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Revista Subjetividades

versão impressa ISSN 2359-0769versão On-line ISSN 2359-0777

Rev. Subj. vol.15 no.3 Fortaleza dez. 2015

 

RESENHA DE LIVROS

 

"Arquitetura da destruição" e a segregação cotidiana na cultura

 

"Architecture of doom" and the daily segregation in culture

 

"Arquitectura de la destrucción" y la segregación cotidiana en la cultura

 

"Architecture of destruction" et la ségrégation quotidienne dans la culture

 

 

Bruno Curcino HankeI; Humberto Moacir de OliveiraII

IPsicanalista. Psicólogo pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professor Assistente do curso de Psicologia da Faculdade Pitágoras de Betim/MG
IIProfessor da Faculdade Pitágoras de Ipatinga. Mestre em Psicologia pela UFMG. Coordenador do CEPP (Centro de Estudo e Pesquisa em Psicanálise do Vale do Aço)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A partir de breve resenha sobre o documentário Arquitetura da Destruição, pretende-se destacar uma discussão acerca da segregação cotidiana na sociedade atual. Parte-se da tese lacaniana de 2003 exposta na Proposição de 9 de Outubro de 1967 sobre o Psicanalista da Escola, que indica três pontos que deveriam ser preocupação dos psicanalistas: uma escola de formação em psicanálise hierarquizada, o Complexo de Édipo e os campos de concentração. Lacan destaca o engendramento dos últimos dois conceitos como a dinâmica que a sociedade incorporou ao cotidiano, como um paradigma da subjetividade contemporânea. O esvaziamento dos sujeitos, tal e qual acontece nos campos de concentração, é percebido também numa cultura que privilegia as relações pautadas pela lógica mercadológica. À parte, a diferença entre se tratar de um esvaziamento forçado (no regime nazista) ou não (sociedade de mercado), o fato é que a alienação ao Outro e ao próprio gozo aparecem como elementos centrais na manutenção da segregação social. Se o discurso hitlerista de harmonia e eugenia teve eco social, foi justamente no ponto em que se arregimentava um Outro poderoso o bastante para que seu desejo de domínio suplantasse a anulação dos que se submeteram a ele. Seguindo tal indicação, o artigo enfatiza ao seu final a relação contemporânea que se constrói entre cidadania e gozo.

Palavras-chave: psicanálise, campos de concentração, Lacan, gozo, cidadania.


ABSTRACT

From a brief summary of the documentary Architecture of Doom, this article intends to highlight a discussion about segregation in contemporary society. It starts with the Lacanian thesis of 2003 exposed in Proposition 9 October 1967 on the Psychoanalyst of the School, which indicates three points that should concern psychoanalysts: a hierarchical school for training in psychoanalysis, the Oedipus Complex and the concentration camps. Lacan emphasizes the engenderment of the last two concepts as the dynamic that society has incorporated to everyday life, as a paradigm of contemporary subjectivity. The subjects' emptying, as it happens in concentration camps, can also be perceived in a culture that emphasizes relationships guided by market logic. Apart from the difference between the case of a forced emptying (in the Nazis regime) or not (market society), the fact is that the alienation to the Other or to the own enjoyment appears as central elements in the maintenance of social segregation. If Hitler's discourse about harmony and eugenics had social resonance, it was precisely in the point at which it deployed an enough powerful Other that his desire for domain supplants the annihilation of those who have submit to him. Following this statement, the article emphasizes the contemporary relationship construct between citizenship and enjoyment.

Keywords: psychoanalysis, concentration camps, Lacan, enjoyment, citizenship.


RESUMEN

Partiendo de una breve reseña acerca del documental Arquitectura de la Destrucción, se pretende resaltar una discusión acerca de la segregación cotidiana en la sociedad actual. Se inicia de la tesis lacaniana de 2003, expuesta en la Proposición de 9 de octubre de 1967 acerca del Psicoanalista de la Escuela, la cual apunta para tres puntos que deberían preocupar a los psicoanalistas: una escuela de formación en psicoanálisis jerarquizada, el Complejo de Édipo y los campos de concentración. Lacan subraya el origen de los dos últimos conceptos como la dinámica que la sociedad incorporó al cotidiano, como un paradigma de la subjetividad contemporánea. El vaciado de los sujetos, como ocurre en los campos de concentración, es percibido también en una cultura donde se privilegia las relaciones basadas en la lógica mercadológica. Quitando la diferencia entre tratar un vaciado forzado (régimen nazi) o no (sociedad de mercado), el hecho es que la alienación al Otro y al gozo propio surge como elementos centrales en la manutención de la segregación social. Si el discurso hitlerista de harmonía y depuración racial tuvo resonancia social, fue justamente en el punto en que convocaba un Otro poderoso lo suficiente para que su deseo de dominio derrumbase la anulación de los que se sometieron a él. Siguiendo esta indicación, el artículo enfatiza al final la relación contemporánea que es construida entre ciudadanía y gozo.

Palabras clave: Psicoanálisis; Campos de concentración; Lacan; Gozo; Ciudadanía.


RÉSUMÉ

Une brève introduction de la Architecture of Doom documentaire est destiné à mettre en évidence une discussion au sujet de la ségrégation dans la société de tous les jours. Il commence avec la thèse lacanienne exposé dans Proposition 9 Octobre 1967 concernant le psychanalyste de l'École (2003), ce qui indique trois points qui devraient être la préoccupation des psychanalystes: une école de formation en psychanalyse hiérarchique, le complexe d'Œdipe et les champs concentration. Lacan met l'accent sur la sexuation du passé que la société dynamique qui intègre le quotidien comme un paradigme de la subjectivité contemporaine. La vidange du sujet, comme cela se passe dans les camps de concentration, il est également perçue dans une culture qui met l'accent sur les relations guidés par la logique du marché. En dehors de la différence entre le cas d'une évacuation forcée (les nazis) ou non (société de marché), le fait est que la vente à une autre joie de posséder et d'apparaître comme des éléments centraux dans le maintien de la ségrégation sociale. Si le discours Hitler harmonie et l'eugénisme ont eu une résonance sociale, c'est précisément le moment où enrôle une Autre assez puissant que son désir de supplanter l'annulation du domaine qui ont subi cela. Suite à cette déclaration, l'article met l'accent sur sa relation contemporaine finale qui construit entre la citoyenneté et la jouissance.

Mots-clés: la psychanalyse, des camps de concentration, Lacan, la jouissance, de la citoyenneté.


 

 

Embora Freud tivesse iniciado a prática e o corpo conceitual da psicanálise com uma proposta estritamente terapêutica, é sabido o quanto ele conseguiu avançar em sua construção teórica, transformando-a, também, em uma forma de criticar a cultura (Mezan, 1985; Hanke, 2008). Não apenas a Primeira Grande Guerra motivou sua escrita (Freud, 1915/1974a), mas a ascensão nazista no contexto europeu da Segunda Grande Guerra e a potência agressiva do humano (Freud, 1930/1974d), entre outros motes históricos ou antropológicos, justificam tal afirmação. Assim, cauteloso com a possibilidade de a psicanálise ir além dos aspectos inerentes aos tratamentos realizados em consultório, Freud afirmou que sua teoria seria uma metodologia de trabalho que apresentava algumas especificidades (dentre elas, levar em consideração os aspectos inconscientes e a dinâmica pulsional nas ações humanas) em comparação a outros saberes científicos, e não mais uma Weltanschauung (visão de mundo) (Freud, 1933/1974e).

Dessa forma, o contato com o documentário Arquitetura da Destruição (Cohen, 1992) suscitou formas de análise do momento que retrata: a germinação da proposta nazista de uma nova raça humana a partir de um ideal de beleza inspirado na Antiguidade Clássica grega e suas consequências. Com a película, fomos relançados ao debate sobre a violência e a segregação social não somente no que se refere ao grande número de judeus que morreram, mas à sua origem e ao que podemos sentir ainda hoje como resquício desse período.

O que nos intrigou e nos instigou a produzir o artigo aqui apresentado, portanto, foi a tentativa de articular algumas das informações que o documentário nos traz com a teoria psicanalítica, visando entender de que forma a experiência dos campos de concentração ainda se faz presente em nossas relações.

 

"Arquitetura da Destruição"

Peter Cohen, diretor do documentário Arquitetura da Destruição, era sueco e filho de um judeu alemão que fugiu de Berlim em 1938, tentando escapar da perseguição nazista. Para fazer o filme, que acabou se tornando uma obra-prima do cinema mundial, estudou o nazismo durante sete anos. O documentário se inicia a partir de uma tese: o sonho nazista era criar, por meio da purificação étnica, um mundo mais harmonioso. Esse sonho vinha da percepção de que o mundo estava à beira do abismo. Os nazistas, então, tomaram para si a responsabilidade por erradicar qualquer ameaça que ruísse a sociedade ocidental. Era o discurso: "purificada e preservada da decadência, uma nova Alemanha surgiria mais forte e muito mais bonita" (Cohen, 1992). Uma informação importante e inusitada vem após essa introdução: Adolf Hitler foi um pintor frustrado e sonhava em ser arquiteto. Os estandartes, os uniformes e toda a organização nos desfiles tinha uma conotação estética cuja mente criadora era de um homem que tentou vaga na Academia de Arte de Viena, e viu negado seu desejo de estudar formalmente o que ele já rascunhava em telas.

A meta de criar um mundo ideal, artístico e de uma organização ímpar, segundo nos mostra o filme, vem da influência que a obra do compositor Richard Wagner exerceu sobre Hitler. Em uma das famosas obras wagnerianas, chamada Rienzi, conta-se a história de um porta-voz do povo que se coloca contrário às ideias da aristocracia e tenta restabelecer os ideais da antiguidade em sua sociedade. Entretanto, esse personagem se vê numa emboscada: perseguido e sozinho, ele é ameaçado de apedrejamento pela multidão romana para quem ele havia conseguido liberdade e paz. Hitler se vê como um Rienzi, e traça um futuro para o seu povo. No ápice de sua admiração pelo compositor Wagner, o chanceler alemão deseja ultrapassá-lo na grandeza de suas obras. Explica-nos o filme (Cohen, 1992): "Era a encenação da ópera que fascinava Hitler. A ilusão, a realidade. Alçar voo."

A concepção operística wagneriana que dará o tom ao que o nazismo cultuará se baseia em três ideias observadas no trabalho político de Richard Wagner: o antissemitismo, o culto à herança nórdica e o mito da pureza do sangue. Assim, os desfiles de porte cinematográfico eram a vivência de um Estado cuja política era atravessada pela arte e pela ordem a todo o momento, tentando fazer de todo instante um ritual de grande importância. E, a propaganda nazista era a maneira que esse pintor frustrado encontrou para glorificar seu ímpeto artístico. Para Hitler, arte pura era somente aquela semelhante à arte clássica que mostrava corpos esbeltos, em sua postura correta e olhar sereno. A propaganda nazista, portanto, creditava à arte expressionista da época a corrupção e a degeneração do povo alemão. Não à toa, a arte mais corruptora, segundo essa lógica, era a da cultura judaica.

A sedução exercida pelo discurso hitlerista de uma nova Alemanha, coroado pelos desfiles de datas comemorativas numa celebração à arte, atrai milhares de jovens alemães e dará início ao processo de segregação e de extermínio àqueles que não representavam a raça ariana, sadia e consciente de sua importância para a eternidade da Alemanha. O mito do Corpo do Povo toma proporções astronômicas em números de adeptos. A medicina era marcadamente presente nessa "engenharia social" implementada no regime nazista. Durante o período de ascensão hitlerista, essa foi a classe de profissionais que mais cresceu. Quem era médico e seguisse corretamente a ideologia do Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães (o partido nazista) tinha seu lugar garantido no regime e com possibilidade de alcançar cargos altos na hierarquia (claro, desde que não fosse um médico judeu). O crescimento da medicina, e houve uma medicina específica criada para a manutenção da saúde do Corpo do Povo, fez com que o médico tivesse lugar especial e se tornasse líder da política racial que foi sendo implementada.

Dessa forma, a "boa" arte e a medicina racial - que parecia ter objetivos próximos aos da eugenia, ou seja, o de buscar uma seleção racial dentro de certo grupo social -se aliam e constituem os meios essenciais de realizar a purificação desejada por Hitler. Não havia possibilidade de convivência entre as artes clássica e renascentista com a arte moderna, entre os cidadãos sadios e aqueles que demandavam cuidados, principalmente na área da saúde mental. A degeneração e a corrupção, seja da consciência seja do ideal de saúde, eram tratadas pelos alemães nazistas como decadência do homem.

 

O Enigma do Mal

Diante do cenário exposto, é inquestionável o valor existente nas tentativas das abordagens psicológicas e médicas em encontrar uma razão após a Segunda Guerra Mundial para a ocorrência dos crimes nazistas. No entanto, essas abordagens apelam para um diagnóstico que vai de psicopatia e desvio sexual à toxicomania e neurose (Roudinesco, 2008, p. 135). Será que essa situação é de ordem diagnóstica? Será que a maldade humana, o segregacionismo, o extermínio e outras facetas do mal se restringem a um grupo específico enquadrado numa determinada nosologia? Ou os excessos do nazismo, em variadas proporções, não habitam o cotidiano social?

O que mais impressionou a muitos dos que acompanharam os julgamentos dos principais responsáveis pelo genocídio judeu foi a total ausência de maldade nos semblantes dos julgados (Arendt, 1999). Não era possível considerá-los simplesmente por um desvio de comportamento, já que eles estavam sendo julgados justamente pelo não-desvio: o julgamento aconteceu pela execução da ordem de seus comandantes, que eles cumpriram. Inclusive, essa foi uma justificativa que marcou os julgamentos e levou Hannah Arendt a formular a expressão banalização do mal (Arendt, 1999).

Se assim é, poderíamos entender a identificação do povo alemão com o discurso nazista por intermédio de seu principal representante: Adolf Hitler. Tal associação pode ser devidamente amparada por Freud (1921/1974c), em seu livro Psicologia de Grupo e Análise do Eu. Nessa obra, o conceito de identificação aparece como algo ligado à expressão primária de um afeto a outra pessoa. Ora, sabemos que o afeto não se dirige apenas a pessoas, mas também a ideais fomentados por determinados grupos - tal como aconteceu no regime nazista. Isso nos fornece uma resposta, dentre as possíveis, quanto à montagem numérica do exército hitlerista, explicitada no mesmo livro freudiano: no grupo, os indivíduos têm atitudes que não teriam sozinhos, ou seja, escondem-se na homogeneização que o grupo comporta - ao insuportável da diferença do outro, no que diz respeito ao semelhante e à relação especular com ele (lembremos que, escrito com "O" maiúsculo, pode se referir à linguagem, à família, à sociedade, ao inconsciente) responde-se agressivamente a partir de um narcisismo das pequenas diferenças.

Sobre o mal que esse grupo em específico realiza, tomemos o conceito de pulsão de morte, cunhado por Freud (1920/1974b) desde o livro Além do Princípio de Prazer como relacionado à compulsão à repetição e ao escoamento da tensão do aparelho psíquico, o que aponta para uma tendência à morte, não fosse a barreira da autopreservação, e utilizado em O Mal-estar na Cultura em seu caráter agressivo, referente a uma pulsão que projeta a agressividade para o mundo externo. Afirma Freud:

Recordo minha própria atitude defensiva quando a ideia de um instinto (uma pulsão) de destruição surgiu pela primeira vez na literatura psicanalítica, e quanto tempo levou até que eu me tornasse receptivo a ela. Que outros tenham demonstrado, e ainda demonstrem, a mesma atitude de rejeição, surpreende-me menos, pois 'as criancinhas não gostam' quando se fala na inata inclinação humana para a 'ruindade', a agressividade e a destrutividade, e também para a crueldade. (Freud, 1930/1974d, p. 142)

Nesse ponto, aproximamo-nos do objetivo a ser trabalhado aqui. É importante destacar que os judeus não foram perseguidos apenas pelo ideal nazista, mas circulava por toda a Europa dos séculos XIX e XX um clima de antissemitismo. O que veio a acontecer com o povo judeu no regime nazista também não aconteceu só na Alemanha hitlerista, pois há notícias de campos de concentração que receberam essa população também na União Soviética (Ribeiro, 2009, p. 10). E quanto a esses campos, eles também não são casos isolados nessas duas regiões europeias. Embora não específicos para o extermínio de judeus, os campos de concentração no Camboja durante o governo de Pol Pot, nos anos 70, seguiram a mesma linha de uma "engenharia social" da homogeneização forçada, da eugenia e do higienismo (Ribeiro, 2009).

Poderíamos creditar toda a maldade apresentada na metade do século XX unicamente ao regime hitlerista? Creditaríamos, então, à existência dos campos de concentração, que acabaram se tornando celeiro para a execução da "Solução Final"? Será que campos de tortura não se encontravam (ou se encontram) espalhados por muitas regiões no mundo?

Roudinesco (2008, p.13), em A Parte Obscura de Nós Mesmos: Uma História dos Perversos, nos ajuda aqui e provoca: "Que faríamos se não pudéssemos apontar como bodes expiatórios - isto é, perversos - aqueles que aceitam traduzir em estranhas atitudes as tendências inconfessáveis que nos habitam e que recalcamos?" Remetendo-se, assim, aos que fizeram funcionar as câmaras de gás nos campos de concentração, a autora continua afirmando que os perversos "exibem o que não cessamos de dissimular: nossa própria negatividade, a parte obscura de nós mesmos." Em outros termos, os adeptos das máximas "ordem e organização" maquiam-se como moralistas e disfarçam seu ímpeto de destruição. Nos três exemplos (Alemanha hitlerista, União Soviética e Camboja), o que se revela na história é que trataram homens como objetos a serem exterminados. Hitler, ainda que seu discurso não tivesse consistência a ponto de construir um projeto político, exerceu grande poder sobre as massas e a Alemanha na obstinada execução de uma eugenia antissemita. Se não havia projeto político, a ciência aparecia como instrumento do gozo do mal, reduzindo homens, mulheres e crianças a objetos contáveis. Se tomamos o campo de concentração como ponto de partida para entendermos essa reificação dos homens, tocaremos no nosso momento atual, de supostas liberdade e aceitação e também de grande participação da ciência como instrumento de gozo.

 

A Proposição de Lacan e os Campos de Concentração

Ainda que, por meio de inúmeros artigos, revistas e filmes trazidos ao grande público, o tema dos campos de concentração já tenha sido muito discutido, ao ponto de termos a impressão que conhecemos bem seu funcionamento, Primo Levi (1988) afirmou que se trata de uma experiência difícil de ser narrada e compreendida. No entanto, Lacan (2003), no texto intitulado Proposição de 9 de Outubro de 1967 sobre o Psicanalista da Escola, chama a atenção para três pontos no que concerne ao que deveria ser preocupação dos psicanalistas: uma escola de formação em psicanálise hierarquizada, o Complexo de Édipo e os campos de concentração. Aqui, vemos uma proposta lacaniana para o funcionamento de uma Escola de Psicanálise diferente da forma instituída pela IPA (International Psychoanalytical Association). A Proposição é formulada após o desligamento de Lacan dessa instituição. É nesse momento que ele aponta esses três problemas essenciais para o avanço da teoria e da práxis analíticas. No que se refere à psicanálise hierarquizada, Lacan faz uma crítica incisiva à maneira pela qual a IPA propunha a relação entre os psicanalistas em uma instituição, já que ele entendia que os psicanalistas não poderiam se relacionar por meio de hierarquias, mas pela igualdade de posição diante da causa freudiana. Quanto ao Complexo de Édipo, entendemos que se trata de alçar tal conceito à possibilidade de compreendermos a assunção do desejo a partir da relação parental.

Quanto aos dois primeiros pontos, entendemos como cruciais ao trabalho analítico, seja na reunião de psicanalistas numa instituição, seja como conceito essencial no edifício teórico da psicanálise. Mas, se nosso interesse aqui é dirigido aos campos de concentração, de que maneira eles teriam relevância na prática analítica? Por causa do mal inerente ao genocídio?

É fundamental entender que o campo de concentração causa um efeito drástico que vai além da ruptura dos laços familiares (dos quais muitos não tiveram notícias se estavam vivos ou mortos), da retirada dos trajes, do afastamento de seus lares: há um esvaziamento da subjetividade, deixando os que foram submetidos às atividades forçadas no campo relegados a uma exclusão que vai se mostrando cada vez mais degradante. "São agora (com a entrada no campo de concentração) apenas corpos, contaminados e propensos a contagiar, que necessitam ser devidamente isolados" (Ribeiro, 2009, p. 20).

Aprofundando esse ponto, observamos que a indicação lacaniana vai para além de apontamento datado. A extrema atualidade dele está em outro importante aspecto a se ressaltar: com o fim do nazismo, e a vitória da democracia liberal sobre o comunismo, vai-se construindo uma nova forma de biopoder, nova forma de controle dos corpos, nova forma de fascismo nas micropolíticas das relações (Roudinesco, 2008, p. 164). Essas "novas formas" se basearam na rotina dos campos, que, perpassada pela experiência científica, tem o genocídio como resultado da ciência de extermínio de vermes e ratos, e, pela economia, tinha na produtividade assertiva o objetivo de conseguir atingir o maior número de "material humano" possível, fazendo com que os mercados se tornassem um local privilegiado para o exercício da segregação. Citamos Lacan:

Abreviemos dizendo que o que vimos emergir deles (dos campos de concentração), para nosso horror, representou a reação de precursores em relação ao que se irá desenvolvendo como consequência do remanejamento dos grupos sociais pela ciência, e, nominalmente, da universalização que ela ali introduz. Nosso futuro de mercados comuns encontrará seu equilíbrio numa ampliação cada vez mais dura dos processos de segregação. (Lacan, 2003, p. 263)

Volvendo o olhar do psicanalista para os campos de concentração, Lacan alerta seu público para a possibilidade de novas formas de segregação e novos modelos de campos de concentração, destacando, no mesmo texto, o lugar que a ciência ocupa no mundo atual e nessas engrenagens de poder. A experiência do nazismo revela o quanto a ciência, desacompanhada de uma séria reflexão ética, nos conduz a caminhos de violência e segregação, atrocidades sociais e apagamento da dimensão humana do homem. A violência do nazismo, exercida com a orientação da medicina eugênica, é um exemplo claro dessa violência, mas também o são, a nosso ver, o uso de armas de destruição em massa em Hiroshima e Nagasaki, a política de combate ao Crack que prioriza o internamento compulsório, o abuso de medicamentos em tratamentos e alívios de sofrimentos psíquicos e o sistema arbitrário de classificação diagnóstica utilizado em crianças cada vez mais novas.

Para Roudinesco (2000), o que assistimos com o avanço da ciência é a substituição de uma era da subjetividade pela era da individualidade. Embora haja uma tendência em enxergar nesse passo alguma emancipação e liberdade, o que a psicanalista denuncia é que a liberdade oferecida nesse processo de individualização é apenas uma ilusão, pois o preço pago para a independência do sujeito contemporâneo é a anulação do seu desejo e de sua subjetividade. A ciência apresenta ao sujeito um infinito de possibilidades, mas em troca o sujeito deve deixar sua subjetividade em prol de uma individualidade que se enquadre dentre dos parâmetros normativos de um cientificismo e só assim ele possa se beneficiar dos produtos da ciência. A autora ressalta que o sujeito contemporâneo, "(...) longe de pretender-se um sujeito livre, desvinculado de suas raízes e de sua coletividade, ele se toma por senhor de um destino cuja significação reduz a uma reivindicação normativa" (Roudinesco, 2000, p.14).

Essa também é a perspectiva do filósofo italiano Agamben, para quem a sociedade deixou de produzir sujeitos. Segundo Agamben (2009), os dispositivos modernos apresentam uma diferença em relação aos dispositivos tradicionais justamente por não provocar a subjetivação. Se os dispositivos tradicionais destacados por Foucault, como a religião, a educação e o governo visavam através de suas práticas à criação de corpos dóceis, mas ainda sim sujeitos do seu processo de assujeitamento, os dispositivos atuais do capitalismo não priorizam mais a produção de um sujeito ou mesmo seu assujeitamento, mas agem priorizando um processo que Agamben designa como dessubjetivante:

Um momento dessubjetivante estava certamente implícito em todo processo de subjetivação (...) mas o que acontece agora é que processos de subjetivação e processos de dessubjetivação parecem tornar-se reciprocamente indiferentes e não dão lugar a recomposição de um novo sujeito, a não ser de forma larvar e, por assim dizer, espectral. (Agamben, 2009, p.47)

Os corpos dóceis dão lugar aos sujeitos espectrais e Agamben resume nossa sociedade atual dizendo que ela se apresenta como um corpo inerte atravessado por gigantescos processos dessubjetivantes que não correspondem a nenhuma subjetivação real. Os sujeitos espectrais anulam seus desejos e afetos e deixam que os dispositivos ofertados pelo consumo vivam suas vidas por eles. A vida passa assim na televisão, no computador, nos celulares e Internets, tudo tão rápido e impositivo que não dá espaço para que dessas experiências advenha um sujeito.

Escancarada em nosso dia a dia, essa situação de segregação que impõe um esvaziamento da subjetividade através do consumo exacerbado, é fomento de um discurso sobre "livre acesso" e construção de autonomia. Se, segundo Foucault, no seu curso Em Defesa da Sociedade (Foucault, 1999, p.311), o nazismo foi uma forma concreta de sociedade disciplinar, que vigiava e perseguia a diferença que o povo judeu inculcava no seio da cultura alemã a ponto de colocar o próprio povo que governava em risco, agora não se tem mais como estratégia somente a coerção pela tentativa violenta de supressão da diferença. Em vez do autoritarismo, é a democracia que apela para ações coercitivas:

Eis, portanto, na atualidade, a nova utopia das sociedades democráticas globalizadas, ditas pós-modernas: suprimir o mal, o conflito, o destino, a desmedida, em prol de um ideal de gestão tranquila da vida orgânica. Por outro lado, não haveria o risco de um projeto desse tipo ser capaz de fazer ressurgir, no seio da sociedade, novas formas de perversões, novos discursos perversos? Não seria ele capaz, em suma, de transformar a própria sociedade numa sociedade perversa? (Roudinesco, 2008, p. 164)

Assim, se seguirmos a orientação de Lacan para que nos atentemos para o funcionamento e o efeito dos campos de concentração em nossa sociedade tem como prerrogativa o seguinte: "os campos de concentração revelados com o fim da Segunda Guerra Mundial são apenas os precursores do que se estabelece por uma universalização que já não é suposta, mas sim factual, a universalização promovida pela ciência e pela economia" (Ribeiro, 2009, p.79). É dessa forma que, através do campo de concentração, Lacan delimita o horror do ideal de igualdade, apontando que consequências vêm do ato de se impor uma homogeneização e de se recusar o singular de cada sujeito.

 

Conclusão

Se escutamos bem tal mensagem é porque é notadamente cotidiana a tentativa de se tomar os campos de concentração como fatos isolados na história humana, de se afirmar que o mal maior existiu enquanto Hitler viveu (aliás, ele é tido como um dos anticristos). Lacan também observou que havia um humanismo capenga nesse tipo de discurso, que não percebia que retratava e reforçava a supressão da singularidade dos sujeitos como se tratasse de algo datado.

Desse modo, pode-se pensar que o mal está presente, inclusive quando imbuído de uma palavra de "bondade" - afinal, o discurso nazista era colorido por um louvor ao "bem" da humanidade, à luta e ao amor. O tom poético do discurso escondia, mas não deixava de se colocar à disposição de execrar e exterminar todas as minorias em prol de um ideal, exatamente, de beleza - beleza humana. Tomando essa tese, nos remetemos novamente a Ribeiro:

Consideremos o campo, como fez Lacan na Introdução Teórica às Funções da Psicanálise em Criminologia (1950), a consequência máxima de um modelo de estruturação da sociedade que ele chama de criminogênica. Essa sociedade que em nosso entender é um esboço muito bem traçado da sociedade contemporânea, promove a homogeneização de seus membros ao mesmo tempo em que estabelece ideais cada vez mais individualistas. Os avanços do capitalismo não fizeram mais que reforçar essa conjuntura. A ciência, aliada desses avanços, vem a ocupar um lugar nos mecanismos do poder e atravessa a vida cotidiana de maneira cada vez mais contundente, impondo sua tendência de redução ao orgânico, ao biológico, ao universal. (Ribeiro, 2009, p. 97)

Em outras palavras, a aliança entre a tecnociência e o capitalismo estimulam os ideais individualistas desvinculando, como bem lembra Safatle (2005), o imperativo de gozo, em seu aspecto de satisfação desenfreada, de uma maneira próxima à que pontuamos ok conceito de pulsão de morte acima, dos conteúdos normativos privilegiados em uma determinada sociedade, o que é bastante próprio do nosso tempo em que o discurso capitalista nos ordena gozar, mas não indica a norma, ou seja, demanda o gozo de qualquer maneira - ou de todas as maneiras: "os sujeitos não são mais chamados a se identificarem com tipos ideais construídos a partir de identidades fixas e determinadas, o que exigiria engajamentos e certa ética da convicção" (Safatle, 2005, p.132). O sujeito fica perdido entre a ordem do gozo e a abundância metamórfica das formas de gozar, o que não fixa nenhuma norma, nenhuma ética, já que a liquidez e fugacidade desses modos de gozo é parte essencial do discurso capitalista atual.

Assim, é de se esperar que o sujeito perca sua dimensão política, agora tendo o termo "cidadão" como sinônimo de "consumidor" - e só. Portanto, se somos cidadãos, posto termos possibilidade de consumir, isso significa que estamos imersos num oceano de gozo, e de um gozo imposto e que segue um padrão. Cabe-nos perguntar do que gozamos, e de que maneira esse gozo nos sustenta e constrói para nós um lugar de vida. E mais, isso do que gozamos talvez não seja justamente aquilo que segrega, posto que nos encaminha à destruição (ou que nos atualiza a trilha de uma) que é a total submissão ao Outro?

 

Referências

Agamben, G. (2009). O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Chapecó, SC: Argos.         [ Links ]

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Recebido em: 18/02/2014
Revisado em: 05/03/2015
Aceito em: 12/04/2015

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