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Revista Subjetividades

versão impressa ISSN 2359-0769versão On-line ISSN 2359-0777

Rev. Subj. vol.14 no.2 Fortaleza ago. 2014

 

ARTIGO ORIGINAL

 

O psicanalista frente algumas especificidades do trabalho em saúde mental

 

The Psychoanalyst facing Some Specificities of Mental Health Work

 

El Psicoanalista frente a Algunos Aspectos Específicos del Trabajo en Salud Mental

 

Le Psychanalyste face a Quelques Spécificités du Travail en Santé Mentale

 

 

Diego Alonso Soares DiasI; Oswaldo França NetoII

IPsicanalista. Mestre em Psicologia pelo Programa de Pós-graduação strito sensu do Departamento de Psicologia da UFMG
IIPsicanalista. Doutor em Psicanálise pela UFRJ. Mestre em Teoria Psicanalítica pela UFRJ. Professor associado do Programa de Pós-graduação strito sensu do Departamento de Psicologia da UFMG

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Esse artigo aborda algumas especificidades do trabalho em saúde mental e sua relação com a prática institucional da psicanálise, tomando como ponto de partida os manuais psiquiátricos DSM (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders), um dos principais instrumentos de trabalho para aqueles que exercem esse tipo de atividade. Procuramos refletir a respeito das peculiaridades que envolvem a elaboração e o uso do manual DSM, e em que medida essas peculiaridades auxiliam ou não na condução dos casos. Consideramos que seu caráter essencialmente descritivo contribui para que as mais diversas nomeações surjam em relação a um determinado caso, o que não significa que esse caso esteja sendo efetivamente tratado. Como exemplo significativo dessa postura, abordamos brevemente os casos denominados crônicos, verdadeiros impasses que, mesmo gerando embaraços, não escapam ao processo de categorização. Na busca por uma apreensão mais apurada dessa temática, contrapomos essa discussão às características de um termo recente no meio psicanalítico, a "psicose ordinária", com o intuito de precisarmos melhor de que forma o psicanalista deve se posicionar na prática institucional, a partir do momento em que a psicanálise se coloca como uma práxis que prima pelas singularidades dos sujeitos que dão corpo ao trabalho em saúde mental.

Palavras-chave: DSM; psicanálise; saúde mental; singularidade; psicose ordinária.


ABSTRACT

This report addresses some specificities of the mental health work and its relation with the institutional practice of psychoanalysis, taking as starting point the DSM (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders) psychiatric manuals, one of the key work instruments to those who exercise this kind of activity. We seek to examine the singularities that comprise the use and preparation of the DSM manual, and at what level these singularities help or not the conduction of cases. We consider that its essentially descriptive character contribute to the appearance of various nominations regarding a particular case, which does not mean that this case is being effectively treated. As a significant example of this stance, we briefly address the chronic cases, which are impasses that, even generating embarrassments, do not escape to the categorization process. In the search for a more accurate apprehension of this theme, we compare this discussion with the characteristics of a recent term in the psychoanalysis field, the "ordinary psychosis", intending to find a more precise way for the psychoanalyst to behave in the institutional practice, from the moment when the psychoanalysis become a praxis that aims mainly the singularities of the individuals who give substance to the mental health work.

Keywords: DSM; psychoanalysis; mental health; singularity; ordinary psychosis.


RESUMEN

Este artículo aborda algunos aspectos específicos del trabajo en salud mental y su relación con la práctica institucional de psicoanálisis, tomando como punto de partida los manuales psiquiátricos DSM (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders), uno de los principales instrumentos de trabajo para aquellos que ejercen este tipo de actividad. Buscamos reflexionar sobre las peculiaridades que involucran la elaboración y el uso del manual DSM, y en qué medida estas peculiaridades ayudan o no en la conducción de los casos. Consideramos que su carácter, esencialmente descriptivo, contribuye para que los más diversos nombres aparezcan en relación a un determinado caso, lo no que significa que este caso está siendo efectivamente tratado. Como ejemplo significativo de esta postura, nos dirigimos brevemente a los casos denominados crónicos, verdaderos impases que, de igual manera también generan incomodidades, no desaparecen del proceso de categorización. En la búsqueda de una aprensión más exacta de este tema, contraponemos esta discusión a las características de un término reciente en el medio psicoanalítico, la "psicosis ordinaria", con el objetivo de tener una mejor precisión de qué manera el psicoanalista debe posicionarse en la práctica institucional, a partir del momento en que el psicoanálisis se coloca como una praxis donde priman las singularidades de los sujetos que dan cuerpo al trabajo en salud mental.

Palabras clave: DSM; psicoanálisis; salud mental; singularidad; psicosis ordinaria.


RÉSUMÉ

Cet article aborde quelques spécificités du travail en santé mentale et son rapport avec la pratique institutionnelle de la psychanalyse, ayant comme point de départ, les manuels psychiatriques DSM (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders), l'un des principaux instruments de travail pour ceux qui exercent ce genre d'activité. Nous essayons de réfléchir à propos des particularités qui impliquent le développement et l'utilisation du manuel DSM, et dans quelle mesure ces particularités ces particularités aident ou pas dans la conduite des cas. Nous croyons que son caractère essentiellement descriptif contribue à ce que les désignations les plus variées apparaissent par rapport à un certain cas, ce qui ne signifie pas que ce cas soit en train d'être effectivement soigné. À titre d'exemple significatif concernant ce point de vue, nous avons abordé rapidement les cas dénommés chroniques, de véritables impasses qui, même créant des embarras, n'échappent pas au processus de catégorisation. Dans la recherche d'une connaissance un peu plus affinée concernant ce thème, nous avons interposé cette discussion aux caractéristiques d'un terme récent dans le milieu psychanalytique, la "psychose ordinaire", dans le but de préciser de façon plus exacte le point de vue du psychanalyste dans la pratique institutionnelle, à partir du moment que la psychanalyse est placée comme une praxis qui se distingue par les singularités des sujets qui donnent corps au travail en santé mentale.

Mots-clés: DSM; psychanalyse; santé mentale; singularité; psychose ordinaire.


 

 

Introdução

O presente artigo procura estabelecer alguns pontos de interseção entre a atuação da psicanálise nas instituições e os dispositivos que procuram oferecer tratamento aos pacientes psiquiátricos em moldes diferentes do manicômio, caracterizados como serviços substitutivos de saúde mental (Lobosque & Souza, 2006). Para isso, levamos em conta, em nossa problematização, do uso realizado nesses dispositivos dos manuais psiquiátricos (em especial o DSM - Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders), o fenômeno da nova cronicidade nesses serviços e a expressão psicose ordinária, difundida entre os psicanalistas de orientação lacaniana.

Existe uma interferência mútua entre o processo de cronificação de pacientes psiquiátricos, as descrições contidas em um manual psiquiátrico como o DSM e o uso do termo "psicose ordinária"? Ou os DSMs se relacionam a uma pura relação de descrição e nomeação de um quadro, não sendo capaz de influenciar seu destino e evolução clínica? Qual a contribuição da psicanálise e sua política para essa discussão?

 

Manual sem causa

O primeiro Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) data de 1952, sendo acompanhado por diversas edições ampliadas e modificadas. Contudo, o manual psiquiátrico ao qual se atribui um marco na história da psiquiatria moderna é o DSM III (1980). De certa maneira, essa edição rompe com as precedentes, no momento em que evita a flexibilidade presente nos DSMs anteriores, que permitia um maior diálogo entre o manual e algumas noções psicanalíticas, por exemplo (Caponi, 2011). Nessas novas edições, DSM III e seguintes, o foco encontra-se no aspecto descritivo. O manual consolida-se como ateórico, sem se remeter ao saber psicopatológico já constituído, buscando uma eficaz sistematização dos sintomas passíveis de observação. Como consequência, suprimem-se alguns termos que remetiam a polêmicas etiológicas dos transtornos, como neurose e histeria.

Além de descrever novas categorias diagnósticas, o manual de 1980 estabelece uma hierarquia entre os diagnósticos, já que o que estava em jogo era a identificação de uma doença que pudesse explicar todos os sintomas. Tal perspectiva não se manteve em edições posteriores, já que nessas novas edições se passa a superpor diagnósticos parciais por meio do conceito de comorbidade (Matos, Matos, & Matos, 2005), reforçando-se assim a perspectiva da não hierarquização dos quadros clínicos. Atualmente, encontramo-nos na quinta edição do DSM, tendo esta sido lançada recentemente.

Logo nas primeiras edições do DSM, percebemos um apelo e uma intensa busca por apreensão do transtorno psiquiátrico via classificação e categorização. O importante aqui não é a compreensão completa do fenômeno, uma vez que se procura evitar qualquer questionamento de ordem etiológica do transtorno, mas o ato de nomeação de um determinado quadro que subsidie um tratamento. Tal ato de nomeação encontra seu ápice na possibilidade de associação dos quadros por meio de entidades comórbidas, o que faz com que uma determinada síndrome não tenha como escapar do movimento de classificação. Nesse sentido, torna-se patente a crítica relacionada à existência de uma "excessiva fragmentação dos quadros clínicos dos transtornos mentais" (Matos, Matos, & Matos, 2005, p. 314), o que gera o estabelecimento de inúmeros diagnósticos de um mesmo caso.

A busca por uma categorização consistente via descrição remete-nos diretamente à incapacidade da psicopatologia médica em estabelecer uma causa que torne possível o advento de uma teoria. De acordo com França Neto (2009), "é a causa que serve de ponto de arrimo para qualquer corpo teórico" (p. 8). No caso da psiquiatria, a causa orgânica que possibilitaria a solidificação do saber psiquiátrico junto à medicina encontra-se ausente. As peculiaridades que envolvem tanto o psíquico quanto o somático torna de extrema complexidade a apreensão da relação entre as duas instâncias. A psiquiatria embaraça-se justamente nesse ponto.

Por outro lado, devemos considerar que a preocupação com a categorização e classificação dos transtornos é algo que nos leva diretamente aos esforços de Emil Kraepelin, psiquiatra que, para estabelecer critérios de classificação ideais, preconizava a evolução dos quadros clínicos, e não a etiologia dos transtornos. Tal posicionamento ganha notoriedade cada vez maior a partir da segunda edição de seu Manual de Psiquiatria de 1887, em que:

Reconhecer o prognóstico, o curso da doença, se transforma em objetivo preponderante, pois desse modo se poderá estabelecer a distinção entre doenças que tem possibilidade de cura, como a melancolia, os delírios, as manias, que fazem parte do grupo das psicoses maníaco depressivas, e aquelas doenças consideradas incuráveis que faziam parte do grupo da demência precoce, mais tarde chamada esquizofrenia. (Caponi, 2011, p. 32).

Associado a essa ênfase na abordagem das doenças mentais via prognóstico e evolução do quadro, a noção de quadros "degenerativos" é algo de grande importância na abordagem kraepeliana. A inovação, na atualização de seu manual (oitava edição), que melhor exemplifica a preocupação de Kraepelin com esse tipo de quadro relaciona-se a distinção entre psicose endógena e psicose exógena. A psicose endógena refere-se aos pacientes que incluem os casos degenerativos, considerados incuráveis, com poucas possibilidades de tratamento, portadores de significativos elementos genéticos e hereditários determinantes do caso. Os quadros exógenos, por sua vez, eram àqueles ligados a acidentes, intoxicações, uso excessivo de medicamentos ou infecções.

Apesar do predomínio de aspectos relacionados à evolução da doença, Kraepelin não se omitiu de tentar estabelecer causas etiológicas para os transtornos mentais. As dificuldades são enormes, e as críticas não tardam a surgir, mas mesmo assim o psiquiatra faz suas tentativas explicativas que recaem, na maioria das vezes, em abordagens de cunho moral, por meio da observação de estigmas físicos ou mentais. Encontramos, portanto, nesse ponto, uma diferença crucial entre os manuais psiquiátricos atuais e a teorização de Kraepelin, mesmo que se considere, de acordo com Caponi (2011), que o DSM III tenha sido idealizado por psiquiatras que receberam a nomeação de neokraepelianos. O descobrimento da etiologia das doenças caberia ao progresso das ciências, em especial às neurociências, ou a psiquiatria organicista. Aos manuais psiquiátricos seria reservado o lugar de sistematização e descrição.

A psicopatologia kraepeliana e as informações que encontramos em um DSM, portanto, apesar de possuírem pontos em comum, não se misturam. Kraepelin não se omitiu de abordar a questão da causa. Pretendia estabelecer todo o curso de uma doença, desde o seu surgimento até o seu prognóstico final, dando toda ênfase possível à evolução da doença. O que se procuraria sistematizar aqui seriam os elementos constantes que tornassem seguros os conhecimentos elaborados pela psicopatologia.

A tentativa de localizar pontos sólidos de apoio para sua teoria tornava-se uma dos maiores problemas do psiquiatra alemão. Um exemplo significativo disso relaciona-se às colocações de Bonhoeffer, que demonstra que uma mesma lesão cerebral pode ocasionar diferentes sintomas psiquiátricos, e que diferentes doenças orgânicas levam a quadros psíquicos semelhantes (França Neto, 2009). Mais uma vez, explicita-se a difícil relação entre o somático e o psíquico, relação que permanece em aberto, sem resposta. O resultado, que observamos a posteriori, e que remonta às ideias dos neokraepelinaos, idealizadores do DSM, é o retorno à postura descritiva. Isso significa a tentativa de se apropriar das ideias de Kraepelin, desconsiderando-se tudo o que ele havia mencionado sobre a etiologia dos transtornos.

Por outro lado, observamos que a classificação kraepeliana, que tem como herdeiro o DSM, já leva em conta, em seu cerne, a noção de degeneração, que abrange os casos incuráveis. São as chamadas psicoses endógenas. Tal caracterização, em que o que está em jogo corresponde a uma progressiva piora e agravamento do quadro, com precárias possibilidades de remissão dos sintomas, corresponde ao que denominamos na literatura atual de pacientes crônicos, ou processo de cronificação de pacientes. Mesmo que nos dias de hoje tal conceito possua especificidades em relação à noção de degenerados, uma vez que os teóricos oriundos da Reforma Psiquiátrica defendem que o processo de cronificação de um paciente vincula-se primordialmente ao âmbito institucional, ainda assim consideramos que a definição de ambos os conceitos portam semelhanças fundamentais que legitimam a nossa reflexão, posto que aqui não nos preocupamos com explicações causais para esse fenômeno. Ao contrário, o que buscamos é, em certa medida, problematizar as consequências dessa ausência.

Dessa maneira, considera-se, já na elaboração dos manuais psiquiátricos, desde Kraepelin, principalmente, a existência de casos que se constituem verdadeiros impasses a qualquer possibilidade de tratamento ou mesmo cura, com prognósticos nada promissores. Mesmo que no DSM não encontremos termos como crônicos ou degenerados, ainda assim encontramos um esforço da nomeação de casos que colocam as mais diversas dificuldades, com progressivas pioras e baixas respostas ao tratamento. Trata-se de casos que, ainda assim, devem ser classificados da forma mais rigorosa possível, por meio de observações sistemáticas e puras. A esse respeito, chama a atenção a orientação de Kraepelin, que afirma que quanto menos o paciente falar, maior acesso ao fenômeno o médico terá (Caponi, 2011). Qualquer manifestação oriunda do paciente pode comprometer todo o processo de avaliação do quadro. Dessa maneira, as perguntas que inevitavelmente precisam ser feitas aos pacientes devem ser o mais objetivas possível, não dando margem a falas extensas e elaboradas por parte dos pacientes. Essa categorização seria a principal ferramenta para um possível tratamento, dizendo, em última instância, algo a respeito da natureza da doença:

Hipócrates, pai da medicina, em 400 a.c., já dizia: "é o tratamento que, em definitivo, revela a natureza da doença". O DSM, então, está sendo altamente condizente com a forma de ser da medicina, sendo inegável a sua utilidade medicamentosa. Ele dá ao psiquiatra clínico, farmacológico, ferramentas valiosas na avaliação do melhor medicamento para os seus pacientes. (França Neto, 2009, p. 23).

A classificação, no que se refere aos casos crônicos, se torna o principal instrumento que justifica um tratamento. O encontro de uma sigla, ou de algumas, que sintetizem o caso, se tornam fundamentais para a condução dos mesmos, condução esta que se daria de forma prescritiva, homogeneizante. Manuais psiquiátricos e os casos crônicos encontram-se intrinsecamente relacionados nesse sentido. Um caso que se cronifica se depara com a possibilidade de nomeações (isto é, definições, classificações) que, no limite, se mostram incapazes de orientar o tratamento dos pacientes. Isso significa que, diante de casos considerados intratáveis, busca-se encontrar, ao menos, uma nomeação que se mostre capaz de circunscrever e, consequentemente, diminuir todo o embaraço que provocam semelhantes casos.

Podemos observar ainda que o que está em jogo nesses processos de classificação refere-se diretamente a algumas peculiaridades pertencentes ao campo da ciência, na qual é significativa a sobreposição do saber sobre a verdade. Isso significa considerarmos que a produção de conhecimento (saber) a respeito de determinados assuntos procura fornecer, para os cientistas, garantias inquestionáveis a respeito de determinados objetos de estudo, ou seja, a sua verdade. Nesse sentido, o saber, assumindo o lugar de agente, é aquele com plenas condições de permitir o total acesso ao ser, a sua completa apreensão. Qualquer elemento que possa colocar em questão esse processo é logo absorvido pelo próprio saber, como os casos crônicos, que nem por isso deixam de ser classificados. Amigo (2009) considera que o cógito cartesiano "Penso, logo existo", abordado por Lacan como "penso e existo" é o que faz referência direta a essa busca científica por abarcar aquilo que advém do ser por meio do pensamento. O que Lacan propõe aqui, ao realizar essa modificação no enunciado de Descartes, é reforçá-lo, uma vez que o psicanalista não ignora a possibilidade de que uma premissa falsa gere consequências verdadeiras, ou que premissas verdadeiras gerem consequências falsas (Amigo, 2009).

Assim, pensar e existir se correlacionam, pretendendo-se com isso alcançar a garantia de obtenção de um conhecimento completo. Trata-se da ilusão totalizante própria da ciência, para quem o infinito que nos depararíamos ao tentar apreender a natureza seria entendido no registro da impotência, e não da impossibilidade constitutiva do que há. Na passagem do domínio das ciências do ser para a ciência do real proposta por Lacan, passaríamos do mau infinito para o bom infinito, a primeira entendendo nossas dificuldades como resultante de nossa (ainda) incapacidade em apreendermos o Todo, posto que somos pequenos em relação a ele, a segunda expondo a inconsistência que se encontra na gênese de qualquer saber.

No caso dos manuais psiquiátricos DSM, é clara a tentativa de se criar um saber que consiga abarcar toda a complexidade do fenômeno psiquiátrico. Elementos que possam tornar questionáveis as classificações são desconsiderados, como o caso das etiologias dos transtornos. O que é fundamental que se diga é que o que está em jogo aqui é a impossibilidade de que algum paciente possa ser inclassificável. Por mais que eles, em função de seu estado, coloquem em questão os serviços, os manuais psiquiátricos, os profissionais e a própria ciência em última instância, ainda assim alguma maneira de nomeá-los e enquadrá-los dentro de estruturas lógico explicativas se mantém. Os efeitos de um posicionamento como esse nos remetem diretamente à pontuação de Sophia Duportail durante a "Conversação de Arcachon": "uma vez que a classificação classifica, o que ela deixa aparecer é justamente o que não classifica" (Deffieux & Dewambrechies - La Sagna, 1998, p. 175).

Cabe ressaltar que, apesar dos impasses, ainda assim a atuação clínica não nos permite prescindir do uso das classificações. Elas são o solo que viabilizam a possibilidade de discussões. Quando estas se desdobram, porém, a própria pertinência do ato classificatório coloca-se em questão, tornando-se explícito seu caráter artificial. Trata-se de um uso que, ao fomentar a discussão, desvela o que ela própria procurava escamotear.

Encontramo-nos, dessa forma, com dois posicionamentos extremos no que se refere ao uso das classificações. Se, por um lado, elas permitem que se faça um manuseio rígido do processo de categorização, ocultando brechas que protagonizassem a invenção de novas abordagens, por outro lado encontramo-nos com a possibilidade de torná-la um instrumento que nos auxilie no encontro do que cada sujeito tem de único, de singular. Nessa segunda perspectiva, ganha destaque justamente aquilo que escapa à classificação, mas que foi alcançado por meio dela, e que instiga a equipe a tentar construir algo em torno do caso que surge a frente.

Assim, é possível que o que esses pacientes sinalizem é que "existe um excesso de natureza quantitativa que é inapreensível pela razão" (Santos, 2009, p. 33). Excesso este que é negado pelo saber contido nos manuais, mas que de alguma forma retornam. Classificados, mas mesmo assim colocando as equipes de profissionais em constantes dificuldades em relação à condução dos casos.

Por outro lado, consideramos que abordar a relação entre os manuais psiquiátricos DSM e a questão da cronicidade nos serviços de saúde mental torna fundamental a problematização do que tal relação pode nos sinalizar sobre o real. Afinal, a incessante tentativa do DSM de construção de um saber completo, sem furos, abarcando todos os tipos de casos, nos coloca frente a questões que não se deixam apreender. E é justamente esse excesso sobre o qual o psicanalista deve se debruçar, na própria tentativa de engendrar um saber:

Tratar-se-á de um saber movido e mesclado com o não saber. E como esse saber tem algo de não saber, tem algo de excesso, ele é um saber que se recria a cada instante, a cada passo, a cada novo paciente - um saber banalizado pela contingência (Santos, 2009, p. 39).

Nessa perspectiva, torna-se pertinente a abordagem da questão da psicose ordinária. Em que medida ela poderia contribuir para esse debate? Seria ela um nome que nos permite operar com o excesso, com o inclassificável?

 

Psicoses ordinárias

Para abordarmos a questão das psicoses ordinárias dentro do que propõe esse trabalho, faz-se necessário, além de sua caracterização, a busca de pontos que a especifiquem em relação às classificações psiquiátricas e também psicanalíticas. Por que classificar como ordinário? Em que medida essa classificação pode nos auxiliar na condução dos mesmos casos? Seria esse termo eficaz para nos auxiliar a lidar com um excesso, inapreensível via DSM?

Dado o fato de que o termo se coloca fora da sistematização oriunda do saber psiquiátrico contemporâneo, podemos perceber que ele não orienta e não estabelece condutas clínicas pré-estabelecidas, tal como encontramos nos manuais psiquiátricos. Nessa perspectiva, ocorre algo diferente da ideia de Hipócrates de que é o tratamento de uma doença que revela a sua natureza.

De acordo com Miller (2009a), autor que cunhou o termo:

A psicose ordinária não tem definição rígida. Todo mundo é bem-vindo para dar seu sentido e sua definição da psicose ordinária. Não inventei um conceito com a psicose ordinária. Inventei uma palavra, uma expressão, um significante, dando um esboço de definição, para atrair os diferentes sentidos, os diferentes reflexos de sentido em torno desse significante. Não dei um saber-fazer sobre a sua utilização. Fiz uma aposta de que esse significante poderia provocar um eco no clínico, no profissional (p. 2).

A psicose ordinária relaciona-se, portanto, a algo que deve vir a ser construído. Afinal, dizer que ela não tem uma definição rígida implica considerarmos seu estatuto de inacabado, e muitas vezes opaco. Torna-se uma expressão chave que tem por objetivo colocar a psicanálise a trabalho, em um permanente esforço de apropriação das especificidades do mundo contemporâneo. A expressão utilizada por Graciela Brodsky para se referir ao termo pode ser vinculada diretamente a essa passagem. Para ela, trata-se de um "programa de investigação" (Brodsky, 2011, p. 15).

A citação de Miller nos sinaliza também que a invenção do termo por ele tem como pretensão provocar ecos na clínica, o que diz diretamente da práxis da psicanálise. A nomeação "psicose ordinária" visa, em última instância, orientar um tratamento, ainda que de forma diferente da categorização psiquiátrica.

Dessa maneira, uma das implicações que surgem em decorrência da forma como o termo foi elaborado é que a "psicose ordinária", além de não ser um conceito, não pode ser considerada um diagnóstico. O que nos parece é que ela fornece caminhos para a formulação de um diagnóstico. Independente de considerarmos o saber psiquiátrico (com toda a sua nosologia e fundamentação), ou mesmo as estruturas clínicas tal como a psicanálise as propõe, o fato é que o termo, quando evocado, responde de um lugar diferente, mesmo que este seja um termo que nos remeta diretamente à estrutura das psicoses.

Esse lugar diferente, ao qual essa cunhagem responde, tem raízes próprias. Miller (2009a) nos adverte que a expressão vincula-se a um momento específico da elaboração lacaniana. Tal momento, o psicanalista o denomina como "segunda clínica". Caracteriza-se por ser a clínica em que as nítidas fronteiras entre neurose e psicose apagam-se cada vez mais, onde a diferenciação estrutural torna-se cada vez mais difícil. Aqui, a oposição entre neurose e psicose, os limites que uma estabelece em relação à outra (mesmo que num âmbito teórico), ou as peculiaridades estruturais que concernem a cada quadro perdem força, levando-nos, em contraposição à ideia de um borramento da oposição estrutural, à perspectiva de continuidade. O ápice disso encontra-se na formalização dos nós, onde o que está em jogo são as estratégias de se utilizar as diversas possibilidades de enodamento de um sujeito entre os três registros (real, simbólico e imaginário) e a forma como o sujeito se organiza e se insere no mundo diante desse arranjo. A utilização da expressão "continuísmo" insere-se justamente nessa perspectiva, uma vez que essa teorização relativiza dicotomizações antes observadas no ensino lacaniano, como neurose e psicose. A questão agora passa a ser o que mantém o sujeito dentro de certa amarração entre os registros. A proposta do diagnóstico de psicose ordinária surge como uma derivação dessa elaboração. Assim, ao abordarmos esse apagamento de fronteiras, na "Conversação de Arcachon" (1998), surge a ideia de gradações entre as estruturas.

Ao mesmo tempo, na reunião realizada em Antibes, convenção esta que se seguiu à "Conversação de Arcachon", encontramos, além da criação da expressão "psicose ordinária", elaborações que vão no sentido da formalização de algo que, no final das contas, não é seguro, seja em relação à práxis psicanalítica ou em relação às próprias elucubrações teóricas: "nosotros trabajamos em lo no seguro. No solo no es cierto sino que tampoco es seguro. Nadamos em lo no seguro. Es nuestro forrage, si me permiten, nuestro pasto" (Miller, 2009b, p. 203).

Dessa forma, as gradações encontram sustentação na clínica lacaniana dos nós, definida, principalmente por Miller, como uma clínica continuísta, o que se opõe às rupturas bruscas (desencadeamento), que por vezes caracterizam o surgimento de uma psicose, isto é, o início clínico de uma psicose. A partir da clínica borromeana, desvela-se em nosso horizonte uma possível indiferenciação, posto que tal clínica, em certo sentido, é avessa à categorização, à classificação. A psicose ordinária relaciona-se a uma não fixidez entre os elementos clínicos suficientes para o fechamento de um quadro nosológico. Ao contrário, refere-se a pontos opacos, obscuros em determinados casos, que fazem apelo, por fim, ao inclassificável, ao que há de real e singular nesses sujeitos.

Em seu artigo denominado "Efeito retorno sobre a psicose ordinária", Miller (2009a) nos indica alguns elementos-chave na caracterização do termo. Trata-se de uma perspectiva que tenta apreender pequenos índices que possam orientar a diferenciação entre o caso que se revela a nossa frente e os casos sobre os quais poderíamos nos debruçar a partir da nomenclatura de neuróticos ou psicóticos "extraordinários" sendo que a utilização da expressão "extraordinária" deve ser encarada aqui como aquela que se opõe a expressão "ordinária". Ao passo que na psicose ordinária se torna passível de abordagem por meio de índices que surgem de forma discreta em cada caso, nas psicoses extraordinárias são verificáveis fenômenos como delírios, alucinações ou fenômenos de linguagem. Assim, no caso das psicoses ordinárias, deve-se observar que esses índices que surgem possuem estreita relação com o que Lacan denomina como uma "desordem provocada na junção mais íntima do sentimento de vida no sujeito" (Lacan, 1998, p. 565). Uma desordem, mas que se manifesta de maneira peculiar. Miller (2009a) sugere, como índices dessa desordem, uma organização por meio de uma tripla externalidade.

A primeira delas pode ser considerada como uma "externalidade social" (Miller, 2009a). Refere-se à inserção do sujeito no social, na sua capacidade de desempenhar as diversas funções sociais, relacionadas desde o trabalho até à família. Surgem, nesses casos, um desajustamento, uma inadequação por parte dos sujeitos na capacidade de se ligarem a algo de cunho social. Tal desajustamento, por sua vez, pode aparecer tanto no momento em que não se consegue a vinculação a uma determinada atividade, como quando os sujeitos encontram-se por demais ligados a alguma prática, de forma inabalável e maciça. De acordo com Miller (2009a), essa externalidade se manifesta:

Quando o sujeito não se ajusta, não no sentido da rebelião histérica ou no modo autônomo do obsessivo, mas quando há um tipo de fosso que constitui misteriosamente uma barreira invisível. Quando vocês observam o que chamo de um desligamento, uma desconexão. Vocês veem, então, às vezes, sujeitos indo de uma desconexão social a outra - se desconectando do mundo dos negócios, da família, etc. (p. 10).

O outro tipo de externalidade sinalizada pelo autor pode ser definida como uma externalidade corporal (Miller, 2009a). Refere-se diretamente à relação que o sujeito mantém com seu corpo. O que está em jogo, nesse momento, é a tentativa do sujeito de se apropriar de seu corpo, ou mesmo de constituir um corpo, seja por meio de um uso singular de tatuagens, piercings, ou outros tipos de intervenção sobre o corpo. Contudo, vale ressaltar que a consideração desses elementos deve dar primazia ao tipo de relação entre o sujeito e essas práticas corporais, afinal, existe o risco de cairmos no terreno da histeria: "não se pode falar de outro modo disso senão em termos de tonalidade - isso não tem o mesmo tom - e em termos de excesso - isso excede as possibilidades da histeria. A histeria está enquadrada pelos limites da neurose, ela é limitada pelo menos-fi." (Miller, 2009a, p. 12).

Por fim, torna-se necessário ressaltar a terceira externalidade, caracterizada como subjetiva (Miller, 2009a). O elemento que melhor a sinaliza é a experiência de um vazio, um buraco não dialetizável, que permanece fixo. Algo se mantém indefinido, sem nitidez, retornando como uma experiência nebulosa, informe. Como exemplo desse vazio, é possível citarmos o caso apresentado por Hervé Castanet na "Conversação de Arcachon" (1998), denominado "Um sujeito no nevoeiro". Castanet pontua o seguinte a respeito do caso:

O nevoeiro, igualmente, pode fazer pensar no nevoeiro da neurose, sob a modalidade do recalque, o branco que vem recobrir essa mensagem ignorada do sujeito, mas já inscrita, ao passo que o interesse nesse caso, é que muito precisamente, não tem o mesmo estatuto. Não é o nevoeiro do recalque, é, antes, o próprio branco, ali onde isso não está inscrito (Deffieux & Dewambrechies - La Sagna, 1998, p. 112-113).

O que observamos é que mesmo que não possamos considerar a "psicose ordinária" uma categoria, ainda assim há uma tentativa de diferenciá-la das estruturas. Seja em relação à neurose obsessiva ou à histeria, coloca-se uma pergunta que tem como objetivo principal singularizar as psicoses ordinárias. O principal contraponto aqui são as estruturas clínicas, o que, de certa forma, parece nos orientar no tipo de uso que podemos fazer do conceito. Mesmo que não seja a mesma coisa, o diálogo constante entre a psicose ordinária e as estruturas clínicas psicanalíticas pode fornecer alguma orientação para o trabalho clínico.

Assim, nos parece que, mesmo que o termo "psicose ordinária" não possa ser considerado um conceito, um diagnóstico ou uma classificação psiquiátrica, a ele está reservado um valor operatório para a clínica psicanalítica, o que vai além de considerá-lo um "programa de investigação" (Brodsky, 2011, p. 15), pois a expressão torna-se condição para a própria investigação. Tal valor, em nossa perspectiva, aproxima-se da argumentação desenvolvida por Santos (2009). Aqui, procura-se demonstrar de que forma os tipos clínicos (neurose, psicose e perversão) se aproximam da noção de tipo ideal formulada por Max Weber. Para Weber, o tipo ideal seria um instrumento com o objetivo de dar suporte ao pensamento. Assim, "o tipo ideal não deve ser tratado como uma hipótese, e sim como um instrumento do pensamento que aponta o caminho para a formação de hipóteses" (Santos, 2009, p. 16). Deve ser considerado como um elemento metodológico que proporcione uma melhor apropriação e compreensão do mundo. O tipo ideal não se encontraria no mundo real.

O que se encontra no fundo de uma formulação como a dos tipos ideais seria a impossibilidade de classificação. O ser falante não é passível de classificação. Algo escapa no momento em que se tenta categorizá-lo. Algo que deve ser considerado fundamental para que possamos abordar o sujeito, para que possamos conduzir um tratamento. Por esse motivo, é fundamental destacarmos que:

Tanto a propósito dos tipos diagnósticos quanto acerca dos tipos libidinais - para não falar dos tipos de caráter descobertos ao longo do trabalho analítico -, que sua validade depende da fecundidade das hipóteses que eles nos autorizam a formular a esse respeito (Santos, 2009, p. 17).

Seria legítimo colocarmos nesse mesmo nível o caso das psicoses ordinárias? Afinal, parece-nos que os apontamentos que Miller nos faz, ao dizer de seu interesse em coletar as ressonâncias que o termo provoca, podem diretamente se relacionar à possibilidade de que a psicose ordinária se revele enquanto um instrumento que fomente o pensamento e que o sustente. Trata-se, efetivamente, de algo de cunho epistêmico (Miller, 2009a). Ao mesmo tempo, a partir das características que definem a "psicose ordinária", tal como vimos acima, torna-se possível aproximá-la de um tipo ideal, um tipo ideal intrinsecamente ligado à contemporaneidade.

Assim, a tentativa de apreensão das psicoses ordinárias mostra algo de valor, tanto no nível puramente teórico como clínico, somente no momento em que nos fornece novos caminhos para a formulação de hipóteses que nos auxiliem na lida com os impasses contemporâneos. Possibilita, nessa perspectiva, um uso peculiar das classificações psiquiátricas, uso este que pode ser inclusive caracterizado como mais preciso, mais agudo. Ao mesmo tempo, a utilização tanto do termo "psicose ordinária" como das classificações vão na mesma direção, isto é, daquela que busca a abordagem do sujeito enquanto uma exceção, enquanto aquele que não se enquadra em nenhuma regra, ou seja, um efeito que desloca o caso da regra (Miller, 2003). Um excesso que engendra um saber, muitas vezes de forma contingencial.

 

A contingência na saúde mental: a política da psicanálise

Nesse sentido, o que observamos, por meio da breve reflexão sobre as psicoses ordinárias, é a possibilidade de se subverter o uso das classificações, atuando-se justamente sobre aquilo que elas deixam escapar. Se classificamos, é no intuito de tentar lidar com algo que cotidianamente nos embaraça, nos coloca impasses e a trabalho. A contingência ganha destaque nessa perspectiva.

A contingência, portanto, torna-se nosso principal balizador, capaz de quebrar um pouco da rigidez do saber científico, abrindo a possibilidade de recriações, reinvenções. No trabalho em equipe, para aqueles que operam com a psicanálise é justamente essa perspectiva que abre a possibilidade para que nos debrucemos sobre aquilo que cada caso traz de único, de singular. A singularidade de cada caso pode assim nos orientar em cada tratamento.

França Neto (2009), no final de seu artigo intitulado "O impasse causal da psicopatologia - problema ou solução para a clínica?" nos traz uma interessante inversão, ao afirmar que:

Se a questão etiológica é aquilo que se apresenta como o grande impasse da psicopatologia, ela é também o que possibilita com que essa disciplina multiplique-se e enriqueça suas formas de abordagem, impedindo seu aprisionamento em qualquer forma exclusiva de saber" (França Neto, 2009, p. 24).

Qual seria, portanto, a política da psicanálise frente esse quadro? De que forma ela poderia se colocar nesse estado de coisas?

Nos últimos tempos, essa tem sido uma pergunta fundamental para aqueles que se propõem a atuar por meio da psicanálise no âmbito institucional. No que se refere à saúde mental, observamos, de forma radical, no desenrolar de nossa reflexão, que existem diversas condições que proporcionam o surgimento de variados saberes. A psicopatologia tal como se estrutura proporciona um ambiente fértil para isso.

No que diz respeito à psicanálise, alguns elementos merecem especial ênfase. Talvez o principal seja o seguinte: a psicanálise pode ser caracterizada como um saber que se propõe a se debruçar sobre a singularidade de cada caso. Mesmo que não ignoremos os apelos atuais de que se faça um projeto terapêutico individual para cada paciente, e que cada paciente deve ser tratado como um cidadão de direitos, ainda assim corremos o risco de que os saberes que circulam no trabalho em equipe entrem em um vigoroso embate, cada um defendendo a sua própria concepção de individualidade a ser imposta na orientação dos casos. Encontramo-nos no risco de nos submetermos a um debate democrático, buscando-se por fim uma decisão pela maioria.

A psicanálise introduz a possibilidade de que o caso se imponha como o principal guia para que o tratamento ocorra. Viganò (1999), nesse sentido, utiliza o termo "autoridade clínica" como elemento fundamental para o trabalho em equipe e a construção dos casos, caracterizando-o como:

Vários profissionais, enfermeiros, médicos, psicólogos, assistentes sociais, psiquiatras e também, eventualmente, os educadores e a família, se submetem a autoridade do professor, que diz o que deve ser feito. Este caminho, ele é inevitável, nós não podemos regredir ao saber do professor. Só que a construção é um tipo de trabalho que pode levar, através deste debate democrático, a um ponto de orientação, uma autoridade, um ponto que faça a equipe tomar uma decisão. Minha proposta é que seja a construção do caso a produzir uma nova autoridade, que eu chamaria autoridade clínica (Viganò, 1999, p. 46).

O termo autoridade, tal como o emprega Viganò (1999), contrapõe-se radicalmente a uma das possíveis consequências da democracia, o de que a decisão seja sustentada por uma opção da maioria. A estratégia que ele usa passa justamente pela democracia, uma vez que ele considera que ela se configura como um método que proporciona o surgimento de uma autoridade, a autoridade clínica.

A forma como Viganò (1999) chega ao termo se encontra, em última instância, com um paradoxo. O agir democrático leva a uma autoridade, que pode ser vinculada a um estado de exceção. O caso clínico, portanto, deve ser tratado como uma exceção, exceção esta que foi depreendida do trabalho em equipe, de uma discussão que levou em conta os diferentes saberes do serviço. Nesse sentido, ao se trabalhar com a autoridade clínica na discussão dos casos, mostra-se outro lado, em que a verdade é colocada ao lado do sujeito, não destinada a ser dividida, tal como Miller (2011) menciona ao se remeter à democracia.

Por meio dessa perspectiva, assistimos a possibilidade do surgimento no serviço de um estado de exceção. A conduta de um tratamento, no limite, implica que o tratamento se torne uma exceção. O que circula "para todos", o que á válido "para todos", pode não ser em um determinado caso. É nesse momento que a equipe deve levar em conta o que há de singular em cada caso, e a partir daí formular novas propostas de trabalho:

Si hay algo a lo que se le debe hacer lugar en el psicoanálises, es a que todos lós casos son diferentes, y que es mucho mejor funcionar con este axioma, esta regla, esta norma. No es lo mismo hoy, ayer e mañana, y fulano nunca es igual a mengano. Por supuesto es más cansador, pero me pregunto si no es mucho más interesante. Creo que es mejor romperse la cabeza para saber cómo hacer circular um poco de deseo em todo esto; e solo hay uma manera de hacerlo: escapando al para todos y, ao miesmo tiempo, al menos uno o al más uno, al que esto llama inevitablemente (Miller, 2001, p. 64).

Em consonância com o que nos diz Miller, portanto, o psicanalista inserido em uma instituição orienta-se por uma política que enfatiza a exceção. Tal ênfase contrapõe-se ao regime homogêneo, do "para todos", resultante de traços identitários. Teríamos, em oposição, um coletivo operacionalizado pelo "não todo" partilhado por todos, que no lugar de ser determinado pela identificação e suas consequências segregativas, determina-se pela ausência compartilhada de qualquer identidade ou predicado, realçando, no caso a caso, aquilo que recusa em se deixar classificar. Se, em um serviço de saúde mental, fazemos com que algo da democracia circule, é para que, em última instância, torne-se propício o advento da singularidade, o que encontra seu ápice com o surgimento de uma autoridade, de uma autoridade clínica. Trata-se de uma autoridade capaz de instituir um estado de exceção, e de exigir que uma conduta singular seja formulada e aplicada, mesmo que tal conduta influa sobre o seu próprio estado.

Dessa maneira, torna-se possível que se proporcione à instituição possibilidades de giro. Um serviço de saúde mental, que se utiliza amplamente de um saber que encontra dificuldades em se solidificar (a psicopatologia), nos traz novas possibilidades de intervenção a partir do momento em que se utiliza de dispositivos democráticos para criação de um estado de exceção, a autoridade clínica.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Diego Alonso Soares Dias
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Oswaldo França Neto
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Recebido em: 01/06/2012
Revisado em: 05/09/2013
Aceito em: 29/09/2014

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