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Revista Subjetividades

versão impressa ISSN 2359-0769versão On-line ISSN 2359-0777

Rev. Subj. vol.14 no.3 Fortaleza dez. 2014

 

ARTIGO ORIGINAL

 

As relações de trabalho nas organizações estratégicas e os jogos de azar: fontes para analisarmos o modo de subjetivação na sociedade contemporânea1

 

The work relations in strategic organizations and gambling: sources for analyze the mode of subjectivation in contemporary society

 

Relaciones laborales en las organizaciones estratégicas y los juegos de azar: fuentes para el análisis del modo de subjetivación de la sociedad contemporánea

 

Les relations de travail dans les organisations strategiques et les jeux de hasard: sources pour analyser le mode de subjectivation dans la société contemporaine

 

 

Guilherme Elias da SilvaI; Francisco HashimotoII

IDoutorando pela UNESP-Assis, São Paulo, Brasil. Docente de Graduação em Psicologia na Universidade Estadual de Maringá-UEM, Maringá, Paraná, Brasil
IILivre-docente em Psicologia e Docente de Graduação e Pós-Graduação em Psicologia na UNESP - Assis, São Paulo, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A Analisar o trabalho no contexto do final de século XX e início do século XXI é pensar em multiplicidade, multicausalidade e transversalidade. Trata-se de um fenômeno complexo, cada vez mais multifacetado e heterogêneo, e compreendê-lo pressupõe fazer escolhas e problematizar questões centrais que possam avançar na construção do conhecimento na área. A análise da estrutura das chamadas "organizações estratégicas" e das relações que são estabelecidas nesse campo é central para nossa discussão, já que esse modelo estratégico de administração é uma das principais ferramentas do capitalismo monopolista-financeiro. As organizações estratégicas desenvolvem métodos políticos de administração à distância (gestão afetiva de captura psíquica), difundem uma ideologia, uma religião da empresa e, desse modo, conseguem uma adesão fiel de seus membros, através da influência sobre estruturas inconscientes da personalidade destes. A análise das relações estabelecidas nos jogos, em especial, nos jogos de azar - os modos de vida desenvolvidos neles e por eles -, como também de seus respectivos mal-estares, torna-se promissora, caso vislumbrados à lente analítica das políticas de gestão das organizações estratégicas, uma vez que ambos revelam-se como fenômenos sociais com processos de subjetivação característicos que permitem uma leitura das feições psíquicas, políticas, éticas e também antropológicas que compõe nossa sociedade. O referencial teórico norteador do estudo foi a psicossociologia.

Palavras-chave: relações de trabalho; organizações estratégicas; jogos de azar; psicossociologia.


ABSTRACT

Analyzing the work in the context of the end of the twentieth century and the beginning of the twenty-first century represents the idea about multiplicity, multiple causality and transversality. It is a complex phenomenon, increasingly multifaceted and heterogeneous. To understand that, requires making choices and asking central issues that can advance in construction of knowledge in the area. The structural analysis of the "strategic organizations" and the relationships that are established in this field, is central to our discussion, considering that this model of strategic management is one of the main tools of monopoly-finance capitalism. The strategical organizations develops political methods of administration in distance (emotional management of psychic capturation), extends an ideology, a religion of the company and thus get a faithful adherence of its members, through the influence of these unconscious structures of personality. The analysis of relations established in the games, especially in gambling - the ways of life developed in and through it - as well as their malaises becomes promising if glimpsed the analytical lens of political management of the strategic organizations, since both show as social phenomena with subjective processes that allow a reading of psychic, political, ethical, features and also anthropological that makes up our society. The theoretical framework of the study was the psycho sociology.

Keywords: work relations; strategic organizations; gambling; subjectivity; psychosociology.


RESUMEN

Analizar el trabajo en el contexto de fines del siglo XX y comienzos del siglo XXI es pensar en la multiplicidad, la multicausalidad y la transversalidad. Se trata de un fenómeno complejo, cada vez más multifacético y heterogéneo, y compreenderlo presupone hacer elecciones y problematizar cuestiones centrales que puedan avanzar hacia la construcción del conocimiento en esta área. El análisis de la estructura de las denominadas "organizaciones estratégicas" y de las relaciones que se establecen en ese campo es fundamental para nuestra discusión ya que ese modelo estratégico de administración constituye una de las principales herramientas del capitalismo monopolista - financiero. Las organizaciones estratégicas desarrollan métodos políticos de administración a distancia (gestión afectiva de captura psíquica), difunden una ideología, una religión de la empresa y, de ese modo, logran una adhesión fiel de sus miembros mediante la influencia de estructuras inconscientes de la personalidad de los mismos. El análisis de las relaciones establecidas en los juegos, particularmente en los juegos de azar, los modos de vida desarrollados en los mismos y por los mismos, así como también sus respectivos rses se volvieron promisorios cuando se vislumbraron bajo la lente analítico de las políticas de gestión de las organizaciones estratégicas dado que ambos se revelaron fenómenos sociales en procesos de subjetivación característicos que permiten una lectura de los trazos psíquicos, políticos, éticos y también antropológicos que componen nuestra sociedad. El referencial teórico tomado como guía para el estudio fue la psicosociología.

Palabras clave: relaciones laborales; organizaciones estratégicas; juegos de azar; psicosociología.


RÉSUMÉ

Analyser le travail dans le contexte de la fin du Xxe siècle et le début du XXIe siècle signifie penser à la multiplicité, la multicausalité, la transversalité. Ils'agit d'un phénomène complexe, de plus en plus multiforme et hétérogène, et le comprendre présuppose faire des choix et discuter des questions clés qui puissent faire avancer la construction des connaissances dans le domaine. L'analyse de la structure des dites «organisations stratégiques» et des relations qui y sont établies est au cœur de notre discussion, puisque ce modèle de gestión stratégique est l'un des principaux instruments du capitalisme monopoliste financier. Les organisations stratégiques développent des méthodes politiques d'administration à distance (gestión affective de capture psychique), diffusent une idéologie, une religion de l'entreprise, et ainsi obtiennent une adhésion fidèle de ses membres, grâce à l'influence sur des structures inconscientes de la personnalité de ces derniers. L'analyse des relations établies dans les jeux, en particulier dans les jeux de hasard - les modes de vie développés en eux et par eux - ainsi que leurs respectifs malaises s'annonce prometteuse dans le cas où ils sont entrevus dans l'optique analytique des politiques de gestion des organisations stratégiques, puisque les deux se révèlent comme des phénomènes sociaux avec des processus subjectifs qui permettent une lecture des configurations psychiques, politiques, éthiques et aussi anthropologiques qui compose notre société. Le cadre théorique qui guide l'étude a été la psychosociologie.

Mots-clés: relations de travail; organisations stratégiques; jeux de hasard; subjectivité; psychosociologie.


 

 

As Organizações Estratégicas No Mundo Contemporâneo: Dominação Psicológica E Adoecimento

O indivíduo é plurideterminado. Ele é produto de uma trama complexa que diz respeito, ao mesmo tempo, à sua existência singular, correspondendo ao seu desenvolvimento psíquico inscrito em uma dinâmica familiar, e à sua existência social, vista como a encarnação das relações sociais de uma época, de uma classe e de uma cultura.

Por sua vez, o trabalho é uma atividade que envolve todas as dimensões do homem (física, psíquica e social, entre outras) em seu cotidiano e aparece, definitivamente, como um operador fundamental na própria edificação do sujeito, revelando-se também como um mediador privilegiado entre inconsciente e campo social e entre ordem singular e ordem coletiva. Dessa forma, não é apenas um palco aberto ao investimento subjetivo, mas um espaço de construção do sentido - portanto, de conquista de identidade e da historicização do sujeito (Antunes, 2000; Arendt, 2007; Enriquez, 1999). Vemos, assim, que as organizações, além de serem lugares de produção material, são também espaços de interação e representação humana, habitados por um imaginário que é socialmente construído e veiculado interna e externamente.

Devemos, não obstante, atentar para o fato de que enfrentamos um paradoxo: a atividade laboral ainda parece ser uma importante fonte de saúde psíquica (tanto que não trabalhar, por desemprego ou pela aposentadoria, pode, muitas vezes, ser facilitador de sofrimento psíquico patogênico), e ao mesmo tempo se registram cada vez mais pesquisas que evidenciam o trabalho como causa de doenças físicas ou mentais e de mortes - como apontam, por exemplo, os trabalhos de Seligmann-Silva (1994) e Gaulejac (2007). Destarte, é essencial nos perguntarmos: que tipo de trabalho adoece o corpo ou a mente e até, em alguns casos, pode levar à morte?

Pois bem, analisar o trabalho no contexto deste final de século XX e início do século XXI é pensar em multiplicidade, multicausalidade, transversalidade. Trata-se de um fenômeno complexo, cada vez mais multifacetado e heterogêneo, e compreendê-lo pressupõe fazer escolhas e problematizar questões centrais que possam avançar na construção do conhecimento na área.

As organizações de trabalho, portanto, têm passado por transformações intensas nas últimas décadas, paralelamente às mudanças políticas, econômicas e sociais de âmbito mundial. A globalização da economia e o acirramento da disputa de mercados são alguns dos fatores que ajudam a explicar a crescente competitividade das empresas capitalistas, que recorrem a diferentes estratégias de modernização. A busca por competitividade acontece no bojo de uma intensa reestruturação produtiva, em que as empresas procuram substituir os clássicos padrões produtivos, associados principalmente ao taylorismo/fordismo, por novos padrões de acumulação flexível, que possibilitem a recuperação de níveis anteriores de expansão do capital (Antunes, 2000).

Durante os anos 80 do século XX, a modernização das empresas brasileiras tinha seu foco principal no investimento em novos equipamentos automatizados. A partir dos anos 1990, foram ampliadas as estratégias de modernização, com a introdução de novos modelos organizacionais que associam mudanças na gestão da força de trabalho com a reorganização dos processos produtivos. Ainda que seja possível observar a introdução de diferentes modelos organizacionais, é muito marcante, entre estes, a inserção no país do modelo de gestão estratégica (Coutinho, 2006).

A análise da estrutura das chamadas organizações estratégicas e das relações que são estabelecidas nesse campo é central para nossa discussão, já que esse modelo estratégico de administração é uma das principais ferramentas do capitalismo monopolista-financeiro. As organizações estratégicas desenvolvem métodos políticos de administração à distância (gestão afetiva de captura psíquica), difundem uma ideologia, uma religião da empresa e, desse modo conseguem uma adesão fiel de seus membros, através da influência sobre estruturas inconscientes da personalidade destes (Pagès, Bonetti, Gaulejac, & Descendre, 1987).

O modelo de organização estratégica aparece, como um novo ícone, uma nova referência, prometendo escoltar o sujeito na sua solidão e acompanhá-lo e conduzi-lo em seu sucesso, indo ao encontro de suas carências latentes e reduzindo a importância do vínculo social a um laço (financeiro, moral, ideológico e psicológico) com ela. Oferece-lhe, deste modo, oportunidades cômodas de identificação, ou seja, de assumir uma identidade compacta e objetivada, pretexto para expressar seu narcisismo.

Essa organização desenvolve um modelo de gestão que se vale da mobilização do que, em psicanálise, é denominado de ideal de Eu2. Trata-se daquilo que temos de alcançar de qualquer modo para nos sentirmos "completos", perfeitos, onipotentes. A dinâmica do ideal de Eu é, de acordo com Gaulejac (2007, p. 15): "Uma verve compulsória: não existe 'plano B' em relação a ele: ou o indivíduo o conquista, ou está fadado à angústia da falta, do vazio". Pergunta-se, porém: como a organização engendra essa dinâmica de ideal de Eu em seu sistema de gestão? Pela "promessa"! Mas promessa de quê? Pela promessa de que, se você tiver determinada coisa ou se você "for" determinada pessoa, você estará realizado. Essa promessa sedutora, cativante e confortante contribui para que, em momentos de incerteza, carência ideológica e desfiliação (enfraquecimento das instituições familiares e religiosas, do Estado, da nacionalidade, patriotismo e instituições escolares), o indivíduo encontre espaço e referencial para organizar seus desejos e experimentar um falso gozo narcísico.

Somos produto da chamada sociedade pós-moderna, que apresenta como traços característicos o exibicionismo e o esvaziamento das trocas intersubjetivas. A tese defendida por diversos autores (Bauman, 1998, 2008; Birman, 2001; Freire-Costa, 2004a, 2004b; Harvey, 2007; Lasch, 1983, entre outros) é que a fragmentação da subjetividade trouxe como reação o centramento do sujeito no eu (instância psíquica), porém de uma forma distinta do individualismo moderno. Se a subjetividade moderna se constitui no duplo registro da interioridade e da reflexão sobre si mesmo, a subjetividade contemporânea sustenta o paradoxo de um autocentramento voltado para a exterioridade, em que a dimensão estética, dada pelo olhar do outro, ganha enorme destaque. O terror narcísico é, portanto, o fato de ser comum, de não ser especial3.

Cada pessoa busca sentido e reconhecimento em sua vida e, especialmente, na atividade laboral. No entanto, essa busca jamais se completa, já que o sentido e o reconhecimento são ideais extremamente voláteis e transitórios nesta sociedade, que prega a exigência de renovação constante. Essa busca por realização dentro das organizações é que alimenta a competição desenfreada por mercados e também entre parceiros de trabalho, uma vez que o sistema estratégico nos faz crer que a felicidade pode ser alcançada nas malhas organizacionais, porém não existe espaço nem oportunidade para todos. As organizações se tornam arenas onde cada indivíduo está envolvido em uma luta para encontrar um lugar e conservá-lo. Diante disso, Gaulejac (2007) afirma que habitamos um mundo que está contaminado pelo realismo gestionário e gera enorme impotência para desenhar os contornos de uma sociedade harmoniosa e preocupada com o bem comum.

As organizações necessitam de indivíduos sutis, capazes de tomar iniciativas e de reagir o mais rápido possível, dando prova de leveza e flexibilidade diante dos acontecimentos imprevisíveis, constantes e numerosos com os quais são confrontados. Todo mundo se torna um jogador, tentando ganhar e devendo ter sucesso, mesmo nas piores condições.

A estrutura estratégica exige um perfil de trabalhador que seja "guerreiro", "ganhador", esportivo, aquele que deve, de acordo Enriquez (2000b), ser chamado de matador cool. "Não se trata, pois, de eliminar um adversário ou um concorrente com paixão, é preciso fazê-lo, ao contrário, com doçura (e não matá-lo definitivamente, pois, ele pode um dia, talvez, revelar-se útil)" (Enriquez, 2000b, p. 29).

A organização estratégica, mais que outras, exige um reforço da teatralidade. Os tempos não são mais do chefe que comanda, mas daquele que seduz, persuade e sabe jogar com as aparências. Nossa sociedade é uma sociedade na qual a aparência triunfa, em outras palavras, uma sociedade do espetáculo (Debord, 1997), que prefere a imagem à coisa, a cópia ao original, a representação à realidade, a aparência ao ser.

Os indivíduos estão presos nas identificações heroicas. Aqueles que são bem-sucedidos tomam a si mesmos como ideal. São verdadeiros Narcisos. Essa identidade narcisista não os impede, entretanto, de se mostrarem leves, flexíveis. Eles têm ciência de que para serem bem-sucedidos devem poder adotar "múltiplas identidades", segundo as situações, ambientes e interlocutores. Os homens de aparência, como denominou Enriquez (2000a), modulam seu papel social segundo as circunstâncias - o que nós denominamos de indivíduos células-tronco: eles são sempre no instante aquilo que devem ser para terem sucesso.

No entanto, este modo de subjetivação e de vida pode ser fonte de diversas consequências nocivas à saúde física, psíquica e social dos indivíduos. Vejamos agora algumas patologias ou mal-estares que estão em grande evidência no mundo do trabalho contemporâneo, os quais podem encontrar, muitas vezes, no cenário gestionário das organizações estratégicas, um terreno fértil para sua eclosão.

As exigências severas por produtividade, qualidade, lucratividade e estímulo a um ambiente de grande competitividade vêm facilitando o desenvolvimento de um mal que atinge contundentemente os trabalhadores no contemporâneo: o estresse do trabalhador. Este se manifesta como um sentimento de ansiedade ante a vivência de situações de trabalho estressoras. O estresse pode ser desencadeado por acontecimentos repentinos e perturbadores que têm um efeito muitas vezes traumatizante, mas esporádico, ou situações permanentes, vividas cotidianamente, que são menos espetaculosas, porém extremamente nocivas (podendo favorecer o desenvolvimento de quadros de esgotamento profissional - burnout - que serão analisados posteriormente). O fenômeno do estresse sobrevém quando os recursos disponíveis estão aquém das demandas, isto é, a pessoa avalia que aquilo que lhe é solicitado, seja no plano físico seja no emocional ou no social, está além de suas capacidades (Benevides-Pereira, 2002). Em pesquisa sobre o estresse, Marty (1976) demonstrou que este mal, em caráter permanente, em geral provoca nos indivíduos sofrimentos psicoemocionais - como angústia, depressão, perturbações do sono e da sexualidade - e perturbações somáticas que com o tempo podem acarretar prejuízos graves à saúde, como hipertensão, alteração das defesas imunológicas, úlceras e doenças cardiovasculares.

Na nossa posição enquanto pesquisadores da área de ciências humanas e também profissionais da saúde, deparamos-nos, neste momento, com o "problema" de que uma condição, com alto potencial patogênico, vem sendo vista como uma aptidão. Sendo assim, a "resistência ao estresse" é exigida como habilidade e condição necessária para se obter sucesso na sociedade dos vencedores. Os indivíduos devem aprender a gerenciá-lo. Esse gerenciamento consiste em acostumar-se com o estresse por meio de exercícios ou de truques: relaxamento dos ombros, respirações com técnicas orientais, meditação, massagens, exercícios com bolinhas de borracha etc. Vemos claramente que o estresse já não assusta mais ninguém e que os gestores, e até mesmo os trabalhadores, consideram-no um mal necessário, ao qual é conveniente se adaptar, tentando canalizar seus efeitos mais nocivos. Pergunta-se, porém: será que os indivíduos estão conseguindo canalizar os efeitos nocivos do estresse para caminhos que não atinjam a saúde? Vejamos o que coloca Gaulejac (2007):

O estresse sobrevém justamente depois da dor nas costas como problema de saúde ligado ao trabalho. Ele é a causa de 24% das crises cardíacas. Favorece o câncer, provoca uma superconsumação de trabalho, de álcool e de má alimentação. É uma das causas maiores da depressão e frequentemente leva ao suicídio. (...) as causas invocadas são a ausência de controle do empregado sobre seu trabalho, a repetição das tarefas, a pressão dos prazos e dos ritmos, o meio ambiente (ruído, emanações tóxicas) e a exposição à violência. (Gaulejac, 2007, pp. 221-222)

Notamos que a estimulação sobre o indivíduo não é mais momentânea e suave, qualidades que possibilitariam a excitação, o crescimento, o prazer e o desenvolvimento emocional e intelectual dos trabalhadores. Pelo contrário, os estímulos estressores - no modelo de gestão organizacional estratégico - apresentam-se em caráter prolongado, mobilizando e consumindo constantemente toda a energia disponível dos trabalhadores.

Em estudo realizado junto a dirigentes e quadros de dirigentes de empresas francesas, Stora (1998) observou que aproximadamente 50% deles se consideravam "hiperestressados", 32% apresentavam perturbações cardiovasculares, 63% astenia, 24% perturbações do sono e 12% perturbações gástricas. As causas evocadas são diversas, mas carregam algumas consequências em comum: a colocação em prática de objetivos irrealistas, conflitos entre os membros da direção, as relações com os diferentes estratos da organização, os ritmos de trabalho, a competição entre os colegas de trabalho, entre outras. Notemos que os fatores evidenciados pelos próprios sujeitos da pesquisa correspondem, quase sob medida, ao conjunto de funções que devem ser realizadas por tais cargos. O que significa isso? Significa que o estresse já está sendo tomado como inerente à própria função. Sendo assim, este estudo revela que o estresse não é especialmente a consequência de uma crise ou de uma situação passageira, mas sim, que ele é gerado pelo próprio funcionamento da empresa, ou seja, pela política de gestão, que vem determinando uma organização do trabalho e algumas condições laborais propícias ao desenvolvimento de males como o banalizado estresse.

Atualmente, um grande número de pessoas sente um mal-estar difuso, a impressão de não aguentar, característico de um estresse cronificado. É como definiu Gaulejac (2007, p. 218): "Ela não se sente de fato doente, mas 'bombada'". Esses tipos de queixa podem ser significativos do que é intitulado de síndrome de esgotamento profissional (ou seu termo correspondente em inglês, burnout). A síndrome do esgotamento profissional geralmente advém quando estamos nos esforçando demasiadamente para atingir um fim irrealizável; mas é necessário frisarmos que essa é uma das principais características de exigência do modelo de gestão que estamos abordando, já que as exigências de rendimento dos trabalhadores são ilimitadas. A consequência é que o aparelho psíquico fica "como um elástico demasiadamente esticado, como se não pudesse relaxar" (Gaulejac, 2007, p. 218). Esta é a característica daquele que chegou ao seu limite e, por falta de energia, não tem mais condições de desempenho físico ou mental (Benevides-Pereira, 2002). Neste cenário, a qualidade do trabalho pode ser seriamente comprometida, não só pela desatenção e negligência, mas especialmente por um prejuízo das relações interpessoais de trabalho, caracterizadas por distanciamento, falta de empatia e hostilidade4.

Muitas vezes o esgotamento profissional provém de outro mal que está muito presente no meio organizacional, mas permanece velado enquanto distúrbio e, na verdade, novamente, pelo contrário, posiciona-se como habilidade/competência dos indivíduos que lidem bem com ele. Estamos falando da hiperatividade no trabalho. Vale reforçar que ela se instala duravelmente porque é considerada normal e aceita voluntariamente. É vivida como uma resposta a uma exigência da organização e é fonte de orgulho, acompanhada de algumas queixas pouco convincentes de "vitimização": "Não aguento mais", "Não tenho mais tempo para mim", etc. Ela traduz um superinvestimento no trabalho que vem a preencher um sentimento de falta. "A combinação de uma expectativa de reconhecimento insatisfeito, de critérios flutuantes que definam concretamente o trabalho a ser feito e a incerteza da lógica de obsolescência, produz um sentimento de ameaça" (Gaulejac, 2007, pp. 219-220). Diante disso, produz-se o inesperado: em vez de um desinvestimento ou de uma retirada relativa da pessoa, quem se manifesta é a hiperatividade no trabalho, de forma exacerbada, como uma forma de se proteger e de defender a profissão que parece ameaçada. Esse fato corrobora as argumentações feitas há pouco, de que, na tentativa ilusória de responder à incompletude narcísica, às exigências infinitas de desempenho e às ameaças de demissão, tanto a hiperatividade como a síndrome do esgotamento profissional se tornaram sintomas banais, pela forma como aparecem difundidas.

Compreendemos que se constrói um mundo da ocupação e integralmente dedicado ao culto da urgência. A imposição ditatorial da instantaneidade encontra inicialmente sua fonte nos mercados financeiros. Esses devem estar sempre em movimento, visto que a cada movimento as cifras se alargam. Mas há uma segunda razão para a constante movimentação e imediaticidade. Parar é o vazio e o vazio é a angústia. É necessário, portanto, manter uma lógica de ação permanente. Gaulejac (2007) retoma que a passagem ao ato é um mecanismo de defesa que consiste em pôr em prática aquilo que o indivíduo não "consegue" pôr em palavras. "Diante de uma rajada de angústia, por não poder identificar suas causas e não conseguir elaborar seu sentido pela palavra, o indivíduo se refugia na hiperatividade" (Gaulejac, 2007, p. 173). Concluímos, então, que a fúria produtivista não obedece somente a uma necessidade econômica, mas na verdade ela é a expressão de uma ilusão de expansão e de onipotência, respondendo à necessidade inconsciente de canalizar a angústia.

Diante de todos os efeitos avessos a um desenvolvimento saudável do indivíduo em seu ambiente de trabalho e ao que deveria ser considerado como uma profusão de epidemias, as reações dos poderes públicos e das empresas são praticamente imperceptíveis ou, na maioria das vezes, inexistentes. Vejamos o que coloca Gaulejac (2007) a respeito disso:

Cabe a cada trabalhador "se cuidar", como se fosse pacífico que aí se trata de um sintoma de vulnerabilidade psíquica que necessita um apoio psicológico ou um auxílio médico. É o paciente que deve tirar as consequências disso e aprender a viver com a situação. (p. 223)

Destarte, observamos que as condições e a organização do trabalho que provocam estes males não são postas em questão. Muito pelo contrário, para a empresa, pretende-se que a hiperatividade e o estresse tenham um caráter estimulante, que é preciso aprender a transformá-los em "estímulos positivos", para assim terem um desempenho favorecido.

Gostaríamos, neste momento, de estabelecer uma associação entre as relações de trabalho que se estabelecem nas organizações estratégicas no mundo contemporâneo (estas que proporcionam o desenvolvimento dos perfis profissionais dos jogadores estratégicos) e o funcionamento social e até mesmo patológico que se desenvolve nestes espaços com outro fenômeno social que é a pratica de jogos, mais especificamente, dos "jogos de azar". Esta associação mostrou-se oportuna, já que estes jogos e seus universos econômico, social, psicológico, midiático etc. apresentaram pontos analisadores ardilosos das relações que se estabelecem no trabalho e no mundo social contemporâneo (incluindo o sofrimento por eles gerado), tais como: objetivos dos jogos, possibilidades dentro do jogo (vitória, derrota, "blefe", intimidação), significação psicológica para o jogador, o adoecimento pelo jogo descontrolado, desenvolvimento de um perfil valorizado socialmente no contemporâneo, entre outros.

 

O Jogo

O ato de jogar é uma prática universal bastante difundida e popular em todas as sociedades, sendo uma das poucas atividades que não apresenta barreiras de raça, cultura ou classe social. Jogar é uma prática que se aprende desde a infância, e é uma das formas mais utilizadas de integração, recreação e socialização dentro de um grupo. A definição de jogo, no seu sentido mais amplo, segundo o dicionário Houaiss (2001, p. 1.685), seria uma "competição física ou mental sujeita a uma regra, com participantes que disputam entre si por uma premiação ou por simples prazer; atividade espontânea das crianças; brincadeira".

Dessa forma, observa-se que o jogo carrega consigo dois objetivos principais: o prazer material, proporcionado pela premiação; e o prazer psíquico, proporcionado pela competição, desafio e, sobretudo, pela vitória.

O significado dos jogos, dos brinquedos e das brincadeiras e sua relação com o desenvolvimento e a aprendizagem há muito tempo vem sendo investigado por pesquisadores de várias áreas do conhecimento com diferentes contribuições. Neste sentido, ao longo desta trajetória tem-se procurado analisar os jogos por intermédio de concepções de ordem psicológica5, biológica, antropológica, sociológica e linguística.

Durante a infância, os jogos exercem relevante influência na aprendizagem e no desenvolvimento físico, psíquico, cognitivo e social da criança. Eles estimulam os sentidos, a socialização, a coordenação motora, e também auxiliam na aquisição de novas habilidades, na resistência à frustração, no respeito às regras e na internalização de valores como: solidariedade, tolerância, respeito mútuo e cooperação com outras crianças (Papalia & Olds, 2000). De maneira semelhante, na vida adulta, o jogo, utilizado de maneira saudável e moderada, também pode proporcionar, além da diversão, da descontração e da socialização, o bem-estar físico e emocional.

No entanto, gostaria de chamar à atenção às palavras "saudável" e "moderada" do parágrafo anterior, as quais, em função das características da sociedade contemporânea e/ou pelas características estruturais de personalidade dos indivíduos, são levadas, muitas vezes, ao descontrole e a relação de benefícios relatada acima tende a uma inversão, na qual pode advir o adoecimento e o sofrimento.

 

O Jogo Patológico: Classificação, Conceitos e Diagnóstico

O jogo patológico é um distúrbio do controle do impulso caracterizado especialmente por um comportamento de jogo mal adaptativo, recorrente e persistente. Esse distúrbio foi reconhecido como um transtorno a partir de 1980 no DSM-III (Manual de Diagnóstico e Estatística de Transtornos Mentais). A classificação do jogo patológico encontra-se na mesma categoria que outros transtornos do impulso, como a piromania, cleptomania e o transtorno explosivo intermitente. Todos esses transtornos compartilham características semelhantes como: dificuldade de resistir a um impulso ou tentação para executar alguma ação prejudicial a si mesmo e aos outros, uma crescente tensão ou excitação antes de executar o ato e sensação de prazer, gratificação ou alívio no momento que comete o ato (Kaplan, Sadock, & Grebb, 2003).

A classificação mais recente do DSM-IV-TR (APA, 2002) utiliza critérios diagnósticos para o jogo patológico semelhantes àqueles utilizados para diagnosticar pacientes que fazem uso de substâncias psicoativas, demonstrando assim que tal transtorno tem uma evolução clínica compatível com a de um comportamento aditivo.

Os critérios utilizados para diagnosticar um jogador patológico de acordo com o DSM-IV-TR (APA, 2002) são: preocupação excessiva com o jogo (preocupação ou planejamento para as próximas investidas no jogo); necessidade de apostar quantias de dinheiro cada vez maiores para se obter a excitação desejada; esforços repetidos e fracassados a fim de controlar, reduzir ou parar de jogar; utilização do jogo como forma de fugir de problemas ou aliviar um humor disfórico; jogar constantemente para tentar recuperar perdas do jogo, mentiras constantes para familiares, amigos ou outras pessoas a fim de encobrir a extensão do seu envolvimento com o jogo; prática de ilícitos como falsificação, fraude, furto ou estelionato para financiamento dos jogos; comprometimento ou perda de relacionamentos, empregos ou outras oportunidades educacionais ou profissionais em razão do jogo; necessidade de terceiros para obtenção de dinheiro suficiente para aliviar situação financeira desesperadora ou pagamento de débitos do jogo. Conforme a mesma fonte, o preenchimento de no mínimo cinco desses critérios, já confirmaria o diagnóstico e presença do transtorno na pessoa.

Do ponto de vista psíquico, o humor e a depressão parecem exercer papel importante na evolução do transtorno. Estudos indicam que a depressão acompanha o ato de jogar e muitos jogadores veem o jogo como uma atividade antidepressiva, energizante e agradável. Algumas pessoas relatam que se sentem deprimidas ou aborrecidas tanto antes como após o jogo, pois muitos acabam se sentindo ainda mais zangados ou de mau humor após tal atividade. A excitação gerada durante o jogo estimula ainda mais novas investidas ao mesmo. Assim, parece haver um nexo causal entre o ato de jogar e a depressão, porém não se pode afirmar claramente se a depressão leva ao jogo, ou a falta de controle sobre o jogo, bem como suas consequências, é que resultam na depressão (Hills, Hill, Mamone, & Dickerson, 2001). De acordo com esses autores, os principais motivos que levam uma pessoa jogar são: diversão, entretenimento, excitação, objetivo de ganhar dinheiro, evitar a tristeza, relaxamento e fuga dos problemas diários. Eles notaram em sua pesquisa que jogadores regulares apresentaram uma maior sensação de tristeza após o jogo do que aqueles que não possuíam o hábito de jogar. Desse modo, os autores concluíram que, o jogo de azar, além de por si só já ter a característica aditiva, ele utiliza um reforçador poderoso que é o dinheiro, num contexto social e econômico que leva o jogador social a um risco ainda maior de progredir para o jogo patológico (Hills et al., 2001).

Psicologicamente, o jogador tende a apresentar estados de ânimo negativos, irritabilidade, atitudes defensivas, perda da autoestima e da autoconfiança, chegando a experimentar sentimentos de fracasso, impotência e desesperança. Junta-se a tudo isso, ainda, o risco de que tais sentimentos acabem se somatizando, provocando problemas de ordem física tais como úlceras, hipertensão, insônia, fadiga etc.

De acordo com o DSM-IV-TR (APA, 2002), o jogador pode apresentar algumas distorções do pensamento, como superstições, excesso de confiança ou sentimentos de poder e controle, que podem contribuir para o engajamento cada vez maior no jogo. Entretanto, são pessoas altamente competitivas, energéticas, inquietas, facilmente entediadas e preocupadas com a aprovação dos outros.

Ainda, segundo o DSM-IV-TR (APA, 2002, p. 631), "(...) quando não estão jogando, podem ser pessoas viciadas em trabalho ou profissionais que esperam até perto do prazo final para então realmente começarem a trabalhar".

Além de competitivos, os jogadores possuem uma necessidade de impressionar, gostam de situações estimulantes, são hiperativos, impulsivos, hipomaníacos, incapazes de suportar tensões emocionais por muito tempo, bem como incapazes de relaxar (Blaszczynski & Nower, 2002).

Segundo Griffiths e MacDonald (1999), alguns sinais como QI acima da média, pessoas muito vivas e energéticas, pessoas que gostam de viver riscos, ou que têm poucos interesses ou hobbies, baixa tolerância ao tédio e à tristeza, a insônia e tendências workaholicas, são todos fatores considerados de risco também.

Outros estudos, porém, demonstram que o que leva o jogador a se envolver com o jogo são aspectos negativos ou fragilizados da sua personalidade, relacionados principalmente a uma baixa autoestima e à necessidade de autoafirmação. Nesse sentido, Blaszczynski e Nower (2002) afirmam que as características mais comuns dos jogadores seriam justamente a falta de confiança em si próprio, a depressão, a falta de assertividade, dificuldades perante sentimentos de hostilidade e de desmerecimento, inabilidade de suportar o estresse e inabilidade de identificar ou expressar sentimentos. Contudo, segundo os autores, as sensações de emoção, excitação junto com o entusiasmo, o excesso de confiança, o medo e a culpa parecem ser alguns dos elementos que levam uma pessoa à mesa de jogo.

A literatura afirma que o jogo patológico acomete cerca de 1% a 4% da população podendo estar muitas vezes, associado a outras dependências também, como as toxicomanias (inclusive o alcoolismo). Embora prescinda do uso de substâncias psicoativas, o mecanismo psicológico de dependência do jogo é bastante semelhante à dependência de drogas, podendo estar ou não associado a elas e a outras morbidades psíquicas concomitantemente (Kaplan et al., 2003).

 

Abordagens Teóricas Sobre O Jogo Patológico E Explicações Sobre O Efeito Aditivo Dos Jogos De Azar

Entre os vários significados do dicionário Houaiss (2001, p. 84) para a palavra adicto estão: "que se apega ou que se afeiçoa a, dependente de, submisso, escravizado". As características e os próprios critérios diagnósticos estabelecidos no DSM-IV-TR levam a classificar o jogo, não apenas como um distúrbio de controle do impulso, como também uma forma de adicção. Muitos afirmam que o jogo seria uma espécie de dependência, porém sem drogas.

Hills et al. (2001), afirmam que, para que um comportamento seja considerado aditivo, existe a necessidade de três componentes: um objeto para a compulsão, a perda do controle e a manutenção do comportamento em questão apesar das consequências adversas do mesmo.

O jogo patológico é um comportamento que envolve tomada de riscos e busca de sensações fortes que fazem com que a pessoa mantenha certo nível de estimulação no organismo. A busca de sensações e de novidade seria uma característica típica daqueles que rapidamente se cansam das atividades repetitivas e rotineiras, buscando comportamentos que lhe tragam estímulos novos e diferentes.

De acordo com Kaplan et al. (2003), o jogador procura o jogo tanto por "ação" e dinheiro, quanto para fugir dos problemas, alcançando um estado de euforia semelhante àquele proporcionado pela cocaína ou outras drogas. A ação procurada pelo jogador significa excitação, emoção e tensão. Isso faz com que muitos passem dias sem dormir, sem comer e até mesmo sem ir ao banheiro. O jogo então provoca um efeito equivalente à tolerância presente nos drogaditos, o que faz com que o jogador tenha que aumentar o tamanho de suas apostas para alcançar o mesmo nível de excitação que possuía antes.

 

Leitura Psicanalítica Do Jogo Patológico

Vários estudos afirmam que o fenômeno da dependência, seja ela com ou sem substância química externa, são bastante semelhantes entre si, e por essa razão, tendo em vista a escassez de estudos da psicodinâmica específica relacionada ao jogo patológico, é possível compreendermos esse transtorno sob a mesma perspectiva teórica desenvolvida para explicar a dependência de álcool, de fumo, e das toxicomanias em geral, bem como de outros comportamentos aditivos, como o comer compulsivo, o comprar compulsivo, o sexo compulsivo e outros mais. Fenichel (citado por Bento, 1993) teria sido o primeiro autor a usar a expressão toxicomania sem droga quando estudou o caso de um paciente adicto em sexo. A partir daí vários autores passaram a olhar o mecanismo da toxicomania como dependência de uma forma mais abrangente, independente do objeto.

Para Oliveira e Silva (1998, p. 181), do ponto de vista psicodinâmico, a prática do jogo de azar seria uma "(...) transgressão inconsciente que proporciona satisfação direta, intrapsíquica, de impulsos libidinosos e agressivos (...)", cujas consequências negativas anulariam a culpa inconsciente do jogador. Segundo as autoras, a primeira contribuição da psicanálise sobre o transtorno do jogo patológico parece ter sido escrita em 1968 por Bolen e Boyd. Para esses autores, o jogo estaria relacionado a instintos parciais infantis e os fatores determinantes desse transtorno teriam sua origem em diferentes fases do desenvolvimento psicossexual. De acordo com Oliveira e Sila (1998), alguns teóricos afirmam que a relação jogo-jogador seria um tipo de simbiose semelhante à relação mãe-filho na primeira infância.

Nadvorny (2006), afirma que a razão da certeza insensata que o jogador tem de que irá vencer o jogo seria derivada de um senso infantil de onipotência. Assim, parece haver uma agressão inconsciente da pessoa contra si própria que, consequentemente, leva a uma punição (representada pela perda no jogo), cuja função seria manter o equilíbrio psíquico. Esse mesmo autor ainda apresenta algumas sensações experimentadas pelo jogador, como o gosto pelo risco, a incapacidade de parar de jogar, o excesso de quantias envolvidas nas apostas, a proporção em que o jogo ocupa suas vidas, atividades e fantasias, além da tensão prazerosa-dolorosa experimentada pela pessoa entre a aposta e o resultado.

Podemos ilustrar o que foi exposto acima com um trecho do romance O Jogador de Dostoiévski (2008):

No meu caso, perdi tudo até o último vintém e em muito pouco tempo. Coloquei de início vinte fredericos sobre o par e ganhei. Repeti a aposta e ganhei novamente - e assim por duas ou três vezes. Creio que a soma que eu tinha em mãos subiu a quatrocentos fredericos em alguns minutos. Neste momento eu poderia ter saído, mas uma sensação estranha se manifestou em mim: um desejo de provocar o destino, de lhe dar um piparote, deixá-lo de língua de fora. Arrisquei o lance mais alto que era permitido, quatro mil florins e perdi. Em seguida, entusiasmado, apanhei tudo o que me restava e repeti a aposta anterior e perdi novamente. Atordoado, abandonei a mesa. Eu sequer compreendia o que havia se passado comigo e só comuniquei meu azar a Paulina Alexandrovna antes do jantar. Até este momento, fiquei caminhando sem rumo pelo parque. (Dostoiévski, 2008, pp. 34-35)

A "certeza de ganhar" - característica marcante nos jogadores patológicos - fica retratada na mesma obra em um diálogo travado entre o personagem principal e sua amada:

Paulina Alexandrovna - Há quinze dias o senhor mesmo me explicou longamente que estava certo de que ganharia na roleta e me pediu que não o olhasse como um louco. Estava brincando? Eu me lembro de que falava tão a sério que não se podia tomar o que dizia por brincadeira.

Alexis Ivanovich (O jogador) - É verdade, respondi pensativamente. Ainda estou convencido de que ganharei. Confesso que agora a senhorita faz com que eu me coloque uma questão: Por que esta perda estúpida e escandalosa que sofri hoje não introduziu a dúvida em minha alma? Continuo certo de que ganharei infalivelmente, desde que jogue para mim mesmo.

Paulina Alexandrovna - Por que está tão certo disso?

Alexis Ivanovich (O jogador) - Quer saber a verdade? Não sei. Sei apenas que é preciso ganhar, que está é para mim a única saída. Talvez por isso eu tenha a impressão de que infalivelmente ganharei. (Dostoiévsky, 2008, p. 43)

O conflito intrapsíquico no aparelho mental provocado pelas forças do id, ego e superego, influencia no mecanismo da dependência. A função do ego ao tentar controlar as forças instintivas do id ao mesmo tempo em que se submete às restrições do superego para a satisfação do impulso, bem como da realidade externa, acaba por formar uma situação conflitiva no aparelho psíquico da pessoa.

No entanto, no caso do jogador, tal conflito existiria em função da regressão do indivíduo a uma fase em que o superego ainda não está constituído, restando ao ego, o qual não está totalmente formado, ceder às pulsões instintivas do id para a satisfação imediata do desejo. O jogo estaria, dessa maneira, relacionado a uma falha no processo primário, pois as pulsões do id nessa fase ainda não estão sob o controle do superego, e dos valores proibitivos relacionados à ética, moral e bons costumes. Sem o controle do superego, o ego se torna mais vulnerável às pulsões do id, o qual se torna livre para atuar conforme o princípio do prazer, sem limitações (Nadvorny, 2006).

Segundo Stekel (1968, pp. 407-408), o jogo seria uma sobrevivência da infância, e por isso qualquer um tem certa tendência a essa atividade. Para ele, "(...) quando um adulto joga, volta à infância e se comporta como criança", havendo aí um retrocesso ao estado infantil. Tal comportamento infantil seria inclusive demonstrado na própria linguagem, nos gestos e nos movimentos do jogador. O jogo, conforme esse mesmo autor, seria uma espécie de luta, não só pela vitória material, mas uma luta pelo sentimento de superioridade, pela "prevalência do próprio Eu". Nessa luta pelo jogo, segundo o autor, o importante é a vitória, não importando os recursos ou trapaças necessárias para atingir tal objetivo.

Conforme Freud (1920/1996b) apresenta em seu trabalho Além do Princípio do Prazer, o ser humano busca aquilo que lhe causa prazer, tentando ao máximo evitar o desprazer. Entretanto, tendo em vista o perigo que a satisfação imediata dos desejos pode trazer para o indivíduo, o princípio do prazer muitas vezes deve ser controlado em função do princípio da realidade, de modo a proteger a própria pessoa de problemas ou perigos contra si.

(...) existe na mente uma forte tendência no sentido do princípio do prazer, embora essa tendência seja contrariada por certas outras forças ou circunstâncias, de maneira que o resultado final talvez nem sempre se mostre em harmonia com a tendência no sentido do prazer. [...] Sob a influência dos instintos de autopreservação do ego, o princípio do prazer é substituído pelo princípio da realidade. Esse último princípio não abandona a intenção de fundamentalmente obter prazer; não obstante exige e efetua o adiamento da satisfação, o abandono de uma série e possibilidades de obtê-la, e a tolerância temporária do desprazer como uma etapa no longo e indireto caminho para o prazer. (Freud, 1920/1996b, pp. 19-20)

O dependente de jogo perde essa capacidade, e passa a viver exclusivamente em função do desprazer que a dependência lhe proporciona. Nogueira Filho (1993) relata que a busca incessante pelo prazer, a fuga da realidade, a incapacidade de enfrentar tensões e ansiedades, assim como as características narcisistas e autodestrutivas, revelam uma pessoa carente de um ego e um superego bem formados.

Nadvorny (2006) afirma que as condutas aditivas trazem prazer e alívio apenas em curto-prazo, porém a longo prazo, só restam a dor e a aflição. Assim, a princípio, não haverá grandes prejuízos à pessoa, mas apenas sensações prazerosas. À medida que o próprio sistema nervoso se adapta àquela situação, o princípio do prazer se torna o objetivo principal, dominando o princípio da realidade. Observa-se, porém que, após certo período, as sensações de desprazer passam a serem maiores que as sensações de prazer, mas mesmo assim, a pessoa não consegue mais abandonar a dependência, até porque, a não satisfação do desejo provoca o surgimento da ansiedade.

O mesmo autor ainda salienta para a regressão do ego nessa fase:

Fica evidente que nas dependências ocorre a regressão de um ego que já fora educado e reacional para um ego imaturo, irracional, pouco estruturado e narcísico, que destroca o princípio da realidade pelo princípio de prazer infantil e que não pode postergar a satisfação da sua dependência. (Nadvorny, 2006, p. 50)

De acordo com o autor, o real motivo que leva o dependente ao comportamento autodestrutivo não seria o auto castigo imposto pelo superego, pois a regressão infantil acontece em uma fase mais primitiva, anterior à formação do superego. A partir daí ocorre um ganho secundário da doença, visto que a pessoa passa a se comportar como uma criança, não só pela perda do pensamento lógico e da razão, mas, sobretudo, em função do afastamento e do desleixo no âmbito do trabalho, da família, dos estudos e de outras obrigações mais.

Segundo Stekel (citado por Omais, 2009), o jogo, assim como o álcool, seria uma forma de libertar a pessoa de seus recalques, mostrando outro lado de sua personalidade durante a jogatina:

Tal empregado no comércio, paciente e cordato, que vive submetido a uma mulher dominadora, na mesa do jogo se transforma em homem arrojado, impaciente, seguro de si, a afrontar corajosamente as trapaças dos contendores, a comentar os erros dos seus adversários, sentindo-se o dono, o chefe, só porque é o melhor jogador (...) o homem bondoso, quando vencedor, se converte no sádico que ri e goza da derrota dos seus adversários. O homem calado transforma-se em loquaz, pois, da mesma forma que o álcool, o jogo lhe solta a língua (...). (Omais, 2009, p. 67)

Freud (citado por Nadvorny, 2006) postula que as neuroses seriam semelhantes às dependências, sendo o transtorno obsessivo-compulsivo, a neurose que mais se aproxima do quadro clínico da dependência, sobretudo em razão da compulsão. Segundo Nadvorny (2006), ambas teriam em comum o fato de carregar uma tendência autodestrutiva e a compulsão à repetição. Entretanto o autor enfatiza que, ao contrário da compulsão, a dependência seria uma "(...) falsa representação de uma necessidade vital, cuja não satisfação traz a sensação de aniquilamento" (Nadvorny, 2006, p. 130).

É importante notar também que a compulsão apresentada pode não ser restrita apenas a um único objeto, como no caso do jogo, podendo a satisfação de um instinto ser substituída por outro. Além disso, tal fenômeno ocorre porque o que a pessoa busca é o "prazer primário", e por essa razão, por mais que ele jogue e ganhe, a satisfação do seu desejo será inatingível, pois o que na verdade ele busca é um substituto para o 'prazer primário'" (Nadvorny, 2006). Vale ressaltar que nossa sociedade legitimou essa busca pelo prazer primário ludibriando-nos na medida em que coloca como possível a realização deste objetivo através de diversos meios, como por exemplo, objetos de consumo, drogas, trabalho, sexo, meios digitais, jogos etc. algo que é, por essência, impossível de ser resgatado ou revivido.

Os mecanismos de defesa na dependência, ao contrário das neuroses, são utilizados pelo ego para justificar a satisfação do desejo, como a negação, a racionalização, a onipotência e a incoerência. O principal mecanismo de defesa é a negação. O sujeito não admite que tenha o problema, não aceita a doença e não tem noção dos prejuízos que a dependência lhe causa e ainda tenta minimizar a situação e os problemas sofridos. Além disso, nega que está tendo perdas no jogo, não só para terceiros, como para si mesmo. Isso é bastante visível, pois, se o jogador ganha uma única vez depois de ter perdido dez vezes, ele não admite as perdas que teve, mas apenas aquele único ganho, visto que a memória do jogador tenta apagar as experiências negativas, mantendo vivas apenas as situações positivas e prazerosas. Não conseguem ver o jogo como uma doença, mas afirmam ser apenas uma distração e entretenimento.

Outra característica bastante comum do dependente, conforme Nadvorny (2006), é a labilidade do afeto, podendo estar alegre em um dado momento, e mudar o seu humor, tornando-se agressivo repentinamente. No entanto, a busca pelo jogo ocorre seja qual for o estado de humor em que o indivíduo se encontra, isto é, tanto os momentos tristes como os de alegria se tornam oportunos para justificar a busca pelo prazer do jogo.

O egoísmo intenso também é outro traço marcante do jogador ou do dependente, em função da regressão a fases narcísicas do desenvolvimento infantil. Isso favorece de certa forma a agressividade, e faz com que o jogador relegue todas as obrigações aos outros e não mais a si, se torne indiferente ao sentimento dos outros, demonstrando ingratidão a todos que tentem lhe ajudar e desprezo por quem não tem interesse. Nadvorny (2006, p. 176) adverte que a ingratidão é bastante comum entre os dependentes, e por isso, "(...) no mundo das dependências todo aquele que se interpõe entre o dependente e a satisfação da sua dependência é sistematicamente rechaçado".

Do ponto de vista afetivo, o jogador parece ser bloqueado afetivamente em razão da dependência, além de ter uma perda com relação aos freios sociais, ou seja, das condutas necessárias para viver em sociedade. Ele então deixa de respeitar a opinião e sentimentos alheios, inclusive de pessoas mais íntimas como seus familiares. Segundo Omais (2009), entre os afetos que têm relação com as dependências, os mais característicos da adição são o sentimento de culpa, a perda do sentimento de perda e a ingratidão. A perda do sentimento de perda seria relacionada à noção que o indivíduo tem dos prejuízos que já sofreu, sejam elas financeiras ou afetivas, como a perda de um parente, por exemplo, ou a doença de alguém.

Em O Mal-estar na Civilização (Freud, 1930/1996c), Freud complementa a sua visão sobre a dependência falando sobre a influência do aspecto cultural e das dificuldades da vida como fatores agravantes da fuga da realidade tão buscada pelo dependente:

A vida, tal como a encontramos, é árdua demais para nós; proporciona muitos sofrimentos, decepções e tarefas impossíveis. A fim de suportá-la, não podemos dispensar as medidas paliativas. Não podemos passar sem construções auxiliares, diz-nos Theodor Fontane. Existem talvez três medidas desse tipo: derivativos poderosos, que nos fazem extrair luz de nossa desgraça; satisfações substitutivas, que a diminuem; e substâncias tóxicas, que nos tornam insensíveis a ela (...) como vemos, o que decide o propósito da vida é simplesmente o programa do princípio do prazer. (Freud, 1930/1996c, pp. 83-84)

Continua complementando que "os juízos de valor do homem acompanham diretamente os seus desejos de felicidade, e que, por conseguinte, constituem uma tentativa de apoiar com argumentos as suas ilusões" (Freud, 1930/1996c, p. 146). Assim, a principal forma para evitar a frustração e fugir da realidade seria a fantasia. No entanto, Freud adverte sobre os riscos da busca incessante pelo prazer: "Uma satisfação irrestrita de todas as necessidades apresenta-se-nos como o método mais tentador de conduzir nossas vidas; isso, porém, significa colocar o gozo antes da cautela, acarretando logo seu próprio castigo" (Freud, 1930/1996c, p. 85).

No mesmo sentido, Stekel (citado por Omais, 2009, p. 71) relata que o jogo é "(...) uma das ilusões piedosas que nos tornam suportável a existência", criando um estado semelhante à embriaguez proporcionada pelo álcool, possibilitando a fuga das tristezas do dia-a-dia. A pessoa, em função da extrema carência afetiva, joga em busca de emoções e de afeto:

O jogo cria um estado de embriaguez afetiva que nos faz esquecer tudo o mais. A raiz mais importante do jogo é a fome de afeição dos homens [...] sem afetos, a vida se torna monótona e penosa. Ora, o jogo proporciona esses afetos, pois nele se alternam a tensa expectativa, a esperança (desejo de conquista) e o desengano, o rebaixamento e a vergonha. (Stekel, citado por Omais, 2009, p. 72)

A própria sociedade em que vivemos tem características aditivas, visando sempre ao consumo irrefreável, à busca de uma imagem de sucesso, de beleza, de perfeição, de competência e de poder. A ênfase exagerada sobre a aparência física e à riqueza material sobrepõe o "ter" sobre o "ser", e faz com que muitas pessoas acabem mergulhando em algum comportamento aditivo a fim de se sentirem aceitos dentro de um grupo.

A fim de ilustrar e sustentar a discussão teórica proposta, utilizaremos agora alguns trechos de entrevistas retirados do livro Jogos de Azar: Análise do Impacto Psíquico e Sócio Familiar do Jogo Patológico a partir das Vivências do Jogador (Omais, 2009).

Vejamos como fica evidenciado no discurso do jogador o papel do jogo enquanto possibilidade de fuga da realidade:

Talvez eu tenha encontrado no jogo uma forma de, digamos assim, poder sonhar mais (...). Em ter uma vida diferente, uma mulher diferente, filhos diferentes... Enfim, todas essas coisas... Por quê? Porque como doente emocional que eu entendo ser, todo doente emocional ele não tá satisfeito com o que ele é, nem com o que ele tem. Então ele vive buscando uma ilusão, tá? Um conjunto de insatisfação pela própria vida, pela própria situação, pela maneira das pessoas serem com você. Então você vai criando alguns sonhos na sua mente, que lá no jogo você consegue esquecer. E isso que você acha que é prazer. Você esquece! Como se fosse um anestésico. (Omais, 2009, p. 113)

Além do dinheiro, o objetivo do jogador é alcançar novamente a excitação e as sensações de prazer proporcionadas pelo êxito em suas apostas, bem como obter o valor e o reconhecimento de que necessita para se sentir seguro perante os outros, ou seja, como já havia colocado Freire-Costa (2004b), ninguém se contenta em sobreviver fisicamente, pelo consumo de nutrientes. Somos seres de cultura que não têm apenas fome de pão, mas também de prestígio social. A satisfação em se sentir aprovado e admirado é um item indispensável para o equilíbrio emocional de todos nós.

Vejamos agora dois depoimentos e notemos como se configura o processo efêmero da culpa e o desejo de retornar ao jogo:

Um dia eu saí dali, eu tava muito puto, bravo, xingando todo mundo, Deus e o mundo. E esse arrependimento vinha de imediato, após a perda. Todas as vezes! Só que duas horas depois, três horas depois, eu tava pensando totalmente diferente. Esquecia aquelas promessas, aquelas juras que eu tinha feito pra mim mesmo (Omais, 2009, p. 120).

Vontade de sumir! Virar fumaça assim! Várias vezes eu tive vontade de me suicidar, várias vezes eu tive vontade de morrer. Sumir mesmo! [...] É um sentimento de impotência. Fala: "Puta merda! Eu, cara, que já fui cabeça, que já fui isso, que já fui aquilo! Tô aqui me entregando pra uma porcaria dessa!". Só que só até baixar a adrenalina. Quando ela baixa, cê já começa a pensar "amanhã eu vou lá de novo. Que será que tem amanhã? Será que eu vou ganhar?". (Omais, 2009, p. 120)

É difícil para o jogador entrar em contato com os sentimentos desagradáveis decorrentes do envolvimento com o jogo, e por isso, ele tenta fugir ou evitar a realidade. A "vontade de sumir" ou de se "suicidar", mostrada nos relatos, traz vários significados. Além da fuga da realidade, isso evidencia a angústia e o desespero do jogador, assim como a sua própria impotência diante da dependência e da dificuldade de enfrentar seus próprios sentimentos e frustrações, evidenciando toda a sua fragilidade, carência emocional e regressão. Observa-se, também, a ligação dessas expressões dos participantes com aquilo que Freud definiu como pulsão de morte, em que a pessoa passa a se utilizar de uma série de condutas agressivas e autodestrutivas, prejudicando aos outros ou a si próprio.

Fico triste de ver a realidade de como eu era... Triste assim, não é triste de ficar deprimida até então, né. Mas de ficar assim: Com o que faz né? Como que uma pessoa chega a extrapolar a sanidade dela, pra esquecer a família, esquecer... eu que tenho dois filhos maravilhosos, esquecer o marido, esquecer da casa, entendeu? Ficar, ficar alienada mesmo, né? Eu vejo que é pior que droga por causa disso. Cêta ali consciente, cê sabe que você ta fazendo prejuízo pra você, mas ta fazendo prejuízo pra sua família, e você não para. Fala 'Só hoje, só hoje. Eu vou jogar só dez reais'. Eu cansava de fazer. (Omais, 2009, p. 121)

Os participantes relatam também as sensações prazerosas que sentiam quando estavam no ambiente de jogo, e também durante o ato de jogar, bem como o sentimento de onipotência e superioridade sobre outras pessoas, característica essa bastante ligada a um comportamento infantil:

É uma coisa que talvez esteja relacionado à liberdade, que o jogador gosta, com o jogo! A liberdade! Ali ele se sente um cara liberto! É ele que tá comandando. Não tem ninguém falando: 'Ó, joga lá ou não joga.' (...) cê entra numa sala que tem mil pessoas, aí você pensa assim: 'Todo mundo aí não tem sorte. É tudo azarado. Quem tem sorte ai sou eu!!! Eu vou mostrar pra eles que eu tenho sorte!'. E aí você vibra! (...) Acho que o jogo é uma questão muito egoísta. Eu não queria nem que ninguém compartilhasse comigo nem a felicidade de ganhar né? (Omais, 2009, p. 121)

 

Considerações Finais

Fica evidente, então, que a atual conjuntura e moral do trabalho nos impõem uma pena na qual somos condenados a vencer. O poder passou da esfera econômica às esferas política, ideológica e psicológica, portanto atua como mediador de aspectos mais profundos (inconscientes) dos sujeitos. As relações de poder inseridas no sistema neocapitalista manifestam a sua característica mais fantástica e perversa, penetram nas estruturas da personalidade, manipulam os ideais e os valores. O indivíduo vive a organização estratégica, assim como nos jogos de azar, como uma droga da qual ele torna-se dependente, não pode se separar. Sugere-se a ele que esse êxtase químico é a estrada pavimentada para a felicidade.

O imaginário do sucesso leva cada um a querer ser o melhor. Ninguém mais fica satisfeito em ser bom e fazer bem seu trabalho. É preciso fazê-lo melhor, obter uma implicação total. Para ficar mais claro, podemos traduzir o postulado básico do modelo de gestão das organizações estratégicas: A situação presente não pode ser satisfatória porque é sempre possível fazer melhor; só que, para haver um ganhador, obviamente deve haver perdedor ou perdedores. A busca de um ideal de perfeição leva a uma competição infinita e, dessa forma, o sucesso torna-se uma obrigação. É a própria condição da nossa existência, já que na ideologia de gestão estratégica ou ganhamos ou desaparecemos. Em outras palavras, podemos dizer que ocorre um culto ao desempenho. É preciso ser mais rápido, mais concreto, mais útil e, especialmente, mais rentável.

As consequências promovidas por este modelo de gestão são bastante contraditórias. De um lado, as performances financeiras e tecnológicas são um motor de crescimento. Ainda que suscetível a flutuações, o dinamismo econômico é inegável e o crescimento da riqueza produzida demonstra a potência desse sistema. Por outro lado, assistimos, hipnotizados, à degradação das condições de trabalho e a um abismo de dimensões praticamente globais entre os organizadores e os executores do trabalho, que se traduzem em um aumento vertiginoso do sofrimento no trabalho, nas doenças profissionais e na insegurança social. Instaura-se, como vimos anteriormente, uma cultura da ansiedade, na qual o esgotamento profissional e o estresse são moedas correntes, já que a angústia de jamais fazer o suficiente, de não estar à altura das expectativas, de não preencher os objetivos e de perder o emprego é constante.

Podemos traçar uma analogia a partir da relação de dominação que se estabelece entre os trabalhadores e a "droga" organização estratégica. Notemos que, diante da regressão a níveis pré-edípicos sugerida ou imposta pelas organizações, deveremos ter o desenvolvimento do que convenientemente denominamos de toxicômanos organizacionais, ou como se denominam internacionalmente, os workaddicts. Estes desenvolvem uma relação de dependência do trabalho, apresentando os mesmos sintomas que o dos drogados, em especial os toxicômanos, como observaram Pagès et al., (1987) e Gaulejac (2007). Em primeiro lugar, o hiperativismo tem efeitos psicoestimulantes: hiperestimulação sensorial, gratificações narcísicas, forte reforço grupal sobre a empresa, ilusão de fusão entre o Eu e o Ideal de Eu, etc.; entretanto, rapidamente outros efeitos se fazem sentir, como a impossibilidade de se descontrair, a necessidade irrefreável de atividade, a dor de cabeça dos fins de semana, a angústia das férias, o enfraquecimento das capacidades criativas e fantasmáticas (Gaulejac, 2007).

Utilizando-se de um trecho de entrevista feita por Pagès et al. (1987) com um funcionário de empresa com modelo de gestão hipermoderno quando solicitado para falar sobre a relação dele com a organização - que na pesquisa foi intitulada de TLTX - fica exemplificado o que foi discutido acima:

O que representa para mim TLTX... Depois de ter trabalhado muito aí, ter suado muito, ter vivido minhas crises, vontade... vontade de ir embora como todo mundo, isto acabou tornando-se parte do meu ambiente; faço parte de TLTX como TLTX faz parte de minha vida. 'Para mim é como uma espécie de droga sem a qual não poderia mais viver...' quero dizer, passo a maior parte do meu tempo dizendo para mim mesmo que se eu ao menos pudesse tirar férias, se eu pudesse fazer outra coisa..., minha mulher vive me dizendo que quando fico em casa por uma tarde, fico infernal, não paro em lugar nenhum. (Pagès et al., 1987, p. 144)

Notemos por meio do trecho, em especial pela parte da fala em destaque, como a droga-organização, já personificada como "mãe" por meio da relação dual narcísica estabelecida no processo de dominação psicológica, não apenas adquire, para o indivíduo, assim como para o jogador patológico, um valor de deleite ou de suporte diante de momentos angustiantes, mas funciona como razão maior de sua existência.

Gostaríamos de ressaltar também como o funcionário revela em sua fala um comportamento semelhante ao de indivíduos com abstinência de drogas: "Fico em casa por uma tarde, fico infernal, não paro em lugar nenhum" (Pagès et al., 1987, pp. 144-145); ou em outro trecho da entrevista, quando ele coloca: "Não consigo mais descansar, isto é, não consigo mais passar um dia deitado, de barriga pro ar na praia. Se eu não tenho alguma coisa pra fazer, para me ocupar, algo não vai bem". Observemos também que este processo de abstinência para os "toxicômanos organizacionais" revela-se como processo torturante e de veloz mortificação.

Notamos que o jogo do trabalho vem deixando feridas tanto físicas e sociais, quanto, principalmente, psíquicas. A legitimação do modo de vida que habita o jogo (o risco, a incerteza, a competição desenfreada) vem provendo um drástico desequilíbrio e configurando processos patológicos de diversas ordens. E a incitação social cada vez mais crescente nos dá indicadores de que o prognóstico não será de redução deste panorama "doloroso", pelo contrário, não precisamos ser profetas para prever que se continuarmos com as ideologias de vida municiadas/difundidas por modelos de gestão como o descrito acima e/ou pelos jogos de azar perpetuaremos o individualismo, a adição e, em linhas gerais, diversas condições que promovem o sofrimento humano patogênico.

Não podemos mais permanecer insensíveis às formas de violência, dominação, exploração, exclusão e humilhação estabelecidas e legitimadas em nossa sociedade. Os "jogadores estratégicos patológicos" estão borbulhando no cotidiano e a difusão das políticas de gestão organizacional problematizadas e dos jogos de azar de maneira desmedida/desregulamentada pode ainda produzir muito sofrimento e ser esteio de diversas patologias, portanto uma atenção por parte de gestores, profissionais de saúde, governo, entre outros atores, deve ser proporcionada, assim como o incentivo em pesquisas na área deve ser realizado, a fim de que possam adubar a serviço do bem comum e da demanda social, bem mais que servir à ideologia capital de consumo e espetáculo e a critérios de desempenho, utilidade e lucratividade.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Guilherme Elias da Silva
Endereço: Rua Antônio Brambilla, 327. Jd. Paris.
CEP: 87083-400. Maringá-PR
E-mail: guilhermin@hotmail.com

Recebido em: 08/07/2013
Revisado em: 15/06/2015
Aceito em: 22/06/2015

 

 

1 Este trabalho é fruto de reflexões desenvolvidas no Grupo de Pesquisa (CNPq): "Figuras e Modos de Subjetivação no Contemporâneo"
2 O ideal de Eu, de acordo com Laplanche e Pontalis (2001, p. 222), é uma "instância da personalidade resultante da convergência do narcisismo (idealização do ego) e das identificações com os pais, com os seus substitutos e com os ideais coletivos. Enquanto instância diferenciada, o ideal do ego constitui um modelo a que o sujeito procura conformar-se". Existe uma diferença entre o ideal de Ego, herdeiro do narcisismo secundário e, o Superego, herdeiro do complexo de Édipo. De acordo com Pagès et al. (1987), o ideal de Ego se constitui, ao menos na origem, em uma tentativa de recuperação da onipotência perdida no narcisismo. O Superego é oriundo da castração na resolução do complexo de Édipo. Ainda para esses autores: "O Superego separa a criança de sua mãe, o ideal de Ego o leva à fusão. O ideal de Ego tem exigências ilimitadas de perfeição e de poder, enquanto que o Superego alivia estas exigências instituindo a barreira do incesto e transformando a impotência intrínseca da criança em obediência a uma proibição" (Pagès et al.,1987, p. 155).
3 O narcisismo, no contexto da presente exposição, é entendido como uma vertente do individualismo contemporâneo particularmente insensível a compromissos com ideais de conduta coletivamente orientados. Em consonância com Freire-Costa (2004a), o uso da palavra narcisismo em tal acepção representa satisfatoriamente o alicerce e o funcionamento moral da sociedade urbano-capitalista brasileira. Esta acepção não coincide com o que é utilizado na literatura técnica psicanalítica. Narcisismo, em psicanálise, é a condição mental indispensável à aquisição de sentimento e da consciência de "identidade" subjetiva (ver Freud, 1914/1996a).
4 Para fazer frente à sintomatologia física e psicológica experimentada pela síndrome do esgotamento profissional, o trabalhador acaba por desenvolver o que é denominado por despersonalização, isto é, passa a ter um contato frio e impessoal, até mesmo irônico e cínico, com as pessoas relacionadas com seu trabalho (parceiros, clientes e/ou superiores). Para maiores esclarecimentos sobre este mecanismo ver Benevides-Pereira (2002, p. 35).
5 As teorias interacionistas que elegem como principais representantes Piaget (1896-1980), Wallon (1879-1962) e Vygotsky (1896-1934), preconizam a imitação como origem de toda representação mental e a base para o aparecimento do jogo infantil (Kishimoto, 2001).

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