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Revista Subjetividades

versão impressa ISSN 2359-0769versão On-line ISSN 2359-0777

Rev. Subj. vol.15 no.2 Fortaleza ago. 2015

 

ARTIGO ORIGINAL

 

Não há você sem mim: histórias de mulheres sobreviventes de uma tentativa de homicídio

 

There is no you without me: stories of surviving women of a murder attempt

 

No hay tú sin mí: historias de mujeres supervivientes de una tentativa de homicidio

 

Il n'y a pas vous sans moi : histoires des femmes survivantes d'une tentative d'homicide

 

 

Ana Karina Silva AzevedoI; Elza Maria do Socorro DutraII

IDoutora em Psicologia, Professora Adjunta da Universidade Federal do Rio Grande do Norte
IIDoutora em Psicologia, Professora Titular da Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O homicídio seguido de suicídio (H/S) é definido como um crime em que uma pessoa tira a vida de outra e depois se mata em até 24 horas. Objetivamos compreender os sentidos da experiência de um H/S, a partir de mulheres que sobreviveram a este ato. Esta é uma pesquisa fenomenológica-hermenêutica, baseada na ontologia heideggeriana. Foram entrevistadas três sobreviventes de H/S, cujos depoimentos foram interpretados de acordo com o círculo hermenêutico heideggeriano. Percebemos que tais mulheres construíram sentidos em suas existências, representados no alicerce familiar. Tal projeto movia as suas vidas em direção à construção de modos-de-ser. A historicidade construiu sentidos para a existência dessas mulheres, com relatos de uma vivência de relações amorosas caracterizadas por forte ciúme, fantasias de traição e marcadas por um cuidado na relação afetiva que restringia a sua existência a ser-para-o-marido. Portanto, o que fazia essas mulheres continuarem a escolher essa relação era o sentido que elas tinham para a sua existência. Espera-se que este estudo contribua para a construção de um novo olhar acerca da violência contra mulher, tendo como fundamento a fenomenologia hermenêutica heideggeriana.

Palavras-chave: pesquisa fenomenológica; fenomenologia hermenêutica; homicídio seguido de suicídio; violência doméstica


ABSTRACT

The murder followed by suicide (M / S) is defined as a crime in which a person takes the life of another one and then kills him/herself within 24 hours. We aimed to understand the meanings of the experience of an M / S, from women who have survived this act. This is a phenomenological-hermeneutic research, based on Heidegger's ontology. We interviewed three M / S survivors, whose testimony were interpreted according to the Heidegger's hermeneutic circle. We realized that these women built meaning in their lives, represented in family foundation. This project moved their lives toward the building of ways-to-be. Historicity built meanings for the existence of these women, with reports of an experience of love relationships characterized by strong jealousy, betrayal fantasies and marked by a care in the affective relationship that restricted their existence to being-for-the-husband. So what made these women continue to choose this relationship was the sense that they had for their existence. It is hoped that this study contributes to the construction of a new look on violence against women, taking as a basis the Heidegger's hermeneutic phenomenology.

Keywords: phenomenological research; hermeneutic phenomenology; homicide followed by suicide; domestic violence


RESUMEN

El homicidio seguido de suicidio (H/S) es definido como un crimen en el que una persona quita la vida de otra persona y luego se mata en hasta 24 horas. Objetivamos comprender los sentidos de la experiencia de un H/S desde mujeres supervivientes a este acto. Esta es una investigación fenomenológica-hermenéutica, basada en la ontología heideggeriana. Fueron entrevistadas tres supervivientes de H/S, cuyos relatos fueron interpretados de acuerdo con el círculo hermenéutico heideggeriano. Percibimos que estas mujeres construyeron sentidos en sus vidas, representados en la base familiar. Tal proyecto movía sus vidas en dirección a la construcción de formas-de-ser. La historicidad ha construido sentidos para la existencia de estas mujeres, con relatos de una vivencia de relaciones amorosas caracterizadas por fuertes celos, fantasías de traición y marcadas por un cuidado en la relación afectiva que restringía su existencia a ser-para-su-marido. Por lo tanto, lo que hacía estas mujeres a continuar escogiendo esta relación era el sentido que ellas tenían para su existencia. Se espera que esta investigación contribuya para la construcción de un nuevo enfoque acerca de la violencia contra la mujer, teniendo como basa la fenomenología hermenéutica heideggeriana.

Palabras clave: investigación fenomenológica; fenomenología hermenéutica, homicidio seguido de suicidio; violencia doméstica


RÉSUMÉ

L'homicide suivi de suicide (H/S) est définit comme un crime dans lequel une personne qui tue une autre puis se tue dans les 24 heures suivantes. On a le but de comprendre les sens de l'expérience de l'un H/S à partir des femmes qu'y ont survécu. C'est une recherche phénoménologique-herméneutique basée sur l'ontologie heideggerienne. Trois survivantes de H/S ont été enterviewées, et leurs témoignages ont été interprétés selon le circle herméneutique heideggerien. On a perçu que ces femmes ont construit des sens dans leurs existences représentés dans la base de la famille. Tel projet mouvait leurs vies à la direction des modes-d'être. L'historicité a construit des sens pour l'éxistence de ces femmes d'après des narrativités d'une expérience des relations amoureuses marquées par forte jalousie, trahison immaginative et un comportement dans la relation amoureuse qui réduisait son existence à un être-pour-le-mari. Donc, ce qui faisaient ces femmes choisir ce type de relation était le sens q'elles donnaient à leur existence. On éspère que cet étude contribue à la construction d'un nouveau regard sur la violence contre les femmes, à partir de la fondamentation de la phénoménologie herméneutique heideggerienne.

Mots-clés: recherche phénoménologique, phénoménologie herméneutique, homicide suivi de suicide, violence domestique


 

 

Crimes envolvendo o homicídio de uma parceira seguido do suicídio de seu agressor são descritos pela literatura como homicídio seguido de suicídio (H/S). Esse crime nos leva a pensar que uma violência como a presentificada no homicídio seguido de suicídio envolve temas relevantes que dão suporte à compreensão desse fenômeno, tais como: refletirmos sobre a violência contra as mulheres, o percurso e a construção do feminino ao longo da história e a implicação desses aspectos na construção dos papéis de masculino e feminino na sociedade.

Tal violência nos leva a pensar se os sentidos de ser mulher não seriam construídos histórica e culturalmente, produzindo implicações para a dinâmica da relação amorosa. Assim, algumas questões nos interessam: como a historicidade surge na relação amorosa? A relação conjugal reproduziria os sentidos construídos sobre o ser mulher, em sua dimensão existencial, reforçando a supremacia masculina e a subordinação da mulher, tal como tem sido considerado na literatura sobre violência contra as mulheres? Ainda mais quando tais sentimentos são levados ao extremo, pensando-se em matar e morrer por esse amor, ou pela perda dele, como no caso do homicídio seguido de suicídio.

A violência contra as mulheres é um problema de saúde pública, ideia corroborada por dados como os apresentados pelo Mapa da Violência de 2012, desenvolvido por Waiselfisz (2011), em que se notifica o assassinato de aproximadamente 91 mil mulheres no Brasil, nos últimos 30 anos. Isso faz do Brasil o 7º país do mundo em feminicídios. Além disso, tal registro sinalizou que, em 2010, 40% dos óbitos de mulheres no Brasil aconteceram na residência ou habitação da vítima, o que nos permite pensar que a violência contra as mulheres se constitui como violência doméstica. O Rio Grande do Norte é o 20º estado em que mais se matam mulheres, sendo Natal-RN a 11º capital do Brasil em que ocorrem mais assassinatos de mulheres.

A Central Ligue 180 registrou 271.719 atendimentos - dos casos atendidos, 51.354 foram relatos de violência. Refletindo acerca dessa estatística, em especial sobre o percentual referente à presença de violência, 39,8% das mulheres que buscaram esse serviço declararam que sofrem violência desde o início da relação afetiva com seu parceiro; 38% afirmaram que o tempo de relação com o agressor é de mais de 10 anos; e 71,7% moravam com o agressor.

Sá e Werlang (2007) constataram a inexistência de publicações de estudos realizados no Brasil sobre a temática do homicídio seguido de suicídio. Essas autoras descrevem que o homicídio seguido de suicídio acontece em pessoas que possuem relação íntima, dentro de suas casas, precipitado por discórdias familiares, em que as vítimas costumam ser mulheres, com idade menor que a do agressor, sendo vitimadas por arma de fogo. Segundo tais autoras, a maioria dos agressores são maridos, ex-maridos, namorados ou ex-namorados da vítima.

As reflexões neste artigo terão como base os pressupostos teóricos alicerçados nas ideias de Martin Heidegger. Esse filósofo, que trouxe de volta à filosofia o questionamento sobre o sentido do ser, pensa o ser, o homem, como se constituindo no mundo, como um ser-no-mundo. Portanto, ao nos debruçarmos sobre o fenômeno do homicídio seguido de suicídio, mais especificamente sobre o feminicídio, não estaremos deixando de considerar que tal fenômeno está inscrito e relacionado ao mundo em que se lança e desvela sentidos de ser, de ser mulher, ser homem, ser-em-relação. Tais pressupostos nos auxiliarão, também, na construção de um modo interpretativo dos dados, os quais estão consonantes com um modo de fazer pesquisa fenomenológico-hermenêutica, baseada na ontologia heideggeriana, utilizando como instrumento de acesso ao vivido a entrevista semiestruturada e o olhar compreensivo, através do círculo hermenêutico, como proposto por Heidegger (1927/1989).

Toda a contribuição heideggeriana ao pensar o homem, o Dasein, como um ser-no-mundo-com-os-outros, dentre outras ideias de sua ontologia, nos auxiliará a pensar a mulher vítima de uma violência doméstica, sobrevivente de uma tentativa de homicídio seguido de suicídio de seu parceiro. Desse modo, ao se pensar sobre a mulher, para além do que as estatísticas revelam, ou seja, refletir a partir da sua experiência, será possível que os sentidos desse existir se desvelem e dialoguem com as teorias e a ontologia heideggeriana. Portanto, temos como objetivo, neste estudo, compreender os sentidos de um homicídio seguido de suicídio, a partir de mulheres que sobreviveram a este ato.

 

A Fenomenologia-hermenêutica Heideggeriana: um Caminho para a Compreensão da Violência Contra as Mulheres

Heidegger (1927/1989) dedica-se, em Ser e Tempo, a compreender a questão do ser. Para ele, o estabelecimento da compreensão do ser se dá a partir do ente que nós mesmos somos, o ser-aí, Dasein ou pre-sença. Assim, ele desenvolve uma analítica existencial em busca do sentido do ser. O ser-aí tem como modo de ser original o fato de ser ser-no-mundo. O ser existindo, o mundo1 sempre se abre para o Dasein, justamente por ele possuir o caráter de abertura. Poderíamos, erroneamente, pensar que este estaria referido a um lugar, geograficamente situado; entretanto, o significado desse é abertura, uma abertura que já possui sempre algum acesso ao ser. Quando Heidegger pensa o ser como ser-no-mundo, não o estamos pensando em instâncias diferentes, não pensamos em ser e mundo, mas em instâncias indissociáveis. Ser e mundo se constituem mutuamente, sendo impossível pensar o ser sem adotar a compreensão de que esse ser está sempre no mundo. É no mundo que o ser se torna acessível.

A abertura que caracteriza o Dasein é apresentada como disposição, compreensão e linguagem. Estas compreendem o que Heidegger denomina como existenciais. Portanto, compreender os existenciais é importante para a compreensão da hermenêutica em Heidegger. Heidegger (1927/1989) sugere que o mundo se abre para o Dasein num estado de ânimo (num humor, numa afetação, befindlickeit); portanto, não há dissociação entre o que se faz na ocupação cotidiana e o estado de ânimo. Estamos no mundo numa abertura, sendo sempre afetados por ele e pelas coisas que nele acontecem. Assim, o Dasein é sempre um estar-lançado, expressando e indicando a "facticidade de ser entregue à responsabilidade" (Heidegger, 1996, p. 189).

Como afirmamos anteriormente, a abertura do ser tem como existencial2, além da disposição afetiva, a compreensão. Para Heidegger, a compreensão é uma característica fundamental da existência humana, do Dasein como ser-no-mundo. Ela seria o modo original de ser do Dasein, que envolve a totalidade das experiências de mundo, pois o Dasein e mundo são originários na compreensão. Na compreensão, como existencial, o ser existe, tendo em vista que o modo de ser do Dasein é um poder-ser, ou seja, ele é possibilidade de ser, nos modos de ocupação com o mundo, de pré-ocupação com os outros, mas fundamentalmente, a possibilidade de ser para si mesmo. Entretanto, enquanto algo que já está disposto, o Dasein já se encontra em determinadas possibilidades, e como este poder-ser, o Dasein já assumiu algumas dessas possibilidades, bem como recusou outras. Portanto, quando dizemos que o Dasein é possibilidade de ser, entendemos que ele está entregue a essa responsabilidade, numa possibilidade que lhe foi inteiramente lançada. Assim, o Dasein é a possibilidade de ser livre para esse poder-ser mais próprio.

O que sugere essa explanação é que tanto a disposição afetiva como a compreensão caracterizam a abertura originária do ser-no-mundo. Pois é no humor que o Dasein vê possibilidades a partir das quais ele já é. Assim, tudo o que é compreendido é apreendido numa trama de significados. Para Heidegger, esse projetar da compreensão já possui a possibilidade própria de se elaborar em formas, e isso significa que essa elaboração da compreensão é denominada por Heidegger como interpretação. A interpretação seria, então, a elaboração do projeto da compreensão como possibilidade. Com isso, temos que "a interpretação se funda existencialmente na compreensão" (Heidegger, 1927/1989, p. 204).

Interpretar seria elaborar as possibilidades projetadas na compreensão, portanto, compreender é sempre interpretar. Com isso, Heidegger rompe com toda a concepção pregressa de que compreensão e interpretação seriam etapas separadas, e até mesmo dependentes uma da outra, no sentido de que a interpretação somente seria possível após a compreensão de algo. O que Heidegger problematiza é que compreender é sempre interpretar, posto que, compreender algo já é interpretá-lo como algo.

A partir dessa compreensão, Heidegger (1927/1989) pensa a questão da interpretação imersa numa circularidade, na qual existe a possibilidade positiva do conhecimento mais originário. Entretanto, para que isso ocorra, é preciso que a interpretação assegure, na elaboração da posição prévia, visão prévia e concepção prévia, o tema científico a partir das coisas mesmas. Heidegger (1927/1989, p. 210) pontua que "o círculo da compreensão pertence à estrutura do sentido, cujo fenômeno tem suas raízes na constituição existencial da pré-sença, enquanto compreensão que interpreta". A posição prévia seria entendida a partir da compreensão de que, como ser-no-mundo, o Dasein já está em meio a outros entes em relações de sentido, utilizando alguns como instrumentos ou preocupando-se com outros existentes. Sendo assim, tudo o que está à mão já se compreende a partir de uma totalidade conjuntural. Ao apropriar-se da compreensão, a interpretação se move a uma totalidade conjuntural já apreendida. Com isso, entendemos que a compreensão já se move numa conjuntura compreendida.

A posição prévia seria resultante da abertura do Dasein a partir da disposição afetiva que o projeta no mundo numa rede de significados. Assim, cabe à interpretação o papel de se apropriar do que já está em uma posição prévia. Ao fazer essa apropriação, a interpretação é direcionada pela visão que cumpre a função de estabelecer um parâmetro para a interpretação, o que ocorre através de um "recorte" do que foi assumido na posição prévia, segundo uma possibilidade determinada de interpretação. Nesse recorte, define-se a visão prévia, que delimita o que foi assumido na posição prévia, como uma possibilidade de interpretação. Portanto, o recorte realizado na visão prévia é no sentido de recortar as possibilidades de remissões a que o ser compreendido se refere.

A apreensão desses dois elementos delimita uma concepção prévia, na qual aquilo que foi compreendido e estabelecido numa posição prévia, percebido numa visão prévia, adquire um conceito pela interpretação. Assim, a interpretação decide, mesmo que provisoriamente, por uma determinada conceituação.

Com isso, entendemos que somos compreensão num movimento circular, e essa circularidade dá-nos a entender que esse processo investigativo seria provisório, por representar o momento em que somos afetados pelos entes, coisas e outros Daseins, e seria infinito justamente pelo seu caráter de circularidade, que nos faz sempre estar em contato com as estruturas prévias da interpretação, portanto, sempre em contínuo processo. A Figura 1 ilustra o círculo compreensivo.

 

 

Cuidando De Ser... O Cuidado na Analítica da Existência

O ser tem em seu significado o cuidado, pois, essencialmente, o ser-no-mundo é cuidado - seja um cuidado que se expressa em uma ocupação, ou seja, quando é um ser junto ao manual, ou quando se expressa num cuidado que é pré-ocupação, em que há uma copresença dos outros no encontro no mundo.

A ocupação não é própria do ser-com, pois a ocupação é um ser para os entes que vêm ao encontro dentro do mundo como ocupação. O ente, que é um Dasein, com ele não se ocupa, se preocupa, pois nos ocupamos de coisas.

Para entendermos melhor o que Heidegger nomeia como cuidado sob a forma de ocupação, devemos compreender que o ente sempre acompanha previamente uma tematização, ou seja, ele é pré-temático, ele é usado, produzido, num modo de ocupação. Os entes pré-tematizados seriam as coisas, o que se lida na ocupação, sendo assim, o ente que vem ao encontro na ocupação é chamado de instrumento. A manualidade é o modo de ser do instrumento. Assim, percebemos que o ser do Dasein para com o mundo é essencialmente de ocupação. Por outro lado, a pré-ocupação tem ainda duas possibilidades:

- aquela em que retira o cuidado do outro, tomando-lhe o lugar nas ocupações, substituindo-o. Com isso, o outro pode se tornar dependente e dominado, mesmo que esteja encoberto. Essa pré-ocupação substitutiva refere-se, na maioria das vezes, a uma ocupação do manual. E quantas vezes não percebemos esse tipo de pré-ocupação nas relações afetivas, em que vemos na dinâmica do relacionamento um apossando-se do outro, até mesmo estabelecendo uma relação de dependência, coisificando, objetificando o outro, ocupando-se dele como no manual;

- há também uma pré-ocupação que não substitui o outro, mas lhe antepõe em sua possibilidade de ser, devolvendo o cuidado ao outro. Essa pré-ocupação diz respeito ao cuidado, refere-se à existência do outro e não a algo que se ocupa, ajudando o outro a tornar-se transparente a si mesmo, por isso fala-se em cuidado.

O cuidado é, portanto, o primeiro gesto da existência, o horizonte da transcendência, a priori, um horizonte capaz de ir além de sua própria existência. O homem apenas existe como tal em face de outro homem, e para que seja humano e possa desenvolver-se como pessoa, é necessário que ele conviva com outros entes e efetue trocas com os seus semelhantes. O homem apenas se conhece na sua relação com o outro.

Entretanto, para Heidegger (1981), o modo básico de viver com os outros é o público, em que adotamos o discurso do "a gente". Esse modo praticamente domina a nossa maneira de viver com os outros, de ser-com os outros Daseins, pois o ser-aí é fascinado com seu mundo, sendo absorvido por ele, estando vivencialmente ligado ao mundo. É o que Heidegger chama de "mundo no impessoal", um modo de ser importante para os questionamentos que nos movem nessa discussão. O que o impessoal faz é retirar a responsabilidade de cada Dasein, porque no impessoal nunca se foi ninguém, dispensando-o da responsabilidade de ser. "Todo mundo é outro e ninguém é si próprio" (Heidegger, 1981, p. 181): o Dasein encontra-se na impessoalidade precisando encontrar a si mesmo. De início, a pre-sença é impessoal e, muitas vezes, assim permanece, o que caracteriza o modo de ser da ocupação. Porém, quando ela se abre para seu próprio ser, numa abertura da pre-sença, há uma eliminação dos encobrimentos em que a pre-sença se tranca contra si mesmo.

Cair na impessoalidade junto ao mundo das ocupações revela que o Dasein foge de si mesmo como seu próprio poder-ser. Nessa fuga, o Dasein não se coloca diante de si mesmo, porém, é exatamente do que ele foge que o Dasein está em busca. Esse desvio funda-se na angústia, a qual está fundada no ser-no-mundo como tal. Heidegger (1927/1989) quer dizer com tal ideia que o que motiva a angústia é indeterminado, porque esta se angustia com o mundo como tal. O Dasein, enquanto disposição, é a angústia que abre o mundo como mundo. Assim, a angústia não é só angústia com... Mas também angústia por... Isso acontece porque ela remete à pre-sença para aquilo pelo que ela se angustia para o seu poder-ser-no-mundo. Ela singulariza o Dasein em seu próprio ser-no-mundo, que na compreensão se projeta para possibilidades.

Critteli (2007) pensa que na ruína, de-cadência, o indivíduo desvia-se de seu projeto essencial para olhar as preocupações cotidianas, confundindo-se, assim, com a massa coletiva. Nesse modo de ser, o indivíduo sacrificaria o seu eu pelo eles e isto significa dizer que, na vida cotidiana, o ser é público, ele reduz a sua vida aos outros e existe para os outros, alienando-se, assim, da tarefa de ser si-mesmo.

Portanto, Heidegger entende que existem dois modos de ser: a propriedade e a impropriedade, que se fundam no caráter de a presença ser sempre minha. Dizer que o ser está numa impropriedade não é se referir ao fato de que ela está sendo menos ou em grau de inferioridade, mas dizer do modo que ela está sendo no mundo. Assim, o Dasein é chamado a apropriar-se de si mesmo, a ser próprio, mesmo que ele caia na impropriedade do existir. Assim, é a angústia quem revela o ser para o poder-ser mais próprio, a partir da liberdade para assumir e escolher a si mesmo. Nesse sentido, o angustiar-se é uma disposição, um modo fundamental de ser-no-mundo, pois a angústia empreende uma abertura, ela revela o "se está".

 

Sobre o Caminho da Pesquisa: Apresentando os Passos Metodológicos

Participaram desta pesquisa três mulheres sobreviventes de uma tentativa de homicídio seguido de suicídio do agressor, as quais, por meio das narrativas de suas histórias de vida, permitiram que nos aproximássemos dos sentidos presentes nessa experiência. Reforçamos que a presente pesquisa possui aprovação no Comitê de Ética da UFRN, protocolo 214/11-P. As colaboradoras deste estudo foram encontradas por indicação de psicólogos dos serviços de atendimento a mulheres vítimas de violência, mas também por indicação de escrivães da polícia que contribuíram para encontrar possíveis mulheres participantes deste estudo.

É importante ressaltar que, assim como Critelli (2007, p. 150), acreditamos que o registro é "uma mera conservação de um som, de uma entonação, de uma imagem que apenas provoca a atenção e a memória do interrogador". Dessa maneira, tais registros simbolizam lembretes para o pesquisador, lembretes de sentidos expressos nessa relação, produzidos pela linguagem, que chamou pelo sentido de ser e pelo ouvir que clareia o desvelamento desSe sentido de ser. As entrevistas foram gravadas e realizadas em locais previamente acordados com as protagonistas deste estudo. As entrevistas aconteceram em um encontro com cada participante, durando um turno inteiro.

Tais depoimentos foram transcritos como narrativas, assim como o faz Dutra (2002). Ressaltamos que os depoimentos foram devolvidos aos seus respectivos autores, para que esses pudessem rever as suas falas, verificando se as transcrições estavam fiéis ao que fora expresso por eles.

Nesse sentido, os significados desvelados nesta pesquisa foram interpretados hermeneuticamente, segundo o pensamento de Heidegger e o círculo hermenêutico, e adaptado por nós para esta pesquisa.

O momento interpretativo foi composto de quatro etapas:

1. afetação pelo depoimento ouvido: nesse momento, ocorrido após a realização da entrevista, sugere-se o registro num "diário de bordo" das afetações desveladas no momento da escuta do relato de experiência;

2. transcrição do depoimento ouvido: encontro com o depoimento transcrito, permitindo o desvelamento de novas afetações possibilitado pelo novo encontro com a experiência, as quais foram registradas no "diário de bordo";

3. identificação de temas: relativos ao problema investigado, provocado pelo momento hermenêutico da visão prévia. Nesse momento, resgatam-se não só as afetações - registradas no "diário de bordo" -, mas também as referências da revisão da literatura específica;

4. diálogo entre as reflexões feitas a partir das etapas anteriores e a literatura, correspondendo à concepção prévia, em que essa conceituação do fenômeno é oriunda do seu processo de interpretação.

É importante compreendermos que existe um limite imposto por essa interpretação do que se torna real, e esSe limite incide na própria perspectiva do olhar, na ambiguidade presente na manifestação (movimento de desvelamento e ocultamento) e pela relatividade da verdade. Portanto, é possível dizer que a interpretação é sempre uma possibilidade de compreensão.

 

Desvelando Sentidos de ser Mulher Vítima de um Feminicídio: Ao Encontro da Experiência

Heidegger (2003) nos lembra de que falar é ao mesmo tempo escutar, uma escuta da fala da linguagem, isso porque falamos através da linguagem. Heidegger vai além e menciona que sempre escutamos a linguagem, mesmo que não pensemos nisso. Nesse momento, deixaremos vir ao nosso encontro a fala daquelas que vivenciaram a experiência de ser sobrevivente de um feminicídio, seguida do suicídio de seu parceiro. Uma fala que anuncia um vivido e ao mesmo tempo permite a escuta e o reconhecimento desse sofrimento.

Quando dizemos que a experiência em questão está relacionada à sobrevivência de uma violência, dizemos de algo, muitas vezes, interditado para essas mulheres, de algo traumático, mobilizador emocionalmente, e que em muitos casos não foi falado anteriormente.

 

Era Uma Vez A História de Quem tem Uma história. Conhecendo as Protagonistas Deste Estudo.

Aqui, apresentaremos de forma singular as três colaboradoras de nosso estudo. O principal intuito ao realizar esta apresentação é situar o leitor na breve história de cada uma delas, auxiliando na contextualização dos extratos de falas que subsidiarão as nossas interpretações.

Rosa3

Rosa é uma mulher de 37 anos que foi casada com um policial militar por 16 anos. Relatou uma história de agressões e ameaças por parte de seu ex-marido. O parceiro foi descrito por ela como um homem ciumento e agressivo. Rosa teve dois filhos com ele, uma menina, hoje com 15 anos, e um menino, com 11 anos. Os filhos sempre presenciaram as agressões do pai. Este, em diversos momentos, ameaçava se matar e se mutilava, caso ela o deixasse ou decidisse se separar. No entanto, seis meses antes da tentativa de homicídio ela pediu a separação, o que nunca foi aceito por seu companheiro. Desde então, passou a ser perseguida e ameaçada por ele, até que em 2011 o ex-parceiro invadiu o seu ambiente de trabalho e a fez refém com uma arma branca, sempre ameaçando matá-la por causa da separação. Após certa luta corporal, ela conseguiu fugir e ele, nesse mesmo ambiente, empunhou a faca contra si mesmo. Após dias em UTI, conseguiu alta e encontra-se em liberdade. Rosa, atualmente, não consegue trabalhar e apresenta problemas emocionais. Tem medo de sair de casa e encontrá-lo, e ainda recebe telefonemas ameaçadores dele. Realizou denúncia em função da tentativa de homicídio, a qual ainda não foi julgada.

Helena

Helena tem 42 anos, e durante 12 anos foi casada com Alfredo, com quem não teve filhos. Porém, Helena teve três filhos de uma relação anterior, duas meninas e um menino. Tem uma história de vida difícil, marcada por muitas dificuldades financeiras e pessoais. Mantém relacionamento conflituoso com os pais; foi moradora de rua, doméstica e eventualmente era vendedora de cartelas, especialmente aos finais de semana. Alfredo nunca permitiu que ela trabalhasse, saísse de casa ou mantivesse amizades. Era considerado um homem ciumento, frio e obsessivo por ela e suas filhas. Ela refere que o marido sempre a ameaçou e torturou quando não a encontrava em casa. Disse que diariamente sofria humilhações e agressões, sempre à noite e com hora marcada para acontecer. O que provocou o ato de violência final foi a descoberta, por parte dela, de que ele abusava sexualmente de suas filhas. Desde então, as agressões se intensificaram, resultando na tentativa de homicídio contra ela, quando foi acordada por ele, portando uma faca para perfurá-la. Ela lutou corporalmente para se defender e evitou todas as tentativas de perfuração perpetradas, até que conseguiu fugir da casa. Na sequência, seu parceiro ateou fogo contra a própria casa e se enforcou em um dos cômodos, vindo a falecer.=

Tereza

Tereza, 57 anos, foi casada durante 29 anos com seu marido, seu primeiro namorado e com quem sempre idealizou casar. Tereza estudou até o ensino médio, mas não deu prosseguimento aos seus estudos, pois logo se casou, aos 22 anos. Teve com seu companheiro quatro filhos, sendo três meninas e um menino. Sempre se descreveu como uma mulher acomodada, conformada com o que a vida lhe ofereceu, e foi assim durante todo o casamento: não trabalhava nem saía de casa sem a companhia do marido. Sua rotina centrava-se em torno dos cuidados com o lar, os filhos e o marido. Ela descrevia o esposo como um homem muito ciumento, possessivo e que fantasiava histórias. Tereza decidiu separar-se. O marido não suportou falar sobre o assunto, mas, segundo ela, desde esse momento ele passou a planejar o crime que viria a acontecer. Em um dia cedo da manhã, ela acordou para arrumar-se para uma consulta médica e deparou-se com o ex-marido em pé, próximo ao banheiro de onde ela saía, de onde ele dispara dois tiros à queima-roupa: um no peito dela e outro em direção à sua cabeça, que pegou de raspão, pois ela conseguiu desviar. Após atirar contra a sua mulher, ele dirigiu-se à sala da casa, onde, na presença dos filhos, atirou em sua própria cabeça, vindo a falecer. Tereza relatou muito sofrimento com o ocorrido, os tiros deixaram leves sequelas, mas ela refere grande mobilização afetiva em função da violência, sempre descrita como algo inesperado e surpreendente.

 

"Ah, Rosa, e o Meu Projeto De Vida?" 4

Rosa vivenciou uma história longa de violências ao lado de seu parceiro, como expresso por ela ao afirmar que foram "16 anos de ameaças". A fala de Rosa nos mostra o que as estatísticas já nos apontam: as mulheres que sofreram violência, muitas vezes, estão em uma relação marcada pela violência desde o início do relacionamento amoroso. A permanência de mulheres em uma relação abusiva tem sido estudada por diversos pesquisadores e teóricos, tais como Hart (1992), os quais pensam haver alguns motivos para que essas mulheres permaneçam numa relação abusiva.

Observamos em Rosa a presença marcante de um grande sonho: "Eu sempre sonhei muito em casar de véu e grinalda, eu sempre sonhei muito em construir uma família bonita, queria me casar, ter minha casa, me realizar profissionalmente". Esse projeto/sonho de Rosa mobilizava a sua escolha pela permanência nessa relação, como visto neste trecho: "Só que eu mantinha as aparências, porque na minha cabeça eu queria ter essa família, uma família feliz. Eu queria criar meus filhos ao lado dele, eu queria envelhecer ao lado dele, mas não foi possível."

O que respondia pela adoção desse projeto que mobilizava a escolha de Rosa era o seu sentido de existir. Devemos lembrar que sentido, como bem explana Critelli (2007), é o destino, o rumo, a direção da nossa existência. É a partir dele, e somente por ele, que significamos o nosso existir, que existimos em determinados modos de ser e escolhemos as nossas escolhas. O sentido, como diz essa autora, é "o destinar-se do ser" (Critelli, 2007, p. 57).

Percebemos o quanto esse projeto é construído a partir de sentidos presentes na cultura. Isso nos leva a pensar em um desvelamento de uma impessoalidade de ser. Na impessoalidade, isentamo-nos da responsabilidade de ser, de empunhar o nosso projeto de ser si mesmo. Nesse modo de ser, adotamos a referência e o discurso do outro, de todos, e ao mesmo tempo, de ninguém, pois quem fala na impessoalidade não é o próprio ser, mas o discurso da impessoalidade.

Em Rosa, percebemos que, existencialmente, ela restringiu o seu viver a apenas uma possibilidade, à possibilidade de ser mulher, como destinado culturalmente, mesmo que numa relação de violência. Nesse modo de ser, mulheres como Rosa depositam a responsabilidade das possibilidades de sua existência a outros, ao homem com quem convivem, à própria condição de ser mulher construída historicamente e aos valores culturais aprendidos. O que gostaríamos de refletir acerca desse modo de existir é que, mesmo existindo nessa condição, Heidegger considera que essas são possibilidades postas a todo ser.

A compreensão desse mergulho na impessoalidade, nesse perder-se de si que a impessoalidade provoca para o ser, o Dasein, é fundamental para compreender o desvelamento de sentidos da experiência de uma mulher sobrevivente de um feminicídio provocado por seu parceiro. E nós podemos perceber esse perder-se de Rosa em diversos momentos de sua narrativa, como exemplificado a seguir:

Eu acho que o que faz as mulheres ficarem numa relação dessas é a família. A família e o medo também. São duas coisas que fazem a mulher passar por tudo isso e não ter a coragem de fazer a denúncia. E porque também amam os companheiros e passam por cima disso tudo e aguentam esse tipo de violência... E eu aguentava em nome da família, dos meus filhos.

De acordo com o pensamento heideggeriano, existe um escolher a si mesmo para empunhar o projeto do Dasein, e percebemos em Rosa, e em todos aqueles que se encontram no movimento da impessoalidade, um dispensar-se de tal responsabilidade. No caso de Rosa, percebemos que isso contribui para a sua permanência nessa relação abusiva, violenta, pois no perder-se na impessoalidade quem escolhe é ninguém, não é o Dasein, mas aquilo que os outros falam, pensam, acreditam.

Este não empunhar-se, fugindo da responsabilidade de ser si-mesmo, existindo no modo impessoal, é um modo de ser, mesmo que ele significasse ser-com o outro nessa modalidade, objetificando-se para um outro, sendo-para-o-outro. Podemos perceber isso especialmente no fato de como o parceiro de Rosa objetificava a sua existência, limitando-a a ser sua, aprisionando o seu modo de ser num modo-de-ser apenas para ele, como vemos no trecho a seguir:

Ele queria que eu ficasse submissa a ele em tudo, que eu dependesse dele para tudo. Me dizia que eu não precisava trabalhar porque eu tinha tudo, e eu sempre dizia que não, que eu não tinha tudo, que eu queria respeito, amor e carinho.

Tal postura nos chama atenção para o cuidado que permeia uma relação violenta, um cuidado que coloca a mulher como sua posse, que a objetifica, que aniquila as suas possibilidades (o não estudar, não trabalhar, não sair, não ter amigas). Isso nos leva a pensar numa posição ocupada pela mulher de existir em restritas possibilidades de ser. Sá, Mattar e Rodrigues (2006) refletem que, nesse modo de cuidado e de ser-com-o-outro, o outro com quem me relaciono é desvelado como um algo que estaria a serviço da minha satisfação, o que se configura como algo restritivo ao ser. Aqui, o outro, visto como coisa, torna-se um objeto a serviço das aspirações do sujeito.

O H/S condena o outro a permanecer num modo de ser mais restrito de possibilidades, existindo com o parceiro e com ninguém, numa tentativa de aprisionar o ser-com dessa mulher, para ser sempre um ser-com-ele. Podemos observar isso no tom das ameaças feitas pelo parceiro e pela dificuldade de aceitar a separação:

Então eu decidi me separar dele, e ele não aceitava a separação... Então eu decidi me separar dele e ele ficou ameaçando, ameaçava as crianças... Era dizendo que se eu não quisesse mais ele, ele ia me matar e matar as crianças.

Assim, podemos pensar se o medo de ser, de escolher a si, presente em Rosa e até mesmo em mulheres que permanecem em relações violentas, não seria o medo de assumir a responsabilidade de que apenas elas são responsáveis por escolher-se e empunhar-se na vida enquanto projeto. Pensamos se essas mulheres, e Rosa, não fugiriam de si, movidas pela angústia de ser, com temor por viver, que as faz se afastar do projeto de serem si mesmas e assim caem na de-cadência, na impessoalidade, perdendo-se de si, e estabelecendo como modo de ser, um modo de ser-com-o-outro, objetificando-se para ele. Assumem o cuidado que lhe é imposto pelo parceiro, um cuidado que as torna posse, que restringe as suas possibilidades e papéis no mundo, mas, ainda assim, as permite permanecer existindo.

É importante sinalizar o quanto uma experiência como essa promove forte desvelamento de sentidos para quem as vive. O contato com a morte propriamente dita, vivenciada tanto pela ameaça à sua própria vida como por assistir à tentativa de morte de seu companheiro, acarreta para essas mulheres uma aproximação com o destino de todos nós: o de sermos ser-para-a-morte. Para Heidegger, o que a morte provoca em nós é um colocar em jogo o ser-próprio do Dasein. É assumindo a morte como uma possibilidade ontológica que o Dasein pode empunhar o seu ser mais próprio. Muitas vezes, na impessoalidade, na publicidade, como aponta Heidegger, a consciência de nossa finitude vem ao nosso encontro a partir da morte do outro, mas essa é uma morte do impessoal, ela atinge o Dasein, mas não pertence a ninguém.

 

"Acalanto Para Helena"

A história de Helena é marcada por muitas violências, que se iniciam desde a sua infância, ainda no seio da vida familiar. A historicidade de Helena nos desvela uma vida marcada por inúmeras violências, especialmente familiar, em que sua mãe não a reconhecia enquanto ser de possibilidades e a subjugava a um cuidado que era indiferente.

É interessante percebermos que, para além de uma imposição cultural, muitas vezes a relação violenta, diante da história de vida, a qual também é marcada por outras violências, torna-se a "melhor" escolha da sua vida:

E Deus não me botou um estuprador diretamente, mas quase... Mas eu acho que, pelo que eu pedi a Deus, ele foi até generoso comigo, porque ele poderia se tornar um estuprador, mas Deus foi maior e não deixou. Porque ao lado dele eu tinha minhas quatro telhas, meus filhos. Tinha um preço, porque não tinha nada sem um preço, mas tinha minha alimentação garantida. Eu comia sem medo, sem ser humilhada, tinha minha dormida garantida e, acima de tudo, estou cuidando dos meus filhos.

Podemos perceber que ser-com o marido numa relação violenta era uma forma de ser, de existir, diante de alguém que a reconhecia como existente, que empreendia a ela um cuidado, embora fosse um cuidado que aniquilava as suas possibilidades de ser, de poder-ser.

Ao falarmos em uma relação violenta, poderemos ver no trecho a seguir, as humilhações e agressões sofridas por Helena e praticadas por seu companheiro, em uma vida descrita por ela da seguinte forma: "Nesses 12 anos de convivência, foram anos de tortura, porque você não fala em tortura apenas fisicamente, mas tem a verbal, que é a pior que tem, é melhor a física do que a verbal."

Assim como vimos em Rosa, as relações marcadas por violência são caracterizadas por um cuidado que "retira" o cuidado do outro, que o substitui, que lhe toma o lugar no exercício de seu poder-ser. Nesse modo de cuidado, podemos pensar numa forma de se relacionar com o outro, objetificando-o, como algo de nossa posse.

Helena relata as dificuldades em tentar exercer possibilidades em sua vida e a imposição desse modo de cuidar de seu parceiro, cuidado que limitava as suas possibilidades e a faziam existir apenas para ele, ficando ela à sua espera, velada em sua própria casa, sem trabalho nem vida social, como podemos ver na fala a seguir:

Outro dia foi uma briga porque arranjei uma lavagem. Quando ele chegou que viu que a roupa não era da gente botou todinha na lama. Do jeito que a roupa estava, ele fez questão de ir comigo na porta da pessoa e entregar.

E Helena passa a aceitar essa privação de poder-ser, acatando esse cuidado, afastando-se de si, do que deseja e do que pensa. Outro afeto presente na experiência de Helena é o medo, pensado por nós como temor, como visto na seguinte fala: "Eu sinto que ele foi embora e me deixou numa prisão, pois eu ainda tenho medo."

O temor se torna uma forma de disposição no mundo, como pensa Heidegger. Um temor que se apresenta no medo ao outro, no medo por sua própria vida, num medo por não ser si mesma, condenada a um modo de ser restrito a certas possibilidades, perdida e mergulhada numa impessoalidade, impropriedade.

Muitas vezes, era por esse temor que ela escolhia permanecer no sofrimento, optando por permanecer numa relação abusiva, como visto no trecho a seguir: "Entre ficar na prisão que eu vivia e a prisão que me esperava aqui fora era melhor ficar com ele."

Sobre isso, Critelli (2007) pensa que é o sentido que baseia as escolhas que fazemos para ser, portanto, quando uma escolha é feita, ela é favorecida por um estado de ânimo, um afeto que favorece com que permaneçamos em determinadas situações ou nos movamos em outras direções, seja ela a favor dos outros ou das circunstâncias em que nossa vida se circunscreve.

É importante observarmos que existe, para as mulheres vítimas de violência, além de uma inospitalidade do mundo, um desamparo legal. Por exemplo, quem responde pelo que acontece após a denúncia? Quais os riscos da denúncia? Há também um desamparo social, relacionado a quem de fato ajuda essas mulheres, reconhece o seu sofrimento e as ampara legalmente. Podemos observar tal angústia em expressões como as vistas no seguinte trecho:

Eu ia estar cavando a minha cova, porque eu acho o seguinte: que quando uma mulher botar os pés em uma delegacia pra prestar queixa de um homem, ela tem que estar consciente do que está fazendo, ela tem que estar decidida do que realmente ela quer.

Pensar sobre a sobrevivência a uma violência como a do H/S nos permite pensar esse termo de outra forma, pensando essas mulheres, em especial Helena, como sobre-viventes, uma sobre-vivência marcada por mortes existenciais e simbólicas: do amor idealizado, de um projeto de vida, da própria dignidade, de quem se era, de quem se é, enfim, mortes que acompanham não só a perda do parceiro e da história vivida com ele, mas mortes de quem era ao lado desse companheiro, das marcas deixadas pela violência e pelas palavras ouvidas, como visto no trecho a seguir: "Mas já vai fazer dois anos e eu tô viva por fora, mas por dentro... Se não fosse ali, por dentro eu já teria me matado várias vezes."

 

"Oh Tereza Essa Tristeza"

Como vimos com outras colaboradoras deste estudo, o sentido corresponde ao destinar-se da existência, ao que move as suas escolhas, e entendemos que, para Tereza, casar-se com esse homem e constituir a família que ela idealizava era o sentido da sua existência: "Meu sonho sempre foi casar com ele, sempre foi com ele o meu sonho."

Segundo Critelli (2007), é o sentido que baseia as escolhas que fazemos para ser, é ele que está aberto pela abertura existencial que é o Dasein. Sendo assim, para Tereza, é o sonho de casar-se com esse companheiro, é o amor ao parceiro que move a sua existência e desvela modos-de-ser no mundo.

Percebemos em Tereza a historicidade construindo um modo de ser mulher, especialmente a partir da inscrição cultural na história individual de cada pessoa. Relembramos um tópico bastante explorado nas outras narrativas deste trabalho, que versa sobre o mergulho do Dasein no impessoal. Relembramos também que, como afirma Casanova (2009, p. 123), "existir, portanto, é de início o mesmo que perder-se de si". Resgatamos a impessoalidade para pensarmos a experiência de Tereza, especialmente pelo fato de percebermos em seu discurso a presença de valores preconizados culturalmente, como a associação ao papel da esposa: de paciência, submissão e tolerância em função da manutenção do casamento, como vemos no trecho a seguir:

Eu hoje digo que deveria ter sido mais paciente, eu fui muito paciente, mas acho que falhei, eu não sou perfeita, eu nunca quis me separar, eu nunca pensava em me separar, aguentei todos esses anos pensando em nunca me separar...

É importante lembrarmos que no impessoal adotamos o outro como referência, utilizamos o discurso da publicidade, o discurso acerca do que todos falam. Nesse sentido, Tereza nos mostra o quanto os valores da educação e da cultura contribuem para a construção dos sentidos: "Mas eu sempre sonhei em casar, porque eu fui educada pra isso."

A relação que Tereza estabelecia com o marido desvela um cuidado substitutivo, como pensado por Heidegger, exemplificado em trechos da narrativa de Tereza:"Foram seis anos de namoro e 29 anos de casamento, e eu sempre submissa. Não estudei como deveria, sempre submissa a ele..."

Sobre tal comportamento, Tereza define o cuidado que seu marido desempenhava na relação afetiva: "Eu acho que ele me tinha como uma posse. Eu não era esposa dele, eu era propriedade dele. E eu tinha que fazer o que ele queria, o que ele mandasse, e acabou a história."

No cuidado substitutivo presente na relação afetiva de Tereza e seu companheiro, percebemos uma retirada da possibilidade de ser de nossa protagonista, expressa na posse de seu destino tomado pelo seu companheiro. Pensamos que tal modo de cuidado, nessa relação, desvela um modo-de-ser-com-ele que coloca a sua companheira como um objeto para esse homem, posta nesse papel para atender às suas necessidades, suas ordens, sendo manuseada por ele, num cuidado que se assemelha ao dos objetos. Sobre isso, Bauman (2004) reflete que a melhor maneira encontrada pelo amante para suprir o medo da separação seria transformar o amado numa parte inseparável do amante, de modo que os caminhos escolhidos sejam os mesmos, as concordâncias e sentimentos sejam semelhantes. Isso desvela a face do amor que pode ser pensada como aquilo que aprisiona e coloca o outro amado sob custódia, numa prisão que objetiva proteger o prisioneiro. Importante apontarmos que Tereza reflete sobre consequências desse tipo de cuidado em sua vida:

Eu sofri demais, porque eu não pagava nada, eu não comprava nada, eu não fazia nada, tudo era ele. Então eu cheguei aqui e eu me vi nessa situação. Além do sofrimento emocional, ainda tinha esse sofrimento de resolver tudo sem eu saber fazer, mas eu pedia muita força a Deus e muita sabedoria, e assim a gente foi fazendo.

Tereza ainda lamenta, em uma de suas falas, a ausência de seu companheiro e o desejo por ter envelhecido ao lado dele: "Eu sinto por ele hoje... (choro). Eu penso que seria bom se ele tivesse velhinho aqui, a gente vivendo em paz, eu cuidando dele, a gente não merecia ter passado por essa tragédia!"

Interessante notar que trechos de sua narrativa nos desvelam uma forma de ser-com o companheiro morto, uma forma de mantê-lo com ela, mesmo que seja através dos desejos de continuidade da relação, do afeto que não deveria ter acabado ou pelas memórias ainda vivas, como vemos no trecho a seguir: "Nesses momentos eram muito felizes, era bom que meus filhos não tivessem crescido, porque eu aguentava a brutalidade dele, a falta de confiança, que eu não sei porque essa falta de confiança."

Tereza, saudosamente, relembra momentos dessa relação, desvelando formas de ser-com o companheiro morto, como podemos ver no trecho a seguir:

Mas eu rezo pra ele, eu quero que ele esteja num bom lugar. Eu peço pra ele interceder por nós. Ele ainda está muito presente na minha vida. Rezo pra ele e peço que ele interceda pelos filhos e até por mim. Eu quero que Deus o tenha num bom lugar, eu acho que ele já pagou tudo...

Sobre isso, relembramos a reflexão também feita com Helena acerca da relação com o companheiro morto, especialmente pelo fato de que os mortos ainda permanecem sendo para essas mulheres, fazendo com que elas se relacionem com eles como se fossem um objeto de ocupação, rezando, pedindo cuidado e proteção, numa preocupação reverencial. Observamos que, mesmo após o falecimento do companheiro, Tereza permanece, de alguma maneira, sendo-com esse companheiro, de modo que a presença dele ainda é muito sentida por ela, seja por uma reflexão de um amor que não deveria ter chegado ao fim ou pelas memórias dos bons momentos juntos. Ela ainda o reverencia e dele espera cuidados, bênçãos, uma presença que se estabelece em sua vida sob a forma de proteção.

Tereza vê a sua sobrevivência ao crime como "um milagre, um milagre, porque eu nasci de novo!". Em vários momentos da sua narrativa, é possível perceber que se trata do grande acontecimento que promove o seu nascimento enquanto pessoa, enquanto projeto em exercício da sua existência como poder-ser. Para o exercício desse projeto, Tereza abraçou-se enquanto projeto e, após experienciar a vivência concreta da finitude, ela desvela-se pra si mesma, assumindo a responsabilidade de seu destino, como vemos no momento em que ela reflete: "Eu não esperava isso, mas aconteceu, então a gente tem que ser forte, né?".

Ainda sobre a descoberta de si e de seu poder-ser, Tereza mostra a superação das dificuldades, a descoberta de poder-ser capaz de cuidar de si e exercer-se: "Eu sofri muito no começo, era tudo para resolver, era tudo para pagar, e eu achava que eu tinha um peso muito grande nas minhas costas. Tudo era eu, mas eu me acostumei e estou aqui, vencendo!".

Vê-se que mesmo frente ao medo e à insegurança de ser ela a única responsável por conduzir a sua vida e seu viver, Tereza apropria-se dessa angústia e desvela-se para seu poder-ser mais próprio e sente-se vitoriosa por ser ela a protagonista de sua história. Lembremos que Heidegger reflete sobre o fato de que o sentido da nossa existência se desvela, mas também se oculta, num movimento existencial de propriedade e impropriedade. Pois nunca estaremos existindo apenas na propriedade, estaremos sempre imersos na circularidade ontológica que revelará os modos de ser que escreverão a nossa existência.

Pensamos, a partir dos preceitos heideggerianos, que para sair da impessoalidade e escolher-se enquanto projeto, é preciso escolher essa escolha e ouvir o clamor da consciência que convoca o Dasein a exercer o seu poder-ser. Observamos o movimento vivido por Tereza, que, mergulhada no impessoal ao longo de sua vida, desde a sua infância, a partir da educação de sua mãe e da construção de seu modo-de-ser-mulher ao lado de seu companheiro, permite-se, após apropriar-se de sua condição de ser-para-a-morte, apropriar-se de modos-de-ser mais próprios. Com isso, descobre-se renascendo enquanto pessoa, como vemos no trecho a seguir: "Porque eu nunca tinha saído de lá, era Natal-Capim, Capim-Natal. Nasceu outra mulher, aprendi a cuidar de tudo que tinha...".

Assim, ainda sobre o seu movimento frente à sua propriedade, Tereza revê a si mesma, apropriando-se de si e de seu projeto de ser si mesma: "Se eu pudesse voltar no tempo, eu teria sido outra pessoa, outra mãe, outra esposa. Eu seria mais experiente, se eu soubesse antes o que eu sei hoje. Eu acho que eu teria sido diferente."

 

Redescobrindo Caminhos

Por que pensar em matar e morrer por amor? Observamos que nossas protagonistas se tornaram vítimas de uma violência frente à ameaça de pôr fim ao relacionamento. E o que significa finalizar um amor? Observamos que, nas vidas de Rosa, Helena e Tereza, havia no discurso de seus companheiros a afirmação de que a existência delas não seria mais possível se não fosse ao lado deles. Caruso (1984, p. 19) afirma que a separação "é um problema de morte entre os vivos". Ela significa a morte do outro na consciência humana. Assim, esse autor problematiza que a separação significa um homicídio em nome da vida e um suicídio da própria consciência. A partir disso, podemos pensar que, para os homens que pensaram em matar e morrer por esse amor, houve uma concretização dessa morte simbólica do outro. Morte esta decretada pela escolha dessas mulheres em se separarem e pela não aceitação dessa escolha pelos homens, que só permitiam a elas a condição de existirem unicamente num modo de ser-com-ele.

Observamos que as protagonistas se encontram aprisionadas em seus sofrimentos, angústias, medos e vigiadas pelas memórias dos sofrimentos vividos. Legalmente, são nomeadas "sobreviventes de um feminicídio", mas pensamos se sua condição de vida não as faria sobre-viventes: vivendo sobre as lembranças de uma experiência dolorosa, sobre quem são e quem podem ser.

Mulheres que construíram sentidos para suas existências, representados no alicerce familiar, pela presença de um marido e de filhos. Projeto esse, muitas vezes, que movia as suas vidas e conduzia à construção de modos-de-ser e de existir, permeando as escolhas de suas vidas.

Pudemos perceber a presença da historicidade construindo sentidos para a existência dessas mulheres e, fundamentalmente, construindo modos de ser. É unicamente pela historicidade dessas mulheres que podemos compreender a sua trajetória na vida, a sua condição de ser mulher. Isso porque a questão do ser é caracterizada pela historicidade.

Além dos aspectos aqui elencados, observamos relatos de uma vivência de relações amorosas marcadas por forte ciúme, com a presença de fantasias de traição e marcadas por um cuidado na relação afetiva que colocavam as mulheres na posição de objeto, o que é nomeado por Heidegger como cuidado substitutivo. Tal modo de cuidar fazia com que essas mulheres restringissem a sua existência a ser-para-o-marido, a existirem a partir de sua referência, perdendo-se de si mesmas, adotando o discurso do companheiro, da cultura, dentre outras referências.

O que moveria, então, nossas protagonistas a permanecerem numa relação violenta, que ameaçava a sua integridade física e psicológica, permanecendo nessa relação de cuidado? O sentido de suas vidas, o sentido que movia as suas existências, que destinava os seus caminhos era a constituição de uma família, de uma referência para suas vidas, viver um amor e cuidar dos seus filhos. Em Rosa, vimos isso expresso em seu sonho de casar e ter uma família feliz; em Helena, vimos a escolha por um espaço afetivo que a acolhesse do abandono e da negligência familiar; em Tereza, vimos a realização do sonho de se casar com o homem idealizado.

Assim, muito além dos aspectos financeiros, o que fazia essas mulheres continuarem a escolher essas relações era o sentido que estas ocupavam para a sua existência. Elas seguiram o movimento do seu existir e, mesmo que em possibilidades restritas de sua existência, permaneceram assim existindo, embora isso significasse existir-para-um-homem. O que pensamos é que tais movimentos desvelaram modos-de-ser-no-mundo para essas mulheres.

E tais modos-de-ser, para algumas delas, permaneceram presentes, apesar da ausência física de seus companheiros. A morte e a ausência deles as condenavam a uma presença simbólica do companheiro, muitas vezes, fazendo com que elas permanecessem sendo-com seus companheiros, num cuidado reverencial, como assim o pensa o filósofo Martin Heidegger.

Assim, entendemos que, em seu existir, em sua historicidade, tal modo de ser é uma forma de elas continuarem afirmando a sua existência, mesmo que isso signifique existir no contexto de uma relação violenta, sendo-para-o-outro. Nesses casos, retomamos Caruso (1984), para quem, em algumas relações afetivas, frente à separação, prefere-se não viver diariamente, reprimindo a vida, restringindo-a de múltiplas maneiras.

Refletir sobre o homicídio seguido de suicídio é caminhar sobre árida temática, primeiramente, por seu fator mobilizador: pensar sobre um tipo de violência em que o parceiro tenta matar a sua esposa e em seguida se suicida é abordar duas temáticas densas - o homicídio de mulheres e o suicídio. Ambas temáticas preocupam a sociedade e configuraram-se como um problema de saúde pública, em função de seus crescentes números em todo o mundo.

Pensamos ser de fundamental importância refletirmos acerca das questões desveladas neste trabalho. É imprescindível pensarmos sobre a escuta e o apoio psicológico oferecido a essas mulheres. Percebemos em Rosa, Helena e Tereza o silenciar de seu sofrimento. Sentimos que elas permitiram-se falar sobre a sua experiência, o seu sofrimento, pela primeira vez. Tal constatação nos desperta para a necessidade de pensar ações assistenciais às vítimas de violência.

Desenvolver tal estudo nos permite pensar que o H/S é um fenômeno multifacetado e só pode ser compreendido a partir da história daqueles que nele estão envolvidos. A história de vida e de suas afetividades contribui para a construção da dinâmica da relação amorosa entre o casal.

Mesmo tendo sido identificados registros sobre a violência em documentos como a notificação compulsória em saúde, dentre outros, pensamos que adotar uma padronização para o registro desse tipo de violência contribui para melhor conhecer os dados que retratam essa realidade. Como pudemos observar em nossa incursão nas delegacias especializadas, o H/S ainda é uma violência não identificada, em função de não haver uma orientação padronizada para seu registro, sendo identificada apenas como tentativa de homicídio. Assim, desconhecer os reais números que representam essa realidade dificulta ações que tenham como intuito melhor compreendê-la.

Seria de fundamental importância que os órgãos e autoridades responsáveis, ao preencherem os documentos notificatórios, identificassem essa violência como um homicídio seguido de suicídio, e não apenas como uma tentativa de homicídio, como comumente tem sido feito. Pensamos que apenas dessa maneira retiraremos da invisibilidade a condição de ser uma mulher vítima de violência e contribuiremos para a diminuição das estatísticas em torno do homicídio de mulheres.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Ana Karina Silva Azevedo
Endereço: Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Rua
Trairi, Centro. Santa Cruz/RN, CEP: 59022-000
E-mail: anakarinaazevedo@hotmail.com

Elza Maria do Socorro Dutra
Endereço: Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Caixa Postal 1524, Campus Universitário Lagoa Nova
Natal/RN, CEP: 59078-970.
E-mail: elza_dutra@hotmail.com

Recebido em: 03/03/2015
Revisado em: 01/04/2015
Aceito em: 29/06/2015

 

 

1 Mundo, para Heidegger (1996), é o conjunto de condições geográficas, históricas, sociais e econômicas em que o homem está inserido.
2 Existenciais, para Heidegger, são características ontológicas da existência.
3 Lembramos que, respeitando os preceitos éticos de sigilo e preservação da identidade das colaboradoras deste estudo, substituímos os nomes delas por nomes de mulheres de músicas de Chico Buarque, cantor e compositor que soube representar, através do seu eu lírico, a alma feminina. Reforçamos que também alteramos quaisquer outros dados que possibilitassem uma identificação.
4 Assim como os nomes das participantes foram substituídos por nomes de mulheres cantadas por Chico Buarque, os tópicos que serão destinados à interpretação das suas narrativas foram identificados por frases das músicas cujos nomes das nossas protagonistas estão presentes. O trecho deste tópico é referente à música "A Rosa".

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