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Revista Subjetividades

Print version ISSN 2359-0769On-line version ISSN 2359-0777

Rev. Subj. vol.15 no.2 Fortaleza Aug. 2015

 

ARTIGO ORIGINAL

 

A racionalidade punitiva nas propostas de redução da idade penal brasileiras

 

The punitive rationality in the brazilian legal age reduction proposal

 

La racionalidad punitiva en las propuestas de reducción de la edad penal brasileña

 

La rationalité punitive dans les propositions de réduction de l'âge pénal au Brésil

 

 

Aline Kelly da SilvaI; Simone Maria HüningII

IMestre em Psicologia pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL)
IIDocente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFAL. Doutora em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Pós-doutorado no Kings College London (bolsista CAPES)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho objetiva discutir a racionalidade punitiva que perpassa as propostas de redução da idade penal no Brasil, amplamente discutidas no momento atual. Analisamos 37 Propostas de Emenda à Constituição (PECs) apresentadas pela Câmara de Deputados do país, entre os anos de 1993 e 2013. Utilizamos os métodos arqueológico e genealógico de Michel Foucault e estruturamos a discussão em três tópicos: a) o Estado como garantidor de interesses dos 'cidadãos de bem' e responsável pela segurança da sociedade; b) o modo como as PECs explicitam uma exacerbação da racionalidade punitiva; e, c) o aumento da demanda por segurança pública que passa a inscrever práticas de racismo de Estado. Concluímos que as justificativas produzidas nesses documentos para a redução da idade penal evidenciam descontinuidades: ora se fala em reduzir a violência a partir da diminuição da idade penal, ora diz-se que isso não garantiria a redução da violência, mas, ainda assim, seria necessário para atender ao clamor da população por punições mais severas para esses jovens. Os enunciados articulam impunidade e sentimento de insegurança coletiva, atribuindo aos jovens infratores a responsabilidade pela situação de insegurança no contexto atual do Brasil. Indicam ainda o acirramento das práticas divisórias que se constituem a partir do racismo de Estado: proteção para os 'cidadãos de bem' e punição para os jovens vistos como inimigos sociais.

Palavras-chave: maioridade penal; juventude; arqueologia; genealogia


ABSTRACT

This work aims to discuss punitive rationality that permeates the Brazilian legal age reduction proposals, widely discussed at present. 37 Amendment to the Constitution Proposals (PECs) presented by the country's Chamber of Deputies, between the years 1993 and 2013 were analyzed. Archaeological and genealogical Michel Foucault's methods were used and we structured the discussion on three topics: a) the State as guarantor of the interests of 'good citizens' and responsible for the security of the society; b) how the PECs explain an exacerbation of punitive rationality; and, c) increasing demand for public security that passes to sign State racism practices. We concluded that the justifications produced in these documents to reduce the legal age evidence discontinuities: now it comes to reducing violence from the reduction of criminal age, then it is said that it would not guarantee the reduction of violence, but still, it would be necessary to meet the clamor of the people for more severe punishments for those young. The statements articulate impunity and sense of collective insecurity, giving the young offenders the responsibility for the insecurity situation in the current context of Brazil. Also indicate the worsening of the partitions practices that are from the racism of the State: protection for 'good citizens' and punishment for young people seen as social enemies.

Keywords: criminal majority; youth; archeology; genealogy


RESUMEN

Este trabajo objetiva discutir la racionalidad punitiva que se acerca a las propuestas de reducción de la edad penal en Brasil, ampliamente discutidas en la actualidad. Evaluamos 37 Propuestas de Enmienda a la Constitución (PECs) presentadas por la Cámara de los Diputados del país, entre los años de 1993 y 2013. Utilizamos los métodos arqueológicos y genealógicos de Michel Foucault y estructuramos la discusión en tres tópicos: a) El Estado como el que garante los intereses de los "ciudadanos de bien" y responsable por la seguridad de la sociedad; b) la forma como las PECs exponen una exacerbación de la racionalidad punitiva; y c) el aumento de búsqueda por seguridad pública que inscribe prácticas de racismo de Estado. Concluimos que las justificativas producidas en estos documentos para la reducción de la edad penal muestran discontinuidades: ora se habla en reducir la violencia disminuyendo la edad penal, ora se habla que eso no garantiza la reducción de la violencia, pero aún así sería necesario para atender las peticiones de la populación por puniciones más duras para estos jóvenes. Los enunciados articulan impunidad y sentimiento de inseguridad colectiva, atribuyendo a los jóvenes infractores la responsabilidad por la situación de inseguridad en el contexto actual de Brasil. Indican aún la tensión de las prácticas divisorias que se constituyen del racismo de Estado: protección para los "ciudadanos de bien" y punición para los jóvenes vistos como enemigos sociales.

Palabras clave: mayorídad penal; juventud; arqueología; genealogía


RÉSUMÉ

Cet article a le but de discuter la rationalité punitive qui est présente dans les propositions de réduction de l'âge pénal au Brésil très débattue à de moment actuel. On a analysé 37 Propositions d'Amendement [emenda] à la Contitution (PECs) présentées par la Chambre des Députés du pays entre les années 1993 et 2013. Nous avons utilisé les méthodes archéologique et généalogique de Michel Foucault et nous avons structuré le débat en trois points: a) l'État comme assureur des intérêts des 'bons citoyens' et responsable de la sécureté de la société; b) la manière comme les PECs explicitent une exaspération de la rationalité punitive; et c) l'augmentation de la demande de sécurité publique qui passe à inscrire des practiques de racisme d'État. Nous concluons que les justifications produites dans ces documents de la réduction de l'âge pénal exposent des discontinuités: parfois on parle de réduire la violence à partir de la diminution de l'âge pénal, d'autre fois on dit que cela n'assurerait pas la réduction de la violence, mais quand même cela serait nécessaire pour répondre au cri du peuple pour punitions plus sévères de ces jeunes. Les énoncés articulent impunité et sentiment d'insécurité colective, en attibuant aux jeunes infracteurs la responsabilité d'insécurité dans le contexte actuel du Brésil. Ils indiquent encore l'instigation des practiques discordantes qui se constituent à partir du racisme d'État: la protection pour le 'bon citoyen' et punition pour les jeunes vus comme des ennemis sociaux.

Mots-clés: majorité pénale; jeunesse; archéologie; généalogie


 

 

Em fevereiro de 2014, a notícia de que um jovem negro de 15 anos de idade havia sido preso e amarrado a um poste após ser espancado ganhou repercussão nacional, sobretudo após declarações da jornalista Raquel Sheherazade de que o "marginalzinho preso ao poste" era tão inocente que, antes mesmo de chegar a polícia, havia fugido do local.

De acordo com notícias publicadas à época, o jovem, acusado de cometer furtos na zona sul carioca, teria sido abordado por três homens, que o espancaram e, após tirarem sua roupa, prenderam-no a um poste utilizando a trava de uma bicicleta (Carta Capital, 2014). A jornalista Raquel Sheherazade, âncora do telejornal SBT Brasil, afirmou então que, diante da violência endêmica na sociedade brasileira, a atitude dos "vingadores" - expressão utilizada por ela para referir-se ao trio responsável pelo espancamento do jovem - era até compreensível, pois o que resta ao cidadão de bem, desarmado, é defender-se. Ainda de acordo com a jornalista, o contra-ataque aos bandidos é a "legítima defesa coletiva de uma sociedade sem Estado contra um estado de violência sem limites"1.

A repercussão desse acontecimento reativou discussões sobre a violência e a possibilidade de redução da idade penal no país. Escolhemo-lo para iniciar este artigo não porque ele dê origem a essa discussão, pois esta é recorrente e ganha mais força sempre que algum sujeito com idade inferior a 18 anos, é mencionado como autor ou suspeito de ato infracional em notícias que reverberam em âmbito nacional. A escolha desse episódio como ponto de partida é por ele possibilitar pensar que as propostas de redução da idade penal tornam-se possíveis a partir de certa racionalidade que se constitui no campo social e perpassa práticas cotidianas das nossas cidades.

Ao dizermos que há um solo de propostas concretas para a redução da idade penal, não estamos afirmando que efetivá-las legalmente não teria, então, efeitos sociais significativos, mas que, apesar de ainda não terem sido aprovadas como emendas à Constituição, ancoram-se em práticas cotidianas, a partir da racionalidade punitiva presente nas relações construídas em nossa sociedade.

Foucault (1975/2010), em seu estudo genealógico sobre a economia de poder punitivo que possibilitou o surgimento das prisões na penalidade moderna, analisou o modo como os suplícios eram, até o século XVIII, a forma privilegiada de punir criminosos e delinquentes. De acordo com o autor, esses suplícios eram eventos públicos que manifestavam não somente uma sanção, mas o poder de um soberano que não poderia ser ultrajado em suas leis.

A notícia com a qual iniciamos nossa discussão aqui torna possível pensarmos que os mecanismos de suplício discutidos por Foucault (1975/2010) metamorfoseiam-se em práticas contemporâneas e cotidianas dos centros urbanos, não mais em nome do poder e da glória de um soberano, mas sim em nome de todos os "cidadãos de bem", ávidos por justiça e segurança. Afinal, o que possibilita que se amarre um jovem espancado e nu a um poste, a céu aberto, numa capital do país, senão a vontade de punir de modo tão rigoroso e eficaz, a ponto de marcar subjetividades, fazendo com que qualquer um que tome contato com a cena que ali aconteceu seja também afetado?

O objetivo deste artigo é discutir a racionalidade punitiva que perpassa os discursos das propostas de redução da idade penal apresentadas pela Câmara dos Deputados brasileira. Analisamos como essas propostas vão associando a violência e o "clamor das ruas" à proposição da diminuição da idade penal como medida de contenção da violência, passando, posteriormente, a demarcar mais fortemente a sensação de impunidade diante de atos infracionais praticados por jovens como algo a ser combatido.

 

Método

As teorizações de Michel Foucault nortearam a construção do nosso problema de pesquisa, bem como a produção e a análise dos dados. Adotamos a arqueogenealogia foucaultiana como método de pesquisa que possibilita problematizarmos o presente, considerando que analisar o presente é também desestabilizá-lo, evidenciar as contingências e os percursos sinuosos pelos quais nos tornamos o que somos. Compreendemos a arqueogenealogia como um entrelaçamento da arqueologia com a genealogia, por considerarmos a indissociabilidade desses métodos nas interrogações feitas aos materiais de análise e na condução da pesquisa.

A arqueologia proposta por Michel Foucault se ocupa da episteme dos saberes, isto é, volta-se à análise de suas condições históricas de possibilidade. Preocupa-se, portanto, em analisar as camadas discursivas e as relações colocadas em funcionamento por determinados enunciados. Foucault propõe uma análise do discurso que considera as correlações entre enunciados, mais do que uma mera descrição de suas regras, e as condições pelas quais alguns enunciados tornaram-se possíveis em lugar de outros (Castro, 2009), isto é, a rarefação do discurso.

A genealogia, por sua vez, pode ser entendida como uma ampliação dos domínios de investigação de Foucault, no sentido de passar a questionar os efeitos de poder na constituição de práticas e saberes que adquirem status de verdade. Trata-se de um método de investigação que articula a análise das emergências e proveniências históricas. A noção de emergência opõe-se à de origem, porque trata o ponto de surgimento dos acontecimentos como condições múltiplas de possibilidade, e não como uma causa primeira ou uma origem linear. Já a proveniência opõe-se à noção de semelhança ao buscar as marcas singulares e as descontinuidades presentes nas relações históricas, em vez de uma identidade ou suposta coerência (Foucault, 1979).

Ao caracterizarmos nossa pesquisa como arqueogenealógica, interrogamos os documentos analisados com as seguintes questões: que racionalidade os perpassa? O que os discursos produzidos aí apontam sobre a nossa experiência do presente?

Materiais de Análise

Tomamos como materiais de análise as Propostas de Emenda à Constituição (PECs) apresentadas pelos deputados brasileiros no Congresso Nacional, no período de 1993 a 2013. Uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) é, como o próprio nome sugere, uma emenda que altera a Constituição Federal. De acordo com Santana (1993), as emendas à Constituição possuem um alcance mais restrito do que as revisões, apresentando modificações parciais, pontuais ou fragmentárias. Um detalhe significativo é que as emendas não se inserem no texto constitucional, mas registram-se ao lado ou abaixo da redação original.

Na Câmara dos Deputados, uma PEC passa primeiramente pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC). Se houver admissibilidade, ela é enviada à Comissão Especial para análise de conteúdo. Caso haja admissibilidade, nomeia-se um relator e envia-se a proposta para votação no Plenário da Câmara. A estrutura de uma PEC geralmente é composta de: número da PEC, identificação do artigo original a ser alterado, redação da emenda proposta para o artigo, texto de justificação que fundamenta a alteração proposta, nomes e assinaturas dos proponentes e, por fim, assinaturas dos legisladores favoráveis à proposição. A análise empreendida para este trabalho voltou-se aos textos de justificação das PECs.

Em 1993, foi apresentada a PEC 171/1993, à qual as propostas posteriores que versam sobre a alteração do artigo 228 da Constituição Federal estão apensadas, isto é, tramitam em conjunto com ela. Apesar de a primeira PEC que propõe diminuição da idade penal ser a PEC 14/1989, de autoria do então deputado Telmo Kirst (PDS-RS), ela foi arquivada. Desde 1993 até o período de nossa última busca, em 2013, 37 PECs propunham alteração da idade penal somente na Câmara de Deputados, além das propostas apresentadas pelo Senado federal. Nesta pesquisa, escolhemos utilizar somente os documentos produzidos na Câmara.

Acessamos textos completos de todas as propostas, através do site da Câmara dos Deputados, alguns contidos nos Diários da Câmara dos Deputados e outros de modo avulso. Das 37 propostas, 7 delas não estavam disponibilizadas on-line. Entramos em contato com o serviço Fale Conosco, através do próprio site, e, após o recebimento via e-mail das demais propostas, chegamos ao total de 37 PECs. A leitura completa desses materiais nos levou, entre outras questões, à análise da racionalidade punitiva que perpassa a produção das PECs, foco deste artigo.

Apresentamos esta análise estruturada em três partes: inicialmente, discutimos o conceito de biopolítica, articulado ao desenvolvimento de uma razão de Estado que o legitima como garantidor de interesses dos "cidadãos de bem" e responsável pela segurança da sociedade; posteriormente, analisamos o modo como as PECs explicitam uma exacerbação da racionalidade punitiva; e, por fim, abordamos o aumento da demanda por segurança pública, que passa a inscrever práticas de racismo de Estado.

 

Resultados e Discussão

Biopolítica e Produção de Mecanismos de Segurança

Nas sociedades de soberania, o soberano exercia poder sobre um território onde governava tudo o que nele contivesse, incluindo os súditos. O poder era tido como um direito do soberano de apreensão das coisas, dos corpos e das vidas, marcado como possibilidade de deixar viver e/ou causar a morte (Foucault, 1976/2001). Entretanto, ao longo dos séculos XVII e XVIII, há uma mudança importante: o poder político passa a assumir a tarefa de gerir a vida, de se exercer positivamente sobre a vida, visando à sujeição dos corpos e à gestão das populações.

No curso intitulado "Segurança, Território, População", Foucault (1977-1978/2008) desenvolve uma análise genealógica sobre as artes de governar que emergem nos séculos XVI e XVII a partir do surgimento de uma literatura anti-Maquiavel. Essa análise mostra como a população se torna um problema de governo e o Estado passa a ser pensado como um conjunto de forças que podem ser maximizadas ou enfraquecidas de acordo com a formulação de certas políticas de governo sobre a população. Esboça-se, assim, uma racionalidade própria da maneira pela qual o Estado governa, a fim de atingir o fortalecimento e a ampliação de suas forças, que o autor denomina de razão de Estado. Trata-se, nessa razão de Estado, de "identificar o que é necessário e suficiente para que o Estado exista e se mantenha em sua integridade" (Foucault, 1977-1978/2008, p. 344). Seus princípios, portanto, são a legitimação, a conservação e a manutenção do próprio Estado, tomando a população como alvo de governo e também como efeito de certas estratégias de poder.

É nesse contexto que se pode falar em uma governamentalidade, ou seja, o desenvolvimento de uma arte de governar que tem a razão de Estado como gabarito de inteligibilidade e a população como instrumento e, ao mesmo tempo, finalidade. Foucault (1977-1978/2008, p. 143) passa a atentar, então, para a "produção de mecanismos de segurança que se constituem como instrumento técnico essencial de intervenção do Estado".

Os mecanismos/dispositivos de segurança não excluem os mecanismos disciplinares de controle na medida em que há um acoplamento de tecnologias de poder disciplinares - caracterizadas pela produção de técnicas de controle, vigilância e normalização dos indivíduos - e tecnologias de regulação dos fenômenos próprios da espécie humana, tais como taxas de natalidade e mortalidade, epidemias, índices demográficos, dentre outros. Além disso, os mecanismos de exercício do poder são correlatos à formação de certos saberes.

Cabe ressaltar aqui que o termo "racionalidade" refere-se aos modos estratégicos de refletir, fazer e agir humanos que inscrevem certas práticas e à forma como essas práticas são pensadas a partir de determinados cálculos de governo e de certos objetivos (Foucault, 1978-1979/2008). Nesse sentido, não se deve conceber racionalidade como sinônimo de razão, consciência e objetividade nos moldes do racionalismo cartesiano, nem, consequentemente, como termo oposto à irracionalidade, mas sim como determinadas formas calculadas e refletidas a partir das quais os sujeitos exercem ações uns sobre os outros, bem como sobre si mesmos, diante de certas condições históricas e políticas.

Passaremos, a seguir, a analisar a articulação entre a violência e a produção de mecanismos de segurança nos materiais de análise, nos quais a diminuição da idade penal emerge ora como uma questão de redução da violência, ora como reação à impunidade.

Atendendo ao Clamor das Ruas em Defesa da Sociedade

Os documentos produzidos pelo legislativo federal, analisados na pesquisa, apontam indicadores de certa vontade punitiva, que produzimos e nos produz como sujeitos, fazendo com que, em determinados contextos, os cidadãos cheguem ao extremo de "fazer justiça com as próprias mãos", como na situação relatada no início deste artigo, que é apenas um dentre tantos casos recentes de linchamento no Brasil. Esses casos remetem à expansão de uma "subjetividade policial em cada cidadão" (Augusto, 2013, p. 108) ou, nas palavras de Scheinvar (2012, p. 48), uma "subjetividade penal" que enquadra as relações em termos de segurança e crê na punição como enfrentamento dos males. O anseio por segurança e justiça tem como efeito a criação de mecanismos de vingança e violência pela própria população.

Compreendemos que esses mesmos mecanismos se articulam com a racionalidade punitiva que perpassa as PECs analisadas, por se constituírem como expressões de um sentimento coletivo de que o Estado não pune suficientemente, o que os materiais de análise apontam como sentimento de insegurança e revolta da população diante da violência. Evidenciam ainda que há um descrédito em relação à execução das leis existentes. Paradoxalmente, mesmo com esse descrédito, a população demanda cada vez mais leis, mais rigor e severidade na legislação penal.

A seguir, detalhamos o modo como essa racionalidade punitiva aparece nos materiais de análise e as questões que a ela se articulam.

A Tabela 1 possibilita um panorama geral das PECs em relação ao que estamos denominando de racionalidade punitiva. A diminuição da idade penal como medida necessária para a redução da criminalidade começa a aparecer como uma questão a partir da PEC 531/1997. Até então, nas propostas anteriores, não se apontava explicitamente a redução da idade penal como uma estratégia de combate ao aumento da violência no país. A justificação das propostas sustentava-se, predominantemente, em torno do conhecimento de que os jovens supostamente passam a ter com o acesso às tecnologias de comunicação, que lhes proporcionaria um amadurecimento tido como precoce. Na PEC 531/1997, afirma-se pela primeira vez que a alteração da idade penal contribuirá para reduzir a criminalidade no país. Entretanto, ao mesmo tempo em que essa questão ganha força a partir de um determinado momento, algumas rupturas vão sendo traçadas quando surge outra problemática nas PECs: a impunidade como fator que ameaça a segurança da população.

O modo como se coloca em discussão a necessidade de recrudescimento das punições para os jovens que cometeram algum ato infracional surge, inicialmente, atrelado à questão da maturidade, como evidencia a PEC 633/1999 ao afirmar que "frequentemente são maduros, o que poderia ser facilmente comprovado por psicólogos e outras formas disponíveis à Justiça mas não podem, mesmo quando perniciosos receber a punição devida por força da letra constitucional de agora" (Brasil, PEC 633/1999, p. 4760, grifo nosso). Dessa maneira, aponta-se que a Constituição Federal de 1988 impossibilita a aplicação da punição adequada, o que se afirma também nas propostas posteriores, das quais destacamos alguns trechos:

Todos os dias os veículos de comunicação trazem estampadas em suas páginas policiais notícias de crimes perpetrados por menores de 16 a 18 anos. E isto por quê? Porque são cientes de sua impunidade, em face de uma legislação penal protecionista e paternal. (Brasil, PEC 68/1999, p. 2, grifo nosso)

Esses indivíduos, cientes de sua inimputabilidade penal, cometem toda a sorte de atrocidades contra a população assustada e indefesa. (Brasil, PEC 133/1999, p. 2)

Temos de mudar, portanto, a Constituição, a fim de que ela reflita o sentimento de nossa coletividade, que já não aguenta mais ver a impunidade [...]. (Brasil, PEC 150/1999, p. 2)

Reivindicam-se, assim, mudanças constitucionais, a fim de que não se permita a impunidade que possibilitaria aos jovens continuarem agindo livremente contra uma população indefesa. Ao fazerem isso, tais alterações colocam em questão tanto a Constituição como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

A PEC 321/2001 aponta que não se pode conviver com a impunidade porque, além de desagregar famílias, deteriora o próprio Estado, criando a "visão de um Estado impotente e que não consegue realizar justiça" (Brasil, PEC 321/2001, p. 412). Essa proposta traz o problema da segurança como aquele que mais atormenta as famílias brasileiras e, consequentemente, demanda maior intervenção do Estado, pois se este não age com a justiça esperada "não terá o mesmo respeito de seus cidadãos, que, por sua vez, deixarão de buscar a intervenção estatal para resolução de seus conflitos, procurando agir de acordo com a sua consciência de certo ou errado, bem ou mal" (Brasil, PEC 321/2001, p. 412).

Na PEC 321/2001, vai-se delineando a ideia de que o Estado precisa intervir com força quando entra em cena a problemática da segurança dos cidadãos e possibilita pensar que a severidade das punições é demandada porque, ao atingir o conjunto da população brasileira, atinge também um Estado que precisa garantir a si mesmo como protetor da nação e garantidor do bem-estar de seus cidadãos. Por ameaçar o Estado como "guardião do pacto social" (Brasil, PEC 321/2001, p. 412), ou seja, por atingir diretamente a soberania de um Estado que se propõe a governar a população tendo como finalidade a felicidade e o bem-estar dos cidadãos, a insegurança social torna-se uma problemática para a qual urge responder com medidas punitivas mais duras e eficazes.

Ao atentarmos para a sequência de excertos da Tabela 1, nota-se que há deslocamentos da justificativa de diminuição dos índices de violência para um combate à impunidade. A PEC 179/2003 introduz rupturas no que vinha sendo utilizado até então como justificativa para a alteração no artigo 228 do Código Penal: não se trata de redução da violência, diminuir a idade penal não garante isso. A questão é que a impunidade diante da "delinquência" acaba por ser um incentivo a ela. Passa-se a considerar que a redução da idade penal deve ser efetuada não porque ela seja uma medida eficaz para a diminuição da criminalidade no país, mas sim porque a impunidade permitida pela legislação atual, de acordo com os materiais de análise, é inaceitável. Dito de outro modo, ainda que não seja garantia de redução da violência urbana, precisa-se punir mais, e esse "a mais" de punição é necessário para que a população sinta-se segura nos ambientes de circulação pública e nos espaços privados.

A PEC 377/2001 afirma que a sensação de impunidade que acomete adolescentes e adultos provoca o aumento da criminalidade, uma vez que leva os jovens a pensarem

que as medidas chamadas sócio-educativas contidas no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n° 8.069, de 13 de julho de 1990) entre as quais a internação, que corresponde à privação de liberdade - não molestarão e em breve ver-se-ão livres de qualquer punição. [...] Quem sofre as consequências desse errôneo modo de pensar é a população que não encontra mais paz quando sai às ruas. (Brasil, PEC 377/2001, p. 30871)

Apesar de o texto da própria PEC explicitar que a medida de internação proposta pelo ECA corresponde à privação de liberdade, não se considera, entretanto, tal medida como uma forma de punição suficiente para os autores de atos infracionais. Em vez disso, as medidas previstas pelo Estatuto são tomadas, em grande parte das PECs, como formas de apaziguamento da responsabilidade desses sujeitos diante da sua conduta. Portanto, a punição precisa ser diferente daquilo que é proposto pelo ECA e, assim, exige-se que ela seja capaz de contribuir para "devolver à sociedade a segurança que vem perdendo a cada dia" (Brasil, PEC 377/2001, p. 30872).

Seguindo com a discussão dos materiais de pesquisa, damos destaque à PEC 64/2003, cuja justificação centra-se no envolvimento de "menores" com o narcotráfico e o crime organizado. Por um lado, aponta que o menor de idade é o elo mais fraco na corrente da violência, porém, passível de reabilitação social. Por outro lado, afirma que a sociedade clama por punições mais severas para esses menores, que são absolutamente capazes de incrementar a violência. Diz-se, então, que reduzir a idade penal contribui para a redução da violência no país. Em contrapartida ao que vem sendo defendido nas propostas que mencionamos anteriormente a essa, trata-se de um retorno ao argumento de que a diminuição nos índices de violência seria uma consequência da alteração do Código Penal.

Torna-se explícito que há um jogo de oscilações na produção de verdades nessas propostas. Esse jogo de oscilações permanece também nas propostas formuladas entre 2003 e 2013, como mostramos a seguir.

Não é que a redução da imputabilidade penal vá resolver a questão da criminalidade no país: o problema é que a impunidade é um seríssimo incentivador da sua prática. Vivemos hoje no Brasil uma situação perversa e iníqua: mantemos a população honesta, que trabalha, que produz e que não comete crimes atrás das grades de suas casas, cada dia mais aterrorizada com a criminalidade crescente, enquanto permitimos que os criminosos se escondam atrás de toda sorte de direitos. (Brasil, PEC 179/2003, p. 3, grifo nosso)

Presenciamos diariamente, indignados, inúmeros jovens delinquentes que demonstram ter total consciência das consequências do ato que praticaram, mas que sabem ser suave à punição que lhes aguarda. (Brasil, PEC 242/2004, p. 2, grifo nosso)

É certo, no entanto, que o rebaixamento da idade-limite, embora não tenha o condão de reduzir a incidência da criminalidade, garante o estreitamento do universo de cooptáveis na prática delituosa (Brasil, PEC 87/2007, não paginado)

De modo semelhante, a PEC 273/2013 também reitera a sensação de impunidade e de insuficiência das punições aplicadas aos menores de 18 anos e aponta a necessidade de endurecimento das punições a adolescentes. A partir de trechos da fala de um promotor da Vara da Infância e Juventude do Estado de São Paulo, os proponentes vão argumentando que o ECA, com a aplicação de medidas socioeducativas, leva a uma situação de verdadeira impunidade, pois o tempo de internação dos adolescentes nos estabelecimentos socioeducativos pode ser curto, estabelecendo uma punição tão "pequena e inócua" que não se pode considerar como uma "verdadeira" punição.

Podemos afirmar, pelo que discutimos até aqui, que a questão de por que reduzir a idade penal - se seria como medida para diminuir a violência no país ou simplesmente devido à impunidade que provoca um estado de insegurança social - é repleta de descontinuidades. Não há uma espécie de linha de evolução ou uma linearidade a partir da qual os argumentos tornam-se homogêneos, mas bifurcações pelas quais ora se fala em reduzir a violência a partir da imputabilidade penal de jovens com idade inferior a dezoito anos, ora diz-se que isso não garantiria a redução da violência, mas, ainda assim, seria necessário para atender ao clamor da população por punições mais duras para esses jovens.

Outra questão relevante é que, através da dicotomia "sociedade versus jovens autores de atos infracionais", estes são tomados como risco para a tranquilidade social. Fica claro que eles não são entendidos como sujeitos de direitos, para os quais a sociedade e o Estado devam garantir ações e políticas sociais. A sociedade - refém da ameaça e da violência ocasionadas por esses sujeitos - é que deve ser tida como alvo da proteção social. E por proteção social entende-se, a partir de tal proposta, garantir a intensidade da punição aplicada sobre os jovens.

Se, como nos mostra Reis (2012), mesmo ações concebidas como protetivas para adolescentes reconhecidos como sujeitos de direitos podem engendrar, contraditoriamente, práticas de vulnerabilização, os discursos das Propostas de Emenda Constitucional analisadas nesta pesquisa são ainda mais radicais, pois a maioria desses documentos sequer fala em garantir direitos para jovens autores de atos infracionais, visto que eles passam a ser objetivados como inimigos dos cidadãos honestos que produzem, trabalham e, no entanto, estão fadados ao medo e à insegurança social.

Das 37 PECs da Câmara dos Deputados, somente uma delas fala em direitos para tais jovens, ao afirmar que "o que se pretende com a redução da idade penalmente imputável para os menores de dezesseis anos é dar-lhes direitos e consequentemente responsabilidade, e não puni-los ou mandá-los para cadeia" (Brasil, PEC 171/1993, p. 23063). Fica evidente, desse modo, que "dar direitos" é, paradoxalmente, reduzir a idade para considerar os jovens acima de 16 anos como imputáveis diante do Código Penal. Destoando das propostas posteriores, apensadas a esta, apresenta-se a alteração da imputabilidade/inimputabilidade justamente como garantia de direitos, e não como forma de punição. Trata-se, dessa maneira, da radicalização de um Estado em que se suspendem certos direitos conquistados para a infância e juventude, a partir de inúmeras lutas coletivas, em nome da "proteção" e "tranquilidade" dos "cidadãos de bem".

Insegurança Social e Racismo de Estado

Os discursos produzidos em torno da redução da idade penal não podem ser tomados meramente como expressões de uma vontade dos legisladores proponentes de tais propostas. Adquirem força por se sustentarem em um modo de governo construído nas relações entre o Estado e a população, visto que passam a ser legitimados a partir de uma razão de Estado em que este se propõe garantidor da segurança pública e age em nome dos interesses da população.

Longe de naturalizarmos os jogos de poder que permeiam tais relações entre sociedade civil e Estado democrático, buscamos atentar para o fato de que o que permite ao Estado formular tais propostas é a ânsia punitiva disseminada em uma série de práticas no corpo social, que configura uma demanda crescente por parte da população pelo acirramento das punições contra aqueles que representam ameaças à manutenção da ordem social.

Que a problemática da segurança pública adquire cada vez mais centralidade nas discussões sociopolíticas não é novidade. Entretanto, interessa-nos dar visibilidade ao modo como essa problemática passa a ganhar força nos materiais de análise, articulando a produção de discursos sobre insegurança social e impunidade face ao aumento da violência juvenil. Até a década de 1990, apontava-se nos documentos analisados uma preocupação com o crescimento nos índices de violência do país, mas não se colocava a redução da idade penal explicitamente como uma questão de segurança pública. A PEC 321/2001 insere essa problemática na discussão, apontando o "problema da segurança" como um dos maiores a atormentar a vida das famílias brasileiras. Posteriormente, a PEC 399/2009 articula a problemática da segurança com a impunidade diante de atos praticados por jovens, afirmando que a grande mídia mostra, através dos jornais, o sentimento de insegurança e revolta diante da impunidade sobre os "menores infratores". Diante disso, a aprovação da redução da idade penal para 14 anos - nos casos de atos infracionais praticados com grave ameaça à integridade das pessoas - é tida como garantia de segurança pública e de redução da criminalidade, ao aumentar a repressão contra esses atos.

Estamos reféns, nossa sociedade está com os valores invertidos e precisando cada vez mais de proteção, carente de legislação rigorosa e amedrontada pela impunidade da juventude, que pratica seus ilícitos contra a pessoa sem freios. Some-se a isso o estado atual do país, em que permeia nossa realidade a fome, as drogas, a dificuldade de acesso às escolas e na ausência de um verdadeiro lar, nossos jovens traduzem-se em verdadeiras bombas relógio. Infelizmente, trata-se de verdadeiro risco para a tranquilidade social permitir que eles sejam protegidos por lei e não possam ser punidos criminalmente. (Brasil, PEC 399/2009, p. 3, grifo nosso)

Citando os homicídios do garoto João Hélio e do casal Liana Friedenbach e Felipe Caffé, amplamente divulgados nos meios de comunicação de massa, a PEC 228/2012 assinala que uma população insegura e revoltada cria um forte clamor por justiça e proteção social. Desse modo, o legislativo federal não pode se manter surdo "em relação às vozes que urgem das ruas" (Brasil, PEC 228/2012, não paginado), pois há uma "barbárie que intimida o cidadão de bem e incentiva os criminosos" (Brasil, PEC 228/2012, não paginado).

Vemos aí algumas questões importantes: primeiro, a insegurança gera um forte clamor por justiça e proteção; segundo, permitir que jovens "delinquentes" sejam protegidos por lei acarreta riscos para a tranquilidade social. Portanto, a ideia de proteção para a população vincula-se necessariamente à ideia de que os jovens, vistos como responsáveis pela situação de insegurança, devem ser alvo de punição. Para estes, o Estado não deve garantir direitos nem proteção, posto que eles constituem riscos para a tranquilidade e a segurança social. Daí decorre que a produção de encarceramentos e punições mais duras justifica-se como legítima, em nome da defesa da sociedade.

Mas como é possível que o mesmo Estado que se propõe garantidor de direitos exponha a vida desses jovens a ações repressivas e mortíferas? Se o poder torna-se cada vez menos o direito de fazer morrer e cada vez mais o direito de intervir para fazer viver, como se torna possível para o poder político matar, reclamar a morte e expor à morte não somente seus inimigos, mas seus próprios cidadãos? Essas questões ocuparam o pensamento de Foucault (1975-1976/1999), ao estudar a entrada da vida e da morte nos cálculos do poder. E a essas questões ele respondeu afirmando que, numa tecnologia de poder que toma como objeto a vida, o direito de matar e a função de assassínio legitimam-se a partir da produção de um racismo de Estado. Por racismo de Estado, Foucault (1975-1976/1999) entende o modo pelo qual o Estado introduz um corte entre os que devem viver e os que podem morrer, uma censura no interior de um domínio considerado biológico, isto é, uma divisão no interior da própria população. O racismo de Estado se exerce precisamente como uma relação biológica, na medida em que a morte do outro não é simplesmente o que garante minha segurança pessoal, mas também o que vai deixar a vida em geral mais sadia e mais pura (Foucault, 1975-1976/1999).

Ressalte-se ainda que, quando Foucault (1975-1976/1999) afirma a produção de morte pelo racismo de Estado, ele não está falando somente da morte física ou do assassinato direto, mas de tudo o que expõe à morte, multiplica para alguns o risco de morte ou produz a morte política, a expulsão e a rejeição. A lógica que perpassa as propostas de redução da idade penal é a lógica que opera cesuras entre "cidadãos" e "marginais": destinar para os jovens autores de atos infracionais a prisão, diferenciá-los daqueles para os quais é necessário garantir direitos, expor suas existências à morte em nome da fabricação da liberdade para os "cidadãos de bem".

Reishoffer e Bicalho (2009) apontam a produção da segurança/insegurança como um importante vetor de subjetivação na contemporaneidade, construída em um contexto histórico específico no Brasil. De acordo com os autores, com a redemocratização do Brasil, a mídia começa a enfatizar cada vez mais o aumento da violência urbana e a necessidade de recrudescimento das políticas de segurança. Nesse contexto, passa-se a associar o aumento da criminalidade com a adoção de práticas menos repressivas, sobretudo aquelas pautadas nas discussões sobre direitos humanos, a partir da difusão da ideia de que o respeito aos direitos de presos seria incompatível com a eficiência das políticas de segurança (Reishoffer & Bicalho, 2009; Silva, Leite, & Fridman, 2005).

De acordo com Costa e Lima (2014), essa visibilidade ao crescimento da violência urbana durante a década de 1990 foi um fator que viabilizou uma aliança de interesses sociais e corporativos, configurando um campo organizacional da segurança pública. Os autores assinalam que o termo "segurança pública" parece ter sido usado pela primeira vez na Constituição Federal de 1937. No entanto, é somente na Constituição de 1988 que se formula um capítulo específico sobre segurança pública, apesar de não estar definido o significado desse conceito. Desse modo, não há clareza na atual Constituição sobre o que é exatamente segurança pública, apenas se delineiam quais organizações pertencem a esse campo.

Ao analisarem como emergiu o problema da segurança pública no Rio de Janeiro, Silva, Leite e Fridman (2005) apontam que o campo da segurança pública constitui-se por um foco delimitado em torno do sentimento de insegurança populacional e do medo do crime violento, sobretudo nas metrópoles urbanas. Os autores argumentam que as políticas formuladas nesse campo restringem-se a intervenções repressivas. O tema da cidadania nesse debate ainda é pensado de modo reducionista e instrumental, visto apenas como forma de salvar moralmente as camadas populares, sobretudo a juventude, a fim de conter sua participação em atividades criminais. Nesse contexto, as políticas sociais passam a ser vistas meramente como formas de controle social, mantendo o foco na pobreza. Além disso, criticam o modo como a segurança pública vem sendo pensada a partir da polarização entre ações policiais repressivas e, do outro lado, denúncias do excesso de força das polícias.

A segurança pública constitui, sem dúvida, uma preocupação comum no cotidiano das cidades brasileiras. No entanto, cabe pensar se o recrudescimento penal por si só dá conta da produção da segurança. Isso porque os direitos sociais de jovens autores de atos infracionais são negligenciados nessas propostas, e o que se denomina de "dar direitos" a esses jovens, como apontamos anteriormente, é o próprio acirramento punitivo. O modelo repressivo que tem caracterizado as políticas de segurança na expansão do Estado penal em detrimento de um Estado social (Wacquant, 2011) serve à reprodução da violência mais do que à produção de uma "tranquilidade social" ou segurança.

Segundo Castel (2005), a relação entre proteção social e insegurança não é antagônica, pois proteção e insegurança não pertencem a dois registros contrários da nossa experiência subjetiva. Para esse autor, a insegurança, a partir das sociedades modernas, não denota falta de proteção, mas constitui-se como consequência de uma busca permanente por proteções. Ser protegido socialmente é cercar-se de sistemas de segurança que trazem, inevitavelmente, o risco de falhar. Assim, a própria busca por proteção é geradora de insegurança social. Castel (2005) evidencia, ainda, que os princípios da autonomia e da igualdade de direitos vão configurando, paulatinamente, uma individualização de questões sociais.

No contexto das relações de trabalho, por exemplo, o indivíduo passa a ser o empresário de si, que assume os imprevistos de seu percurso profissional e entra no jogo da livre concorrência com seus semelhantes. O liberalismo econômico, nesse sentido, leva ao extremo a produção de insegurança social e a demanda por proteção. A análise de Castel (2005) coloca a insegurança como uma dimensão da existência dos indivíduos nas sociedades democráticas, na medida em que a fabricação das liberdades tem como consequência a produção social de insegurança.

No contexto de insegurança social assinalado pelas propostas de redução da idade penal, ao ser tido como perigoso e delinquente, o sujeito jovem deixa de ser alvo de proteção. É à sociedade que o Estado passa a dirigir o discurso da defesa e da proteção. Além disso, ao pôr em risco a tranquilidade e a segurança social, os "menores", "delinquentes" e "criminosos" colocam em risco também o próprio Estado, na medida em que ele se sustenta como garantidor da ordem social e do bem-estar de seus cidadãos. É a partir dessa razão de Estado que os legisladores pontuam que "o próprio Estado é tão criminoso quanto qualquer criminoso, pois é o verdadeiro fabricante de condições para o crime progredir com a permissividade excessiva" (Brasil, PEC 399/2009, p. 4).

Cabe atentarmos também para o fato de que se produz aí uma economia punitiva, que não se baseia mais no princípio da "ortopedia social", conforme descrito por Foucault (1973/2003, p. 86). Isso porque a demanda por segurança torna a racionalidade punitiva suficientemente justificadora das propostas analisadas. Assim como não se atribuem direitos para esses jovens, não se sustenta a demanda por encarceramento a partir dos ideais de reeducação ou ressocialização. Somente as PECs 171/1993 e 64/2003 assinalam como objetivos da diminuição da idade penal uma possível reabilitação, correção e/ou resgate da juventude envolvida com atos infracionais. As demais se sustentam puramente na vontade punitiva contra tais jovens.

Através da associação historicamente construída no Brasil entre pobreza e criminalidade, as políticas criminais penalizam cada vez mais os pobres e acirram as funções repressivas e punitivas do Estado (Kilduff, 2010). A criminalização da juventude insere-se nesse processo de controle sobre a pobreza. Batista (2009) discute o modo como a juventude brasileira torna-se alvo das atenções criminológicas e destaca que no Brasil a população envolvida em conflitos, presa ou assassinada é basicamente a população pobre e negra, entre os 14 e 24 anos de idade.

Dessa maneira, a seletividade do sistema penal e as práticas punitivas incidem com mais força sobre jovens pobres e negros. Não por acaso, o Mapa da violência: homicídios e juventude no Brasil, 2014 (Waiselfisz, 2014) mostra que "por cada não jovem vítima de homicídio, morrem proporcionalmente, 3.1 jovens" (p. 54). Ainda de acordo com esse documento, de 2001 para 2011, as taxas de homicídios contra jovens brancos caíram 67,1%, enquanto as taxas de homicídios contra jovens negros, nesse mesmo período, aumentaram 54,6%. Além disso, "para cada jovem branco que morre assassinado, morrem 2,5 jovens negros" (Waiselfisz, 2014, p. 122) - estes últimos sendo os sujeitos entre 15 e 29 anos de idade incluídos nas categorias preta e parda, empregadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Não podemos ignorar, portanto, que pobreza e negritude são dois atravessadores importantes nessa discussão.

No jogo entre a "periculosidade" desses jovens e a demanda por segurança, cada vez mais crescente, o Estado precisa dar conta de "atender ao clamor das ruas", configurando a tríade "segurança-população-governo" (Foucault, 1977-1978/2008, p. 117). E, desse modo, a ânsia por segurança engendra práticas divisórias no jogo entre proteção e punição: proteção para uns, punição para outros.

 

Considerações Finais

Discutimos aqui a vontade punitiva nas justificações à alteração da idade penal no Brasil, a partir da análise das PECs apresentadas pela Câmara de Deputados. A questão de por que reduzir a idade penal evidencia algumas descontinuidades nesses documentos: ora se fala em reduzir a violência a partir da imputabilidade penal de jovens com idade inferior a dezoito anos, ora diz-se que isso não garantiria a redução da violência, mas, ainda assim, seria necessário para atender o clamor da população por punições mais duras para esses jovens. Os enunciados articulam, então, impunidade e sentimento de insegurança coletiva e, a partir disso, passa-se a defender que proteção para a população vincula-se necessariamente à ideia de que os jovens, vistos como responsáveis pela situação de insegurança, devem ser alvo de punição. Isso nos indicou o acirramento das práticas divisórias que se constituem a partir do racismo de Estado: proteção para os "cidadãos de bem" e punição para os jovens vistos como inimigos sociais, na medida em que representam ameaça e periculosidade.

Certamente, este estudo possui limites e não exaurimos a discussão sobre as propostas analisadas e sobre as questões que elas mobilizam no debate acerca da idade penal e da violência. Nosso interesse foram os regimes de veridição em que as PECs se sustentam, especialmente no que concerne à intensificação de uma racionalidade punitiva contra jovens autores de atos infracionais. A produção da segurança destaca-se aí como uma questão crucial do nosso presente, que requer a complexificação desse debate a respeito da redução da idade penal, colocando em questão a efetivação das políticas atuais e a racionalidade punitiva que nos atravessa diante do contexto de violência e insegurança. Nossa aposta, nesse sentido, é na elaboração de políticas que valorizem a potência da vida da juventude, e não a precarização dos direitos conquistados para a infância e a juventude nem a produção de mortes, que, como discutimos, imbrica-se e confunde-se com o discurso da proteção.

 

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Endereço para correspondência:
Aline Kelly da Silva
Universidade Federal de Alagoas, Instituto de Psicologia, Avenida Lourival Melo Mota, s/n, Tabuleiro dos Martins
Maceió, AL, CEP: 57.072-970
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Elza Maria do Socorro Dutra
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Caixa Postal 1524, Campus Universitário Lagoa Nova
Natal/RN, CEP: 59078-970
E-mail: simonehuning@yahoo.com.br

Recebido em: 07/03/2015
Revisado em: 05/05/2015
Aceito em: 29/06/2015

 

 

1 O vídeo no qual a jornalista profere tais afirmações está disponível no seguinte link: https://www.youtube.com/watch?v=-WKU7w6OsJo. Nosso último acesso a ele foi realizado em 16 de fevereiro de 2015.

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