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Revista Subjetividades

Print version ISSN 2359-0769On-line version ISSN 2359-0777

Rev. Subj. vol.15 no.1 Fortaleza Apr. 2015

 

ARTIGO ORIGINAL

 

A questão do narcisismo na melancolia

 

The issue of narcissism in melancholia

 

La question du narcissisme dans la melancolia

 

El problema del narcisismo en la melancolía

 

 

Thalita Lacerda Nobre

Psicóloga Clínica graduada pela UNISANTOS, Doutora em Psicologia Clínica pela PUC-SP (Núcleo Psicanálise), Especialista em Gestão Estratégica de RH pela Universidade Castelo Branco/Exército brasileiro, Docente e supervisora de estágios na UNIP/Santos-SP e UNISANTOS e trabalha em consultório particular

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo tem o objetivo de discutir sobre os conceitos de narcisismo primário e secundário seguindo o percurso de Freud a partir de 1910 e no importante trabalho de 1914: "Sobre o narcisismo - uma introdução". Após esta discussão, a autora apresenta, dentro do referencial freudiano, a correlação entre o narcisismo e a melancolia, enfatizando, principalmente, a gênese e os sintomas desta patologia. A autora faz também um percurso sobre o conceito de narcisismo, utilizando os entendimentos de Laplanche e outros autores que contribuem com proposições clínicas. Além disso, busca discutir, a partir das postulações freudianas em "Luto e melancolia" (1917[1915]), a respeito da movimentação do objeto dentro do ego, o conflito entre ego e superego, os prejuízos quanto à desidealização do ego, a identificação peculiar a esta patologia e o conflito entre pulsão de vida e pulsão de morte. A fim de enriquecer a discussão, a autora apresenta a respeito da acídia, como característica desta neurose narcísica. Para concluir o estudo, a autora apresenta algumas contribuições de autores que escrevem a respeito da clínica da melancolia, buscando enfatizar que o tratamento psicanalítico da melancolia reside no trabalho para que o ego possa voltar a ser investido narcisicamente a fim de criar defesas contra o superego sádico.

Palavras-chave: melancolia; narcisismo; ego ideal; superego; ideal do ego.


ABSTRACT

This article aims to discuss the concepts of primary and secondary narcissism following Freud's route since 1910 and at important work from 1914: "On Narcissism - an introduction."After that, the author presents, inside Freudian reference, the correlation between narcissism and melancholia, focusing, mainly, the genesis and symptoms of this disease. The author also makes a course on the concept of narcissism, using the insights of Laplanche and others authors that contributes with clinical propositions. Also, discusses, from the Freudian postulates in "Mourning and Melancholia" (1917 [1915]) about object movement inside the ego, the conflict between ego and superego, as the losses un-idealization ego, peculiar identification to this disease and conflict between life instinct and death instinct. In order to enrich the discussion, the author presents about acedia, as characteristic of the narcissistic neurosis. To conclude the study, the author presents some contributions by authors who write about the clinic of melancholy, seeking to emphasize that the psychoanalytic treatment of melancholia lies in the work so that the ego can be re-invested narcissistically in order to create defenses against sadistic super-ego.

Keywords: melancholia; narcissism; ego ideal; super-ego;ideal ego.


RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo discutir los conceptos de narcisismo primario y secundario, siguiendo la ruta de Freud en 1910 y el importante trabajo de 1914: "Introducción al narcisismo - una introducción". Después de esta discusión, el autor presenta, en la referencia freudiana, la correlación entre el narcisismo y la melancolía, centrándose principalmente en la génesis y los síntomas de esta enfermedad. El autor también hace un recorrido sobre el concepto de narcisismo, usando las ideas de Laplanche y otros que contribuyen a las proposiciones clínicos. Además, analiza, desde la freudiana postula en "Duelo y melancolía" (1917 [1915]) en relación con el movimiento del objeto en el ego, el conflicto entre el yo y el superyó, como las pérdidas desidealização ego, la identificación propios de esta enfermedad y el conflicto entre instinto de vida y pulsión de muerte. Con el fin de enriquecer la discusión, el autor presenta acerca de la acedia, como característica de la neurosis narcisista. Para completar el estudio, el autor presenta algunas de las contribuciones de los autores que escriben sobre la clínica de la melancolía, la búsqueda de hacer hincapié en que el tratamiento psicoanalítico de la melancolía se encuentra en el trabajo para que el ego puede ser reinvertido narcisista con el fin de crear defensas contra el superyó sádico.

Palabras clave: la melancolía; narcisismo; yo ideal; super-yo; ideal del yo.


RÉSUMÉ

Cet article vise à discuter les concepts de narcissisme primaire et secondaire en suivant la route de Freud en 1910 et l'important travail de 1914: «Le narcissisme - une introduction.» Après cette discussion, l'auteur présente, dans la référence freudienne, la corrélation entre le narcissisme et la mélancolie, se concentrant principalement sur la genèse et les symptômes de cette maladie. L'auteur fait aussi un voyage sur le concept de narcissisme, d'après les connaissances de Laplanche et d'autres qui contribuent à des propositions cliniques. En outre, discute, à partir du freudienne postule dans «Deuil et mélancolie» (1917 [1915]) concernant le mouvement de l'objet au sein de l'ego, le conflit entre moi et le sur-moi, comme les pertes desidealização ego, l'identification particulière à cette maladie et le conflit entre pulsion de vie et pulsion de mort. Afin d'enrichir la discussion, l'auteur présente sur les acédie, comme caractéristique de la névrose narcissique. Pour compléter l'étude, l'auteur présente quelques contributions par des auteurs qui écrivent sur la clinique de la mélancolie, en cherchant à souligner que le traitement psychanalytique de la mélancolie réside dans le travail de telle sorte que l'ego peut être ré-investi narcissiquement dans le but de créer des défenses contre le sur-moi sadique.

Mots-clés: la mélancolie; le narcissisme; moi ideal; sur-moi;idéal du moi.


 

 

"Não sei por que deveria me sentir tão terrivelmente melancólica, mas me oprime a impressão de que ninguém me ama."

Sylvia Plath1

 

A partir da primeira década do século XX, Freud se debruçou sobre o entendimento do narcisismo. Para o mestre, que ainda se situava na primeira tópica, o processo de constituição do psiquismo deveria ser mais bem entendido desde os seus primórdios.

O interesse por esse período inicial da constituição psíquica do sujeito possibilitou a Freud escrever, em 1910, o ensaio Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância, em que postula sobre o tipo de escolha de objeto narcísica, mais premente entre os homossexuais. A este respeito escreve que, nos casos que culminam em homossexualidade, o amor do menino por sua mãe necessita sucumbir à repressão, porém ao reprimir este amor, ele "(...) coloca-se em seu lugar, identifica-se com ela, e toma a si próprio como um modelo a que devem assemelhar-se os novos objetos de seu amor" (Freud, 1910/1996a, p. 106).

Freud complementa que, nestes casos, "o que de fato aconteceu foi um retorno ao autoerotismo, pois os meninos que ele agora ama à medida que cresce, são, apenas, figuras substitutivas e lembranças de si próprio durante sua infância (...)" (Freud, 1910/1996a, p. 106).

Sendo assim, pela via do entendimento acerca da escolha de objeto homossexual, o mestre levanta considerações sobre os períodos iniciais da constituição do sujeito, que podem tornar-se visíveis quando ocorre este retorno a fases anteriores, como no caso da constituição do objeto de escolha amorosa peculiar aos homossexuais.

Em continuação a esta investigação acerca dos primórdios da constituição psíquica, Freud escreve um texto especificamente voltado às postulações de suas descobertas a respeito do narcisismo. Em Sobre o narcisismo - uma introdução (1914/1996d), o vienense lança luz sobre o entendimento de instâncias que estruturariam o psiquismo. As discussões acerca do ego ideal, ideal de ego e superego dão notícia de um início de formulação, por parte do mestre do que constituiria, um pouco mais adiante, a segunda tópica.

Nesse importante trabalho, Freud se aprofunda nas questões relativas ao que ele denominou de narcisismo primário, referindo-se ao estágio em que a criança volta o amor exclusivamente a si mesmo, um estágio anobjetal.

Porém, conforme se acredita que o próprio Freud deva ter percebido - já que não retoma em nenhuma outra passagem de sua obra esse conceito - esta concepção não se sustenta, pois o Eu do sujeito em constituição está sempre permeado pelo Eu de outro.

Sendo assim, conforme Laplanche (1998, p. 289), entende: "O próprio ideal narcísico da criança é o reflexo - ou a projeção - do ideal de onipotência (debilitado) que os pais projetam nela".

Este movimento será a essência do que Freud denomina de narcisismo secundário, que de acordo com Michel Vincent, "(...) corresponde ao retorno para o Eu da libido retirada dos objetos" (2005, p. 1228).

Assim, a partir da compreensão da obra freudiana referida por esses autores, é possível considerar que Freud, ao conceber o conceito de narcisismo, não desconsidera a importância do outro como objeto. É por esta razão que se entende que o mestre sublinha tão fortemente a influência dos pais na constituição psíquica da criança.

Freud, ao observar as atitudes dos pais, percebe que a ternura com que estes tratam seus filhos "(...) é uma revivescência e reprodução de seu próprio narcisismo, que de há muito abandonaram." Ele completa ainda que a atitude dos pais é orientada por uma grande valorização, já que "(...) eles [pais] se acham sob a compulsão de atribuir todas as perfeições ao filho (...) e de ocultar e esquecer todas as deficiências dele" (Freud, 1914/1996d, p. 97).

Freud complementa ainda que, no início da constituição do psiquismo, o bebê necessita que os pais tenham investido narcisicamente em seu psiquismo, para que ele seja alçado à condição de "sua majestade, o bebê". Ainda a este respeito, escreve que:

A criança concretizará os sonhos dourados que os pais jamais realizaram (...). No ponto mais sensível do sistema narcisista, a imortalidade do ego, tão oprimida pela realidade, a segurança é alcançada por meio do refúgio na criança. O amor dos pais, tão comovedor e no fundo tão infantil, nada mais é senão o narcisismo dos pais renascido, o qual, transformado em amor objetal, inequivocamente revela sua natureza anterior. (Freud, 1914/1996d, p. 97)

Assim, Freud revela que o narcisismo da criança surge a partir de um "empréstimo" do narcisismo dos pais, sendo assim, os pais projetam seus próprios narcisismos no filho e este se identifica com eles.

A fim de que este narcisismo tenha condições de sobreviver, Freud postula a constituição de uma instância ideal denominada de ego ideal. Em suas palavras:

Esse ego ideal é agora o alvo do amor de si mesmo (...) desfrutado na infância pelo ego real. O narcisismo do indivíduo surge deslocado em direção a esse novo ego ideal, o qual, como o ego infantil, se acha possuído de toda perfeição de valor. (Freud, 1914/1996d, p. 100)

Nessa linha, Freud continua a exposição detalhando a respeito do que ocorre quando chega o momento em que o sujeito se depara com a impossibilidade de manter a perfeição que acreditava possuir. Ele escreve o seguinte:

Como acontece sempre que a libido está envolvida, mais uma vez aqui o homem se mostra incapaz de abrir mão de uma satisfação de que outrora desfrutou. Ele não está disposto a renunciar à perfeição narcisista de sua infância; e quando, ao crescer, se vê perturbado pelas admoestações de terceiros e pelo despertar de seu próprio julgamento crítico, de modo a não mais poder reter aquela perfeição, procura recuperá-la sob a nova forma de um ego ideal. O que ele projeta diante de si como sendo seu ideal é o substituto do narcisismo perdido de sua infância na qual ele era o seu próprio ideal. (Freud, 1914/1996d, pp. 100-101)

É interessante observar que Freud, neste momento, faz uma pequena diferenciação entre o que ocorre com o ego ideal e o que ele denominará, ainda neste trabalho, de ideal do ego. O mestre postula que o primeiro surge a partir de um investimento narcísico, porém, ao crescer e se deparar com as críticas, o sujeito terá que constituir uma "nova forma de um ego ideal", mais próxima do conceito de ideal do ego.

Laplanche escreve a partir da análise do texto freudiano de 1914 que:

(...) o 'ego ideal' inclina-se mais para uma idealização da onipotência do ego: é um ego idealizado, um ego levado ao máximo de onipotência. Pelo contrário, o 'ideal do ego' apresenta-se como algo que se colocaria diante do ego como seu ideal: Num sentido, uma instância menos ilusória do que a instância do ego ideal, certamente mais ligada aos problemas da lei e da ética. (Laplanche, 1998, p. 291)

Assim, o ego ideal estaria ligado a momentos mais primitivos da constituição do sujeito, a utilização da onipotência de pensamento. Ao passo que a constituição do ideal do ego demonstra que o sujeito teve acesso às questões relativas à cultura e à organização da civilização.

Laplanche complementa a exposição a respeito dos conceitos de ego ideal e de ideal do ego explicitando que os sentimentos relacionados à inferioridade - isto é, aqueles que podem ser compreendidos como relativos à baixa autoestima - abalam diretamente o narcisismo do sujeito e por isso, estão ligados ao ego ideal. Por outro lado, os sentimentos de culpa ou insuficiência moral estariam mais ligados ao que o sujeito percebe como inadequado em si, a partir do que ele entende como ética e moral (como exigência cultural e civilizatória) e, portanto, estariam mais voltados ao ideal do ego.

Ainda no que tange à constituição do ideal do ego, segundo Freud, o que o sujeito "(...) projeta diante de si como sendo seu ideal é o substituto do narcisismo perdido de sua infância na qual ele era o seu próprio ideal" (Freud, 1914/1996d, pp. 100-101).Sendo assim, pode-se compreender que o ideal do ego será construído a partir do narcisismo, pois teve que haver um investimento em si para haver investimento nos objetos. E também, este investimento em si, somente, foi possível porque houve investimento de outro, caso contrário, o psiquismo não teria condições de se desenvolver.

Também, Freud, ao postular sobre a necessária desidealização do ego quando o sujeito se deparar com as críticas e admoestações de terceiros, comenta da existência de outra instância que ele relaciona à consciência moral. Em suas palavras:

Não nos surpreenderíamos se encontrássemos um agente psíquico especial que realizasse a tarefa de assegurar a satisfação narcisista proveniente do ideal do ego, e que, com essa finalidade em vista, observasse constantemente o ego real, medindo-o por aquele ideal. Admitindo-se que esse agente de fato exista, de forma alguma seria possível chegar a ele como se fosse uma descoberta - podemos tão-somente reconhecê-lo, pois podemos supor que aquilo que chamamos de nossa 'consciência' possui as características exigidas.(Freud, 1914/1996d, p. 102)

Assim, compreende-se que Freud propõe uma instância que serve para regular o ego real, a partir do ideal. É o agente de censura, de consciência que, conforme ele mesmo completa, foi instituído por "(...) uma personificação, primeiro da crítica dos pais, e, subsequentemente, da sociedade - processo que se repete quando uma tendência à repressão se desenvolve de uma proibição ou obstáculo que proveio, no primeiro caso, de fora" (Freud, 1914/1996d, p. 102).

Para Freud, nesse trabalho, essa instância crítica advém e se instala como a voz dos pais, como a voz no delírio, o superego fala como a "voz da consciência" necessária à regulação da moral e da ética do sujeito.

Em continuação ao percurso do conceito de narcisismo na obra freudiana, acredita-se ser necessário incluir aqui que, no ano seguinte a obra Sobre o narcisismo - uma introdução, há um período bem fértil de concepções teóricas.

Um exemplo desta fertilidade é que em Os instintos e suas vicissitudes (1915/1996c), Freud passa a definir o narcisismo com maior clareza, escrevendo o seguinte: "Ficamos habituados a denominar a fase inicial do desenvolvimento do ego, durante a qual seus instintos sexuais encontram satisfação autoerótica, de 'narcisismo' (...)" (Freud, 1915/1996c, p. 137). Esta definição traz o entendimento de que há uma fase essencial do desenvolvimento psíquico cujos investimentos libidinais estão voltados ao próprio ego do sujeito. Sendo assim, as pulsões parciais, até então anárquicas, se unificam em busca de uma satisfação, que pode ser autoerótica.

Diante disto, Freud se debruça ao entendimento de duas afecções que influenciam no narcisismo do sujeito. Neste sentido, postula a respeito das diferenças essenciais entre as duas patologias e reconhece que, fundamentalmente, a diferença entre as duas reside na perda do objeto e o modo como se lida com ela. Deste modo, na melancolia, o paciente pode até saber

(...) quem ele perdeu, mas não o que perdeu nesse alguém. Isso sugeriria que a melancolia está, de alguma forma, relacionada a uma perda objetal retirada da consciência, em contraposição ao luto, no qual nada existe de inconsciente a respeito da perda. (Freud, 1917/1996b, p. 251)

É interessante observar que com esta postulação, o mestre deixa claro seu entendimento de que a perda na melancolia está relacionada a um objeto que fora retirado da consciência. Apesar de este texto estar situado na primeira tópica - e por isso, ainda restrito a concepção de uma perda objetal consciente ou inconsciente - Freud dá a notícia de que, nesta patologia, algo do próprio ego do sujeito é que se perde com o objeto.

Ele complementa ainda que o que se vê na melancolia não é o semelhante ao que ocorre no luto, pois a perda existente é "(...) uma perda de natureza mais ideal" (Freud, 1917/1996b, p. 251).

Isso significa que o melancólico pode sofrer uma perda de objeto tanto quanto aquele que entrará em processo de luto, porém a perda deste objeto impedirá certa "cicatrização" da ferida deixada pelo objeto que se foi, visto que a perda é de um ideal.

De acordo com Freud, além da forma como se reage à perda do objeto, o que se pode observar na melancolia como traços distintivos do luto são:

(...) um desânimo profundamente penoso, a cessação de interesse pelo mundo externo, a perda da capacidade de amar, a inibição de toda e qualquer atividade, e uma diminuição dos sentimentos de autoestima a ponto de encontrar expressão em auto-recriminação e auto-envilecimento, culminando numa expectativa delirante de punição. (Freud, 1917/1996b, p. 250)

Assim, quando Freud enumera estas características evidencia-se sua percepção a respeito da dimensão narcísica desta patologia. Ao referir-se à perda da capacidade de amar, à diminuição da autoestima com diversas consequências e uma expectativa delirante de punição, Freud expõe o caráter narcísico específico da melancolia.

Então, Freud enfatiza que, diferentemente do luto, a dor do melancólico é uma dor moral, que contém uma autoacusação com o intuito de empobrecer o ego, já tão fragilizado (Freud, 1917/1996b).

De acordo com Freud, na melancolia, a perda do objeto dá ensejo à formação de uma espécie de delírio de caráter moral, um "delírio de inferioridade", que nos dizeres do mestre podem ser expressos clinicamente do seguinte modo:

O paciente representa seu ego para nós como sendo desprovido de valor, incapaz de qualquer realização e moralmente desprezível; ele se repreende e se envilece, esperando ser expulso e punido. Degrada-se perante todos, e sente comiseração por seus próprios parentes por estarem ligados a uma pessoa tão desprezível. (Freud, 1917/1996b, pp. 251-252)

Desse modo, diante destes maciços julgamentos voltados ao próprio ego, a percepção da realidade, na melancolia, tenderá a seguir a lógica narcísica de que o sujeito é responsável pelos males do que ocorre a sua volta, merecendo assim, somente o fracasso e a punição.

A respeito desta "necessidade de punição" (ou "sentimento inconsciente de culpa"), característica do quadro clínico melancólico, Freud, em 1924, retoma e amplia o entendimento escrevendo o seguinte:

Atribuímos a função da consciência ao superego e reconhecemos a consciência de culpa como expressão de uma tensão entre o ego e o superego. O ego reage com sentimentos de ansiedade (ansiedade de consciência) à percepção de que não esteve à altura das exigências feitas por seu ideal, ou superego. O que desejamos saber é como o superego veio a desempenhar esse papel exigente e por que o ego, no caso de uma diferença com o seu ideal, deve ter medo. (Freud, 1924/1996f, p. 184)

Esse entendimento freudiano vem em continuidade a sua postulação em um trabalho anterior denominado (1924), em que propõe:

(...) tem de haver doenças que se baseiam em um conflito entre o ego e o superego. A análise nos dá o direito de supor que a melancolia é um exemplo típico desse grupo, e reservaríamos o nome de 'psiconeuroses narcísicas' para distúrbios desse tipo. (Freud, 1924/1996e, p. 170)

Então, retomando o raciocínio a partir de Freud de que na melancolia, a necessidade de punição (ou sentimento inconsciente de culpa) seja decorrente de uma espécie de opressão muito forte do superego ao ego, pode-se voltar um pouco mais a busca do entendimento de por que isso acontece.

A tentativa de buscar respostas a essa questão, pode partir da investigação de que na melancolia, a perda do objeto remete o sujeito a uma perda de um vínculo narcísico. Sendo assim, o objeto pode até ser entendido, racionalmente, como um ente separado do ego do sujeito, porém, a qualquer momento em que ele se movimentar, poderá abalar o edifício identificatório do sujeito melancólico.

A percepção, mesmo que mínima, da movimentação do objeto e os dados da realidade de que este é um ente autônomo e por isso pode se movimentar, provoca em qualquer sujeito uma necessidade de reorganização, necessidade esta produzida pela castração. Porém, para o melancólico, especialmente, pode ser fonte de grandes abalos.

No que se refere à castração, a psicanalista Piera Aulagnier (1975) oferece uma interessante definição que pode auxiliar a compreender melhor o tema desta pesquisa. Ela a define como: "(...) a descoberta, no registro identificatório, de que não ocupamos jamais o lugar que acreditávamos nosso e que inversamente já estávamos destinados a ocupar um lugar no qual não poderíamos ainda encontrar-nos" (p. 158). E esta psicanalista complementa com a exposição de que, diante desta constatação, "o que podemos fazer é assumir a experiência de forma a preservar para o Eu alguns pontos fixos, que servirão como apoio quando surgir um conflito identificatório" (p. 158).

Assim, entendo que esta constatação de que o sujeito melancólico não pode mais ocupar o lugar identificatório que acreditava ocupar não pode ser aceito pelo ego, pois não há um asseguramento do superego, como instância identificatória que possa lhe amenizar a dor da castração. Pelo contrário, o superego, como instância crítica e julgadora volta-se ao ego no sentido de operar todo o seu sadismo, inferiorizando o ego, impedindo a reconstrução de sua autoestima.

A partir de Luto e melancolia (1917/1996b), compreende-se que, ao se deparar com a perda do objeto, o sujeito que viverá o trabalho de luto, tende a aceitar a penosa castração e reconstituir seu edifício identificatório (que tende a não sofrer abalo estrutural), porém na melancolia o sujeito não terá condições de restabelecer seu edifício, já que o bombardeio sentido pela perda do objeto foi estrutural.

Freud escreve nesta mesma obra que, na ocasião da perda do objeto, o melancólico não consegue deslocar a libido para outro objeto. Ela é retirada para o próprio ego e dentro dele passa a servir como identificação com o objeto perdido. É por este movimento da libido que Freud postula que:

(...) a sombra do objeto caiu sobre o ego, e este pôde, daí por diante, ser julgado por um agente especial, como se fosse um objeto, o objeto abandonado. Dessa forma, uma perda objetal se transformou numa perda do ego, e o conflito entre o ego e a pessoa amada, numa separação entre a atividade crítica do ego e o ego enquanto alterado pela identificação.(Freud, 1917/1996b, pp. 254-255)

Assim, é possível entender que a perda do objeto não pode ser aceita pelo melancólico, pois para ele não houve retirada da libido do objeto e possibilidade desta libido ser investida em outro objeto. A libido, que nos casos de neurose é retirada do objeto, volta-se para o ego e cria a lógica de que o próprio ego é o objeto perdido. Assim, o ego é julgado, devorado pelo superego como sendo o próprio objeto perdido e, sendo assim, este ego permanece identificado com a perda.

Para isso ocorrer, a escolha de objeto deve ter sido narcísica, pois assim, "(...) de modo que a catexia objetal, ao se defrontar com obstáculos, pode retroceder para o narcisismo" (Freud, 1917/1996b, p. 254). O mestre complementa também que: "A identificação narcisista com o objeto se torna, então, um substituto da catexia erótica, e, em consequência, apesar do conflito com a pessoa amada, não é preciso renunciar à relação amorosa" (Freud, 1917/1996b, p. 255).

Sendo assim, conforme Laplanche entende, antes de uma escolha de objeto amoroso, a escolha objetal do melancólico coincide com o objeto identificatório, ou seja, a escolha se dá "(...) por algum elemento que seja idêntico" (1998, p 305).

Assim, o melancólico investe a libido objetal em seu próprio ego a fim de evitar a dor da perda insuportável do objeto como ente separado do ego, porém não pode escapar dos imperativos do superego, que age implacavelmente, causando uma sofrida ferida narcísica.

Acredita-se que o superego aja implacavelmente porque quando da sua formação precisou haver desidealização do ego, mas, neste momento, ocorreu um aprisionamento do objeto ao ego ideal - isto é, houve uma parte do ego que se recusou a abandonar o narcisismo infantil. Sendo assim, uma parte do ego não conseguiu abandonar o objeto de investimento infantil para que o superego e o ideal do ego pudesse se formar a partir da aceitação da castração.

Pelo contrário, o objeto de escolha e de identificação do melancólico tem como característica, segundo Laplanche (1998) aponta, a rigidez e a fragilidade. Em suas palavras:

Rigidez, ausência de flexibilidade, falta de adaptação às contingencias do objeto: É preciso que este entre num quadro preciso ou, em todo caso, que por algum detalhe ele se adapte precisamente a um detalhe que o individuo tornou seu. Fragilidade, no sentido de que a menor omissão, a menor falta do objeto, afeta precisamente esse ponto identificatório, pode provocar um recuo e um abandono do objeto. (p. 306)

Sendo assim, a rigidez e a fragilidade do objeto estão presentes de modo que a mínima percepção da possibilidade de movimentação deste objeto pode ser correlacionada à necessidade de abandoná-lo, à perda. É por isso, que se pode dizer que o melancólico se interessa pela perda, o melancólico tende a se tornar, ao longo de sua história, um mestre na "arte da perda".

Isso porque, em sua constituição psíquica, o ego sofreu com a pressão do superego e guardou uma ambivalência em relação ao objeto. O amor pelo objeto permitiu que ele entrasse no ego e se refugiasse na identificação narcísica. Uma vez feito isso, o ódio pode entrar em ação contra a parte do ego identificada com esse objeto. Assim, encontrou também satisfação sádica, ou seja, o ódio com relação ao objeto voltou-se ao próprio ego.

Freud escreve ainda que este modo de relação com o objeto na melancolia pode servir de tentativa para que o amor não se esvaia, segundo ele, "(...) refugiando-se no ego, o amor escapa à extinção" (1917/1996b, p. 262). E esta pode ser uma das formas que o melancólico pode encontrar para se manter vivo, não permitindo que Tânatos o invada completamente, levando-o a morte (suicídio).

Crê-se também que nesta tentativa de manter vivo o psiquismo, o melancólico não permite que o objeto se movimente, produzindo o que Agamben denominou de acídia.

De acordo com Agamben (2007, p. 28), durante a idade média, a morte era denominada de acídia, tristitia, taedium vital e desídia. Este autor, ao se referir ao sujeito acidioso, compreende esta denominação do seguinte modo:

O que preocupa o acidioso não é, pois, a consciência de um mal, e sim, pelo contrário, o fato de ter em conta o mais elevado dos bens: Acídia é o vertiginoso e assustado retrair-se (recessus) frente ao compromisso da estação do homem diante de Deus.

Sendo assim, Magtaz e Berlinck (2005) entendem que o sujeito melancólico contém a acídia em si mesmo, já que: "O acidioso não deixa de desejar o objeto inatingível, o ideal. Por não conseguir alcançá-lo, nas alturas, imobiliza-se, muitas vezes, numa angustiada tristeza que o move em direção ao vício da ação desenfreada ou da inação" (p. 286).

Desta forma, conforme propõe os autores, o sujeito dominado pela acídia é o sujeito que não pode supor que deseja para si o objeto, que via de regra, é idealizado. No entendimento de Agamben, estar diante de Deus é firmar um compromisso, uma responsabilidade de posse de um objeto que buscará, mas que não tem garantia de que possuirá.

Em Freud, a partir da concepção de inveja do pênis como objeto de brilho fálico, é possível pensar, em correlação com Agamben, que o melancólico pode ser um invejoso do próprio Eu. E, neste sentido, com medo da movimentação do objeto proporcionada pelo princípio de realidade, o acidioso recorre a uma imobilização ou a relação passional a fim de garantir um estado em que o objeto ideal permaneça desta forma.

Permite-se fazer uma analogia entre o sujeito melancólico e o Bicho-preguiça, que tem garras fortes para se fixar no alto dos troncos das árvores e tem por hábito peculiar a movimentação extremamente lenta. Além disso, nesta espécie característica da fauna sul-americana, toda lentificação se traduz em um metabolismo lento (a digestão tem como característica a ruminação), seus hábitos incluem descer da árvore somente uma vez a cada sete dias para fazer suas necessidades. É um animal de hábito solitário, porém de difícil sobrevida em cativeiro (Gilmore; Costa; Duarte, 2001).

Após esta digressão, retoma-se que apesar da lentificação dos movimentos e a busca pela estagnação serem características da melancolia, Freud esclarece que há possibilidade de um trabalho nesta patologia. Em suas palavras, em uma situação de perda do objeto:

(...) cada luta isolada da ambivalência distende a fixação da libido ao objeto, depreciando-o, denegrindo-o e mesmo, por assim dizer, matando-o. É possível que o processo no inconsciente chegue a um fim, quer após a fúria ter-se dissipado, quer após o objeto ter sido abandonado como destituído de valor. Não podemos dizer qual dessas duas possibilidades é a regular ou a mais usual para levar a melancolia a um fim, nem que influência esse término exerce sobre o futuro curso do caso. O ego pode derivar dai a satisfação de saber que é o melhor dos dois, que é superior ao objeto. (Freud, 1917/1996b, p. 262)

Desse modo, a partir de Freud é possível concluir que a melancolia pode sofrer alguma remissão à medida que o sujeito pode perceber que existe outro e à medida que este outro se movimenta, a perda se torna iminente. Porém, diante disto, há a possibilidade de que o ego do sujeito tenha acesso à percepção de que pode ser superior ao objeto.

Sendo assim, nos casos de melancolia em que a libido investida no objeto perdido voltou-se ao ego de modo a consumi-lo em quase sua totalidade, acredita-se ser possível que, pela via do narcisismo, do amor a si, o sujeito possa vislumbrar a possibilidade de que ele não se perde junto com o objeto morto.

O trabalho estaria então relacionado à possibilidade de que o ego possa voltar a ser investido narcisicamente de modo a criar defesas contra o superego sádico. Porém, conforme a psicanalista Ana Cleide Guedes Moreira adverte em sua experiência clínica com pacientes melancólicos:

É preciso reconhecer que o desejo do analista de salvar o paciente física e psiquicamente tem que ser cuidadosamente trabalhado para não levar a uma explosão dos segredos do paciente. É necessário um trabalho cuidadoso e atento no sentido de dar limites ao desejo de curar, aceitando o doloroso fato de que não se é onipotente. (Moreira, 2002, p. 131)

Desse modo, de acordo com a autora, pode-se concluir que a clínica da melancolia apresenta como possibilidade de suscitação no analista um desejo onipotente de "salvação" do ego do paciente (e também do analista) da angústia gerada pela acídia e pelos movimentos característicos da pulsão de morte.

A melancolia suscita sempre o diálogo com a desconstrução, a desintegração, e o analista pode vir a se angustiar com estes sentimentos. A clínica da melancolia, conforme esta psicanalista considera, exige que se esteja atenta a essa angústia para que se possa auxiliar o paciente em um penoso trabalho de Eros.

 

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Endereço para correspondência:
Thalita Lacerda Nobre
Endereço: Rua Cunha Moreira, nº 223, apto. 311
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E-mail: thalita_l@yahoo.com.br

Recebido em:05/07/2012
Revisado em: 24/10/2013
Aceito em:27/01/2014

 

 

1 Kukil, K. V. (2004) Os diários de Sylvia Plath - 1950-1962. São Paulo: Globo, p. 615.

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