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Revista Subjetividades

Print version ISSN 2359-0769On-line version ISSN 2359-0777

Rev. Subj. vol.15 no.2 Fortaleza Aug. 2015

 

ARTIGO ORIGINAL

 

À flor da pele: posições femininas de dizer o amor

 

Under the skin: women positions to say love

 

A flor de piel: posiciones femeninas de decir el amor

 

À fleur de peau: positionnements féminins de dire lamour

 

 

Louise Amaral LhullierI; Daphne de Castro FayadII

IPsicanalista, psicóloga. Doutora em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Pesquisadora do Laboratório de Psicanálise, Processos Criativos e Interações Políticas da UFSC
IIPsicanalista. Mestre em Psicanálise pela Université de Paris 8. Doutora em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Pesquisadora do Laboratório de Psicanálise, Processos Criativos e Interações Políticas da UFSC

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo busca demarcar algumas posições femininas no amor a partir das canções de Chico Buarque de Holanda, sobretudo quanto às formas em que a mulher e o feminino se afiguram nesses versos. Parte-se da indicação de algumas diferenças entre a representação da mulher no amor cortês da poesia dos trovadores e a pluralidade de figuras femininas que se desdobram ao infinito nas canções de Chico Buarque, impedindo categorizações que apreendam a mulher e indicando, ao mesmo tempo, sua menção em permanente referência ao amor. O amor é então discutido em função da ideia dos três registros (Imaginário, Simbólico e Real) de Jacques Lacan, o que permite articular a poesia em sua relação privilegiada com o significante e como recurso de recobrimento do vazio. Trata, por fim, da dimensão de semblante do amor e sua função de laço, demonstrando que, das diferentes posições femininas de dizer (e serem ditas) no amor depreendem-se tanto o caráter faltoso da mulher referida à ordem fálica, como o inapreensível do que escapa a essa ordem. Desse modo, destaca-se, com Lacan e Chico Buarque, a proximidade da mulher com o real - neste caso, o real do amor.

Palavras-chave: amor; poesia; amor cortês; feminino; Chico Buarque de Holanda


ABSTRACT

This article aims to delimit some feminine positions in love from songs by Chico Buarque de Holanda, especially the ways in which women and feminine seem in these verses. From the indication of some differences between the representation of women in the courtly love of poetry from troubadours and the plurality of female figures that unfold to infinity in the songs of Chico Buarque, preventing categorizations which seize the woman and at the same time, indicating its mention in constant reference to love. Love is then discussed in terms of the idea of Jacques Lacan's three records (imaginary, symbolic and real), which allows to articulate poetry in its privileged relationship with the signifier and as empty covering feature. Finally it is about the dimension of love countenance and its tie function, demonstrating that the women different positions of saying (and being said) in love inferred both the wrongful character of the woman said to the phallic order, as ungraspable than escapes from that order. Thus, it stands out with Lacan and Chico Buarque, the proximity of the woman with the real - in this case, the real love.

Keywords: love; poetry; courtly love; female; Chico Buarque de Holanda


RESUMEN

Este artículo propone demarcar algunas posiciones femeninas en el amor mediante las canciones de Chico Buarque de Holanda, sobretodo en relación a las formas en que la mujer y el femenino se presentan en estos versos. Se parte de la indicación de algunas diferencias entre la representación de la mujer en el amor romántico de la poesía trovadoresca y la pluralidad de imágenes femeninas que se despliegan al infinito de las canciones de Chico Buarque, impidiendo clasificaciones acerca de la mujer e indicando, al mismo tiempo, su mención en referencia permanente al amor. El amor es tan discutido en función a la idea de los tres registros (Imaginario, Simbólico y Real) de Jacques Lacan, lo que permite articular la poesía en su privilegiada relación con el significante y como recurso de recubrimiento del vacío. Trata, por fin, de la dimensión de semblante del amor y su función de lazo, demostrando que de las diferentes posiciones femeninas de decir (y serles dichas) en el amor comprende tanto el carácter faltoso de la mujer referida al orden fálico, como el inaprensible de lo que huye a este orden. De esta forma, se destaca, con Lacan y Chico Buarque, la cercanía de la mujer con el real - en este caso, el real del amor.

Palabras clave: amor; poesía; amor romántico; femenino; Chico Buarque de Holanda.


RÉSUMÉ

Cet article a le but de délimiter quelques positionnements féminins dans l'amour à partir des chansons de Chico Buarque de Holanda, surtout en ce qui concerne les façons comme la femme et le féminin se figurent dans ceux verses. On commence par l'indication de quelques différences entre la représentation de la femme dans l'amour courtois de la poésie des troubadours et la pluralité des images féminines - toujour relationées à l'amour - qui se dérroulent infiniment dans les chansons de Chico Buarque, ce qui empêche des catégorisations serrées de la femme. L'amour est donc discuté selon l'idée des trois régistres (Imaginaire, Symbolique et Réel) de Jacques Lacan, ce qui permet articuler la poésie dans sa relation privilégiée avec le signifiant et comme resource de couverture du vide. On considère, enfin, la dimension du visage de l'amour et sa fonction de boucle, ce qui montre qu'on peut déduire à partir des différents positionnement féminins de dire l'amour tant le carctère manquant de la femme referée à l'ordre falique comme celui insaisissable qu'y échape. De cette façon, on surligne, d'après Lacan et Chico Buarque, la proximité de la femme avec le Réel - dans ce cas là, le réel de l'amour.

Mots-clés: amour; poésie; amour courtois; féminin; Chico Buarque de Holanda


 

 

Desde o início, os textos psicanalíticos se debruçam sobre a mulher e o feminino. O enigma da sexualidade feminina constitui um objeto de investigação em sua limitação de acesso e definição, o que fez, inclusive, que Freud (1926/1996) o designasse como o "continente negro" da psicanálise. Em suas palavras, "sabemos menos sobre a vida sexual das meninas que sobre a dos meninos. Mas não precisamos nos envergonhar dessa distinção; afinal de contas, a vida sexual das mulheres adultas constitui um 'continente obscuro' para a psicologia" (Freud, 1926/1996, p. 276). A "vida sexual" ou as expressões amorosas da mulher compõem um tema que não permite, de qualquer forma, um encerramento. Valemo-nos, portanto, do conselho de Freud (1933/1996, p. 180): "Se desejarem saber mais sobre a feminilidade, [...] dirijam-se aos poetas [...]".

Partindo então da indicação de algumas diferenças entre a representação da mulher no amor cortês da poesia dos trovadores e a pluralidade de figuras femininas que se desdobram ao infinito nas canções de Chico Buarque, o amor é discutido em função dos três registros (Imaginário, Simbólico e Real) de Jacques Lacan, o que permite articular a poesia em sua relação privilegiada com o significante e como recurso de recobrimento do vazio.

As canções de Chico Buarque são tomadas aqui naquilo que comportam de lírico, de poético, considerando a íntima relação entre música e poesia, que remonta aos poemas musicados da Grécia antiga e aos trovadores medievais. Assim, a referência à "poesia de Chico Buarque" se sustenta no uso que ele faz da linguagem poética em suas composições, sem entrar na discussão sobre se suas canções são ou não poemas. Aliás, no documentário Palavra (en)cantada (2009), de Helena Solberg, o próprio compositor afirma sua indiferença quanto a ser chamado de poeta e que não sabe dizer se suas letras são ou não poemas.

Mas, além disso, é tomada como referência a definição de poesia do dicionário Houaiss: uma composição em versos, geralmente com associações harmoniosas de palavras, ritmos e imagens. As canções de Chico Buarque de Holanda, nesse sentido, podem não ser poemas, mas são poesia.

Por fim, aborda-se a dimensão de semblante do amor e sua função de laço, demonstrando que, das diferentes posições femininas de dizer (e serem ditas) no amor depreendem-se tanto o caráter faltoso da mulher referida à ordem fálica, como o inapreensível do que escapa a essa ordem. A escolha das canções e trechos citados foi estabelecida com o intuito de ilustrar essa ideia. Desse modo, destaca-se, com Lacan e Chico Buarque, a proximidade da mulher com o real - neste caso, o real do amor.

 

Amor Cortês e Desencontro Amoroso em Lacan

Segundo Laurent (2007, p. 22), La Rochefoucauld teria dito que "há muita gente que não saberia o que é o amor, se não tivesse lido histórias de amor". Tal afirmação porta uma verdade sobre os efeitos das histórias de amor, na direção do que Lacan definiu como "um reconhecimento autêntico do que o amor deve ao símbolo" (1953[1965]/ 1998, p. 265). Compartilha-se aqui esta radicalidade, sustentando que tudo o que é possível saber sobre o amor e sua história se limita aos registros de suas narrativas - dos mitos aos poemas, da filosofia ao teatro. Tomaremos então dois estilos poéticos distintos de falar sobre o amor (a expressão artística do "amor cortês" e as composições poético-musicais de Chico Buarque), demonstrando como ambos fracassam em dizê-lo por inteiro, satisfazendo assim a necessidade de manter o vazio como condição de sua própria existência.

No Seminário 7, A Ética da Psicanálise (1959-60), Lacan comenta o surgimento do amor cortês no século XII como uma sublimação, historicamente datada, que se refere ao enaltecimento do amor como superior ao encontro sexual dos corpos, configurando, assim, "uma forma exemplar, um paradigma de sublimação" (Lacan, 1959-60/1988, p. 161). A sublimação (da pulsão) e a idealização (do objeto) são as operações que sustentam esse tipo de amor, fazendo emergir um novo estatuto da mulher na figura da Dama, idealizada e inalcançável.

Do amor cortês temos notícia pelos registros poéticos dos trovadores, artistas medievais que proclamavam às figuras dessas Damas um amor impossível e a elas se sujeitavam em nome dele. Radicais, proclamavam "morrer de amor" (Barros, 2008) pelas idealizadas mulheres, superiores em beleza e reputação. Na poesia que surgia do amor cortês e que, ao mesmo tempo, o produzia, encontravam-se a sublimação e a expressão do impossível e "suas ressonâncias são, manifestamente, ainda sensíveis nas relações entre os sexos" (Lacan, 1959-60/1988, p. 161).

Com Lacan (1972-73/1985, p. 94) no Seminário 20, Mais, ainda, é possível compreender o amor cortês como "uma maneira inteiramente refinada de suprir a ausência de relação sexual, fingindo que somos nós que lhe pomos obstáculo". Se, de um lado, temos inaugurada a figura da Dama enaltecida, de outro, há o homem, poeta, que transforma em versos o sofrimento que ele próprio cria no ritual do amor cortês. Trata-se de um sujeito que, a partir da sugestão lacaniana desse amor como saída à inexistência da relação sexual, sofre de um mal para evitar outro pior. Depreende-se dessa ausência o recurso ao "recobrimento do vazio" - profundamente debatido no Seminário 7 - efetuado pela poesia do trovador.

Em seus versos, o trovador se reporta à Dama e, quanto mais se dedica à sua arte, mais se distancia da concretização do amor que proclama. De fato, é essa a única consistência desse amor: privação, isolamento e o esvaziamento de substância real da Dama, que "é apresentada, portanto, com caracteres despersonalizados, de tal forma que autores puderam notar que todos parecem dirigir-se à mesma pessoa" (Lacan, 1959-60/1997, p. 186). Trata-se de amar o amor, na medida em que aquilo que o homem demanda é "ser privado de alguma coisa real" (Lacan, 1959-60/1997, p. 186). É nesse sentido que a linguagem de que se servem os amantes, sobretudo os poetas, não passa de "artifício em relação ao que quer que seja de intuitivo, de substancial e de vivido" (Lacan, 1959-60/1997, p. 170).

Trataremos a seguir das vias e razões de tal artifício, especificamente o recurso poético, uma vez que incorpora a estética empoderando, assim, o artifício da linguagem. Afinal, "é evidentemente por o verdadeiro não ser muito bonito de se ver, que o belo é, senão seu esplendor, pelo menos sua cobertura" (Lacan, 1959-60/1997, p. 265).

A poesia, por sua relação privilegiada com o significante - como bem destacou Lacan nesse mesmo seminário -, sobressai então nas discussões sobre a arte e a sublimação. Nessa relação, os três registros e as articulações das fórmulas da sexuação permitem avançar na compreensão das distintas formas de recobrimento do real do desencontro amoroso.

Com essa visada, é possível demarcar algumas diferenças entre as formas de falar/cantar/escrever o amor no amor cortês e nas canções de Chico Buarque, sobretudo a respeito de como a mulher (ou as mulheres) se afigura nos respectivos versos. Demasiadamente idealizada e unificada enquanto "Dama" no primeiro caso, a mulher é representada, no segundo, por meio de figuras que se desdobram ao infinito, impedindo categorizações que a apreendam. Quanto ao sentimento do amor e as formas de dizê-lo, a ausência opera como o móvel em ambos os casos, apesar do recurso a modos distintos de recobrimento do vazio.

 

Dizer o Amor no Feminino

Se inicialmente o registro Simbólico possuía lugar de destaque no ensino de Lacan, no Seminário 20, Mais, ainda (1972-73), ele afirma a equivalência entre Real, Simbólico e Imaginário. No seminário seguinte, Les non-dupes errent (1973-74, inédito), ele definirá como próprio dos psicanalistas, assim como dos matemáticos, imaginar o Real veiculado pelo Simbólico. A importância do Imaginário, diz ainda Lacan na aula de 13 de novembro de 1973, não deve ser subestimada, na medida em que é "sempre uma intuição sobre isso a ser simbolizado". Não se trata de imaginar qualquer coisa, mas de algo que permite intuir o Real do Simbólico, pois, justamente, é esse furo que o sentido trata de velar. Tal recurso permite aos psicanalistas imaginar o Real e assim escrever a borda que assinala essa falta (Lacan, 1973).

Desde Freud, a psicanálise tem recorrido à arte para compreender e descrever o movimento do Simbólico ao Real através do Imaginário, mesmo que aquele autor não tivesse discriminado os três registros da maneira que Lacan veio a fazê-lo. Seguiremos agora por essa trilha, buscando valer-nos da poesia que perpassa as canções de Chico Buarque de Holanda, artista brasileiro que, ao cantar o amor de muitas e diferentes formas, o faz existir em sua dimensão de semblante1. Em outras palavras, seus belos versos que circulam mundo a fora revestem com palavras algo do que é experimentado no Real dos corpos, atribuindo sentidos que abrem caminho para possíveis enlaces entre os falasseres (os parlêtres, como os chamou Lacan em 1975).

Em suas canções, Chico Buarque fala não apenas sobre as mulheres, com as mulheres e para as mulheres, mas também como as mulheres, pois, como bem lembrou Eric Laurent (2007, p. 23), embora os homens também falem sobre o tema, "as mulheres falam do amor de maneira inteiramente diferente da dos homens". Nesse sentido, Laurent se refere a análises de autores e autoras feministas franceses nos seguintes termos:

Há, nas letras, uma dessimetria na perspectiva do amor que poderia facilmente reduzir-se à ideia de que apenas as mulheres falam de amor. Toda uma temática da literatura feminina, ou da literatura de mulheres, escrita pelas mulheres, a escrita feminina, estaria centrada precisamente sobre a exploração sistemática do amor, de seus impasses, de seus sofrimentos...(Laurent, 2007)2

No entanto, o savoir-faire de Chico Buarque nesse campo das falas de amor no feminino é amplamente reconhecido, a ponto de alguns críticos musicais lhe atribuírem um "eu lírico" feminino. Mas, não é necessário endossar essa tese para constatar que sua obra comporta uma produção que se pode dizer feminina e para supor que seja a sua arte que lhe permite situar-se nessa perspectiva - feminina - ao compor muitas de suas canções.

A dissimetria entre homens e mulheres na maneira de falar do amor desvenda uma diferença na forma de viver o amor, que se expressa em duas lógicas que Lacan desenvolve nas fórmulas da sexuação - introduzidas no Seminário 18, De um discurso que não fosse semblante, e que ocuparam, mais tarde, um lugar central no Seminário 20, Mais, ainda. A partir desse momento de seu ensino, distinguindo a especificidade do gozo feminino, - que se situa não-todo3 na ordem fálica e não pode, portanto, ser apreendido pela lógica que é própria dessa ordem -, Lacan passa a escrever a diferença entre os sexos de uma nova forma em relação a Freud e a seu próprio percurso anterior. Ou seja, ante a impossibilidade de escrever uma fórmula da relação sexual, conforme demonstra no Seminário 18, culminado na célebre afirmação "a relação sexual não existe", Lacan não recua e se dedica, então, a escrever a diferença sexual, as fórmulas da sexuação.

É por essa via que Lacan distingue a posição feminina da posição masculina ante o gozo, o desejo e o amor. Cabe lembrar que para ele, assim como para Freud, não há uma relação necessária entre essas posições (a sexuação, propriamente dita) e o sexo anatômico. Jacques-Alan Miller trabalhou sobre essa elucubração de Lacan para desenvolver a ideia de um "repartitório sexual", título de uma aula do curso que ministrou em 1997-1998, "Le Partenaire-Symptôme", e que está publicada na revista La Cause Freudienne (Miller, 1999).

 

Figuras Femininas entre o Todo e o Não-todo

Na referida aula, Miller aborda um ponto fundamental para a articulação do presente texto. Trata-se do "verdadeiro sentido do não-todo lacaniano" (Miller, 1999, p. 5). Ele começa por desenvolver um raciocínio que acompanha certa forma de decodificar o não-todo, interpretação presente tanto no senso comum, como entre psicólogos e psicanalistas. Descreveremos a seguir esse modo de compreender o não-todo que decorre de uma leitura possível a partir do Édipo, do pensamento freudiano e também lacaniano quando é desconsiderado o pensamento lacaniano "além do Édipo", que define a diferença sexual em função do gozo, abandonando de vez qualquer referência à biologia. Trata-se da leitura do não-todo como incompletude, um "sinal de menos" do lado feminino. Como Miller esclarece, tal interpretação é um exemplo "dessa ideologia espontânea, que é uma forma de dizer de um menos estigmatizante do ser feminino" (Miller, 1999, p. 6). Esse "sinal de menos" se articula imaginariamente à observação de que a mulher não tem um pênis, ou seja, é um sentido atribuído à diferença anatômica, que diminui o feminino. Miller denuncia aí "um hiato entre o fato da observação e as consequências que o sujeito desenvolve a partir disso" (Miller, 1999, p. 6).

No entanto, apesar da crítica ao caráter ideológico do valor atribuído ao «ter», não é possível ignorar os efeitos dessa valorização, tanto sobre os que o têm como sobre as que não o têm. Há uma diferença anatômica, que marca o corpo real: ter ou não ter um pênis. Uma diferença que, na dimensão imaginária, ganha o sentido de completude, unidade, todo -associado ao masculino -, e de incompletude, falta - associado ao feminino. O pênis no corpo real é confundido, nesta perspectiva, com o falo, o significante que, a partir do imaginário, serviu a Lacan para construir a metáfora paterna e para situar o Nome-do-Pai como garantia da Lei e como suporte da ordem simbólica.

Assim, ainda que a relação ao corpo não seja ignorada - qualquer que seja o registro da experiência humana em que situemos a diferença masculino-feminino -, a psicanálise defende ideia de que a anatomia não determina a posição sexual - masculina/feminina. A propósito, Fabian Fajnwaks, em seu artigo "Gêneros lacanianos" (2013), destaca a dívida da psicanálise "ao sujeito histérico por denunciar que não é porque ele tenha um corpo de mulher, ou de homem, que deve identificar-se com essa imagem de seu corpo" e lembra "o sofrimento que pode trazer um sujeito à análise porque não consegue identificar-se ao que a anatomia, as normas sociais e culturais lhe ditam que deve ser" (Fajnwaks, 2013, p. 2). Na psicanálise lacaniana, portanto, a posição do sujeito quanto à bipolaridade masculino-feminino não se define pelo seu sexo anatômico ou pelo dos parceiros que ocupam o lugar de seus objetos de desejo. Dessa forma, abandona o "ter" ou "não ter" como critério para estabelecer a diferença sexual. Fajnwaks assinala, ainda, como a crítica feminista - inclusive de psicanalistas feministas - tem ignorado a perspectiva "além do Édipo" desenvolvida por Lacan, sobretudo em seu seminário Mais, ainda, em que sua teorização se descola da "abordagem equívoca do falocentrismo" (Fajnwaks, 2013, p. 2).

A originalidade lacaniana está relacionada à questão do todo e do não-todo, e, é importante destacar, pensar o não-todo lacaniano como incompletude é um erro. Como assinalou Miller, pensar o masculino como completo, todo, uno, enquanto "o Outro sexo aparece como marcado por uma irremediável incompletude [...] é justamente o erro do macho sobre o não-todo" (Miller, 1999, p.6, tradução livre). Dizer isso não significa afirmar que se trata de uma questão própria da subjetividade masculina, mas, sim, reconhecer que essa é uma perspectiva do gozo não-todo referenciada na lógica masculina, qual seja, organizada a partir do falo, na dimensão imaginária, e da metáfora paterna, na ordem simbólica.

Essa lógica corresponde a uma versão do não-todo feminino que comporta duas figuras de mulher aparentemente opostas, mas, na verdade, ambas organizadas em torno do "sinal de menos". De um lado, a mulher dita verdadeiramente feminina é marcada pelos signos da falta, como ilustram as pobres heroínas românticas, sempre sofredoras em nome do amor: dedicam-se, fazem sacrifícios, renunciam, compreendem, escutam, cuidam... Aliás, essas personagens estão bem presentes desde as histórias infantis até as atuais telenovelas. Miller define essa figura feminina como "a perdedora por excelência, assim como a perdida" (Miller, 1999, p. 14, tradução livre).

De outro lado, uma figura de mulher, aparentemente em contraponto à primeira, se presentifica por um excesso que é a marca de seu fascínio: é a "poderosa", aquela que desconhece limites e que não se deixa intimidar pelos obstáculos, corajosa e decidida, sempre vai um pouco além, forçando os limites formais e informais postos pelas variadas formas de organização social. Sua coragem, sob esse ponto de vista, adviria do fato de que não tem mais nada a perder, pois já perdeu. Na primeira vertente, é o sinal de menos que se destaca. Na segunda, sobressai o excesso, o exagero, ou seja, a falta de limites. De uma maneira ou de outra, nos dois casos a fronteira, o critério, o equilíbrio, ficam do lado macho, enquanto o que excede essa ordem é tomado por transgressão. Ou seja, são ambas referenciadas pela lógica própria da ordem fálica.

Como lembra Miller muito oportunamente no mesmo texto, Freud situa a questão do feminino pela vertente da incompletude, do menos, do "não ter". Nos textos freudianos, a mulher é, sobretudo, uma mulher que "não perde o norte" (la femme boussolée), pois, na dialética sexual, ela representa qualquer coisa como o primum vivere - primeiro deve-se viver - e, nisso, ela é totalmente oposta ao homem, ao macho, que é aquele que se sacrifica aos ideais, que aparece como servo da sublimação. Em relação ao delírio do macho, ela é aquela que resgata, que vem na posição de tudo isso é muito bonito, para trazê-lo de volta à instância, à insistência da vida, e dos prazeres, dos prazeres simples, que são ligados à vida. Digamos que o primum vivere não funciona sem um primum gaudere. Primeiro, gozar. E depois... (Miller, 1999, p. 13, tradução livre).

Como se pode entender esse "delírio do macho"? Com Miller, ele está vinculado à "força do ideal" que faz "o homem se perder", mesmo que seja "na condição de se perder em grupo" (Miller, 1999, p. 15, tradução livre), e que situa o mal-estar da civilização do lado masculino. Por essa lógica, a mulher freudiana representa "o polo selvagem, rebelde a essa civilização portadora de mal-estar" (Miller, 1999, p. 14, tradução livre). Questionando se estaria forçando demasiadamente a leitura de Freud ao considerar que este coloca a mulher mais do lado do Isso, enquanto o Supereu se situa do lado macho, Miller conclui que "Em todo caso, ela tem muito mais liberdade que o homem em relação ao supereu e a todas as interdições" (Miller, 1999, p. 14, tradução livre). Ela goza, portanto, de uma liberdade muito maior em relação às injunções da máquina civilizatória, ao seu movimento incansável, resistindo à sedução dos ideais.

Mas, por ser livre, isso a coloca também, de maneira aparentemente contraditória, em posição de poder escolher a via do conformismo. Nas palavras de Miller: "É assim que ela aparece, em Freud e em Lacan, como, por excelência, essa - o sujeito - que sabe o que quer, e como suporte de uma função que se pode dizer obstinada e invariável, de uma repetição do Mesmo" (Miller, 1999, p. 14, tradução livre). Como mantenedora da vida naquilo que ela tem de mais simples, ela é depositária da tradição, da linguagem enquanto suporte do laço social e das instituições que sustentam a vida. Ela é, aqui, aquela que se dedica à manutenção do mesmo. "É nessa linha que podemos vê-la, ocasionalmente, como sublinha enfaticamente e repetidas vezes Lacan, como a burguesa, entendemos por isso a guardiã, a banqueira do depósito fiduciário que alimenta a atividade do homem" (Miller, 1999, p. 14, tradução livre).

Essa imagem de femme bussolée, e certa constância que a caracteriza, aparece em várias canções de Chico Buarque. Entre elas, de maneira exemplar, está "Cotidiano" (1971/2006), quando diz:

Todo dia ela faz tudo sempre igual/Me sacode às seis horas da manhã/Me sorri um sorriso pontual/E me beija com a boca de hortelã/Todo dia ela diz que é pra eu me cuidar/E essas coisas que diz toda mulher/Diz que está me esperando pro jantar/E me beija com a boca de café

Vamos encontrá-la também na primeira canção de Chico Buarque em que se reconhece uma fala a partir da posição feminina em questão, e na qual o "sinal de menos" está bem presente na mulher que espera por um homem que "vagueia, levado por quimeras", enquanto "A mulher, aqui, é o sujeito sem quimeras (...)" (Miller, 1999, p. 14, tradução livre), sintetizada na expressão "qual o quê!". Essa canção, intitulada "Com açúcar, com afeto", foi escrita em 1966, sob a encomenda da cantora Nara Leão, que, aliás, dizia gostar de músicas onde a mulher fica em casa chorando por um homem que, imaginava ela, na companhia de outros homens, gozava da vida da rua, dos prazeres colocados do lado macho na cultura brasileira: samba, bebida, futebol e mulheres, não necessariamente nesta ordem. Essa canção diz:

Com açúcar, com afeto/Fiz seu doce predileto/Pra você parar em casa/Qual o quê/Com seu terno mais bonito/Você sai, não acredito/Quando diz que não se atrasa/Você diz que é operário/Vai em busca do salário/Pra poder me sustentar/Qual o quê/No caminho da oficina/Há um bar em cada esquina/Pra você comemorar/Sei lá o quê/Sei que alguém vai sentar junto/Você vai puxar assunto/Discutindo futebol/E ficar olhando as saias/De quem vive pelas praias/Coloridas pelo sol/Vem a noite e mais um copo/Sei que alegre ma non troppo/Você vai querer cantar/Na caixinha um novo amigo/Vai bater um samba antigo/Pra você rememorar/Quando a noite enfim lhe cansa/Você vem feito criança/Pra chorar o meu perdão/Qual o quê/Diz pra eu não ficar sentida/Diz que vai mudar de vida/Pra agradar meu coração/E ao lhe ver assim cansado/Maltrapilho e maltratado/Ainda quis me aborrecer/Qual o quê/Logo vou esquentar seu prato/Dou um beijo em seu retrato/E abro os meus braços pra você

A figura do sacrifício feminino, em que a mulher aparece identificada ao lugar da falta, ao "sinal de menos", aparece de forma magistral nas "Mulheres de Atenas" (1976) que "vivem" e "sofrem" e "secam pros seus maridos", "orgulho e raça", "poder e força de Atenas", que "quando amadas, se perfumam, se banham com leite, se arrumam", essa mulheres que "Não têm gosto ou vontade Nem defeito nem qualidade Têm medo apenas Não têm sonhos, só têm presságios".

Mas, como já foi assinalado acima, isso não é tudo, pois, nessa perspectiva - a de Freud e também a de Lacan até o seu último ensino - há uma oscilação entre essa mulher que não perde o norte e a "desnorteada", a "perdida", aquela da qual pode se esperar qualquer coisa. Ao contrário do homem, que vive sob o peso das interdições, reencontramos aqui a dimensão "selvagem" do feminino, desse sujeito que pode, ante esses limites, "fazer semblante de se dobrar, mas que conserva ante si própria uma liberdade soberana, reduzindo-os ao estado de semblantes" (Miller, 1999, p. 14, tradução livre).

Essa mulher sem norte, que representa o excesso, que coloca em cheque os limites, com acesso a uma liberdade em relação à ordem simbólica que não cabe situar do lado masculino, também será encontrada na obra de Chico Buarque. Em "Ela desatinou" (1968) o título denuncia o olhar masculino sobre a "loucura feminina" - o desatino. Chico inclui aqui, também, nos últimos versos, a inveja que essa liberdade desperta, igualmente familiar à sua qualificação como algo "menos" em relação ao equilíbrio, à justa medida, ao tino:

Ela desatinou/Viu chegar quarta-feira/Acabar brincadeira/Bandeiras se desmanchando/E ela inda está sambando/Ela desatinou, viu morrer alegrias/Rasgar fantasias/Os dias sem sol raiando/E ela inda está sambando[...]/Quem não inveja a infeliz/Feliz no seu mundo de cetim/Assim debochando/Da dor, do pecado/Do tempo perdido/Do jogo acabado

Essa "infeliz, feliz" goza de uma liberdade própria de seu mundo de cetim, que teima em persistir para além daquilo ordenado pelo calendário que determina o fim do Carnaval na quarta-feira de Cinzas.

Em "Atrás da porta" (1976), ouve-se o excesso pelo lado da devastação - termo que descreve os efeitos da decepção amorosa da mulher em relação ao homem, "este que é para ela uma aflição pior que um sintoma, a saber, uma devastação" (Lacan, 1975-76/2007, p. 98). Ante o "olhar de adeus" de seu amado, a mulher da canção se vê na iminência de ser abandonada e diz: "E me arrastei, e te arranhei/E me agarrei nos teus cabelos (...)/ Nos teus pés/Ao pé da cama/Sem carinho, sem coberta/No tapete atrás da porta/Reclamei baixinho". A contradição entre essas figuras do feminino - a que não perde o norte e a desnorteada - reflete os impasses que o próprio feminino impõe: tende-se a traçar retratos que, ordenados pela lógica fálica, deixam escapar aquilo que é próprio da posição feminina, sempre situando a mulher no lugar da falta. Esse caráter escorregadio do feminino lhe é próprio, na medida em que não existe um conjunto que defina as mulheres, segundo as fórmulas da sexuação (Lacan, 1972-73). Nas belíssimas figuras encarnadas nas canções de Chico Buarque é possível depreender esse caráter, justamente porque fica evidente que transbordam, se desdobram, ultrapassando qualquer tentativa de designação - mesmo as que utilizamos aqui, como "desnorteada", "devastada", "bussolada" etc. Assim, o que é próprio do feminino é o inapreensível, o inominável que tende ao infinito, daí sua proximidade ou "amizade" com o real, como veremos a seguir.

 

Laços que Vacilam: O Um e o Outro

Lacan tornou possível dar um passo adiante em relação à lógica do menos quando, nas fórmulas da sexuação, situou o infinito no lugar antes dado à incompletude e traduziu a completude como o finito. Essa concepção, que escapa à lógica fálica, vai transformar, no entanto, não apenas a forma de se pensar o feminino, mas também o masculino, e as relações entre os seres sexuados sob o olhar da psicanálise. É bom lembrar, a propósito, que o Outro gozo não é exclusividade das mulheres, mas tampouco elas têm acesso garantido a ele.

Nesta concepção, masculino e feminino se ordenam de acordo com o modo de gozo que lhes é próprio. Não se trata mais de caracterizar o feminino a partir do masculino, mas de tomar como referência a teoria dos conjuntos para pensar, de um lado, o Um, um conjunto fechado, finito, caracterizado pelo gozo localizado no órgão e pelo limite posto pela estrutura e, de outro, o Outro, como um conjunto que se abre ao infinito, na medida em que não há, deste lado, um limite estrutural.

Não se trata mais de falar, do lado do feminino, daquilo que falta ao todo, ao Um, ou do seu excesso, mas, sim, desse gozo Outro que se situa fora dos limites do Um. Em outras palavras, um gozo fora da ordem fálica, um gozo suplementar e não complementar. Em consequência, a chamada "loucura feminina" não se confunde com a psicose, na medida em que a posição feminina implica a possibilidade de poder gozar também desse Outro gozo, suplementariamente ao gozo fálico, este inacessível na psicose.

Quanto ao amor, ao longo dos seus seminários Lacan se refere a ele em vários momentos. Destacamos aqui sua aula de 18 de dezembro de 1973, do Seminário 21, Les non-dupes errent (inédito), quando o define como "o imaginário específico de cada um que só o une com certo número de pessoas que não são em absoluto escolhidas ao azar" (tradução livre). Esta definição remete à aula do dia 12 de dezembro de 1972, do Seminário 20, quando Lacan está falando dos três registros e se refere ao amor "como sendo esse laço essencial do Real e do Simbólico". Na mesma ocasião, vai dizer que, como tal, o amor "tem todas as chances de" fracassar.

Essa dimensão de "fracasso" se contrapõe ao fato de que o amor aspira à fusão, "é apenas o desejo de ser Um", como disse Lacan no Seminário 20 (1972-73/1985, p. 14). O fracasso, o desencontro no encontro, a impotência do amor são evocados na canção "A noite dos mascarados" (1967), de Chico Buarque. Essa canção diz:

Quem é você?/ - Adivinha, se gosta de mim!/Hoje os dois mascarados/Procuram os seus namorados/Perguntando assim:/- Quem é você, diga logo.../- Que eu quero saber o seu jogo.../- Que eu quero morrer no seu bloco.../- Que eu quero me arder no seu fogo/- Eu sou seresteiro,/Poeta e cantor/- O meu tempo inteiro/Só zombo do amor/- Eu tenho um pandeiro./- Só quero um violão./- Eu nado em dinheiro./- Não tenho um tostão./Fui porta-estandarte,/Não sei mais dançar./- Eu, modéstia à parte,/Nasci pra sambar./- Eu sou tão menina.../- Meu tempo passou.../- Eu sou Colombina!/- Eu sou Pierrô!/Mas é Carnaval!/Não me diga mais quem é você!/Amanhã tudo volta ao normal./Deixa a festa acabar,/Deixa o barco correr./Deixa o dia raiar, que hoje eu sou/Da maneira que você me quer./O que você pedir eu lhe dou,/Seja você quem for,/Seja o que Deus quiser!/Seja você quem for,/Seja o que Deus quiser!

Coincidentemente, Lacan usou como exemplo o baile de máscaras para ilustrar o desencontro entre os amantes, no Seminário 27, Dissolution (inédito), destacando o horror que advém ao deixarem escorregar suas máscaras: "não era ele, nem ela, aliás." Já a aspiração a fazer Um, à fusão dos corpos e das almas aparece nas belas metáforas que Chico utilizou na canção "Eu te amo" (1980), em que o amante pergunta "como hei de partir",

Se nós, nas travessuras das noites eternas/Já confundimos tanto as nossas pernas/Diz com que pernas eu devo seguir/Se entornaste a nossa sorte pelo chão/Se na bagunça do teu coração/Meu sangue errou de veia e se perdeu/Como, se na desordem do armário embutido/Meu paletó enlaça o teu vestido/E o meu sapato inda pisa no teu/Como, se nos amamos feito dois pagãos/Teus seios inda estão nas minhas mãos/Me explica com que cara eu vou sair/Não, acho que estás te fazendo de tonta/Te dei meus olhos pra tomares conta/Agora conta como hei de partir

Vã aspiração essa de fazer Um! O famoso aforismo lacaniano "não há relação sexual" vai dizer da ausência de complementariedade entre os sexos e repercutir esse impossível na dimensão da parceria amorosa. O amor vem nesse lugar da falta, como semblante que recobre o impossível, sustenta essa aspiração ao Um e, portanto, opera para dar sentido ao desencontro no encontro. Por outro lado, disse Lacan, "se é verdade que o amor concerne o Um, ele não leva ninguém a sair de si mesmo" (1972-73/1985, p. 65).

Na mesma ocasião, Lacan (1972-73/1985, p. 65) situará mais precisamente o amor como um dito, "esse dito que parte, observem, do imaginário tomado como meio", como "laço essencial do Real e do Simbólico", no sentido de estabelecer uma união entre corpo e gozo, operando o amor como uma relação do Real ao saber. No entanto, trata-se de um laço destinado ao fracasso.

A experiência humana do amor na dimensão imaginária serve, então, a essa função de laço. De um lado, o simbólico em que o amor se inscreve em múltiplos discursos - da religião, como amor divino e amor ao próximo, por exemplo; da arte, em suas diferentes manifestações; e até mesmo da ciência, que acredita que haja nele uma verdade que possa ser revelada pela exploração sistemática do organismo. De outro, o real do corpo como substância gozante.

 

Anamorfoses4: Do Amor Iludido ao Amor Aludido

Nas fórmulas da sexuação5, Lacan escreve o objeto pequeno a do lado direito, do lado do feminino, ao situar a escolha do parceiro do lado macho pela via da fetichização do objeto. Ou seja, trata-se, nesta lógica, de uma busca orientada para os traços que, na amada, constituem o fetiche do amante. Lembremos que o fetiche se caracteriza pela constância, pela invariabilidade, pela repetição. Mas, o que está para além do fetiche, recoberto pelo semblante, é o objeto pequeno a. O fetiche opera aqui como uma versão do objeto pequeno a. Nas fórmulas da sexuação, Lacan coloca do lado "macho" uma seta que se dirige do S barrado para o a, situado à direita, no lado feminino, indicando essa busca. Assim ele escreve a dimensão fantasmática do gozo masculino, que constitui um obstáculo ao amor, na medida em que o gozo do objeto vem no lugar do gozo do corpo do outro. No lado macho, o desejo está ligado à busca do mais-de-gozar sob a roupagem do fetiche. Por isso, trata-se aqui de um gozo mudo, que pode prescindir das palavras, do dizer sobre o amor.

No entanto, quem deseja alguém que se situa do lado feminino, precisa falar. Para conquistar uma mulher é necessário falar com ela, envolvê-la em palavras, expressão utilizada por Eric Laurent: "Ela só pode consentir com a sexualidade depois de uma longa preparação que consiste, essencialmente, em ser envolvida com palavras, para depois consentir" (Laurent, 2007, p. 29). O lado direito da fórmula da sexuação, o lado feminino, é, então, testemunha "da encarnação do verbo, desse gozo provocado por algo que parece prescindir do órgão. Não há órgão e, no entanto, há ressonância particular no corpo, uma ressonância que vem marcar do lado feminino o que no homem se localiza na fantasia" (Laurent, 2007, p. 29).

Do lado do Outro gozo, ou seja, do lado feminino, a escolha se dirige ao objeto erotomaníaco, que Miller (1999, p.9) qualifica como menos objetal, pois, neste caso, opera "como um suporte do amor" (tradução livre). Lacan vai escrever esse objeto como grande A barrado (A). No feminino, o desejo aparece, então, ligado ao amor, a esse "dizer" que ressoa em seu corpo, o verbo que, encarnado, se traduz em gozo não localizado, fora dos limites do órgão. Então, com Lacan, podemos pensar o amor na sua relação com o Outro gozo, acolhendo o ensinamento que nos oferecem os poetas, os trovadores, os cantores e todos aqueles que sabem o quanto o amor deve às palavras. Por fim, como nos atesta exemplarmente a poesia, as palavras operam como recurso para encobrir e, ao mesmo tempo, denunciar, expor a dimensão real do objeto, elevando-o à "dignidade da Coisa" (Lacan, 1959-60/1997, p. 140). Essas são justamente as particularidades da sublimação, longamente discutidas no Seminário 7 pela apresentação do caráter anamórfico do amor cortês.

O amor no feminino está relacionado então ao Outro gozo que, sabemos, se situa fora do registro simbólico e desafia o próprio imaginário: ele compreende algo que é da ordem do real, tal como aparece no último ensino de Lacan, "o real sem lei", expressão utilizada por Miller (2001, p. 5) para designá-lo. Portando a marca da contingência, desafia o saber e, ao mesmo tempo, o imaginário. Pode-se pensar então o "real do amor" como essa dimensão própria do amor no feminino, vinculada ao Outro gozo, que escapa às tentativas de capturá-lo na dimensão do imaginário para traduzi-lo na dimensão simbólica.

A partir dessa impossibilidade de tradução ou apreensão, do vazio que ela aponta, a poesia opera suas metáforas, sugerindo, aludindo, circundando... Há uma canção de Chico Buarque que ilustra perfeitamente essa produção. Trata-se da canção "O que será? (À flor da pele)" (1976). A letra não traz o significante "amor" nem uma única vez e a censura brasileira viu nela conteúdo (político) reprovável. Chico, ao tomar conhecimento da análise feita pelos censores , em 1992, quando teve acesso à sua ficha policial, achou graça e declarou ao Jornal do Brasil: "acho que eu mesmo não sei o que existe por trás dessa letra e, se soubesse, não teria cabimento explicar...", contam Mello e Severiano (1997).

Ficamos à vontade, então, para dizer que a poesia contida nessa canção alude, sem poder nomear, a essa dimensão "real do amor", ao que está fora do sentido, para além de toda significação, ao que escapa aos semblantes e "a toda captura pelo significante, pelo conceito ou por uma estrutura" (Floury, 2010, p. 108, tradução livre). O real que "desafia a elucubração de saber" (Miller, 2001, p. 10, tradução livre) e "coloca em questão não somente o que faz sentido, mas também o que se sabe" (Miller, 2001, p. 10, tradução livre).

Ora, não se trata na poesia de dar alguma resposta ante esse vazio, mesmo sabendo da impossibilidade que ele aponta? A canção de Chico parece tocar algo desse impossível, quando pergunta "o que será" isso que "vive nas ideias desses amantes" e "que cantam os poetas mais delirantes", "o que não tem medida, nem nunca terá, o que não tem remédio, nem nunca terá, o que não tem receita", nem sentido, nem limite:

O que será que será/Que andam suspirando pelas alcovas/Que andam sussurrando em versos e trovas/Que andam combinando no breu das tocas/Que anda nas cabeças, anda nas bocas/Que andam acendendo velas nos becos/Que estão falando alto pelos botecos Que gritam nos mercados, que com certeza/Está na natureza, será que será/O que não tem certeza, nem nunca terá/O que não tem conserto, nem nunca terá/O que não tem tamanho/O que será que será/Que vive nas ideias desses amantes/Que cantam os poetas mais delirantes/Que juram os profetas embriagados/Que está na romaria dos mutilados/Que está na fantasia dos infelizes/Que está no dia a dia das meretrizes No plano dos bandidos, dos desvalidos/Em todos os sentidos, será que será/O que não tem decência, nem nunca terá/O que não tem censura, nem nunca terá/O que não faz sentido/O que será que será/Que todos os avisos não vão evitar/Porque todos os risos vão desafiar/Porque todos os sinos irão repicar/Porque todos os hinos irão consagrar E todos os meninos vão desembestar/E todos os destinos irão se encontrar/E mesmo o Padre Eterno que nunca foi lá/Olhando aquele inferno, vai abençoar/O que não tem governo, nem nunca terá/O que não tem vergonha, nem nunca terá/O que não tem juízo

 

Considerações Finais

Assim como as canções de Chico, a escolha do título deste texto não foi aleatória. Buscamos apontar para a dimensão do amor que se situa para além do significado, do sentido e da significação. Essa experiência humana repercute em prosa, verso e canção, em tentativas de dizer algo do indizível de um gozo fora do órgão, "à flor da pele" para situar que não é "na pele", mas, sim, gozo deslocalizado, cujos limites não há como estabelecer e que escapa ao corpo que se tem. "À flor da pele" indica também algo em potência, que está sempre "em vias de", que poderá advir a qualquer momento, de prontidão para um ato. Nas canções de Chico Buarque, a tentativa de capturar algo dessa (des)ordem se desdobra no que se pode chamar de diferentes posições femininas de dizer o amor, através do recurso à linguagem poética, produzindo essas articulações significantes que, através do recurso ao imaginário, inscrevem no simbólico as alusões a um real da experiência amorosa. Inscrevem algo da ordem do Outro gozo, dito feminino; isso que afeta o corpo enquanto substância gozante e que convoca a falar de e sobre o amor.

 

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Endereço para correspondência:
Louise Amaral Lhullier
Rua Protenor Vidal, 511
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E-mail: louiselhullier@gmail.com

Daphne de Castro Fayad
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E-mail: daphnefayad@gmail.com

Recebido em: 19/12/2014
Revisado em: 25/05/2015
Aceito em: 18/06/2015

 

 

1 Empregamos aqui o sentido do semblante em sua articulação com os registros, a partir de uma definição dada por Jacques-Alain Miller (1991-92/2005, p. 173): "O semblante consiste em fazer crer que há algo ali onde não há nada; não haver relação sexual, implica que, ao nível do real só há semblante, não há relação".
2 É possível pensar que na poesia dos trovadores trata-se de outro tipo de abordagem: fala-se de amor para não se haver com ele. Afasta-se, em certa medida, da perspectiva que adotamos agora, que aproxima o amor, o Real e o feminino.
3 Termo que se refere às fórmulas da sexuação, quanto à inexistência de um conjunto que represente as mulheres como no caso dos homens, em que a exceção (há pelo menos um que não está sujeito à castração) institui um conjunto. Para Lacan, a mulher está sujeita à castração, mas é não toda submetida a ela. Cf. O Seminário, Livro 20, Mais, ainda (1972-73).
4 Termo utilizado por Lacan (1972-73) no seminário, Livro 7, para ilustrar a função de ilusão presente na linguagem e na arte. A anamorfose é uma alteração de uma forma através de recursos diversos que operam de acordo com a área de conhecimento em questão. Na poesia e na pintura, o efeito de produzir uma imagem que distorce, recobre (ou encobre) outra imagem é explorado por Lacan da seguinte maneira: "trata-se, de uma maneira analógica, ou anamórfica, de tornar a indicar que o que buscamos na ilusão é algo em que a ilusão, ela mesma, de algum modo transcende a si mesma, se destrói, mostrando que ela lá não está senão enquanto significante." (Lacan, 1972-73/1985, p. 170)

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