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Revista Subjetividades

Print version ISSN 2359-0769On-line version ISSN 2359-0777

Rev. Subj. vol.14 no.3 Fortaleza Dec. 2014

 

ARTIGO ORIGINAL

 

O fantasma atuado em narrativas de assassinatos cruéis: uma leitura psicanalítica

 

The acting out in narratives of heinous crimes of murder: a psychoanalytic reading

 

El fantasma actuado en narrativas de asesinatos crueles: una lectura psicoanalítica

 

Le fantasme agi dans les récits de meurtres cruels: une lecture psychanalytique

 

 

Luanza Pavesi MaiI; Gustavo Adolfo Ramos Mello NetoII

IMestre em Psicologia pela UEM. Psicóloga pela Universidade Federal do Espírito Santo - ES
IIProfessor Associado do Departamento de Psicologia (UEM); Doutor em Psicologia (USP); Pós-doutor em Psicanálise (Laboratório de Psicopatologia Fundamental e Psicanálise/Universidade Paris VII)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo apresenta a proposta de pensar psicanaliticamente a experiência de um suposto leitor frente a algumas narrativas de crimes de assassinatos cruéis contidas no livro Serial Killer: Louco ou Cruel? Trata-se de resultado parcial da dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Estadual de Maringá, sob o título "A narrativa de crimes de assassinatos cruéis: um estudo psicanalítico", que se propôs a investigar as possíveis manifestações inconscientes que podem estar presentes durante a leitura de livros que narram crimes de assassinatos cruéis e expõem diversos casos, dos quais, para o presente artigo, foram escolhidos "O casal letal" e "Theodore Robert Bundy". Inspirando-se, essencialmente, nas ideias de André Green sobre o desligamento e em textos de Freud, lançaram-se duas hipóteses básicas, a saber: (1) a existência de um núcleo comum a esse gênero de narrativas e (2) a presença de um convite à perversão feito pelo escritor ao leitor a partir da escrita dessas narrativas. Concluiu-se que esse núcleo comum de fato existe e que está relacionado não só à "realização" de desejo, o que é quase óbvio, mas também a manifestações inconscientes, tais como a cena originária, a fantasia de espancamento e, finalmente, o complexo da mãe morta.

Palavras-chave: psicanálise; psicanálise e literatura; narrativas de assassinatos hediondos; fantasma atuado; manifestações inconscientes.


ABSTRACT

This article presents the proposal of thinking psychoanalytically the experience of a supposititious reader forward the reading of the book Serial Killer: Louco ou Cruel? that contains some narratives of heinous crimes of murder. This study is the partial result of master's dissertation presented to the Post-graduation program in psychology of Universidade Federal de Maringá with the title "A narrativa de crimes de assassinatos cruéis: um estudo psicanalítico", which aims to investigate the possible unconsciousness manifestations that may be present during the reading of books which tell about heinous crimes of murder and expose many cases, among which, to this article were chosen "O casal letal" and "Theodore Robert Bundy." It was essentially inspired by the André Green's studies presented in "O deslisgamento" and by Freud's texts; this study launches two basic hypotheses: (1) the existence of a common nucleus to this narrative and (2) the presence of an invitation to the perversion done by the writer to the reader from the writing of such narratives. As a conclusion, it is know that there is a common nucleus which is related not only with the wish fulfillment, which is fairly obvious, but also with the unconsciousness manifestations, such as the originary scene, the beating fantasy, and finally, the dead mother complex.

Keywords: psychoanalysis; psychoanalysis and literature; narratives of heinous murders; acting out; unconsciousness manifestations.


RESUMEN

Este artículo presenta la propuesta de pensar psicoanalíticamente la experiencia de un supuesto lector frente a algunas narrativas de crímenes de asesinatos crueles del libro Serial Killer: Loco o Cruel?. Se trata del resultado parcial de la disertación de maestría presentada al programa de posgrado en Psicología de la Universidad Estadual de Maringá con el título: "La narrativa de crímenes de asesinatos crueles: un estudio psicoanalítico", que se propuso investigar las posibles manifestaciones inconscientes que pueden estar presentes en la lectura de libros que narran crímenes de asesinatos crueles y que expone diversos casos de los cuales, para el presente artículo, fueron elegidos "La pareja letal" y "Theodore Robert Bundy". Inspirándose esencialmente en las ideas de André Green sobre el distanciamiento y en textos de Freud, se lanzaron dos hipótesis básicas, a saber: (1) la existencia de un núcleo común a ese género de narrativas y (2) la presencia de una invitación a la perversión hecha del escritor al lector a partir de la escritura de esas narrativas. Se concluyó que ese núcleo común existe de hecho y que está relacionado no solamente con la "realización" del deseo, lo que es casi obvio, sino también con las manifestaciones inconscientes, tales como la escena originaria, la fantasía de paliza, y, finalmente, al complejo de la madre muerta.

Palabras clave: psicoanálisis; psicoanálisis y la literatura; relatos de asesinatos atroces; fantasma actuado; manifestaciones inconscientes.


RÉSUMÉ

Cette étude propose l'analyse psychanalytique d'un lecteur présumé de certains récits de crimes de meurtres horribles, contenue dans le livre Serial Killer: Louco ou cruel? C'est le résultat partiel de la thèse présentée au programme de post-graduation en psychologie de l'Université d' État de Maringá sous le titre A narrativa de crimes de assassinatos cruéis: une étude psychanalytique, qui a le but d'étudier les possibles manifestations inconscientes qui peuvent être présentes lors de la lecture des livres qui raccontent et exposent plusieurs cas des meurtres cruels. Pour examiner dans cet article, on a choisi deux histoires : "O casal letal" et "Theodore Robert Bundy". Pour cela on est inspiré essentiellement par les idées d'André Green à propos de la détachement et par les écrits de Freud. Ainsi, il est lancé deux hypothèses de base, à savoir: (1) l'existence d'un noyau commun à ce genre de récits et (2) la présence d'une invitation à la perversion fait par l'écrivain au lecteur à prtir de l'écriture de ces récits. Donc, on conclut que ce noyau commun existe en fait et qu'il est liée, non seulement à la « réalisation » du désir, ce qui est presque évident, mais aussi aux manifestations inconscientes, comme la scène originaire, le fantasme de fessée et, enfin, le complexe de la mère morte.

Mots-clés: psychanalyse; la psychanalyse et la littérature; récits de crimes odieux; fantasme agi; manifestations inconscientes.


 

 

"Será preciso um pouco de sangue verdadeiro para manifestar a crueldade?" (Gomes, 2004, p. 143)

Em "Narrativa e paroxismo", cujo curioso subtítulo é "Será preciso um pouco de sangue verdadeiro para manifestar a crueldade" (2004), Gomes nos incita a discutir a ideia apresentada por Antonin Artaud (1933) sobre uma nova concepção para o teatro; um teatro que viesse a romper com a ideia de crueldade a serviço do terror e do sangue. Segundo Gomes (2004), foi a partir dessa discussão que se deu início a uma espécie de manifestação que teve por objetivo alterar a definição do teatro do cruel que estava intimamente (e talvez unicamente) atrelada ao sofrimento físico.

Mas se a ideia de crueldade não necessariamente precisa estar ligada ao sofrimento físico, por que, então, ainda hoje se faz necessário que ela apareça intimamente atrelada ao cenário de sangue, no qual as personagens se resumem, essencialmente, à vítima e ao assassino? Tomamos como nossas as palavras de Gomes (2004), ao se referir ao título de seu artigo:

A pergunta do título adquire aqui um sentido literal para indagar se a narrativa contemporânea para expressar a crueldade lança mão do paroxismo (via redundância, repetição, via séries, via exagero - traços que se constatam facilmente na cultura midiática), para representar a 'realidade' em seu caráter inelutável. (p. 145)

Isso nos leva a pensar sobre a necessidade do homem de incutir na realidade material aquilo que diz respeito a um mal-estar próprio da natureza humana, ao qual muito comumente não pode atribuir qualquer significado, o que pode ficar mais claro se nos referirmos, por exemplo, ao teatro grego, no qual, através de encenações dramáticas, o homem podia "purgar" aqueles afetos penosos com os quais, conscientemente, não podia lidar.

A compreensão da crueldade através do explícito levou-nos a investigar algumas narrativas de crimes de assassinatos cruéis, ocorridas na realidade material, produzidas pela escritora brasileira Ilana Casoy. Assim, tomando como base a dissertação de mestrado que teve como título "A narrativa de crimes de assassinatos cruéis: um estudo psicanalítico", pudemos elaborar este artigo, no qual apresentamos como objetivo a tentativa de traduzir psicanaliticamente a experiência de um suposto leitor frente à leitura dessa categoria de narrativas.

A ideia aqui é investigar, sob o viés do fantasma atuado, como a leitura do cruel explícito permite a manifestação de alguns conteúdos inconscientes. Evidentemente, o enigma que aqui nos interpela corresponde não só à manifestação desses conteúdos, mas à relação, mediada pela escrita, estabelecida entre leitor e algumas narrativas desse gênero.

Adiantamos que a ideia de fantasma atuado, que será mais bem desenvolvida ao longo deste artigo, corresponde a uma dimensão fantasmática que, permeada pela realização de desejo, refere-se a um plano de atuação em que o autor do crime de assassinato atua em algumas fantasias infantis "compartilhadas" com o leitor. Estas fantasias incidem sobre o leitor num plano não atuado, mas fantasmatizado a partir da ação do outro, pois acreditamos que, em se tratando da leitura dessa categoria de narrativas, em que um outro atua e o faz supostamente na realidade material, já que são narrativas ditas verídicas, o leitor entra em contato com alguns elementos oriundos da tenra infância, ou, ainda, com aqueles elementos que, segundo Freud (1927/2006), são constituintes do homem em sua condição primordial, sobretudo por estarem intimamente relacionados com a sexualidade polimórfica perversa.

Além disso, aceitando as ideias que Freud (1900/2006) apresenta em A interpretação dos sonhos, segundo as quais a crueldade pode se pôr a serviço da sexualidade, somos levados a considerar a particularidade sexual que, nessa categoria de narrativas, vem essencialmente expressa a partir do que aqui chamaremos "composto vítima-assassino". Ao longo da leitura das narrativas que aqui serão comentadas brevemente, ficamos sabendo que a crueldade é, com frequência, praticada também após a morte da vítima, o que, por sua vez, leva-nos a formular que há um público afoito concebendo-o - o ato - dessa forma. Ou seja, é cruel, mas nem sempre para a vítima1.

Com vistas a tornar possível o desenvolvimento dessa proposta, tomamos como objetos desse estudo várias narrativas feitas por Casoy, mas aqui vamos nos restringir a duas delas, intituladas (1) O casal letal e (2) Theodore Robert Bundy, cidadão acima de qualquer suspeita, presentes no livro Serial Killer: Louco ou Cruel (Casoy, 2008). Cabe sublinhar que a escolha dessas narrativas foi essencialmente baseada na repercussão alcançada por esses casos. Ambos parecem despertar maior interesse no público, sendo produzido um número considerável de material escrito com base em suas histórias, além do próprio texto de Casoy. Trata-se, pois, de um material que permitirá alguma compreensão acerca da dimensão a que chamamos fantasma atuado.

Nesse sentido, propomos duas hipóteses básicas para o desenvolvimento desse artigo: primeiro, (1) a existência de uma espécie de núcleo comum a esse gênero de narrativas que traz certa especificidade a essa categoria de livros. Esse núcleo corresponde à atuação2 do fantasma a partir da ação do outro. Em outras palavras, referimo-nos ao fantasma atuado que, por intermédio do assassino durante o crime de assassinato, aponta para manifestações inconscientes que estão, em sua maioria, relacionadas ao Édipo, à cena primária e ao complexo da mãe morta; e, segundo, (2) a ideia de que nessas narrativas há um convite à perversão feito pelo escritor ao leitor, ideia essa que será apresenta um pouco mais a diante.

Esse percurso foi traçado inspirando-se em textos de Freud, sobretudo naqueles que se referem à literatura em geral, visto que foi essa interseção, entre psicanálise e literatura, o que tornou possível realizar este trabalho. De igual importância, serviu-nos também o trabalho de André Green, especialmente pelo conceito de complexo da mãe morta (1988), que é de sua lavra. Além disso, esse autor nos apresenta a ideia de "escuta indolente" (Green, 1994, p. 16), que se refere à postura do analista diante de um texto e é o que esse autor supõe ser o equivalente da leitura flutuante da situação analítica. É dessa forma, pois, que vimos a possibilidade de integrar a psicanálise ao processo de leitura e escrita, aproximando, então, o exercício psicanalítico, isto é, a interpretação psicanalítica do enigma que aqui nos interpela, ou seja, a relação mediada pela escrita e estabelecida entre leitor e narrativas de crimes de assassinatos cruéis.

 

Entrelinhas: Sobre A Ideia De Convite à Perversão

Durante a leitura analítica de um texto, devemos, obviamente, estar atentos não só à materialidade linguística3 ali contida, mas ao texto do inconsciente, que se faz presente nas entrelinhas. Para isso, diz-nos Green (1994), é necessário que se ouça o texto e se dê a ele atenção semelhante a que se deve dar ao discurso consciente. Aliás, isso é clássico na psicanálise, desde Freud e seus discípulos.

Apesar disso, cabe ressaltar que quem pretende desvendar algo nos meandros do inconsciente deve não somente considerar o texto do inconsciente, mas a relação que se estabelece com o texto, a partir daquele que o escreve e daquele que o lê.

Freud (1908a/2006) abordou algo semelhante em Escritores criativos e devaneios quando anunciou a existência de uma relação estreita entre aquele que escreve e aquele que lê, ainda que não calcasse a existência dessa relação no texto em si, mas na função que ele apresenta para ambos, isto é, função semelhante ao prazer preliminar no ato sexual, de enfraquecer o recalque a fim de que o indivíduo possa se entregar a um prazer mais profundo.

Posteriormente, em O Estranho (1919a/2006), Freud afirma que essa relação tem a ver com o sentimento de estranheza provocado, no leitor, por alguns textos, como resultado daquilo que foi escrito pelo escritor, e, para tanto, este, ao produzir, e o leitor, ao ler, realizam simbolicamente desejos reprimidos, da mesma forma que a criança faz através do seu jogo: manipula a realidade, na qual passado, presente e futuro misturam-se, estando sujeitos apenas às rédeas do desejo.

A esse respeito, Green (1994) nos diz algo complementar: em se tratando de textos literários, a "secundaridade" do texto, objetivo do trabalho da consciência do escritor, busca chegar a um velamento do inconsciente, ou, nas palavras do próprio autor:

Com efeito, o escritor opera com conhecimento de causa, mas o trabalho que é objetivo da consciência e de sua profissão se refere à secundaridade do texto, ao que funciona para chegar-se a uma obliteração do inconsciente que ele se esforça em encobrir. Ou, mais precisamente, a um jogo de claro-escuro [...]. (p. 19)

Trata-se, portanto, de ocultá-lo, de velar aquilo que não pode ser dito porque, ao mesmo tempo em que se mostra, também se esconde e acaba apresentando algo além da sua produção escrita. Diz o autor: "Assim como o delirante 'aprecia' seu delírio [...] o escritor aprecia a literalidade de seu texto que só deve dizer aquilo que diz" (Green, 1994, p. 19). E aquilo que diz o texto nos reporta, segundo esse autor, à existência de uma verdade histórica contida nos textos literários em geral, isto é, uma verdade que é produto da história de vida do próprio escritor, e que fala para a história de quem o lê. Em outras palavras, toca o leitor em algum momento da própria história de sua vida.

Tendo isso em vista, podemos afirmar que é nesse momento, quando do contato estabelecido entre a narrativa e a história de vida do leitor, que ocorre a permissão para a atualização de seus fantasmas, a partir do fantasma atuado pela ação do outro. Isso porque, por mais que se esforce o escritor em velar aquilo que não pode ser dito, vão sempre emergir, do texto, vestígios dos processos primários e, ainda que o olhar passe "por eles sem se deter [...], o inconsciente do leitor os percebe e registra" (Green, 1994, p. 17).

Mas sabemos tratar-se de algo que não se refere necessariamente ao gênero com o qual estamos trabalhando. Green, pelo menos a princípio está falando da grande literatura e nós estamos nos referindo a narrativas ditas "verídicas", isto é, com fortes ambições realistas e poucas ambições literárias. Sendo assim, cabe apontar um aspecto apresentado por Green (1994) que, além de dar-nos fundamentos para o desenvolvimento da ideia que lançamos de "convite à perversão", esclarece, de algum modo, o que há de peculiar no que diz respeito à leitura do gênero que estamos focalizando. Vejamos.

Segundo esse autor, a escrita encontra-se em posição de fetiche invisível tanto para o leitor quanto para o escritor, uma vez que ela é indispensável ao seu prazer, na mesma medida em que o fetiche o é para o fetichista. Essa ideia tem a ver com o aspecto exibicionista presente na perversão (Freud, 1905/2006). Segundo Green (1994), o leitor diz ao escritor: "'Mostre-se', ao passo que o escritor o interpela dizendo: 'Olhe para mim'" (p. 24). É esse movimento - de mostrar-se e de ser visto - que corresponde ao convite à perversão feito pelo escritor ao seu leitor4. Falemos um pouco mais sobre isso

Tomando o fetiche como Freud (1905/2006) propunha em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, isto é, presente em toda escolha objetal, e não, obviamente, de maneira extrema como na perversão, vemos que - de forma metafórica - ambos, leitor e escritor, buscam uma representação para aquilo que lhe fora penosamente negado. Nesse sentido, o texto é o substituto do pênis: uma tentativa de triunfo frente à ameaça de castração5.

Assim, leitor e autor esbarram na impotência frente à realidade da castração, que os leva, então, à incessante tentativa de reelaboração de seus fantasmas, a partir de representações que atribuem ao texto; um texto ausente de representações, mas, ao mesmo tempo, imergido nas próprias representações do leitor. A esse respeito, chamamos atenção para o que observa Green (1994). Ele refere-se à ligação do prazer de ler a escritura, sendo o primeiro mediado pela segunda. Ocorre, no entanto, que a escritura supõe a ausência de representações, ou seja, a escrita, por si só, não revela absolutamente nada além de sinais não vinculados a qualquer objeto. Assim, o leitor, ao seguir com a leitura, atribui representações para si mesmo sobre o que é narrado pelo texto e, quando isso acontece, isto é, quando o leitor encontra a si mesmo nas entrelinhas, ocorre uma inversão no sentido da ordem do olhar: Quem é olhado agora é o leitor - ele é olhado pelo próprio texto.

É no contexto dessa tentativa de elaboração que podemos encontrar a singularidade que emerge da leitura das narrativas de crimes a que estamos nos referindo. Isso porque, no contexto dessa impotência do sujeito frente à realidade de castração, o par composto "vítima-assassino" - na qual a vítima vai sempre estar subjugada à figura do assassino - funciona, por vezes, como uma espécie de catalisador que direciona o sujeito à elaboração de fantasias que remontam a cena originária. Nesta última, tal como é exposta no Homem dos lobos (Freud, 1918/2006), a mulher aparece como subjugada ao homem durante o coito, ou - mais precisamente - a mãe é subjugada; possuída pelo pai, enquanto a criança observa e, sem possibilidade de dar significações a isso, recalca o fato vivido. Como afirmam Mello Neto e Martínez (2002):

A criança espectadora da cena primitiva seria, em termos econômicos, é uma espécie de excitado abstinente. Faltam-lhe todos os meios de descarregar essa excitação. Entre esses meios estão as representações - conhecimentos - que permitem compreender o que lhe passa a excitação. É desse modo que se tem o excesso. Na falta de ligações a representações, a excitação sexual surge como um excesso que ultrapassa o sujeito e sua capacidade de 'metabolização' psíquica. (p. 43)

A descarga dessa excitação sexual - oriunda da inscrição psíquica da experiência da cena primária, ocorrida ou não na realidade material - só é possível quando o sujeito, munido de significações permitidas pelo advento da linguagem, encontra vazão na atualização dessa cena em circunstâncias que possam suscitar associações a ela.

O termo catalisador, que introduzimos acima, refere-se a uma espécie de "dispositivo", digamos metaforicamente, que acelera o encontro do sujeito com suas fantasias, exatamente por suscitar associações com a cena primária.

O que estamos tentando indicar, a partir da aproximação da cena primária com a cena que narra a vítima enquanto um objeto, à mercê do assassino, é a possibilidade de reedição da cena primária a partir da leitura dessas narrativas, decorrente, essencialmente, do aspecto sexual - explícito ou implícito - que elas apresentam.

Assim, os afetos oriundos da cena primária são deslocados para a cena na qual o assassino, "rememorando" a figura do pai, toma posse de sua vítima, a qual, neste caso, associa à figura da mãe. É, então, permitida ao sujeito uma reedição - ou algo semelhante - da vivência traumática em que estivera excluído daquela cena, do "misterioso" encontro dos pais.

Por vezes, o leitor dessas narrativas de crimes ou, ainda, o expectador de mídia - pois é a mídia que divulga mais amplamente esses homicídios - vai às ruas para demonstrar sua aparente indignação em relação a algum desses acontecimentos macabros. O que nos chama mais atenção é o julgamento explícito - e excessivamente duro - dirigido pelo cidadão comum àquele que cometeu o crime, e a raiva inexorável que a ele é dirigida. Cabe indagar, aí, pois, acerca de qual é a função inconsciente do ato de julgar. É de se pensar que essas pessoas encontram uma via de dizer: "Puna-o, antes que eu seja punido". É evidente que se trata de uma elaboração defensiva em que se têm, sobretudo, defesas como a formação reativa, o recalcamento e a denegação.

Falávamos, pois, da cena primária, daquele instante no qual o sujeito é excluído do coito parental, e, a partir da cena que narra a vítima enquanto objeto do assassino, pode ser reeditada. A partir desse contexto, podemos elaborar que os julgamentos explícitos e moralistas não só têm a ver com a óbvia realização de desejo por via da ação do outro, mas incluem a insatisfação frente à reedição daquilo que vivera em idade tenra. Assim, no caso da leitura de livros, o leitor é o espectador ausente, aquele que não vai às ruas e, dessa maneira, encontra o privilégio de ver sem ser visto; de julgar sem correr o risco de ser julgado. É como a criança que observa pelas frestas de uma porta entreaberta; é um leitor solitário...

Green (1994) fala, quanto à escrita e leitura de uma situação de ausência, seja do leitor no ato da escrita, seja do autor no ato da leitura. Diz:

Na escrita não há ninguém. Mais exatamente, o leitor em potencial e anônimo está, por definição, ausente. Talvez até esteja morto. É dessa situação de ausência que é preciso partir para estabelecer a comunicação por escrito (...). A escritura trabalha essa dimensão de ausência e, ao mesmo tempo em que representa e torna presente de certa maneira, ela também aprofunda essa dimensão de ausência que lhe dá sua especificidade. Ao contrário, para o leitor, o autor está sempre ausente. (p. 46)

A ausência, o vazio, permite que a experiência da leitura se transforme numa fonte de revelação para o sujeito, ao passo em que promove a atualização de seus fantasmas justamente pela sua condição de vazio. Nesse sentido, essas "ausências" funcionam de maneira a permitir não só que o convite à perversão seja feito (o lado do escritor), mas que ele também seja aceito (o lado do leitor). Isso, por sua vez, remete-nos a uma espécie de subjugação da figura da lei à dimensão psíquica pulsional. Para esclarecer, tomemos como metáfora o processo de elaboração onírica.

Psiquicamente, somos diariamente invadidos por um fluxo constante de ideias e afetos aos quais a cultura se opõe de forma muito intensa, tornando-os angustiantes. Apesar disso, há também uma constante tentativa de trazer esses conteúdos à tona, e por mais que se procure disfarçar, eles estão aí; existem e são muitas vezes manifestos a partir dos sonhos.

É ingênua a crença de que se pode banir esses afetos ou transformá-los inteiramente, por sabermos ser comum à prática da psicanálise poder trazê-los à tona. O que estamos ponderando é que, da mesma forma, seria ingenuidade acreditar que a produção dessas narrativas esteja somente a favor da cultura por se tratar de um sexual sublimado, de uma elaboração secundária. Obviamente, o recalque está aí, mas o convite à perversão foi aceito e tem algo de masturbatório, como o é o olhar através da fresta de uma porta.

Em contrapartida, é preciso considerar esse sexual sublimado, haja vista a necessidade de estabelecer certo equilíbrio entre o sujeito e a coerção estabelecida no plano social, pois sabemos que o leitor não é um perverso (embora haja leitores perversos e o próprio ato de ler possa ser, em algumas circunstâncias, considerado uma franca perversão). Assim, chamamos atenção para o fato de que a discreta sedução com que é feito esse convite à perversão é semelhante à discreta volúpia com que ele é aceito, e essa "descrição", essa solução de compromisso entre desejo e defesa, é necessária para que o leitor se mantenha aquém dos limites da perversão propriamente dita - nos limites da civilização, como diria Freud.

Vejamos, então, sob o viés do fantasma atuado, como isso ocorre, tomando como material de ilustração as narrativas "O casal letal" e "Theodore Robert Bundy: cidadão acima de qualquer suspeita", de Ilana Casoy, conforme já anunciado no início do presente artigo.

O Casal Letal em: A Cena Primária e uma Edição Edípica Possível a partir da Perspectiva de Espancamento

Em "O casal letal", narrativa presente no livro Serial Killer: Louco ou Cruel? (Casoy, 2008), a história se passa no final da década de 1980 até o início da década seguinte, na cidade de Toronto - Canadá. Os protagonistas, Paul Bernardo e Karla Homolka, ficaram noivos no ano de 1990, pouco tempo após se conhecerem, passando a viver juntos na casa de Homolka. Nessa época, Paul Bernardo confessou a Karla que ocasionalmente cometia alguns estupros e, nessa ocasião, não encontrou oposição alguma dela. Ao contrário, Karla costumava dizer que o que importava era que Bernardo satisfizesse seus desejos.

Logo após o seu casamento, o novo objeto de desejo de Paul Bernardo passou a ser a irmã caçula de Karla, Tammy Homolka. Percebendo, então, que inevitavelmente seu marido havia se tornado muito próximo de sua irmã, Karla concordou em realizar a fantasia de Paul - e a dela própria: promover o encontro de Paul com a irmã mais nova, sem o conhecimento desta, para que Paul Bernardo lhe tirasse a virgindade.

Karla usou um inalante anestésico utilizado em animais para adormecer sua irmã e, então, Bernardo pôde dar continuidade ao plano. A ação foi filmada pelo casal. Enquanto Tammy era estuprada via anal e vaginal por Paul, era também acariciada sexualmente por sua irmã. Minutos após, a vítima veio a óbito. Acusada por Bernardo pela morte de Tammy, Karla prometeu procurar por outras meninas jovens e virgens que pudessem satisfazer as fantasias do marido. No entanto, tudo leva a crer que se tratava de um desejo compartilhado por ambos, Karla e Paul, e a ameaça de Paul era, talvez, um disfarce de Karla que a permitia continuar a realizar as próprias fantasias. Dava-se, assim, o início da carreira homicida do casal.

Vários casos de estupro foram registrados e as vítimas, garotas entre 15 a 21 anos, eram atacadas e forçadas a fazer felação e sexo anal, geralmente após descerem de um ônibus em um bairro residencial, à noite. Uma das vítimas alegou ter visto uma mulher com uma câmera de vídeo em mãos, próxima ao estuprador. Mais tarde, ficou confirmado tratar-se da esposa de Paul Bernardo.

Paul Bernardo manteve algumas vítimas em cativeiro e estas sofreram tortura sexual antes de serem mortas. Todas as ações foram filmadas por Bernardo, com participação ativa de Karla Homolka. O casal seguia um roteiro elaborado, fazendo com que sua ação parecesse uma produção cinematográfica pornográfica. Foram mais de vinte vítimas e em alguns vídeos apresentados à promotoria, Karla praticava masturbação enquanto os crimes eram cometidos.

Paul Bernardo foi condenado no ano de 1995 à prisão perpétua, com a possibilidade de liberdade condicional após vinte e cinco anos de prisão. Karla ficou livre, casou-se novamente, teve um filho e passou a morar em Quebec - Canadá (Casoy, 2008).

Para explicitar o fantasma nessas, digamos, cenas, tudo nos levou a recorrer ao texto freudiano intitulado Uma criança é espancada (Freud, 1919b/2006), sobretudo, porque o espancamento é muito comum nessa categoria de narrativas.

Embora saibamos que esse texto tem como objetivo principal uma contribuição ao estudo das perversões, é possível articulá-lo à sexualidade feminina e, assim, extrair importantes considerações sobre a sua formação. Freud (1919b/2006) esclarece que as fantasias de espancamento resultam de processos de defesas relacionados ao que ele denomina complexo paterno, e até alcançarem a formulação final de Uma criança é espancada, passam por algumas transformações. Sendo assim, o autor propõe algumas fases para a formação dessa fantasia de espancamento, que devem, neste momento, ser recordadas.

Nas meninas numa fase ainda muito primitiva, a criança que cria a fantasia de espancamento jamais coincide com aquela que, na fantasia, é espancada. Quanto ao agressor, pode-se apenas estabelecer que se trata de um adulto, e não de uma criança. Apenas mais tarde é que se poderá determinar que esse adulto é o pai da menina que fantasia. É neste momento da fantasia que se configura a frase "o meu pai está batendo na criança que eu odeio" (Freud, 1919b/2006, p. 201).

Mais tarde, embora o agressor continue a ser o mesmo - o pai -, ocorrem algumas modificações e, destas, devemos sublinhar que a criança que cria a fantasia torna-se, então, a criança vítima de espancamento. É a partir dessa constatação que se configura a frase "estou sendo espancada pelo meu pai" (Freud, 1919b/2006, pp. 201-206). Essa fantasia - que nunca foi lembrada, a não ser através do processo de elaboração analítica -, embora esteja relacionada ao sentimento de culpa da menina, resultante do amor dirigido ao pai, não a isenta do prazer que é produzido por ela.

Por fim, numa última fase, ocorre uma modificação bastante significativa: a identidade do agressor não coincide mais com a do pai e, da mesma forma, a identidade da criança não mais coincide com a daquela que cria a fantasia - ambos adquirem seus substitutos. Não muito diferente das outras fases, essa fantasia vincula-se a uma forte excitação sexual, levando à satisfação masturbatória (Freud, 1919b/2006, pp. 201-206).

Ainda nesse texto, Freud (1919b/2006) se preocupa, inicialmente, em esclarecer que a fantasia de espancamento está relacionada a sentimentos prazerosos e, em consequência, o sujeito a reproduz em diversas situações, tratando-se, desse modo, de um traço primário de perversão. Diz o autor:

Um dos componentes da função sexual desenvolveu-se, ao que parece, à frente do resto, tornou-se prematuramente independente, sofreu uma fixação, sendo por isso afastada dos processos posteriores de desenvolvimento (...). Sabemos que uma perversão desse tipo não persiste necessariamente por toda vida; mais tarde pode ser submetida à repressão, substituída por uma formação reativa ou transformada por meio da sublimação. (Freud, 1919b/2006, p. 197)

A recordação da fantasia de espancamento não está isenta de incertezas quando recordada. Isso porque, conforme visto, no decorrer das fases apresentadas ocorre uma reedição dessa fantasia quanto ao seu objeto, conteúdo e significado. Notemos que, a partir desse texto, somos levados à discussão do lugar ocupado pela criança durante a fantasia de ser espancada. Nesse sentido, a sublimação pode estar se referindo à relação existente entre o lugar ocupado pelo leitor dessas narrativas e a fantasia de estar sendo espancada, porquanto saibamos que, conforme observado por Mello Neto, há uma gama de recursos narrativos que permitem certo rebaixamento ocasional da censura.

A narrativa de "O casal letal" (Casoy, 2008) também nos remete à discussão acerca do lugar ocupado frente à fantasia de espancamento. No entanto, esse lugar, antes ocupado pelas personagens da narrativa, sobretudo porque os casos são ditos reais, é ocupado, neste momento, por um leitor e, evidentemente, refere-se a uma atualização de fantasmas inconscientes, oriunda da identificação - do leitor - com alguma das personagens da narrativa. Mas com que, especificamente, esse leitor se identifica? Com o assassino, com a vítima, ou com ambos? Recordemos brevemente que "O casal letal" (Casoy, 2008) é o caso no qual Karla Homolka serve às fantasias do marido, Paul Bernardo, dando vazão, assim, às suas próprias fantasias. Como ocorre, por exemplo, quando Karla aceita promover o encontro de Paul Bernardo com sua irmã mais nova, Tammy Homolka, para que ele lhe tirasse a virgindade.

O leitor pode se identificar com o vitimador ou com a vítima. Fiquemos apenas com essa última identificação, aquela em que o leitor "ocupa" o lugar da vítima, lugar este que na narrativa, foi ocupado de algum modo por Karla Homolka. Isso porque devemos considerar que, no caso "O casal Letal" (Casoy, 2008), a existência da fantasia incessante de gozar com o abuso sofrido - ainda que se puna o leitor por desejar esse lugar6, lugar este que se refere, em última instância, à posição de ser amado pelo seu pai da mesma forma que foi a sua mãe - corresponde ao fantasma que atua a partir da reedição possível da situação edípica, cena-palco de atuação, que, nessa situação, é permitida através do aspecto sexual explícito do caso.

Nesse contexto, se pensarmos em formações reativas ou em sublimações, temos, pois, aquilo que foi apresentado por Freud (1919b/2006) como a terceira fase de desenvolvimento da fantasia Uma criança é espancada, ou seja, a possibilidade da fantasia de a cena de espancamento, originalmente simples, poder adquirir novas roupagens, passando, então, a elaborações mais complexas, como em casos de castigo e humilhações de outra natureza, os quais viriam acompanhados de evidente excitação sexual (Freud, 1919b/2006). Por fim, considerando a óbvia existência da relação de poder entre assassino e vítima, em que esta estará sempre em posição de objeto daquele outro, podemos afirmar que, de fato, está aí, em todas as cenas narradas de assassinato cruel, a possibilidade de o leitor reviver -- inconscientemente a cena freudiana de espancamento.

Estamos nos referindo, pois, a uma espécie de deleite do leitor frente à possibilidade de uma reedição edípica, na qual possa dar vida a seu amor incestuoso. É a que nos leva, por exemplo, algumas cenas narradas sobre o "O casal letal". Nestas, algumas vítimas eram mantidas em cativeiro, e as ações de Paul, que incluíam tortura, estupro e prática de sodomia, eram filmadas por sua esposa, Karla Homolka, a qual, como já foi dito, apareceu em algumas filmagens, se masturbando enquanto o crime era cometido. Recordemos um pouco mais da narrativa. Além disso, nas gravações feitas pelo casal, algumas vítimas eram obrigadas a expressar satisfação no estupro, e, para isso, Karla ensinava-as como dar mais prazer a Paul Bernardo e as obrigava a sorrir durante as sessões de tortura. A maioria dessas vítimas teve suas "histórias" gravadas por Bernardo e Homolka. A tentativa era que, a cada "ensaio", a "cena" ficasse perfeita, de maneira que não permitisse erros. Mas de que erros estamos falando? A que cena estamos nos referindo? Metaforicamente, ao erro de estar ausente; de o leitor não participar nem mesmo como figurante da cena originária.

O fantasma estava ali, atuado, gravado, repetidamente ensaiado. O público - representado dentro da narrativa por Karla - permitiu-se pôr em ato sua excitação sexual, masturbando-se7. As gravações asseguravam-nos não se tratar de realidade psíquica. A cena era real.

É curioso notar que, neste contexto, não basta a reedição ativa da cena primária. É preciso, ainda, carregar uma espécie de troféu como forma de sustentar a realidade material da cena. No caso de Paul Bernardo, o troféu eram as gravações feitas; já Ted Bundy, sobre o qual nos reportaremos a seguir, carregava a cabeça de suas vítimas por alguns dias.

O leitor participa como voyeur de cada uma dessas cenas. Um leitor solitário, um leitor que, ao longo da leitura, fantasia poder editar essas cenas conforme a sua história de vida. Estamos falando de um contexto que, num primeiro momento, diz respeito ao olhar. Daí termos tomado, anteriormente, a ideia de uma criança espectadora8 e, mais tarde, a proposta de Green (1988) acerca de um espectador ausente. Ambas as colocações se referem ao olhar, embora se fale de um espectador ausente. Nesse sentido, podemos dizer, então, que, das duas formas, o leitor dessas narrativas participa dessas cenas, compensando o leitor daquele prazer que outrora lhe fora negado. "Ora, o que conta na cena primária, não é o fato de ter sido testemunha, mas precisamente o contrário, ou seja, que ela tenha se desenrolado na ausência do sujeito" (Green, 1988, p. 257).

Green apresenta-nos, ainda, uma perspectiva importante no que diz respeito a essa cena. Referimo-nos ao que ele fala sobre a atualização e reedição do que chama "complexo da mãe morta", resultante da fantasia da cena originária.

 

Ted Bundy Em: A Mãe Morta. Morta?

Diz André Green (1988):

O percurso do sujeito evoca a caça em busca de um objeto inintrojetável, sem possibilidade de a ele renunciar ou perdê-lo e tampouco com possibilidade de aceitar sua introjeção no Eu investido pela mãe morta. Em suma, os objetos do sujeito ficam sempre no limite do Eu, nem completamente dentro nem totalmente fora. E isto porque o lugar está ocupado, no centro, pela mãe morta. (p. 252)

O complexo da mãe morta resulta, segundo Green (1988), do desinvestimento violento que faz o objeto primário em relação à criança, um esfriamento materno, conforme palavras do autor, decorrente de uma tristeza intensa enfrentada por aquele objeto. Nesse "complexo", o trauma narcísico está em primeiro plano e repercute num claro sentimento de impotência do sujeito frente àquela tristeza intensa, tristeza esta que resulta em relativa diminuição de interesse deste em relação à criança. O grande problema desse desinvestimento diz respeito à atribuição, por parte da criança, a si própria, a responsabilidade pelo desinvestimento materno. Nesse sentido, o trabalho do negativo fracassa e inicia-se um esforço contínuo contra o desaparecimento do objeto primário.

Fica-nos clara a importância dada por Green (1988) no que diz respeito ao investimento materno para a estruturação psíquica do sujeito, bem como a importância do trabalho do negativo como forma de "descolar" o sujeito do seu objeto primário, assunto a ser abordado brevemente, com a finalidade de recordá-lo ao leitor.

O termo "negativo" se refere àquilo que está relacionado às pulsões e encontra-se no limite da representação psíquica. Esse limite deverá, então, encontrar uma nova forma, ou seja, deverá se constituir enquanto limite do aparelho psíquico, o que só se faz possível a partir do trabalho do negativo, estando este fundamentalmente associado à relação estabelecida entre a mãe - objeto primário - e o bebê, funcionando como uma espécie de bússola, que direciona o funcionamento pulsional.

Essa relação, entre mãe e bebê, portanto, seria bem sucedida quando houvesse uma resposta, por parte da mãe, ao investimento pulsional direcionado, pelo bebê, a ela. Se assim o fosse, a criança introjetaria em si o objeto primário e atribuiria a este algum significado. Caso contrário, ocorreria, então, o fracasso do trabalho do negativo (Branco, 2004), o que, em outras palavras, corresponde a uma espécie de desinvestimento materno.

O que ocorre é que o complexo da mãe morta interrompe o trabalho do negativo e faz emergir uma situação em que a criança é forçosamente obrigada a lidar com a tristeza e depressão materna e com o seu desinvestimento por parte dela. Como se não bastasse, sente-se responsável por isso - o que não ocorre sem deixar marcas nesse sujeito.

Green (1988) nos aponta uma série de defesas consequentes à tentativa de reconstruir o amor da mãe. Num primeiro momento, ocorre a retirada da libido, antes direcionada ao objeto primário, constituindo, assim, uma espécie de "assassinato psíquico" desse objeto e, em seguida, uma tentativa desesperada de manter-se unido com ele, a partir de uma identificação ao modo canibalístico. Já num segundo momento, por desconhecer as causas do desinvestimento materno, ocorreria, diz-nos o autor:

O desencadeamento de um ódio secundário (...) colocando em jogo desejos de incorporação regressiva, mas também posições anais tingidas de um sadismo maníaco onde se trata de dominar o objeto, de maculá-lo, de vingar-se dele etc. A excitação auto-erótica instala-se pela procura de um prazer sensual puro (...). O objeto é procurado pela sua capacidade de desencadear o gozo isolado de uma zona erógena ou de várias (...). Por fim, e, sobretudo, a busca de um sentido perdido estrutura o desenvolvimento precoce das capacidades fantasmáticas e intelectuais do Eu. (Green, 1988, p. 250)

Ao abordar o complexo da mãe morta, mais precisamente aquilo a que se refere como o amor gelado e suas vicissitudes, Green (1988) nos traz mais algo acerca da cena primária. Segundo ele, a fantasia da cena primária atualiza a ferida narcísica causada pela mãe morta, além de fazer surgir um terceiro objeto, a saber, o pai, responsável por trazer de volta à vida o seu objeto primário. Isso pode resultar, entre outras coisas, diz-nos ainda o autor, em uma clássica leitura interpretativa da cena primária, acrescida da violência supostamente praticada pelo pai ao não permitir gozo algum à mãe, apenas sofrimento.

Vejamos, então, como isso interpela o leitor da narrativa que estamos analisando.

O que nos conta Casoy (2008), em "Theodore Robert Bundy: cidadão acima de qualquer suspeita", ocorre em sua maior parte na década de setenta, e trata de assassinatos ocorridos em três estados americanos.

Ted Bundy - apelido de infância de Theodore - foi uma criança tímida, recatada e de poucos amigos. Ocupava a maior parte de seu tempo tomando conta de seus quatro irmãos mais novos e, quando podia, divertia-se mutilando animais. Possuía excelente rendimento escolar, embora fosse alvo de humilhação por parte de outras crianças. Conta-se que sua mãe engravidou muito jovem de um oficial da força aérea e, de maneira a evitar um escândalo na família, seus pais assumiram a criação do bebê. Assim, Ted cresceu pensando ser irmão de sua mãe e filho de seus avós.

Quando adulto, tornou-se uma pessoa instável, sobretudo no que dizia respeito à sua vida profissional, haja vista as passagens por várias empresas e profissões num curto espaço de tempo. Aos 21 anos de idade, iniciou um relacionamento com uma jovem de classe social mais alta que a dele, por quem foi deixado um ano mais tarde. Por algum tempo, manteve sua obsessão de poder conquistá-la novamente. Coincidentemente, foi nessa mesma época que descobriu quem de fato eram seus pais. Depois disso, mergulhou nos estudos e graduou-se em Psicologia com honra ao mérito.

Sua trajetória homicida teve início em meados da década de setenta e ocorreu em três estados americanos. Suas vítimas eram preferencialmente jovens universitárias, magras, brancas, solteiras e usavam cabelos repartidos ao meio na ocasião do desaparecimento. Seu carro havia sido cuidadosamente preparado para receber suas vítimas: Ele tratou de retirar o banco dianteiro de passageiros e as fechaduras, de maneira a diminuir a possibilidade de fuga de suas vítimas. Para a abordagem dessas mulheres, Ted usava gesso em um dos braços ou pernas e carregava vários livros enquanto pedia ajuda às vítimas para que os levassem até o seu carro, onde as prendia com o auxílio de uma algema.

Conhecido como o "Picasso" dos assassinos em série, Ted Bundy estrangulava e desmembrava suas vítimas com ajuda de uma serra de metal e, em seguida, cortava-lhes a cabeça, guardando-as numa sacola que carregava consigo por alguns dias, até incinerá-las na lareira de sua casa, de modo a aspirar suas cinzas. Em depoimentos à polícia, confessou que sua raiva pelas mulheres fora causada por sua mãe, que tinha, então, a mesma aparência de suas vítimas quando era jovem.

Em 1969, casou-se com Meg Anders, a qual, cinco anos depois, após ver o retrato falado de um assassino em série, reconheceu o marido e procurou a polícia. Outras pessoas também o reconheceram como autor do crime, mas as queixas foram engavetadas por se tratar de alguém sem precedente na polícia, ainda que sua mulher o tivesse reconhecido. Tratava-se - como falavam - de um cidadão acima de qualquer suspeita. Apesar disso, a denúncia foi reaberta quando uma de suas vítimas conseguiu fugir e prestar queixa à polícia.

Os assassinatos continuaram ocorrendo e as necropsias confirmaram tortura, ataque sexual e estrangulamento, mas foi apenas no ano de 1975 que Ted Bundy foi detido e levado por um guarda rodoviário, que, ao averiguar seu carro, observou o fato de este não possuir banco dianteiro de passageiro, além de encontrar máscaras de esqui, cordas, algemas e um picador de gelos no interior do carro.

Iniciaram, então, as investigações e, em depoimentos à polícia, sua esposa relatou que, naquele mesmo ano, o interesse sexual do seu marido por ela havia diminuído muito. Em 1976, Ted Bundy foi levado a julgamento e condenado à prisão. Um ano mais tarde, quando transferido para uma penitenciária da Flórida, conseguiu fugir e passou a assistir aulas como ouvinte em uma Universidade Estadual. Estava constituído, portanto, o cenário perfeito para que pudesse voltar a matar.

Em uma "república" onde moravam várias estudantes, assassinou Karen Chandler, que teve seus dentes, mandíbula e crânio quebrados, além de seus dedos esmagados. Mais outras três estudantes foram atacadas. Uma delas foi espancada com um pedaço de pau, estuprada e estrangulada. Foram encontradas marcas de mordidas em suas nádegas, e um de seus mamilos estava praticamente descolado do seio, de tantas mordidas que havia recebido. Dentro de sua vagina, foi encontrado um frasco de spray para cabelo.

Em 1989, Ted Bundy foi executado na cadeira elétrica, aos 42 anos de idade. "Do lado de fora uma multidão gritava: 'Frite, Bundy, frite'" (Casoy, 2008, p. 108). Foi uma mulher quem baixou a chave da cadeira elétrica...

Antes de passarmos a discussão de como se manifesta o complexo da mãe morta durante a leitura desse caso, façamos algumas observações.

A ideia de aniquilação proposta pela multidão que gritava pelo fim da vida de Bundy nos remete, de algum modo, assim como os assassinatos cometidos por ele, à discussão daquilo a que Green (2010) se refere, em O trabalho do negativo, como "função desobjetalizante", que, por sua vez, está intimamente associada à pulsão de morte. Segundo esse autor, "o objetivo da pulsão de morte é realizar, tanto quanto possível, uma função desobjetalizante pelo desligamento" (p.100), ao contrário da função objetalizante que "pode promover à condição de objeto o que não possui nenhuma das qualidades [...] e dos atributos do objeto, com a condição de que uma única categoria mantenha no trabalho psíquico realizado: o investimento significativo" (p. 99).

Trata-se de uma espécie de ataque às relações empreendidas no que diz respeito ao objeto; uma espécie de desinvestimento. Nesse sentido, chamamos atenção para um texto de Belo (2004) que, ao discutir os efeitos da violência na constituição do sujeito psíquico, traz à tona a função desobjetalizante como uma espécie de saída encontrada frente a situações de submissão à violência. Em suas palavras, "a desobjetalização - matar, destruir os objetos externos - seria uma forma de diminuir a tensão gerada por essa constante ameaça de dissolução egóica" (p. 87).

Devemos esclarecer que não se trata de uma dimensão meramente destrutiva, mas de uma manifestação própria da pulsão de morte, que teria como meta não só a função desobjetalizante, mas o ataque ao próprio investimento que, quando em casos extremos, levaria ao desinvestimento do objeto de maneira a afetar a capacidade de simbolização do sujeito.

Mas o desinvestimento em sua forma extrema não corresponde, neste momento, ao nosso maior interesse. A discussão que se funda, aqui, sobre o conceito de desobjetalização, incide, essencialmente, na função de defesa que essa estabelece para o sujeito. Nesse sentido, Green (2010) complementa: "Os mecanismos de defesa contra a angústia e os outros afetos penosos desorganizantes podem ser igualmente reinterpretados à luz das reflexões sobre o conflito entre pulsões de vida e pulsões de morte" (p. 101).

É de se pensar, então, que a reação expressiva do público - a nosso ver, semelhante à reação do leitor durante a leitura dessa narrativa - que vociferava pela morte de Bundy tem a ver com a tentativa de dominar o objeto e, dessa maneira, extinguir a possibilidade de ameaça por parte dele. Não se trata, ainda, de simplesmente abarcar o prazer despertado pela punição conferida ao objeto, que, nesse contexto, já é um tanto quanto óbvio. Mas trata-se, sobretudo, de extinguir a possibilidade de vínculo com aquele objeto que, aqui, é o assassino. Mais que isso, estão triunfantes, porque o venceram a ele e à ameaça que representa.

Feitas essas considerações, voltemos àquilo que propomos neste item, isto é, o "complexo da mãe morta".

Como já dissemos, Ted Bundy fora criado por sua avó, acreditando ser esta sua mãe e, embora os homicídios tenham iniciado por volta de quatro anos após Bundy descobrir a identidade de sua verdadeira mãe, o próprio autor dos crimes afirmou sentir raiva das mulheres por culpa de sua mãe, que o havia abandonado aos cuidados de seus avós, quando ainda era um bebê. Esse fato merece especial atenção no que diz respeito a nossa análise, sobretudo porque o desinvestimento materno se repete não só nas narrativas com as quais estamos trabalhando, mas em um número considerável de narrativas de mesmo gênero.

Na mesma época dessa descoberta, foi abandonado pela namorada, por quem desenvolveu uma espécie de obsessão, e deu inicio ao curso de Psicologia, no qual, como já foi dito, foi graduado com honra ao mérito. Em depoimentos à polícia, algumas pessoas falaram da exagerada insistência de Ted Bundy em ser o melhor em tudo que pudesse. Embora não tenhamos muitos dados, arrisquemos algumas interpretações, utilizando a ideia de fantasma atuado. Vejamos.

Não cremos ser sem sentido dizer que, como consequência da sua história de vida, Ted Bundy (Casoy, 2008) vivenciou algo semelhante ao proposto por Green (1988) como "complexo da mãe morta".

Com poucos meses de vida, Ted Bundy foi entregue aos cuidados de seus avós, de maneira que estes o registraram como filho, porque a sua mãe biológica teria, assim, sua "honra" preservada, e ocuparia, então, o lugar de "irmã", em vez de mãe. Não obstante, aos cinco anos de idade, teve sua guarda tomada por sua mãe biológica, sem que esta, no entanto, lhe contasse a ele a verdade, vindo a descobri-la somente aos vinte e um anos de idade.

O complexo da mãe morta, conforme vimos, tem seu início a partir de uma depressão materna, repercutindo, dessa forma, num desinvestimento do objeto primário em relação à criança. Esse fato será vivenciado pelo sujeito com grande sofrimento, sobretudo por se sentir responsável por esse desinvestimento materno.

Não é, pois, difícil supor ter havido em Bundy uma atualização, uma reedição, na vida adulta, desse complexo quando descobriu a verdadeira identidade de sua mãe biológica, vindo a sentir desprezo, e a reagir com ódio e frieza e, ao mesmo tempo, sentir-se culpado por não ter sido amado o suficiente por sua mãe, de maneira que esta pudesse romper as convenções sociais da época.

Esforça-se, então, para ser o melhor em tudo, com o objetivo inconsciente de ser digno de merecimento, sobretudo, do amor materno, mas, ao mesmo tempo, reage com frieza ao reproduzir a mesma indiferença de sua mãe quando esta o entregou aos cuidados de seus avós. Passa a buscar, dessa forma, mulheres com a mesma aparência de sua mãe quando jovem, e assume a mesma postura sádica do pai: aquela que, segundo Green (1988), é percebida pela criança na cena de coito parental.

Vale ressaltar que, diferentemente dos apontamentos feitos, por exemplo, no caso "O casal letal" (Casoy, 2008), acerca do Complexo de Édipo e da formulação de Uma criança é espancada, o complexo da mãe morta não é vivenciado por todo sujeito psicanalítico. No entanto, em todas as narrativas que pudemos analisar - e aqui só tem uma parte delas -, tivemos que considerar a referência a traumas de natureza sexual. Se assim consideramos, o fantasma atuado incide sobre a tentativa de elaborar perdas significativas ao longo da vida do sujeito, numa espécie de luto que, em algum momento, não pode ser concluído.

De maneira a esclarecer essa relação, entre elaboração e luto, retornemos, rapidamente, à narrativa "O casal letal" (Casoy, 2008). Paul Bernardo era filho bastardo de uma família na qual o "pai" era agressivo e a mãe possuía um histórico de depressão, evidenciado pelo fato de esta ter abandonado a família e passado a viver no porão de sua casa. Paul Bernardo passou, então, a odiá-la, sobretudo depois da descoberta da traição por ela cometida, e do fato de que ele era filho de outro homem (p. 78).

Mais uma vez, reafirmamos, é importante observar como a história se repete: filhos bastardos, filhos de pais agressivos, filhos de mães ausentes, filhos abandonados... Filhos de uma família inteira psiquicamente morta. É válido notar, ainda, que, ao menos no que diz respeito aos livros analisados, os "filhos" dessas famílias geralmente cometem os crimes mais cruéis.

Finalmente, como apontamos, nem todo sujeito psicanalítico vivencia o complexo da mãe morta. Se assim é de fato, como isso é vivenciado pelo leitor dessas narrativas? Esse complexo, assim como firmou Green (1988), traz a reedição e atualização da cena primária, e é, possivelmente, neste ponto que o fantasma do leitor atua a partir dessas narrativas.

 

Breves Anotações Sobre A Condição Primordial

Iniciemos esse item chamando atenção para a repercussão midiática alcançada por alguns crimes de assassinatos cruéis. É o caso, por exemplo, de Ted Bundy, que, segundo Casoy (2008), é visto como um dos assassinos em série mais conhecidos no mundo. O caso de Paul Bernardo e Karla Homolka, narrativa encontrada neste mesmo livro, também merece atenção no que diz respeito a sua repercussão. Em ambos os casos, as especulações são inúmeras, sobretudo quanto aos dos motivos que os levaram a cometer os assassinatos.

Mas o que gera a repercussão e, também, a espetacularização desses crimes?9 Vejamos.

As narrativas do gênero com o qual estamos trabalhando apresentam, cada uma, uma série de assassinatos, na qual há um determinado padrão no ato de execução das vítimas. Frente a isso, o leitor é, então, colocado diante da realidade material de não apenas uma morte, mas de um número considerável delas.

No tocante a isso, em Narcisismo de vida, narcisismo de morte, Green (1988) apresenta a morte a partir de uma perspectiva que nos interessa aqui. Ao contrário do que pensamos, o conceito de morte adquiriu, após o período das guerras mundiais, segundo esse autor, um caráter escandaloso. Antes dessa ocasião, as pessoas conviviam de forma menos conflitante com a morte, na medida em que, de acordo com Green (1988), "a religião ainda oferecia o supremo consolo" (p. 276). Para ele, as guerras mundiais teriam contribuído para alguns avanços científicos - sobretudo médicos -, que teriam possibilitado ao homem pensar a extinção do ser como algo postergável, isto é, arrastado para um futuro relativamente distante.

Green (1988) refere-se a Freud, no que diz respeito à ideia de uma ausência de representação de morte no inconsciente, na medida em que supomos nossa própria imortalidade; além disso, a ideia de morte, no inconsciente, corresponderia apenas à máxima atualização de nossas faltas. Apesar disso, Green (1988) é categórico ao afirmar, acerca da relação do inconsciente com a ideia de morte, que, embora o inconsciente ignore a possibilidade de representá-la, "não suprime a consciência que o homem tem de se saber mortal" (p. 276).

Essa angústia frente à certeza de aniquilação do ser para Freud (Green, 1988) corresponde, sabe-se bem, à angústia diante do perigo da castração. Diz Green (1988):

A angústia de morte que subtende a meditação filosófica daquele que se diz o ser-para-a-morte é um engano, uma máscara por trás da qual o homem se abriga para negar que não se trata de outra coisa senão da angústia de castração. (p. 276)

Parece-nos um tanto quanto natural a exposição da dura realidade material de nossa própria aniquilação, realizada pelas narrativas de crimes de assassinatos, mas se, para os crédulos em Deus, a Ele é conferida a responsabilidade por permitir-nos ou não a vida, quem é aquele que manipula a morte, antecipando-a? Quem é aquele que se permite à passagem ao ato, torna explícita a tentativa de controle do próprio horror à angústia de castração e inflige-a ao outro ante a possibilidade desta ser infligida a si mesmo? Ele não pode ser apenas um assassino...

É também aquele que nos põe frente aos nossos temores esquecidos, recalcados, cuidadosamente velados; é aquele que nos remete à temível história da humanidade, quando a civilização exigiu que o homem se afastasse de sua primordial condição.

Mas que condição é essa que precisou ser banida pela civilização? Em O futuro de uma ilusão (1927/2006), Freud se refere à ânsia de matar, ao canibalismo e ao incesto como condições primordiais; desejos pulsionais do homem, que, por efeito de coerção externa, foram recalcados com a finalidade de fundar o homem civilizado.

Sabemos que há uma linha tênue que separa o homem dessa condição e, ainda que tenha se curvado às exigências da sociedade, segundo Freud (1927/2006), sempre haverá aquele que permanecerá antissocial, em função de alguma patologia ou excesso pulsional.

Notemos que, no contexto das narrativas de crimes de assassinatos cruéis, lidamos com os dois extremos: de um lado, aquele que permaneceu na sua condição primordial, "antissocial" - a saber, o assassino; de outro, aquele que se rendeu às exigências da civilização - o leitor.

Assim, cabe destacar o conceito de fantasma atuado, que, como já definimos, consiste na tentativa de elaborar perdas significativas ocorridas ao longo da vida do sujeito. Sabemos que o homem não perdeu a sua condição animal; pelo contrário, ela o acompanha por toda sua vida. Apesar disso, é como se tivesse perdido, pois aquilo que lhe era próprio se tornou estranho. Por esse motivo, é preciso elaborar a sua "perda"; é preciso elaborar a renúncia aos seus desejos primitivos. E assim o faz a partir do outro, de forma que tenta fazê-lo também durante a leitura dessas narrativas. Aquilo a que Freud (1927/2006) se refere como "ânsia de matar", é explícita, tal como o canibalismo ou o incesto. Mas não para o leitor, obviamente. Para este, a satisfação encontra vazão pelo caminho das fantasias, que, durante a leitura, manifestam-se essencialmente subjugadas ao caráter de tipo reativo.

Mas, anterior a isso, ou seja, anteriormente ao momento de reedição que se faz desses conteúdos inconscientes, seja acerca do complexo da mãe morta, da cena primária, da fantasia de espancamento, seja acerca da condição primordial inerente à natureza do homem, há algo que deve ser destacado. Referimo-nos ao cenário sobre o qual debruçamos nossa atenção: cenário de sangue, de horror, de crueldade explícita marcada no corpo físico.

Permita-nos, leitor, uma metáfora. Dois espectadores vão assistir à mesma peça no teatro, mas em teatros diferentes. O roteiro é o mesmo, as falas são idênticas, inclusive os atores. O espectador do primeiro teatro encanta-se com o jogo de luzes, com as vestimentas, com o cenário, enfim, com toda produção envolvida. O segundo decepciona-se: o jogo de luzes e o cenário tímido comprometeram a peça.

Ora, da mesma forma que o espectador do primeiro teatro, o leitor dessas narrativas busca riqueza no cenário: mortes escandalosas, sangue, tortura, ainda que sem qualquer pretensão de descobrir ali a origem de um prazer sinistro, também escandaloso. Imaginar uma crueldade pura, sem haver aí elementos de um dilaceramento óbvio, físico e carnal, seria como ir ao teatro assistir a uma peça de horror sem poder desfrutar da angústia enraizada em imagens límpidas, sem sangue.

Se no começo deste artigo discorremos, mesmo que brevemente, sobre as ideias de Artaud acerca de um teatro novo do cruel, aqui, ao final, concluímos algo talvez ainda óbvio, mas que abre margem para uma futura discussão: Se não é preciso o sangue para manifestar a crueldade, por que não pensá-la - a crueldade no corpo real - como um artifício necessário dessas narrativas para que seja aceito o convite à perversão?

O texto torna-se um alimento para o ator, um corpo. Buscar a musculatura desse velho cadáver impresso, seus movimentos possíveis, por onde ele quer se mexer, vê-lo pouco a pouco se reanimar quando se sopra dentro dele, refazer o ato de fazer o texto, reescrevê-lo com o seu corpo, ver com o que é que foi escrito, com músculos, diferentes respirações, mudanças de elocução; ver que não é um texto, mas um corpo que se mexe, respira, tem tensão, sua, sai, gasta-se. De novo! É esta a verdadeira leitura, a do corpo, a do ator. Ninguém sabe mais do que ele sobre o texto e ele não tem que receber ordem de ninguém, porque não se dá ordens a um corpo. (...) Cuidado com a letra morta do texto sobre o papel. (Novarina, 2005, p. 18)

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Luanza Pavesi Mai
Endereço: Rua Ary Barros, nº 192, ap. 02, Boa Vista
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Gustavo Adolfo Ramos Mello Neto
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E-mail: garmneto@gmail.com

Recebido em: 18/07/2012
Revisado em: 20/05/2014
Aceito em: 20/05/2014

 

 

1 É interessante notar que Freud (1915/2006), em Reflexões para os tempos de guerra e morte, percorre o tema da crueldade tomando como base os fenômenos da cultura, embora saibamos que a palavra crueldade já havia aparecido em A interpretação dos Sonhos (1900/2006), associada ao mecanismo de condensação e à sexualidade.
2 Em psicanálise, a palavra "atuação" é, muito comumente, usada para designar a passagem ao ato. Esse significado, por sua vez, levar-nos-ia a considerar que, neste artigo, é o leitor quem põe em ato os seus fantasmas. No entanto, não é como iremos considerar. Aqui, a palavra atuação tem a ver com o teatro, com o ato em cena; atuado não pelo sujeito leitor, mas pelo outro; o outro que, aqui, se refere ao assassino.
3 Referimo-nos aos códigos e símbolos interiorizados pelo leitor, referentes à gramática da língua utilizada. Isto é, o texto em seu sentido literal.
4 Neste trabalho, o conceito de perversão está associado ao aspecto sexual, trabalhado a partir de uma leitura freudiana. Apesar disso, sabemos da possibilidade de abordá-lo - o conceito - na esteira de Janine Chasseguet-Smirgel (1991), a partir de uma compulsão estética. Pretendemos fazê-lo em outro momento. Aqui, nos restringiremos ao aspecto fetichista da perversão, mesmo porque a perversão não é o nosso foco agora.
5 Nesse contexto, pensamos a castração como uma marca que distingue o sujeito neurótico do sujeito perverso, estando aquele - o sujeito neurótico - diante o descontento da realidade material de não passar ao ato.
6 E o leitor aí é punido com a "morte", pois esse é o fim da vítima com quem se identificou.
7 Chamamos a atenção para o que Martinez (2011) define como "relação masturbatória", no que diz respeito à relação que se estabelece entre o leitor e essas narrativas.
8 Ver página 25.
9 A própria autora do livro nos assegura da repercussão dos casos ao iniciar seus relatos.

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