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Revista Subjetividades

Print version ISSN 2359-0769On-line version ISSN 2359-0777

Rev. Subj. vol.14 no.3 Fortaleza Dec. 2014

 

ARTIGO ORIGINAL

 

A letra chinesa e a clínica lacaniana

 

The chinese letter and lacanian clinic

 

La letra china y la clínica lacaniana

 

La lettre chinoise et la clinique lacanienne

 

 

Fabiana C. RattiI; Ivan Ramos EstevãoII

IPsicanalista, Mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP, Membro e Pesquisadora do Laboratório de Saúde Mental Coletiva (LASAMEC) da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP)
IIPsicanalista, Mestre e Doutor em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, Professor Doutor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da Universidade de São Paulo (USP)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo tem como objetivo apresentar e discutir a influência da escrita chinesa na obra do psicanalista francês Jacques Lacan (1901-1981), reformulando e redirecionando sua prática clínica, bem como sua teoria. Partimos de três textos-chave para encaminhar a discussão. O primeiro é de Jacques Lacan, que esboça ideias sobre o inconsciente como escrita, as quais ele desenvolverá mais tarde. Então recorremos a Colette Soler, em cujo texto ela passa de uma lógica de inconsciente-linguagem para um inconsciente-alingua, marcando a questão do real na escrita do inconsciente para Lacan. Retornamos, pois, a Jacques Lacan, quando o psicanalista aprofunda a questão da Letra e sua repercussão no atendimento clínico. O artigo apresenta a Letra como marca do sujeito, recorrendo também a textos de Freud, passando pela noção freudiana de sintoma, para enfim chegar nas últimas lições de Lacan, com sua construção de nó borromeano e o quarto nó como sinthoma. Para finalizar, há uma reflexão sobre o processo de análise, inter-relacionando a posição lacaniana de que "a relação sexual não existe", de forma a articular com o conceito de Letra exposto durante o trabalho.

Palavras-chave: psicanálise lacaniana; letra; escrita chinesa; real; alingua.


ABSTRACT

This paper intends to show and discuss the influence of Chinese writing on the work of the French psychoanalyst Jacques Lacan (1901-1981) reestructuring and reorienting his clinical practice, as well as his theory. We started using three key texts to stimulate discussion. In the first one, Lacan shows ideas on the inconscient as a writing process, which he will develop later on. Then, we resorted Colette Soler, in which text she develops a logic of inconscient-language for an inconscient-lalangue, stressing the real issue on the writing of inconscient for Lacan. After that, we return to Jacques Lacan and we discuss deeper the Letter issue and its influence on the clinical attending. The paper works the Letter as a mark of the subject, and for that, also uses Freud's writings discussing the notion that Freud has about symptom to get at the teachings of Lacan with his construction of the Borromean knot and the fourth ring as a sinthome. Finally, the analysis process is discussed integrating Lacan's view that "there is no sexual relation", in such way to match the concept shown in the study.

Keywords: lacanian psychoanalysis; letter; chinese writing; real; lalangue.


RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo presentar y discutir la influencia de la escritura china en la obra del psicoanalista francés Jacques Lacan (1901-1981) replanteando y reorientando su práctica clínica así como su teoría. Se empieza con tres textos clave para el desarrollo de la discusión. El primero de Jacques Lacan esboza ideas del inconsciente como la escritura que desarrollará más tarde. Entonces se recurre a Colette Soler en cuyo texto cambia desde la lógica del inconsciente-lenguaje al inconsciente-lalengua destacando la cuestión de lo real en la escritura del inconsciente propuesta por Lacan. Volvemos después al trabajo de Jacques Lacan cuando profundiza en la cuestión de la Letra y su repercusión en la atención clínica. El artículo presenta la Letra como una marca del sujeto y, para ello, se recurre también a los escritos de Freud pasando por la noción de síntoma, para llegar al final a las últimas lecciones de Lacan con su construcción de nudo borromeo y del cuarto nudo como Sinthome. Para concluir hay una reflexión sobre el proceso de análisis y la interrelación con la posición lacaniana de que "la relación sexual no existe" como modo de articularlo con el concepto de Letra expuesto a lo largo del trabajo.

Palavras clave: psicoanálisis lacaniano; letra; escritura china; real; lalangue.


RÉSUMÉ

Ce texte a le but de présenter et de discuter l'influence de l'écriture chinoise dans l'œuvre du psychanalyste français Jacques Lacan (1901-1981), tout en reformulant afin de donner une nouvelle direction à sa pratique clinique, de même qu'à sa théorie. D'abord, on a pris trois textes-clés pour lancer la discussion. Le premier dans lequel Lacan trace des idées sur l'inconscient comme étant une écriture, ce qu'il développera plus tard. Nous avancerons alors avec Colette Soler, dans un texte où elle fait dérrouler une logique d'inconscient-langage qui passe à un inconscient-lalangue, en soulignant la question du Réel dans l'écriture de l'inconscient d'après Lacan. En suite, alors, on retourne aux théories de Jacques Lacan, où l'auteur discute plus profondément la question de la Lettre et sa répercussion pendant la séance clinique. Le texte pose en question la lettre comme une marque du sujet, il fait même aussi appel à des textes de Freud, en passant par la notion freudienne du symptôme pour arriver aux derniers enseignements de Lacan avec sa construction de nœud borroméen et le quatrième nœus comme sinthome. Pour finir, on propose la reflexion sur le processus d'analyse pour faire des associations entre la théorie lacanienne de « ne pas exister rapport sexuel » et le concept de Lettre exposé tout au long de ce travail.

Mots-clés: psychanalyse lacanienne; lettre; l'écriture chinoise; réel; lalangue.


 

 

A obra de Jacques Lacan apresenta constantes citações e diálogos com as mais diversas áreas do saber. Entre elas, observamos o estudo da cultura e da língua chinesa desde o começo de seu ensino. No texto "Lacan e o pensamento chinês" (Cheng, 2012), François Cheng, professor de Lacan, relata os interesses do aluno nos vários anos de aula, um "mergulho nas doutrinas chinesas" com "sessões de trabalho obstinadas que, às vezes, duravam horas" (p. 164) de interesses e interrogações do psicanalista. No início dos anos 1970, segundo Cheng, "o essencial da teoria de Lacan já estava formulado" (p. 164), então interroga: "O que (Lacan) ganhou com isso?" (p. 164).

Ao que podemos observar, a psicanálise lacaniana muito ganhou com os estudos, pois Lacan reformula e redireciona aspectos importantes da teoria e da prática a partir de 1971, com o Seminário 18: De um discurso que não fosse semblante (1971/2009a), chegando, inclusive, a declarar, em 20 de janeiro de 1971: "Percebi uma coisa: é que talvez eu só seja lacaniano por ter estudado chinês no passado" (p. 35).

Neste artigo, partiremos de "Lituraterra" (2003), no qual Lacan apresenta em pedra bruta um diamante que seria lapidado no final de seu ensino, em seus últimos Seminários. De um inconsciente-linguagem, Lacan passa para um inconsciente-alingua. A partir da hipótese de um inconsciente estruturado como linguagem do tronco indo-europeu, passa para a hipótese de um inconsciente marcado por um caractere chinês. Essa passagem será discutida no artigo, até chegarmos ao texto A Terceira (Lacan, 1974), em que define melhor o que chama de Letra. Como guia nesse percurso, tomaremos a questão de: qual a marca do sujeito? Levando à seguinte questão: qual a direção possível do tratamento articulada sob referencial da Letra?

Freud, em O Projeto para uma psicologia científica (1895/1996a), utiliza letras gregas para começar a explicar o aparelho psíquico, deixando posteriormente essa ideia. Em 1957, Lacan, inspirado pelas línguas do tronco indo-europeu, apresenta A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud (1998), em que traz as diretrizes da clínica lacaniana representada em sua máxima: "O inconsciente é estruturado como uma linguagem". Para explicar e sustentar esta posição, utiliza-se dos conceitos de Ferdinand de Saussure, linguista de origem suíça, cujas elaborações teóricas propiciaram o movimento estruturalista, além de grandes pensamentos da linguística. Lacan (1998) utiliza o termo letra e é explícito: fala do "efeito significante do que aqui chamamos de letra" (p. 498). Defende sua proposição de pensar o inconsciente como estrutura de linguagem, como efeito de significante, sendo absolutamente um pensamento freudiano: "Freud exemplifica de todas as maneiras que esse valor de significante da imagem nada tem a ver com sua significação..." (1998, p. 514). Enfocar um inconsciente estruturado como linguagem é pensar que o acesso a ele é via significantes, e que o sintoma também segue uma estrutura de linguagem: "O sintoma é uma metáfora, quer se queira ou não dizê-lo a si mesmo, e o desejo é uma metonímia, mesmo que o homem zombe disso" (1998, p. 532), raciocinava Lacan neste momento de sua construção teórica.

Podemos dizer que Lacan passou a se dizer lacaniano, a se posicionar como alguém que criou algo realmente inovador, a partir de seus estudos da língua chinesa, como ele mesmo declarou. Segundo Alleton (2010), linguista e sinóloga, a escrita chinesa é formada por uma série de elementos separados uns dos outros por espaços iguais. Até meados do século XX, eram dispostos em colunas verticais, traçados de cima para baixo, da direita para a esquerda; agora, são dispostos em colunas verticais de cima para baixo. Esses elementos, designados pela palavra Zi, são os conhecidos caracteres, letras ou sílabas, que são tão numerosas que ultrapassam sessenta mil. "Os caracteres são formas gráficas independentes, isoladas materialmente umas das outras por um espaço e invariáveis no sentido de que seu traçado não muda. Sejam quais forem as formas vizinhas" (Alleton, 2010, p. 11).

A letra, pensada como letra chinesa, inclui a escrita que se forma na materialidade, assim como um caractere. A escrita antiga era feita a partir de um repertório de formas que representavam objetos. Hoje em dia, os caracteres são mais esquematizados, explica Alleton (2010). No momento em que a escrita foi estabelecida, as formas passaram a se relacionar a palavras, e não mais a imagens. Existem alguns estilos de escrita, e a aprendizagem começa sempre pelo "estilo regular", no qual a estrutura dos caracteres aparece de maneira muito clara sem nenhuma ambiguidade.

Para a escrita chinesa, a caligrafia é essencial no texto, e compor um poema original ou escolher uma obra adaptada supõe uma ampla cultura. Os traços constitutivos da escrita são essencialmente segmentos de retas, mais ou menos alongados e diversamente orientados, entre o traço levantado e o baixado, havendo somente a diferença de direção: alguns caracteres têm um único traço e outros têm 25. Não se pode afirmar conhecer um caractere enquanto não se sabe escrevê-lo. Muitas vezes, os chineses simulam com a mão o traçado do caractere. A fonética é outro ponto relevante. Diante de uma lista de caracteres, o leitor poderá supor que são lidos praticamente do mesmo modo, porém, se ele não conhecer o valor ling (de ordem, comando) para pelo menos um dos caracteres da lista, não terá como adivinhar, adverte Alleton (2010). Ou seja, a escrita chinesa inclui a materialidade da letra, a forma, a espessura dos traços e a disposição dos caracteres.

No alfabeto ocidental com 26 letras, cada letra tem um fonema que combina com a letra vizinha: c+a = ca. A letra tem um som, e a união das letras alcança um outro som, combinando bastante entre si. Alleton (2010) explica que cada letra (caractere) tem um som, porém são mais de sessenta mil e se organizam numa sequência definida na sílaba, sendo acompanhada de tons distintos. Ainda precisamos incluir que a escrita chinesa se distancia da língua falada: "Se uma sílaba for ouvida fora de qualquer contexto, não se saberá por qual caractere transcrevê-la. De fato, o caractere corresponde ao mesmo tempo a um segmento sonoro, a sílaba, e a uma unidade de sentido" (2010, p. 18), esclarece a sinóloga.

As crianças alfabetizadas no ocidente, através de combinatórias, são capazes de ler todas as palavras que encontram, talvez errando na pronúncia e não sabendo o significado da palavra, mas serão capazes de reconhecer suas letras, sílabas e combinatórias no conjunto da palavra. Alleton (2010) explica que o mesmo não ocorre na China, pois cada sílaba é escrita de forma muito diferente, conforme os sentidos que ela possui. Com mais de mil letras, a criança consegue ler apenas textos fáceis. Se souber mais de dez mil e encontrar um caractere que não conhece, não será capaz de deduzir sua pronúncia e seu sentido, se fizer parte da língua falada, então conseguirá entender pelo seu contexto. Além do fato de que o mesmo caractere pode ter muitos sentidos, dependendo do contexto em que estiver, afirma a autora.

Segundo Inty Mendoza (2014), sinólogo e professor de cultura e língua chinesa da UNESP, em sua tese A Poesia e a formação do erudito na China Clássica - transposição cultural do chinês para o português, os caracteres são divididos por categorias:

Os caracteres chineses podem ser divididos em quatro grandes categorias: pictogramas, ideogramas, radical-fonéticos e "por empréstimo". Percebe-se, portanto, que o termo "ideograma" - o desenho de uma ideia - refere-se a uma das categorias da escrita chinesa que acabou por denominar toda ela. Tem-se optado pelo termo "caractere chinês" para toda a classe de símbolos utilizados nessa escrita, contudo, utilizo aqui o termo "ideograma" latu sensu pelo hábito em nossa língua ao se referir à escrita chinesa, mas também strito sensu pelo fato de que é essa categoria de caractere chinês que permite uma particular apreciação como forma de expressão que "recorta" uma forma de conteúdo com interpretantes visuais e esquemáticos. (p. 48)

Mendoza (2014) nos elucida que, ao falarmos em escrita chinesa, estamos nos referindo aos caracteres, mais exatamente ao ideograma, o desenho de uma ideia utilizado na grafia.

A partir desta introdução a respeito da complexidade do sistema de escrita chinesa, podemos ter uma noção da inversão de raciocínio que Lacan propunha, saindo do raciocínio da linguagem ocidental, para a língua oriental. Mendoza (2014) nos explica quão singular são os ideogramas, bem como a referência ao múltiplo, pois são inúmeras as possibilidades na escrita chinesa. Lacan utiliza-se desse arsenal para apreender o sujeito, de forma a chegar mais perto e ser ainda mais clínico. Vamos à construção lacaniana.

 

Lituraterra - Letra Ou Lixo (lettre Ou Litter)

Lacan (2003) inicia "Lituraterra" com uma de suas "diversões" favoritas: a etimologia e o jogo de palavras com suas semelhanças e diferenças. Ou seja, brinca com as formações do inconsciente e a escuta do analista: os chistes, os atos falhos, os trocadilhos. Neste momento, em 1971, já cita James Joyce, escritor irlandês cuja obra será trabalhada posteriormente: "No equívoco com que James Joyce desliza de a letter para a litter, de letra/carta, para lixo" (p. 15). De letra a lixo, a esgoto, a dejeto... Literatura como acomodação dos restos, dos escritos... Quando estamos falando com outro e um ato falho nos assola, um lapso nos atropela, rimos e dizemos 'é besteira', 'que engano', 'deixe pra lá', 'não é nada'...

É sobre este resto, sobre o que é 'deixado para lá', de que se trata a psicanálise. Lacan, em "Lituraterra" (2003), liga a psicanálise à literatura e diz que Joyce conseguiu, a partir do resto, do lixo, do que é besteira, o que nenhum outro autor havia conseguido até então: fazer uma obra prima! "James Joyce (...) sabia deslizar, com agilidade, pelo equívoco que vai de LETTER (letra) a uma LITTER (sujeira, lixo)" (Campos, 1995, p. 71). Então, não é tanta besteira assim. Existe algo desse resto - que é um lixo, que tem valor - que precisa ser escutado e reciclado. E Freud deu início a esta escuta. O psicanalista Marcus André Vieira (2003), em seu artigo "Sobre o Japão de Lacan", refere-se a Lacan em "Lituraterra" (2003):

No nosso mundo, produzimos sentido pela articulação de significantes sem sentido em si. Isso só é possível a partir da crença em um sentido fundamental, primordial e vazio (encarnado pelo significante do Nome do Pai, apenas uma crença de que alguém, em algum lugar sabe o sentido das coisas). (Vieira, 2003, p. 5)

O escritor James Joyce conseguiu interrogar a literatura a respeito da articulação de sentido, pois o homem ocidentalizado, mergulhado na língua indo-europeia, sofre o efeito de sua lógica e da esperança em um sentido único, e é este ponto que Vieira (2003) ressalta. Por estarmos mergulhados nesta lógica ocidental, como psicanalistas, temos a tendência a ir em busca de sentido para explicar o sujeito; assim, recobrimos o real, tamponamos a angústia e a falta, fechando as possibilidades do sujeito. Lacan sempre trabalhou para que não caíssemos nesse engodo. Seus esforços foram na direção de sair da busca de um sentido que explique e justifique toda a questão do sujeito para, ao contrário, mobilizá-lo para que fale, articule, saia dos fenômenos, indo em direção às abstrações e busque novas formas de representar o real. Esta posição já está em Freud quando ele abandona a teoria da sedução e passa para a discussão da realidade psíquica.

Na segunda parte de "Lituraterra" (2003), Lacan conta sua viagem ao Japão enfocando o sobrevoo pela planície siberiana, com seus sulcos, marcas e traços, associa-os aos traços de uma escrita chinesa, às formas e sombras de sua arte. Segundo Alleton (2010), a escrita chinesa é regida por regras, e a construção é feita de traços cujos tipos podem ir de um a mais de 30 traços para confeccionar um caractere, os quais devem ser traçados numa ordem determinada. E, como vimos anteriormente. Chegam a ser mais de sessenta mil combinações diferentes. Podemos pensar nos sulcos da planície e na escrita chinesa como traços do sujeito? O traço unário e seu possível apagamento, seria talvez uma rasura? Lacan refere-se ao traço unário como marca da letra.

Ao falar em traço unário, Lacan aponta para a identificação fundamental do sujeito, a pedra angular que o funda. Regido pela clínica estruturalista, Lacan colocava o traço unário como marca de significante, S1, significante mestre. Nesse texto, ele apresenta a ideia de que, mesmo na marca fundamental do sujeito, precisamos incluir o real, o acaso, o insabido. E seria apenas um traço ou uma constelação? Alguns traços, como marca fundamental que podemos brincar que seria uma letra? Um escrito? Uma caligrafia única, a marca ímpar, um conjunto de traços ou uma constelação da ordem do real, absolutamente singular?

Assim, Lacan diferencia letra, caractere japonês, diagrama, de significante. Segundo Alleton (2010), é possível decompor um caractere num certo número de traços e distinguir alguns elementos gráficos que se verificam em toda uma série de caractere. Porém, adverte a estudiosa, quando fala em signo mínimo, não se trata de significante (grafia) e significado (sentido), mas da relação de um com o outro, e desse conjunto com uma sílaba. E acrescenta: "O sentido do caractere é independente dos elementos gráficos que o compõem: não se pode deduzir o sentido de um caractere a partir de sua forma material" (p. 22).

Pensar num inconsciente tendo como traço fundamental o traço unário, marcado por um significante mestre, é apostar em um lugar onde se instala o Nome-do-Pai, pelo traço único, e assim, a partir do S1, seguir a cadeia. Este raciocínio tomou conta de mais de uma década de pesquisa de Lacan baseada na linguística saussuriana. Na década de 1970, o psicanalista francês aprofunda o estudo da língua chinesa e relativiza ainda mais a noção de sentido. O analista pode ver algo, como uma forma material típica de um diagrama, mas nem sempre pode deduzi-lo. O sujeito precisa falar mais, ainda.

Lacan (2003) aprofunda-se em suas pesquisas, sobretudo em seu senso clínico, e pulveriza o traço, passa a refletir sobre a ideia de haver mais de um traço, assim como o caractere, talvez enxames e constelações: "O fato dele (sujeito) se apoiar num céu constelado, e não apenas num traço unário, para sua identificação fundamental..." (p. 24), promove um referente especial, que modifica o status do sujeito, afirma Lacan. De um significante para um enxame deles. O acesso aos traços seria via significante, via semblante, mas a marca, a letra, é uma escrita no real, afirma Lacan.

A letra, o enxame de traços, marca o litoral do sujeito, o mais-de-gozar particular de cada um, localiza-o. Letra, terra do sujeito. Não é preciso, necessariamente, uma explicação simbólica para sua natureza. É do escrito que se tira a lógica do sujeito, e assim é possível a intervenção do analista, via semblante de objeto a, no ato do analista. Intervir no real, simbólico e imaginário, de forma a, incluindo o inesperado, o surpreendente do real, atingir o modo de gozo do sujeito, tangenciando sua letra.

 

Letra - Marca do sujeito

No Seminário R.S.I., na lição de 21 de janeiro de 1975a, Lacan afirma que o inconsciente pode se traduzir por uma letra.

O que é dizer o sintoma? É a função do sintoma, função a se entender como o faria a formulação matemática: f(x). O que é esse x? É o que, do Inconsciente, pode se traduzir por uma letra, na medida que, apenas na letra, a identidade de si a si está isolada de qualquer qualidade. Do Inconsciente todo um, naquilo que ele sustenta o significante em que o Inconsciente consiste, todo um é sucetível de se escrever como letra. (...) Mas o estranho é que é isto que o sintoma opera selvagemente. O que não cessa de se escrever no sintoma vem daí. (Lacan, 1975a p. 23)

Lacan localiza, aqui, a letra como da ordem da identidade do sujeito. Algo muito característico, algo que se repete, algo que se escreve. Cada sujeito tem uma letra. O livro O significante, a letra e o objeto, organizado por Charles Melman (2004), apresenta um colóquio em que se discutiu sobre a letra. O que seria? O que Lacan estaria querendo dizer? O que podemos entender por letra em Lacan?

Josiane Quilichini (2004) faz um belo recorte: "É pela letra que o desejo consegue ser lido e reconhecido" (p. 9). Mais à frente, continua:

A letra não é mais apenas aquela que dá a verdade do desejo ou do prazer, mas aquela que vai dar a verdade do objeto causa do desejo e do gozo que o acompanha. Sua função é, então, aqui, vir representar o real, representar esse objeto a que o significante deixa de representar. (p. 10)

Melman (2004), no mesmo colóquio, expõe que uma das funções da letra é ser representante do objeto a, "ela forja o furo no simbólico". O desejo, a direção que o sujeito segue é uma das formas de brincar com a castração, com a incompletude elementar de cada sujeito. Assim, o sujeito contorna o furo com projetos, produções, sonhos e realizações.

Se pensarmos a materialidade dos registros - Real, Simbólico e Imaginário - como uma alusão à letra chinesa, podemos dizer que, muitas vezes, o R-S-I é pas-de-sens, ou seja, não é necessariamente compreensível pela via de sentido. Existem muitos outros fatores, assim como a língua oriental: o tom, a combinação, o fonema, a forma de ler. Acreditamos terem sido essas diferenças que Lacan estudou e passou a formular em suas abstrações sobre o inconsciente. Mais do que o sentido da letra, o que passa a ser relevante é o efeito que a escrita causa, é a posição que ela ocupa frente às outras e o efeito que esta marca produz na vida do sujeito, a inclusão do real.

 

Inconsciente - A lingua

Em R.S.I, Lacan (1975a) propõe uma amarração borromeana entre o Real, o Simbólico e o Imaginário, na qual o sujeito, frente ao real, responda via sintoma ou via sinthoma, caso o sujeito responda com um saber-fazer (savoir-y-faire), com seu estilo; e a obra de James Joyce é uma evidência deste último registro. Joyce, diz Lacan (2003), é um fato de litoral, e não se sustenta pelo semblante. Joyce é revolucionário na literatura e, além de construir, a partir de um saber-fazer, uma marca particular de estruturação psíquica, ele ainda consegue deixar sua impressão digital, apresentando uma produção que o singulariza na cultura, regulariza o laço social e o torna imortal.

O sintoma, deste último Lacan, é um 'evento do corpo', um amarramento que tenta encobrir a falta. É uma resposta frente ao real, uma resposta possível da articulação R.S.I. frente às dificuldades e ao inesperado que a vida apresenta. Lacan, através do sinthoma, com esta nova grafia, marca que, frente ao real, é possível outra saída que não somente a doença, o sintoma ou apenas a tradução do sintoma em significantes. A obra de James Joyce foi um saber-fazer, um sinthoma apresentado pelo escritor que o estabilizou enquanto sujeito e o nomeou frente à sociedade. Além disso, Joyce apresenta uma obra da ordem da letra. Palavras que não têm sentido em si, mas que, interligadas, podem gerar múltiplos sentidos, pode-se ir a muitas direções. Por um lado, torna a obra muito trabalhosa de ser lida; por outro, aqueles que mergulham em sua leitura podem navegar de forma magistral, de um modo até então não visto, na literatura. Do lixo fazer letra... a letra levar ao lixo... Do sem sentido levar a múltiplos sentidos... ou a nenhum...

Logo no começo do Seminário XXIII, de 1975a, Lacan reflete sobre a alingua como o élan, como o que está na origem do sintoma, sobre o que marca a lei e possibilita a nomeação. Em Inconsciente Real (2009), Colette Soler discute sobre os dois inconscientes: o inconsciente-linguagem do Lacan estruturalista e o inconsciente-alingua, deste último momento lacaniano. O inconsciente-linguagem é uma estrutura de inconsciente mais voltada para o significante, portanto, mais do universo simbólico; desta forma, os modos de interpretação e o acesso ao inconsciente seriam da ordem do simbólico. O inconsciente-alingua inclui um para além do simbólico; inclui o corpo imaginário e o que está à espera de se escrever do Real. Ter esta noção de inconsciente possibilita novos manejos e intervenções que extrapolam o domínio do simbólico. Assim, o analista ganha maior manobra clínica e nem tudo precisa passar pela explicação, ressignificação, abstração simbólica e destituição subjetiva para haver efeitos clínicos.

Alingua é mais uma homofonia que Lacan utiliza para a construção de seus conceitos. Vem de lallation, que parte do latim lallare, designado o la-la para fazer dormir as crianças e também a tagarelice das crianças que ainda não falam, mas já produzem sons. "A lallation é o som desconectado do sentido, porém, por outro lado, não desconectado do estado de contentamento da criança" (Soler, 2009, p. 26). Alingua evoca a língua antes da linguagem estruturada sintaticamente. Está ligada à língua materna. Também não pode ser confundida com as línguas, como idiomas, por isso a junção no singular: alingua, numa função translinguística.

Alingua não tem sentido. Qualquer dos elementos pode ter qualquer sentido. É um momento anterior à aquisição do que é estabelecido, do que se convencionou nomear cada objeto. A alingua não tem os sentidos reconhecidos pelo dicionário.

É uma multiplicidade de diferenças que não pegou corpo. Não é uma estrutura nem de linguagem e nem de discurso. O discurso tem uma ordem. A alingua fica no nível a-estrutural do aparelho verbal. A alingua "é o integral dos equívocos", embora ela não faça um todo. (Soler, 2009, p. 27)

Com este conceito de alingua, Lacan inclui o real, um momento em que o sujeito adentra no universo simbólico. É um tempo de pré-formação e constituição do sujeito. Um tempo de trauma. Nesta nova concepção de trauma para a psicanálise, o trauma é real, pois é algo que ainda não se inscreveu. O momento d'alingua é um momento de mergulho, de contínuo encontro com o insabido.

Colette Soler (2009) expõe que a alingua é feita de uns, que são os significantes, porém, ao nível básico, da pura diferença. Desde então, segundo Soler, o Um encarnado na alingua, ela sublinha, encarnado, aquele que é soldado ao gozo e não somente um entre outros, no espaçamento significante que era pensado até então, este Um, ela cita, "é qualquer coisa que fica indeciso entre o fonema, a palavra e a frase..." (Soler, 2009, p. 27).

Continua nesta direção dizendo que Lacan nomeará este Um de "letra uma do sintoma" (Soler, 2009, p. 27). A alingua é um tempo dominado pelo Real, portanto, encharcado de gozo. É um encontro traumático entre o estado de puro gozo e o confronto com a cultura, a lei, a nomeação. É quase como se a cultura esculpisse no gozo, formando, assim, o enodamento borromeano. É através da nomeação, da marcação sobre o gozo, que se dá a consistência ao corpo e a construção subjetiva simbólica para a formação do sujeito. Esse movimento é contínuo e para toda a vida. Frente ao real, o gozo responde ao trauma, o corpo dá a consistência possível para que o recurso simbólico tente nomear e se posicionar, no entanto, algo escapa... E o sujeito direciona-se em sua pura diferença, bordejando assim o 4º nó, do sintoma ou sinthome.

Qual seria esta pura diferença? Por que uns têm síndrome do pânico, outros depressões, outros têm respondem com um sintoma psicossomático? Por que uns abrem uma empresa, outros prestam concurso e outros param de trabalhar? Por que uns se casam e outros nem namoram? Por que uns vão para a esquizofrenia, outros para o alcoolismo e outros para a ganância?

Na clínica estrutural, a ideia era buscar uma explicação via Nome-do-Pai; o complexo de Édipo era soberano na direção do tratamento. A partir desse modelo, é um perigo cair em 'Frankesteins': um pouco de obsessão, com ideias paranoicas, componentes histéricos etc., dificultando a condução do tratamento. Lacan propõe a alingua e o nó borromeano como formas de, primeiramente, incluir os três registros igualmente: "R.S.I., então, escrevo este ano, como título, são só letras, e como tais, supõem uma equivalência" (Lacan, 1975a, p. 44). Como consequência, inclui o múltiplo e sai do trilho: Nome-do-Pai - castração - estrutura. O Nome-do-Pai continua tendo grande peso na constituição psíquica do ser humano, porém, não é o único fio condutor. Há uma mudança de eixo: da soberania do significante e do Nome-do-Pai para o nó borromeano e o múltiplo.

Sai, assim, do inconsciente-linguagem para um inconsciente-alingua. De um inconsciente traduzível via significante, passa-se ao inconsciente insabido. Como diz Lacan (2009b), no Seminário XXIV de 1976-1977, de um inconsciente freudiano desconhecido que poderia ser traduzido, passamos a um inconsciente insabível, que não tem necessariamente tradução, l'une bevue, que podemos não ter acesso via significantes, mas temos acesso a seus efeitos: sintomas, atos falhos, sonhos, sinthomas etc. Podemos, como analistas, através de nosso ato, intervir na escrita, de forma que o sujeito possa redirecionar sua posição de gozo frente ao mundo. Da ideia de que existe, a priori, um saber a ser desvendado, passa-se à ideia de que o inconsciente tem um saber. Um saber lidar com as coisas. E este saber precisa ser mexido, tocado, trabalhado e direcionado, a fim de sustentar o gozo fálico do sujeito.

Segundo Lacan (2009b), o ser humano é impregnado pela linguagem, marcado pela língua materna. É como uma chuva, uma torrente de água que deixa marcas e restos. É como um depósito de detritos, de restos. É como se a alingua fosse uma "união entre a impregnação pelo discurso e o momento do encontro sexual" (Lacan, 2009b, p. 34), encontro com a diferença radical, com o fálico. Esta é a materialidade do inconsciente que dá vazão ao sintoma.

Na clínica estruturalista, num dado momento, o Outro é reconhecido como tesouro dos significantes e inclui a ideia de que o desejo dos pais circula nas palavras. Essas palavras marcariam o S1, dando margem a se pensar que o significante ofertado pelos pais fixa o sujeito e sua constituição psíquica via este Outro. Seria quase afirmar que não há sujeito se os pais têm tanto poder sobre o filho.

Após 1970, a noção de Outro perdura, mas de outra forma, com outro peso. A diferença é que, com a alingua, estamos anteriores à distinção significante/significado, estamos na pré-linguagem no sentido da sintaxe. O som, a canção, a melodia dos pais não é a mensagem do Outro, ultrapassa a noção de inconsciente-linguagem. Esta posição "limita muito a responsabilidade dos pais em relação a seus filhos" (Soler, 2009, p. 35), inclui muito mais o não inteligível, o que é preenchido e completado pelo próprio sujeito. Inclui o que Mendoza (2014) reflete em sua tese, o caractere chinês- devido às suas múltiplas lógicas constitutivas, sua possibilidade de sentido está em uma determinada combinação das lógicas fonética, pictográfica e ideográfica, com proeminência de uma sobre a outra em cada caso particular. Assim como Lacan afirma que a marca fundamental - a letra do sujeito - se dá por uma multiplicidade de fatores.

O sintoma abre um buraco, abre uma interrogação de sentido. O sintoma localiza o modo de gozo do sujeito. Se o sintoma se constitui a partir de alingua, esta inclui o real, portanto, não há necessariamente um sentido na formação do sintoma; há a inclusão do acaso e da própria materialidade do sujeito. Neste último momento do ensino de Lacan, o sintoma não se constitui necessariamente por um sentido e também não se desmancha pela via do sentido, obrigatoriamente. "O sintoma vem do Real e duplamente: do real da substância gozante e do real da alingua" (Soler, 2009, p. 32). Como a alingua afeta o gozo, ela é pensada por Lacan no tratamento do sintoma, sobretudo na Conferência de Genebra de 1975. A ideia de que podemos "mover o gozo do sintoma pelo verbo" (p. 32), pois se foi desta forma que a alingua se constituiu - por incidência do verbo no gozo, marcando o Um, uma letra, uma insígnia muito particular - seria esta a mesma forma de atingir o sintoma, através do verbo, movimentar o gozo e afetá-lo em sua marca, em sua letra.

 

Do Sintoma Freudiano ao Sinthoma Lacaniano

Em 1925, Freud escreve dois textos em que podemos vislumbrar um germe da clínica do real. O primeiro: Uma nota sobre o 'bloco mágico' (1925/1996c). Freud se refere a um caderninho de anotações desenvolvido na época, um bloco que, diferentemente do papel e da lousa, não guarda marcas anteriores. Esse bloco fornece uma estrutura receptiva pronta para uma nova escrita, assim como mantém traços permanentes feitos anteriormente, e explica toda a configuração deste novo invento veneziano. A caneta é como um estilete pontiagudo que marca e sulca a folha e a prancha ao escrever. Quando viramos a página, uma nova folha branca se apresenta, sem tinta, porém marcada permanentemente pelos sulcos calcados das escritas anteriores. Freud considera, assim, que o bloco tem uma concordância notável com sua estrutura hipotética do aparelho perceptual: um espaço sempre receptivo para as novas escritas assim como materializada no aparelho mnêmico traços de memória permanente. Segundo o pai da psicanálise, nosso aparelho mental "possui uma capacidade receptiva ilimitada para novas percepções e registra traços mnêmicos permanentes, porém alteráveis" (Freud, 1925/1996c, p. 265).

Associa o bloco mágico, ainda, a seu modelo de aparelho psíquico: inconsciente-pré-consciente e suas representações, mas podemos pensar como um esboço do inconsciente-alingua. Não ainda com todas as construções posteriores de Lacan, bem como o conceito do nó borromeano e toda a dimensão que isto abarca. Mas podemos dizer que Freud também havia pensado num inconsciente que comportaria certa materialidade da escrita.

O segundo texto seria A Negativa (1925b/1996b), em que o psicanalista vienense discute sobre a expulsão primordial, o dentro e o fora do indivíduo (o que muito o ajudaria no conceito topológico da banda de Moëbius), e aponta que, ao se deparar com o que está fora, todo ser humano exclui algo, principalmente quando se trata de algo horrível, porém muito próximo a si. É um processo psíquico que todo ser humano faz, até antes do recalque, e toma como paradigma a psicose: "O desejo geral de negar, o negativismo que é apresentado por alguns psicóticos, deve, provavelmente ser encarado como sinal de uma desfusão de pulsões efetuada através de uma retirada dos componentes libidinais". Mais adiante, diz: "O reconhecimento do inconsciente por parte do ego exprime numa fórmula negativa" (p. 269).

Para existir linguagem, para existir vida inserida na cultura é condição sine qua non que exista o furo, a falta. O furo é estrutural da linguagem e, por conseguinte, da cultura. Não pode existir a natureza humana sem a falta, portanto, não pode exitir o simbólico sem a falta, o furo do real que crava, marca a fenda e, paradoxalmente, também possibilita a existência do simbólico.

Seguir a ideia apresentada por Freud em A Negativa (1925b/1996b), é apostar numa expulsão, uma defesa originária, generalizada e constitutiva de todo ser humano, pré-linguagem, anterior ao recalque (se este se efetivar). Uma falta estrutural e estruturante, de todos os seres humanos. O não-todo abarca a todos, e não apenas uns poucos não privilegiados.

Na clínica, Lacan passa da lei estrita da substituição: metáforas e metonímias, de um raciocínio montado sob as leis do simbólico, para a possibilidade também da lei da conexão. Novas conexões são formuladas. Conexões que não têm lei, não seguem uma regra pré-estabelecida, pois o "real é sem lei" (Lacan, 2005, p. 10). O saber não é a priori; saímos, então, da montagem dos frankensteins, para o singular. O sujeito e sua amarração particular. Façamos substituições de palavras onde for possível e conexões quando a clínica se impuser.

Analisar se o sujeito, frente à sua amarração, está fazendo um sintoma ou se está fazendo sinthoma, são dois amarramentos possíveis e distintos. O que possibilitará a direção do tratamento deixa de ser a cadeia significante e passa a ser a marca, a letra que o sujeito apresenta.

Para Lacan, em A Terceira (1975b), a única coisa que está sempre ao alcance é a letra; é a forma que o analista tem de tocar o real. Nos últimos Seminários, Lacan discute o trauma como da ordem do real, do encontro faltoso, do engano, do acaso. Continuando no mesmo texto, Lacan interroga: "Não há letra sem alíngua", (p. 183). Para ele: "O que é preciso conceber aí é o depósito, o aluvião, a petrificação que se marca..." (p. 180). Como já discutido, a alingua é a marca dos primeiros encontros do gozo com a cultura, é aquela massa disforme que é fendida e se petrifica. É o encontro da natureza própria e particular de cada um com o mundo, com o efeito dos atos e palavras que rodeiam o ser na construção de sua história e de sua letra.

 

A Análise

Máximas que Lacan vem construindo ao longo de seu ensino ganham corpo na clínica nestes últimos anos de trabalho, como: "Não há relação sexual". Foi uma evidência clínica sobre o não encontro, a falta fundamental e a não harmonia entre os seres. Quando existem dois seres, existem duas cabeças, dois sentimentos, dois modos de gozo, dois desejos. Ao passo que se são três, quatros seres, um grupo, aí então é que os desencontros se multiplicam. Portanto, o encontro não é algo natural; muito ao contrário, é permeado por obstáculos e digressões, por furos. É necessário trabalho e esforço. Para tal, existe o uso da linguagem, o posicionamento do sujeito e o modo de gozo que se escolhe no momento.

Dependendo do posicionamento do sujeito, pode haver a escolha de um gozo quase que pleno, absoluto e desgovernado. Assim, o encontro com o outro esbarra no sintoma. A aposta em alcançar saúde, trabalho, projetos e realizações é marcada pelo impasse, ou seja, não existe a harmonia que o imaginário espera; existe o real, o impossível à espera de se escrever. O sintoma é um não-saber lidar com o real, simbólico e imaginário. Um não-saber particular. Marcado pelo medo, pela angústia, pela insegurança de marcas singulares.

A amarração R.S.I. é como uma escrita. E podemos pensar em uma escrita ocidental. Lacan coloca que o sintoma é uma forma de não relação sexual. Para não ver e não se dar conta da falta, do buraco que existe ao fazer as relações, os sintomas são formados. Os sintomas acontecem, são "eventos do corpo" segundo a letra do sujeito. Por que este sintoma e não outro? São impressões formadas do verbo sobre o gozo na alingua, que inclui também o acaso e marca uma letra. Um estilo do ser humano que pode ser conduzido via sintoma, numa forma particular de ver e gozar a vida. Ou pode ser uma amarração via sinthoma. A expressão da letra que marca a diferença. Um se dar conta da incompletude radical do ser humano, e para que haja ligação, para que haja encontro, é necessário barrar a tendência do gozo à plenitude, às satisfações imediatas, às completudes narcísicas, aos objetos de consumo ou qualquer coisa que o valha. Para se posicionar como faltante, como um falasser, um ser da fala que busca, que procura, que deseja, que está disposto aos esforços dos encontros, dos projetos, dos amores e, portanto, do exercício de saber-fazer com sua letra.

O saber-fazer é um exercício da castração, é uma leitura de seu estilo particular, é um assumir sua própria natureza, sua consistência, e levar junto os acasos que esbarram na vida, posicionando-se de forma a melhor direcionar e construir a própria vida. Portanto, responsabilizar-se por sua letra, por sua articulação R.S.I., por seu sinthoma, é assumir a radicalidade da não relação sexual e consequentemente responsabilizar-se por suas escolhas e modos de gozo frente às intempéries que a vida apresenta. Nesta última clínica, Lacan aposta que o trabalho da análise é fazer a passagem do sintoma ao sinthoma e, assim, manobrar a tendência de satisfação do gozo pleno caminhando em direção ao gozo fálico. Podemos dizer que a tarefa da análise, na última clínica de Lacan, é fazer com que o sujeito reconheça a sua letra e possa se direcionar para o seu gozo fálico, para seus desejos. O atendimento deixa de ser a busca de um saber para a busca de um saber-fazer:

O inconsciente é uma entidade que eu tentei definir pelo simbólico mas ela é uma entidade a mais. Uma entidade com a qual se trata de saber e fazer. Saber e fazer não é a mesma coisa que um saber, que o Saber Absoluto que eu falei outra hora. O inconsciente é o que faz mudar justamente qualquer coisa, o que se reduz no que eu chamo o sinthoma. (Lacan, 2009b, p. 91)

Em A Terceria (1975b), Lacan explica: "De mais vivo ou de mais morto na linguagem, ou seja, a letra, é unicamente a partir daí que temos acesso ao real" (p. 199). Ter acesso a traços da letra, da marca do sujeito, possibilita a direção do tratamento segundo o objeto a, a singularidade de cada sujeito. Como psicanalistas, ler a letra é ter acesso ao real do sujeito e trabalhar nem sempre sob referência do simbólico ou da retificação subjetiva, pois as interpretações e os efeitos passam também pelos outros registros.

Lacan trabalha com a economia de gozo. O inconsciente organizado como um depósito de escrita aponta uma singularidade, e a essência do discurso analítico passa a ser a renúncia ao gozo. O analista pode interrogar, pinçar e brincar com cada traço da letra do sujeito. As intervenções possíveis se ampliam, e a poesia, os chistes e os equívocos ganham espaço como modo de economia de gozo.

 

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Endereço para correspondência:
Fabiana C. Ratti
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Recebido em: 05/06/2012
Revisado em: 12/08/2014
Aceito em: 12/08/2014

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