad sino se relaciona a los aspectos sociales, económicos y culturales de la población. Por lo tanto, el espacio del atendimiento debe mover a la clínica del / para el sujeto para la con los sujetos en que el acto de cuidar incluye el vinculo, la escucha, la comunicación y la co-responsabilidad de los participantes. Con eso, desenvolvemos un grupo de trabajo de sitio de espera en la Unidad Basica de Salud (UBS) del barrio Cruzeiro en Carnaubal - CE de junio de 2010 a noviembre de 2012. Contemplase, en esta práctica, presentar los aspectos de trabajo en grupo en sitio de espera con un enfoque en la educación popular en salud y proponer la contacción de historias como una herramienta de trabajo en Atención Primaria (AP). El trabajo se centró en las palabras y las historias de salud-enfermedades-cuidados que los participantes comparten en las reuniones, colectadas por nosotros a partir de apuntamientos in loco que servirán para substanciar los materiales e las historias mnémicamente trabajadas y que se tornaran la materia final de nuestra discusión, análisis e interpretación. Concluimos que el sitio de espera (SE) puede ser un espacio continente de conversación, de reflexión y de intercambio de experiencias entre los sujetos (usuarios y profesionales) en que pueden dar voz a sus pensamientos, despertar asociaciones entre sus historias y contribuir para la circularidad del saber sobre sus procesos de salud-enfermedades-cuidados.

Palavras clave: sitio de espera; humanización; salud; enfermedad; educación popular en salud historias.


RÉSUMÉ

L'article mentionne une possibilité de travail conjoint de la psychologue et l'infirmière dans la Stratégie de Santé de la Famille (SSF), un groupe de travail de la salle d'attente tenue à l'Unité de Santé de Base (USB) Croisière sur le quartier de Carnaubal - CE. Une partie de l'humanisation proposée du Système de Santé Unifié (SSU), tout en valorisant les individus impliqués dans la production de la santé, étant donné que ce n'est pas l'absence de maladie ma se rapporte à los aspcets sociale, économique et culturel de la population. Par conséquent, le traitement doit se déplacer à la clinique de / à la sujet à sujet avec dans l'acte de cautionnement perpasse bienveillance, l'écoute, de communication et de co-responsabilité de ceux qui sont impliqués. Les travaux se déroulent depuis 2010 et se concentre sur les paroles et les histoires de la santé-maladie-soins dans les participants ont partagé lors dans les réunions, l'objectif de notre discussion et d'analyse. Nous croyons en cette pratique, les aspects du travail de groupe dans la salle d'attente avec un accent sur l'éducation à la santé populaire, proposons les histories comme un outil de travail dans les soins primaires (SP). Nous concluons que le traitement dans la salle d'attente (TSA) est un continent pour une conversation, la réflexion et le partage d'expériences entre les sujets (utilisateurs et les professionnels), ils peuvent donner une voix à leurs pensées, d'éveiller les associations entre leurs histoires et de contribuer circularité de connaître les processus de santé-maladie-soins.

Palavras-clé: salle d'attente; humanisation; santé; maladie, éducation à la santé populaire.


 

 

Se o sono é o ponto mais alto da distensão física, o tédio é o ponto mais alto da distensão psíquica. O tédio é o pássaro de sonho que choca os ovos da experiência. O menor sussurro nas folhagens o assusta. Seus ninhos - as atividades intimamente associadas ao tédio - já se extinguiram na cidade e estão em vias de extinção no campo.

( Benjamin, 1994, p. 204-205)

 

Era uma vez o humano no SUS...

Desde sua criação, implantação e subsequentes legislações e documentos técnicos (CONASS, 2003), a Estratégia de Saúde da Família (ESF) tem sido pensada e defendida como ordenadora e organizadora do Sistema Único de Saúde (SUS) pela Atenção Básica (AB). A ESF redefiniu bases e critérios para um modelo assistencial em saúde menos vinculado à prática clínica curativa.

Em meados de 2003, a Política Nacional de Humanização -we gestão do SUS e viabilizar diretrizes que respeitem as diversidades e especificidades locais. Nesse documento, a humanização foi descrita enquanto valorização dos sujeitos envolvidos no processo de produção de saúde, considerando a autonomia e os saberes destes nos processos de transformação e mudança de suas realidades.

Assim, considerou-se que os norteadores dos processos de trabalho devem ser a formação de redes, de vínculos solidários e "grupalidades", a composição de práticas a partir da "transformação das relações estabelecidas entre sujeitos e grupos (mudanças de atitudes/subjetividades)" (Hoepfner, 2010, p. 78). Cumpriria ampliar o espaço da clínica, deslocando-a do/para o sujeito para uma clínica com os sujeitos, em que o ato de cuidar perpasse o vínculo, a escuta, a comunicação e a corresponsabilização dos envolvidos. Assumir que saúde não é a ausência de doenças, mas que está relacionada a questões econômicas, sociais e culturais da população (Soares, 2005).

Porém, formar vínculos solidários e/ou "grupalidades" em tempos de prevalência dos fármacos milagrosos e do saber da genética e da neurobiologia ante os adoecimentos e os sofrimentos dos sujeitos, não é tarefa das mais fáceis, como acentua Fernandes (2000), ao falar de alguns aspectos do trabalho psicanalítico com grupos de discussão. Esses grupos seriam uma modalidade de Grupo Operativo ou teriam finalidades operativas com tarefa restrita à discussão de tema(s) e do contexto em que ocorrem, objetivando "circular o saber, o pensar de cada participante, despertar associações e formar conhecimento, procurando horizontalizar o saber e a prática de cada um." (Fernandes, 2000, p. 4). A utilização desses grupos em instituições de saúde, como por exemplo com gestantes, hipertensos, diabéticos, alcoolistas e outros são citados como possibilidades por autores como Fernandes (2000) e Emílio (2010).

Tais pressupostos subsidiam nossa experiência de trabalho grupal de sala de espera com hipertensos e/ou diabéticos realizado na Unidade Básica de Saúde (UBS) do Cruzeiro em Carnaubal-CE, de junho de 2010 a novembro de 2012, com frequência mensal e média de dois encontros-mês com duração aproximada de duas horas. É importante considerar, no entanto, que os encontros não aconteceram de maneira ininterrupta no primeiro e segundo anos, devido a atividades outras do psicólogo e por seu afastamento durante cinco meses por um problema de saúde. Porém, com seu retorno, no final de 2011, os encontros passaram a ser realizados mensalmente. Esse artigo, portanto, objetiva: descrever aspectos significativos desses encontros; discutir questões relevantes do trabalho de grupo em sala de espera; considerar o enfoque de educação em saúde dessa prática e propor um possível instrumento de trabalho grupal na AB.

Ante o acontecer da sala de espera com seus desafios, surpresas, reflexões e histórias, fomos coletando pouco a pouco ditos, falas e narrativas próprias dos sujeitos participantes que, nos dois anos aproximados de existência da mesma, tornaram-se nosso tesouro de análise e resultados. Nem sempre a coleta se fazia no momento da atividade grupal, devido à condução, fazíamos apontamentos que depois auxiliavam nossa memória a escrever os conteúdos e as maneiras peculiares de falar e narrar de cada um, atividade que realizávamos logo após o final de cada encontro. De posse desses ricos conteúdos, algumas falas e narrativas se sobressaíram dando conta das categorias saúde, doenças e cuidados imbricadas.

O método nos aproximou do que Costa e Gualda (2010) discorrem sobre antropologia, etnografia e narrativa como possibilidades de acessar sentidos atribuídos e a experiência dos sujeitos sobre seus processos de saúde-doença. As autoras afirmam que "a experiência da doença é moldada culturalmente, o que determina a maneira como a percebemos e buscamos superá-la" (p. 930). Destarte, situam saúde e doença como fazendo parte de nosso meio social, fato que influencia diretamente nossas formas de sentir, expressar e utilizar recursos de cura à nossa disposição. Ao defenderem a relação intima entre o saber antropológico, o método etnográfico e as formas narrativas em tais estudos, Costa e Gualda (2010) situam, ainda, a narrativa "como um evento social e não um texto fixo" (p. 933).

A narrativa é para nós um instrumento de descrição, análise e interpretação das histórias coletadas e entendemos que o anonimato dos participantes cunha o aspecto ético, mas muito mais amplia a circularidade coletiva dos seus ditos e histórias de saúde-doenças-cuidados, sem mencionar que tais histórias, pelo método de coleta, são primordialmente nossas. Sentimo-nos tributários do que Costa e Gualda (2010) afirmam: "A análise narrativa não pretende categorizar e classificar o mundo e sim interpretar, mostrar o significado e criar explanações para a experiência" (p. 935), sabendo-nos sempre falhos na tarefa posto que as lacunas entre a experiência - a narrativa -, a análise e a leitura final se farão sempre presente ao nos fiarmos na memória.

 

O que contam os sujeitos na ubs do cruzeiro em Carnaubal

Nossa história iniciou com o convite reiterado da profissional de enfermagem da UBS do Cruzeiro para a realização de um trabalho no momento de espera pelo atendimento ordinário na semana de hipertensos e diabéticos. É prática comum na organização dos serviços das equipes de Saúde da Família em Carnaubal a realização de um cronograma de atividades mês a mês, sendo estas discriminadas semanalmente por demandas específicas (visita domiciliar, vacinas, pré-natal) e grupos de risco (hipertensos/diabéticos, gestantes, adolescentes). Normalmente, o profissional responsável por tal tarefa é o de enfermagem, que assume a função de coordenação da unidade, mas não de maneira exclusiva, tendo também que clinicar, realizar visitas domiciliares com os ACS dentre outras. O acúmulo de funções (coordenação e técnica) dificultaram a participação mais ativa e frequente na sala de espera, mas não diminuíram a crença na proposta e a percepção dos seus efeitos agora apresentados e discutidos.

Rotineiramente, os usuários chegam à unidade e recebem uma senha numérica para o atendimento do médico e/ou da enfermeira. Os prontuários dos mesmos são separados para averiguação da evolução dos seus quadros quando da consulta clínica. Na ordem das senhas, eles são chamados para aferição da pressão arterial, da glicemia e do peso pela técnica de enfermagem; em seguida, aguardam suas consultas e, ao sair, recebem seus medicamentos. Por turno, a média é de 20 usuários, o que demanda um tempo de espera em torno de 1 hora para cada.

Há, na unidade, um salão de entrada com cadeiras onde os usuários aguardam pelo atendimento dos profissionais de saúde, um espaço de transição entre os consultórios e as demais salas (de vacinas, procedimentos, farmácia etc), espaço no qual "as pessoas conversam, trocam experiências entre si, observam, emocionam-se e expressam-se, ou seja, as pluralidades emergem através do processo interativo que ocorre por meio da linguagem" (Teixeira & Veloso, 2006, p. 321). Esse foi o contexto no qual decidimos realizar o trabalho com os sujeitos hipertensos e diabéticos enquanto esperavam.

Para situarmos melhor o trabalho grupal realizado, destacamos o que Emílio (2000) ressalta sobre algumas especificidades dos grupos de discussão psicanalíticos: (1) a atividade inicial do grupo seria um recurso mediador da circularidade do saber, fornecendo subsídios para discussão que a seguirá e diminuindo ansiedades básicas presentes em toda situação de aprendizagem: "o medo da perda e do ataque, a ansiedade frente à mudança e a resistência à mudança" (p. 39); (2) cada grupo de discussão é único, mesmo quando as pessoas são as mesmas, pois varia a atividade prévia; (3) o tempo é limitado com começo, meio e fim; (4) os participantes do grupo podem ser pessoas desconhecidas entre si, como conhecidos, amigos - de longa data ou não; e (5) não há limite pré-estabelecido de participantes, podendo existir grupos com um número muito grande, o que exige mais do profissional responsável pela condução.

Ao iniciarmos a atividade grupal de sala de espera nas UBS, observamos uma composição flutuante em que uns deixavam o grupo para seus atendimentos ordinários (médico, enfermeira, dentista), enquanto outros chegavam à unidade, ao mesmo tempo em que os primeiros, atendidos, iam embora muitas vezes. Consideramo-lo então como um grupo aberto (Furlan & Campos, 2010), formado pelos presentes na UBS nos momentos únicos de cada encontro entre saídas e chegadas. Idade, sexo e nível de participação dos integrantes eram aspectos variáveis, alguns com participações anteriores e outros novatos, não havendo exigência de frequência ou de participação. Veremos mais à frente que mesmo a suposta homogeneidade do grupo referente "à condição vital ou enfermidade sob cuidado" (Veríssimo & Valle, 2005, p. 32) não foi determinante em sua composição. Os fatores muito variáveis do grupo com um foco no aqui-e-agora exigiam uma condução sensível e atenta que não comprometesse a continuidade e a manutenção da atividade grupal.

Em 2010, a escolha dos temas abordados e o material ficaram a critério do psicólogo e da enfermeira. Todavia, a partir de 2011, passou a acontecer um momento inicial de levantamento de interesses, de possíveis assuntos que os participantes desejassem conversar, considerando também os que surgiram no decorrer dos encontros. Os assuntos não apareciam lapidados, eram frutos das conversas em que os sujeitos falavam de "suas aflições, de suas doenças, da qualidade do atendimento na instituição e da vida cotidiana" (Teixeira & Veloso, 2006, p. 321). Alguns mais recorrentes, como foi o caso da hipertensão/diabetes: "O que é pressão arterial?"; de aspectos relacionados aos medicamentos: "Sentidos e usos dos medicamentos"; do atendimento em saúde: "Satisfação e insatisfação, direitos e deveres dos usuários da saúde" (escolhido pela enfermeira). Outros menos frequentes: "Saúde mental" (escolhido pelo psicólogo), "sonhos", "perdas" etc.

Seria um trabalho voltado a um público, um grupo de risco específico? Havia a abundância, a prevalência de sujeitos de uma população com doenças que predispunham a riscos e agravos à saúde (MS, 2011), sem dizer que o convite reiterado fora para semana do dito público, porém não era incomum a procura do atendimento por outras pessoas: "Eu vim aqui no posto só pra pegar um medicamento pro meu filho e resolvi ficar, pois achei importante o assunto" (Sala de Espera: "Direitos e deveres dos usuários da saúde").

Os assuntos conferiam às pessoas ali agrupadas uma atividade, uma tarefa em comum, possibilitando a comunicação e o compartilhar de informações e conhecimentos. Optamos pelo uso do verbo "compartilhar" (participar, partilhar, repartir) em oposição ao termo trocar (permutar, dar e substituir) no acontecimento grupal, tal como o explicitado por Furlan e Campos (2010). Mais especificamente, os temos compartilhados foram aqueles relacionados às suas realidades socioculturais, "suas representações, seus conceitos, preconceitos e formas populares de cuidado" (Teixeira & Veloso, 2006, p. 323).

É verdade! Às vezes o que a gente precisa é de apoio. Eu fiquei doente um tempo com tontura, sentindo minhas perna mole, que ia desmaiar. Meu esposo tinha que ficar comigo, me levar pra casa da minha mãe que era próxima, pois eu tinha medo de ficar sozinha e não conseguia andar. Lá, ela conversava comigo, dizia pra eu tirar aquelas coisas da cabeça, cantava pra mim e eu melhorava. Era assim que ela fazia, não era mãe? (Sala de Espera: "mania de doença").

Os sujeitos ao irem à unidade carregavam suas histórias, "suas relações familiares, de trabalho, as várias instituições e grupos de que participam" (Cunha, 2010, p. 34). Recordamos que podíamos ter conhecidos ou desconhecidos no grupo, sabendo é claro que as pessoas que se encontravam ali naquela semana específica, tinham uma grande propensão a se conhecerem ou terem vínculos formatados, que muitas vezes não apareciam em seus atendimentos pontuais, e podem contribuir para sua saúde e cuidados como para a formação de vínculos grupais (Fernandes, 2000).

A sala de espera se tornava um espaço continente de conversação, de reflexão e compartilhamento de experiências entre os sujeitos (usuários e profissionais), em que podiam dar voz ao seu pensar, despertar associações entre suas histórias e contribuir para a circularidade do saber, sem centrá-lo em qualquer participante. Linhares (2009) destaca a "saúde como experiência de convívio social solidário" (p. 44), quando promove o diálogo entre os sujeitos na produção de sentidos para suas experiências. O relato abaixo de alguns usuários no momento da Sala de Espera ilustra tal aspecto:

Quando as pessoas passam mal, elas associam à última coisa que comeram.

É mesmo! Ontem eu fui pra uma festa e quando eu comi o bolo fiquei com um inchaço na barriga.

Você pode adoecer pelo psicológico, por exemplo: vai comer e bota na cabeça que aquilo vai te fazer mal. Aconteceu uma vez comigo de ir comer uma coxinha e achei que ia me fazer mal, aquele medo me fez passar mal.

Eu já acho o contrário, dizem que a comida faz mal, mas não é. A pessoa é que é fraca, que o estômago não tá preparado pra receber aquela comida e passa mal (Sala de Espera: "Atenção e cuidados com a nossa saúde").

Para além de suas concepções alimentares, eles dialogaram e propiciaram a escuta das diferenças, aproximando-nos do que Freire (1996) afirma: "A disponibilidade permanente por parte do sujeito que escuta para abertura à fala do outro, ao gesto do outro, às diferenças do outro" (p. 119). Não é a autoanulação ou a redução da fala alheia, mas o espaço de exercício do diálogo em que cada um pode se posicionar. Exercício capaz de gerir mudanças, movendo-nos "do estado de curiosidade ingênua para o de curiosidade epistemológica" (Freire, 1996, p. 39), como expresso na fala a seguir: "Acho que as pessoas deviam saber disso, não só aqui. Devíamos ter reuniões no bairro, na comunidade pras pessoas saberem dos seus direitos, pois a maioria que vai ao hospital e aqui não sabe, mesmo eu" (Sala de Espera: "direitos e deveres dos usuários da saúde").

O direito pleno de voz, mas principalmente a escuta dos saberes e práticas sociais de saúde dos sujeitos, remete-nos à proposta viva da educação popular em saúde. Nela, os profissionais são convocados a sair da posição de autoridade passiva de um saber oficial da saúde para acolher e avalizar as palavras daqueles que procuram o serviço. Acolhê-los a partir de uma "atitude de escuta crítica" (Medeiros, Iung, & Comunello, 2007, p. 22), que descortina aspectos e representações do serviço prestado:

Muitas vezes quando não tem um bom atendimento, a gente sai é mais doente.

Quando é bem recebido, com um sorriso, uma palavra, a gente se sente bem, com saúde. (Sala de Espera: "Direitos e deveres dos usuários da saúde").

Quando a gente arranja alguém pra conversar o tempo passa mais ligeiro (Sala de Espera: "Levantamento de assuntos").

As duas primeiras colocações realçam a importância de o acolhimento se fazer presente nas práticas da equipe, através de gestos, palavras, atitudes por si promotoras de saúde. Na contramão dos procedimentos e técnicas padrões da saúde, a sala de espera propicia um tempo para esses dizeres e histórias serem escutados. Aos poucos, começamos a observar que ante a fala de um profissional, um texto lido sobre algum assunto, um filme de curta duração usado, os sujeitos respondiam com suas histórias por vezes contadas e recontadas. Restava-nos chocar com cuidado os ovos das experiências de cada um e despertar "a comunidade dos ouvintes" (Benjamin, 1994, p. 205), tão escassa na brevidade dos nossos tempos.

Antigamente, a gente guardava o feijão na areia. Colocava dentro de um saco, aqueles de fardo de 20 kg, fechava bem e punha em cima de uma camada de areia num estrado de madeira e ia cobrindo com areia, socando tudo pra ficar bem fechado e tirar todo ar. Quando queria comer, era só tirar um pouco e cobrir de novo. Durava dum ano pro outro sem dar gorgui [forma vulgar de falar gorgulho, besouros da família curculionídeos responsáveis por perfurar frutos e sementes das lavouras como feijão]. Até que veio a EMATERCE [Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Ceará] e disse que aquilo era errado, que a gente pegava verme da areia, porque a gente criava bicho (porco, galinha, cabra, boi) que cagava na areia e a gente pegava aquela areia pra cobrir o feijão (Sala de Espera: "Atenção e cuidados com a nossa saúde").

Quem não tem uma história para contar? Desde o alvorecer da humanidade, o ato de narrar faz parte da vida dos homens, quer para dar conta do seu cotidiano com "seus hábitos e revezes" (Cheola, 2006, p. 47), quer para tentar compreender acontecimentos que escapam à sua racionalidade. O costume de contar histórias perpassa os tempos e as culturas, como afirmam Brockmeier e Harré (2003): "Todas as culturas das quais temos conhecimento são culturas contadoras de estórias" (p. 527). A história do feijão nos lega hábitos de cuidado com o armazenamento dos alimentos próprios de uma época e de uma cultura de pessoas que tiveram seus esquemas referenciais - "conjunto de experiências, conhecimentos e afetos com os quais o indivíduo pensa e atua" (Bleger, 1980, p. 67) - alterados a partir de novas experiências.

Antigamente as coisas eram mais difíceis, só meu pai trabalhava e a gente não tinha as coisas. Hoje, a gente tem dinheiro, lá em casa três tem emprego, mas vive todo mundo doente sem saúde, o que adianta o dinheiro se não tem saúde, o dinheiro não compra tudo (Sala de Espera: "Atenção e cuidados com a nossa saúde").

Se uma história puxava outra, não podíamos, entretanto, usar qualquer uma, pois os assuntos dos encontros eram norteadores e norteados por elas (Rosa, 2007). Fez-se necessário um trabalho de garimpagem, de escolha, de adaptação dos temas à marca e ao estilo do narrador, "como a mão do oleiro na argila do vaso" (Benjamin, 1994, p. 205). Fora a direção dos temas, histórias que aconselhem os que as ouvem, no sentido que Benjamin (1994) realça: "Aconselhar é menos responder a uma pergunta que fazer uma sugestão sobre a continuação de uma história que está sendo narrada" (p. 200). A história que o usuário relatou acima se seguiu ao conto "A camisa do homem feliz", conteúdo adaptado de Italo Calvino (2006, p. 115).

 

E no fim, como todos vivem?

Serão felizes os finais de nossas histórias?

Eu lembrei da minha história. Eu perdi minha mãe quando era criança e minha madrasta não gostava de mim e meus irmãos. Eu e minha irmã tínhamos que ficar em casa e meu pai não confiava e colocava a gente pra fora até ele voltar, dizia: "É com o coração partido que eu faço isso, mas é o jeito." [...] Moral da história, não sei nem se é uma moral, o fim: hoje, minha madrasta vive doente, ela tem Mal de Parkinson, e quem cuida dela sou eu e meu marido. Sabe, foi a primeira vez que eu contei um trechinho da minha história em público, mas é que eu nunca tinha visto um psicólogo e pensei: é a minha chance (Sala de Espera: "Atenção e cuidados com a nossa saúde").

Das estórias às historias, estarão as madrastas sentenciadas a um triste fim? Em uma das versões de João e Maria é a madrasta quem incentiva o pai a deixar os filhos na floresta. Moral da história, a presença do psicólogo pode motivar os sujeitos a falar sobre seus sofrimentos no grupo. Ou trata-se da atividade, da tarefa em comum que propicia a comunicação, o compartilhamento das experiências e os vínculos entre os participantes? Advogamos em favor do conjunto desses fatores no acontecer grupal: presença, comunicação, tarefa em comum, compartilhamento de experiências e formação de vínculos.

Caberia aos profissionais responsáveis, como tarefa reiterada desde o início, produzir uma subversão do saber no grupo, como Freire (2007) acentua: "Ninguém sabe tudo, nem ninguém ignora tudo, o que equivale a dizer que não há, em termos humanos, sabedoria absoluta, nem ignorância absoluta" (p. 39). Contrapormo-nos às expectativas iniciais que os sujeitos possam ter de encontrar ali um saber oficial sobre a saúde, a doença e os cuidados; paulatinamente, fazer com que cada um se implique com seus estados de saúde e adoecimento, bem como com os cuidados relativos aos mesmos em suas realidades socioculturais. Apostar que mesmo que o tempo passe "mais ligeiro", há tempo de sobra para conversarmos e compartilharmos nossas histórias:

Muita coisa mudou. Antes, a gente não tinha um atendimento de saúde, não tinha medicamentos, se cuidava com os remédios do mato. Não tinha um momento desses da gente conversar sobre as nossas coisas (Sala de Espera: "Dia Internacional da Mulher").

Eu tô alegre, melhor, até a dor que tava sentindo melhorou. Quando eu cheguei não tava me sentindo bem, tava triste com dor (Sala de Espera: "Atenção e cuidados com a nossa saúde").

Sabe por que essas histórias são boas? Às vezes, a gente tá em casa cheia de problemas, pensando no que vai fazer, quem procurar: um vizinho, um amigo, um profissional com quem a gente possa dividir. Aí a gente chega carregada e sai maneira. Serve até como um remédio, é como se eu tomasse um comprimido, um relaxante (Sala de Espera: "Atenção e cuidados com a nossa saúde").

Tais falas apontam para práticas com grupos de sala de espera em que os autores enfatizam o fortalecimento dos vínculos "entre usuários e profissionais", o contato "com fatores protetores da saúde" e a "diminuição do uso de medicamentos" (Veríssimo & Valle, 2005, p. 33). O ato de compartilhar histórias é uma estratégia importante para as pessoas falarem de seus adoecimentos, de suas condições de vida e das formas de agir em seus cotidianos (Soares, 2005), podendo proporcionar, mais do que aprendizagem ou espelhamento, sugestões de continuidade de suas histórias em suas diferenças.

Os resultados de agora nos animam a prosseguir e sinalizam expectativas: que outros profissionais das equipes se envolvam para facilitar a continuidade dos grupos e sua condução, inclusive a participação dos Agentes Comunitários de Saúde (ACS); o fortalecimento e/ou a criação de redes sociais para além das UBS; o aparecimento de formas autônomas de viver e conviver. E se Paulo Freire (2007) atenta que "não é o discurso que diz se a prática é válida, é a prática que diz se o discurso é válido ou não é. Quem ajuíza é a prática. Sempre!" (p. 42), convidamos a comunidade dos leitores a compartilhar suas histórias e seguirmos, como Šahrāzād, vida afora.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Carlos Winston Guedes Bezerra
Rua Adolfo Campelo, nº 100 (Ap. 302)
Jacarecanga. Fortaleza/CE - CEP: 60010-440.
Email: cguedesbezerra@gmail.com

Lucy Mary Barros Siqueira
R. 22 de Julho, 1120
Carnaubal-CE. CEP: 62375-000. Telefone: (88) 97236611.
E-mail: lucymarybs@gmail.com / angelia@campopsicanalitico.com.br

Recebido em: 01/06/2012
Revisado em: 05/09/2013
Aceito em: 29/09/2014

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