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Revista Subjetividades

versão impressa ISSN 2359-0769versão On-line ISSN 2359-0777

Rev. Subj. vol.16 no.1 Fortaleza abr. 2016

http://dx.doi.org/10.5020/23590777.16.1.52-63 

DOCÊNCIA E PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADES

 

Assédio no contexto educacional: Uma possibilidade de manifestação perversa

 

Harassment in the educational context: A possibility of perverse manifestation

 

El acoso en lo contexto educacional: Una posibilidad de manifestación perversa

 

Le harcèlement dans le cadre de l'éducation: Une possibilité de manifestation perverse

 

 

Ludmila de Vasconcelos Machado GuimarãesI; Renata Caetano Vieira de FariaII; Débora Teixeira Barreiros FerreiraIII; Breno Ferreira PenaIV

IDoutora em Administração pelo CEPEAD/UFMG, Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais
IIGraduada em Psicologia pela UFMG, Universidade Federal de Minas Gerais
IIIGraduada em Psicologia pela UFMG, Universidade Federal de Minas Gerais
IVDoutorando em Psicologia pela PUC-Minas, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Tendo em vista que o setor de ensino pode ser considerado propício para o surgimento de práticas que, de forma insidiosa e sistemática, podem atingir a integridade psíquica de alunos e professores, o presente ensaio busca refletir, a partir da perspectiva psicanalítica, sobre o assédio moral no contexto educacional. Para tanto, discute-se a natureza perversa conhecida corriqueiramente como autoritarismo, baseando-se principalmente na teoria psicanalítica freudiana, nos conceitos pós-freudianos de Lacan e Melanie Klein, e em autores contemporâneos como Hirigoyen e Racamier. A partir dessa reflexão, é possível supor que o quadro de perversão narcísica, observado em alguns traços de professores, pode se delinear como forma de defesa do sujeito frente a uma situação ameaçadora. É importante considerar as características e vivências individuais dos professores, já que não se propõe aqui nenhum tipo de generalização, e que essas manifestações podem ser também fruto de uma cultura educacional em que a autoridade é historicamente institucionalizada.

Palavras-chave: subjetividade; perversão; psicanálise; educação; assédio.


ABSTRACT

Considering that the education sector can be considered propitious for the emergence of insidious and systematic practices that can reach the psychic integrity of students and teachers, the present essay seeks to reflect, from a psychoanalytic perspective, on harassment moral in the educational context. For that, the perverse nature commonly known as authoritarianism, based mainly on Freudian psychoanalytic theory, and the post-Freudian concepts of Lacan and Melanie Klein and on contemporary authors such as Hirigoyen and Racamier were discussed. From this reflection, it is possible to suppose that the narcissistic perversion picture, observed in some traits of teachers, can be delineated as a form of defense of the subject facing a threatening situation. It is important to consider the individual characteristics and experiences of teachers, since no generalization is proposed here and these manifestations may also be the result of an educational culture in which authority is historically institutionalized.

Keywords: subjectivity; perversion; psychoanalysis; education; harassment.


RESUMEN

En vista que el sector de enseñanza puede ser considerado propicio para el surgimiento de prácticas que, de forma insidiosa y sistemática, pueden afectar la integridad psíquica de alumnos y profesores, el presente ensayo busca reflexionar, a partir de la perspectiva psicoanalítica, sobre el asedio moral en el contexto educacional. Por lo tanto, se discute la naturaleza perversa conocida comúnmente como autoritarismo, basándose principalmente en la teoría psicoanalítica freudiana, y en los conceptos post-freudianos de Lacan y Melanie Klein y en autores contemporáneos como Hirigoyen y Racamier. A partir de esa reflexión, es posible suponer que el cuadro de perversión narcisista, observado en algunos trazos de profesores, se puede delinear como una forma de defensa del sujeto frente a una situación amenazadora. Es importante considerar las características y vivencias individuales de los profesores, ya que no se propone aquí ningún tipo de generalización y que esas manifestaciones pueden ser también fruto de una cultura educativa en que la autoridad es históricamente institucionalizada.

Palabras clave: subjetividad; perversión; psicoanálisis; educación; acoso.


RÉSUMÉ

Dès lors que le secteur de l'éducation peut être considéré comme propice à l'émergence de pratiques qui, de façon systématique et insidieuse, peuvent atteindre l'intégrité psychique des élèves et des enseignants, ce travail veut refléter, à partir de la perspective psychanalytique, sur le harcèlement moral dans le contexte éducatif. À cette fin, il examine la nature perverse, appelée couramment d'autoritarisme, dont est basé principalement à la théorie psychanalytique freudienne et aux concepts de systèmes post-freudien de Lacan et Melanie Klein et aux auteurs contemporains comme Hirigoyen et Racamier. À partir de cette réflexion, il est possible de supposer que le cadre de la perversion narcissique, observée chez quelques traces des enseignants peut être assimilé comme une défense du sujet face à une situation menaçante. Il est important d'examiner les caractéristiques et les expériences individuelles des enseignants, car il n'est pas proposé aucune généralisation ici. Il faut aussi comprendre que ces manifestations peuvent être le résultat d'une culture scolaire dans laquelle l'autorité est historiquement institutionnalisée.

Mots-clés: subjectivité; perversion; psychanalyse; éducation; harcèlement.


 

 

A subjetividade do professor pode ser compreendida como um dos elos da relação professor/aluno, e influencia diretamente na aprendizagem e no processo de ensino. Tendo em vista o vínculo que se estabelece atualmente entre professores e alunos, o ambiente criado nas salas de aula pode se apresentar, muitas vezes, como propício à manifestação de algumas atitudes severas de autoritarismo, que atingem a integridade psíquica e a autoestima dos alunos. Uma das razões levantadas para explicar tais atitudes é a atuação do professor como figura de autoridade, mascarando, assim, suas próprias fraquezas, e podendo assumir uma posição de superioridade frente a um público que possui poucos recursos de defesa devido ao seu papel subordinado na hierarquia (Hirigoyen, 2011, 2014). Considerando esse contexto, este trabalho pretende refletir sobre uma das facetas do processo de aprendizagem, mais especificamente sobre quando a subjetividade do professor pode exercer um papel danoso, não apenas ao aprendizado, como também ao psiquismo dos estudantes.

Recorremos à abordagem psicanalítica para auxiliar a reflexão sobre práticas de assédio moral recorrentes no âmbito educacional, especificamente aquelas exercidas por professores, decorrentes de seus processos de subjetivação e direcionadas aos alunos. Essa abordagem - que será tratada com mais profundidade ao longo deste ensaio - nos permite compreender melhor como se estabelece a dinâmica psíquica do sujeito que apresenta traços perversos, considerado por Hirigoyen (2011, 2014) como assediador.

A escolha dessas práticas, muitas vezes confundidas com autoritarismo, como objeto de estudo se deve a sua pouca visibilidade e da não apreensão de seu poder destrutivo por alunos e funcionários das instituições de ensino. Intenciona-se, assim, trazer à tona uma discussão válida e considerada necessária, tanto no âmbito psicanalítico quanto pedagógico, tendo em vista a conceituação construída por Hirigoyen (2011, 2014), a fim de auxiliar no reconhecimento da ocorrência do assédio moral em sala de aula.

A fim de alcançar tal objetivo, pretende-se trabalhar com a teoria da perversão para Freud, e outros autores prós-freudianos (Lacan (1956-1957/1995), Klein (1976), bem como com o conceito de perversão narcísica de Racamier (1991), pois se acredita que tais abordagens sejam de grande relevância e tragam contribuições válidas à discussão da temática proposta. É importante ressaltar que a utilização do conceito de perversão narcísica se deve principalmente à sua semelhança com a categoria de professores analisada, no que diz respeito à sua constituição subjetiva e ao modo de relacionar com o outro. Tal relação é firmada na necessidade de desvalorização constante do outro como forma de se supervalorizar.

O assédio moral, como se firmará no decorrer deste trabalho, é considerado um mecanismo comum utilizado pelo perverso e se constitui no âmbito educacional como a expressão de um autoritarismo exagerado na relação dos professores com seus alunos, pois é através dele que o abuso, físico ou moral, é concretizado. O professor, aquele que se identifica com o perverso narcísico, demonstra prazer e boa autoestima na manipulação, desaprovação e humilhação de seus alunos perante um público.

Por fim, torna-se importante ressaltar que não se tem como objetivo a sistematização das características inerentes à figura do perverso, nem a classificação dos professores em tal categoria. Pretende-se, portanto, discutir a natureza perversa de certas atitudes descompensadas em sala de aula, relacionadas à teoria psicanalítica.

 

Algumas Considerações Sobre A Perversão

Discutir a perversão pode ser um desafio considerando a diversidade de correntes existente nas diferentes escolas de psicanálise. Isso incorre em uma infinidade de possibilidades em que a teoria psicanalítica pode ser apropriada, tanto para se compreender o conceito de perversão quanto na apreensão do fenômeno propriamente dito. Como a proposta deste trabalho é refletir, a partir da perspectiva psicanalítica, sobre o assédio moral no contexto educacional, adotamos a concepção freudiana acerca da perversão para o entendimento mais aprofundado da dinâmica psíquica do assediador. Assim, nossa acepção é que a perversão se trata de uma estrutura psíquica ligada à recusa da realidade e do tempo, à clivagem do ego e à relação objetal. Para realizar a ponte entre os conceitos psicanalíticos e o fenômeno do assédio, recorremos também aos trabalhados de autores contemporâneos como Hirigoyen (2011), Racamier (1991), Lacan (1995) e Melanie Klein (1976).

Inicialmente, para se compreender a construção do entendimento de perversão para Freud, é necessário retomar três momentos essenciais (Simirgel, 1984) em sua obra: "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade" (Freud, (1905/1996a), "Uma criança é espancada" (Freud, 1996b) e o artigo "Fetichismo" (Freud 1927/1996c).

O primeiro momento se refere a "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade" (Freud, 1905/1996a), em que a perversão aparece como o "negativo da neurose", sendo compreendida como uma falha do recalque. Ferraz (2008, p.10) explica o axioma defendendo a ideia de que "o perverso seria tudo aquilo que o neurótico almeja ser, mas não encontra permissão para tal", assim, "onde o neurótico estanca o desejo, o perverso, sob a proteção de uma impostura, avança em sua vontade de gozo. O neurótico deseja e recalca. O perverso quer gozar e avança em direção ao ato" (Barbieri, 2007, p.7). Freud (1905/1996a) defendeu a ideia de que a perversão resultaria da permanência, no adulto, da fixação de uma das componentes perverso-polimorfa da sexualidade infantil (Ferraz, 2000). Portanto, na sexualidade infantil, tudo ainda é potencialidade, contudo, um adulto com satisfação perversa tem cristalizada a sua preferência pré-genital acima da sua vida sexual.

O segundo momento é aquele em que a perversão é relacionada ao complexo de Édipo, como pode ser visto em "Uma criança é espancada", de 1919. Em uma nota no Três Ensaios, Freud (1905/1996a, p.155) acrescenta que "a perversão é o resíduo de um desenvolvimento do Complexo de Édipo após o recalque do qual prevalecerá o componente que, segundo a constituição, seria o mais importante na pulsão sexual". Dentro desse contexto, o complexo de Édipo seria o núcleo não só das neuroses como também das perversões (Freud, 1905/1996a).

Será dada maior evidência ao terceiro momento, já que é nele que se encontram alguns conceitos importantes na análise da perversão. É nesse momento que Freud (1927/1996c) define a perversão como uma estrutura psíquica. Inicialmente, é importante entender o processo da recusa da castração abordado no artigo "Fetichismo", de 1927, em que a figura da recusa da castração ganha a cena associando-se à consequente noção de clivagem do ego. Freud, neste mesmo texto, defende a teoria de que,

(...) o fetiche é um substituto do pênis da mulher (da mãe) em que o menininho outrora acreditou e que - por razões que nos são familiares - não deseja abandonar. O que sucedeu, portanto, foi que o menino se recusou a tomar conhecimento do fato de ter percebido que a mulher não tem pênis. (Freud, 1927/1996c, p. 155)

Desse modo, diante de tal percepção chocante, o indivíduo rejeita a castração e utiliza a recusa como mecanismo de defesa do ego. Um dos motivos da importância da recusa é o fato de ter trazido ao conceito de perversão um aspecto positivo, podendo ser definida por si mesma, já que o que a diferenciava da neurose era a falta do recalcamento (Ferraz, 2008). Ferraz (2008) anuncia ainda que, nos perversos, a prevalência da recusa sobre o recalcamento ocorre devido "às lutas travadas em torno do complexo de Édipo". É importante destacar que, no mecanismo da recusa, a percepção é mantida, no entanto, a afirmação inconsciente da continuidade da existência do pênis faz com que a representação dele se desloque para outro objeto, o qual posteriormente se tornará um fetiche.

O mecanismo da recusa aparece para Freud primeiramente para assinalar o fenômeno da recusa da castração, contudo tal conceito pode ganhar outros contornos, como na recusa do tempo e da realidade para os perversos (Barbieri, 2003).

Em uma breve explanação, Ferraz (2008) trata a recusa do tempo como um congelamento do sujeito em determinado estágio de seu desenvolvimento, ocorrido por um terror em se avançar ou até mesmo por um excesso de gratificação fornecida por tal estágio, que indica ao sujeito não ser proveitoso seguir em frente. No mesmo texto, Ferraz (2008, p.25) afirma que "recusar o tempo é recusar a realidade na sua própria estrutura formal". Complementando tal ideia, Barbieri (2003) diz que a recusa da realidade seria a negativização de um fragmento da realidade que não é expelida da consciência e nem do campo das significações, contudo a sua veracidade é fortemente negada.

Dada a discussão do mecanismo da recusa, ainda uma questão se apresenta controversa aos olhos de Ferraz (2008): Como se pode negar e reconhecer ao mesmo tempo a realidade da castração? Esta questão pode ser respondida utilizando-se o conceito de clivagem do ego, primeiramente defendida por Freud no texto "Esboço de Psicanálise" (1940/1996d) como divisão do ego. A divisão do ego seria, portanto, um modo de funcionar perante as situações traumáticas de maneira diferente e antagônica, sendo que um registro não interfere nem anula o outro. De acordo com Freud (1940/1996d, p. 216), "os sujeitos negam algum fato de sua percepção - como o fato de que não viram pênis nos genitais femininos - e, por outro, reconhecem o fato de que as mulheres não possuem pênis e tiram dele as conclusões corretas". Confirmando tal ideia, Ferraz (2008) relata que a característica marcante dos perversos é a coexistência das duas atitudes opostas em relação à castração, sendo que uma é referente ao desejo, e a outra, à realidade.

Lacan (1956-1957/1995), por sua vez, também concebe a perversão ligada às vivências edípicas. Na neurose, há a constatação da falta no Outro materno e da presença da lei do pai que, o que, ao mesmo tempo em que é indicada e ratificada pela mãe, também demonstra a criança que é furada e deseja o pai, enquanto mulher. A castração vem ao primeiro plano e a criança abandona a rivalidade com o pai e a posição de falo imaginário, que supostamente completaria a mãe, para se identificar ao pai como aquele que tem o falo e pode dar o que faltaria à mãe. Abandonar a posição de ser o falo imaginário, todavia, passa pela possibilidade de ainda tê-lo enquanto simbólico. Com isso, a criança se submente à lei paterna, que transforma seu desejo no desejo do Outro, já que, a partir desse momento, essa criança quer aquilo que supostamente o Outro espera dela e que lhe asseguraria ter, mesmo que momentaneamente, o falo simbólico. Na perversão, no entanto, a dinâmica edípica se mostra completamente outra, já que o pai apresenta sua lei, mas essa não é ratificada pela mãe, o que deixa a criança tanto na rivalidade ao pai quanto presa em ser o falo imaginário que falta a mãe, se recusando a aceitar a própria falta:

A criança se apresenta à mãe como lhe oferecendo o falo nela mesma, em graus e posições diversos. Ela pode se identificar com a mãe, se identificar com o falo, ou apresentar-se como portadora de falo. Existe aí um grau elevado, não de abstração, mas de generalização da relação imaginária que chamo de tapeadora, pela qual a criança atesta à mãe que pode satisfazê-la, não somente como criança, mas também quanto ao desejo e, para dizer tudo, quanto àquilo que lhe falta. (Lacan,1956-1957/1995, p. 230)

Neste caso, para Lacan, a mãe se mostraria como uma mãe fálica, aquela que também nega sua própria falta, e ainda desmoraliza a lei do pai. Em última análise, a ridiculariza. Com isso, o perverso sustenta o fantasma de ser o único objeto de desejo que pode realmente fazer a mãe gozar. É bom frisar, no entanto, que isso não quer dizer que na perversão não haja o reconhecimento da lei do pai, como no caso da psicose, mas que essa lei se torna inconsistente para o sujeito. O perverso faz a transgressão da lei não para ser pego e castigado pelo pai, como o neurótico o faz, mas para reafirmar a impotência paterna. É um desafio, uma rivalidade fálica ao pai, para demonstrar-lhe seu furo, sua fraqueza, ao manipular e subverter a Lei a seu favor. Assim, para o perverso, a única lei que reconhece é aquela fundada em seu próprio desejo, desvinculada do desejo do Outro, que se daria pela submissão à lei paterna, via a operação de castração.

Considerando ainda o perverso e seu modo de relação com o mundo externo, devem-se acrescentar importantes observações introduzidas primeiramente pelos kleinianos sobre o modo de relação deste sujeito com seus objetos. Primeiramente, o objeto total é aquele em que existe um reconhecimento do outro como objeto de desejo como um todo. Tanto Freud quanto Melanie Klein afirmavam que o objeto primário se totaliza no momento de sua perda (Cintra & Figueiredo, 2004). É importante ressaltar ainda que o objeto total não pode ser de nenhuma forma o produto de uma soma ou síntese de objetos parciais.

Por outro lado, para Klein (1976), o objeto, ainda que parcial, é dotado de características semelhantes à de uma pessoa. Laplanche e Pontalis (2011, p. 443) defendem que são considerados objetos parciais aqueles que tratam principalmente de partes do corpo que podem ser reais ou fantasísticas (seio, fezes, pênis), dos seus equivalentes simbólicos, sendo que até mesmo uma pessoa pode identificar-se ou ser identificada como um objeto parcial. Assim, como forma de exemplificar, Klein (1976) defende que a relação de objeto da criança se dá por um objeto parcial privilegiado, que é o seio da mãe (Fernandes, 2002).

Apresentada a discussão em torno do entendimento sobre perversão, torna-se importante destacar que, em psicanálise, a perversão não se resume somente à sexualidade. Nesta perspectiva, outros autores que trabalham com a pluralidade das pulsões chamam a atenção para as manifestações de outras formas da perversão:

Perversões do "sentido moral" (delinqüências), dos instintos sociais (proxenetismo), do instinto de nutrição (bulimia, dipsomania). Na mesma ordem de ideias, é comum falar-se de perversão, ou antes, de perversidade, para qualificar o caráter e o comportamento de certos sujeitos que demonstram uma crueldade ou uma malignidade singulares. (Laplanche & Pontalis, 2011, p. 341)

Assim sendo, além de ser considerada como um fenômeno sexual, a perversão pode ser também vista como um fenômeno político, social e subjetivo, que atravessa a história e que está presente na estrutura de todas as sociedades (Gaspar & Braga, 2016). Tendo em vista que este ensaio é contextualizado no âmbito educacional, conforme foi proposto, recorreremos às considerações freudianas acerca da perversão para a compreensão do assédio moral como atos perversos frequentemente observados nas relações entre discente e docente.

 

A Perversão Narcísica

Dando continuidade à temática da perversão no contexto educacional, Racamier (1991) nos apresenta, em seus estudos sobre a psicose, a figura do perverso narcísico. É importante ressaltar que a ideia de perversão narcísica não foge de forma alguma ao que conhecemos dos conceitos de perversão nos termos freudianos, mas é resgatado aqui por suas especificidades no contexto do assédio moral. Dessa forma, o termo se destaca neste trabalho devido à forma como seus representantes atuam sobre o outro - utilizando mecanismos como o assédio moral (este talvez possa ser considerado sua principal manifestação) para se fazer valorizado.

Dessa forma, como foi dito anteriormente, a perversão narcísica será brevemente discutida com base em Racamier (1991) e em autores contemporâneos tais como McDougall (1997); Naves (1999); Ceccarelli, 2005; Enriquez (2006) e Hirigoyen (2011, 2014), que trazem contribuições acerca do tema. De início, dá-se lugar a seu precursor, que a descreve como uma necessidade, uma capacidade e um prazer do indivíduo em valorizar a si mesmo à custa do outro. O prazer obtido por esse meio certamente não deve ser tratado como erógeno, ainda que algumas manifestações perversas de cunho sexual sejam frequentes nesses casos.

É importante ressaltar a diferenciação entre a perversão sexual e o sexual perverso. Nas perversões sexuais, as pulsões inconscientes (relativas aos sintomas neuróticos), aparecem à luz do dia, provocando choque e constrangimento, e é vivida pelo sujeito como algo que o controla e sem o que a satisfação sexual não é alcançada (Ceccarelli, 2005). Por outro lado, o sexual perverso não tem uma fixação libidinal, o objetivo é o prazer imediato ao menor preço possível, assim o objeto destas pulsões é "o que há de mais intercambiável, parcial, e instável: o que conta é a obtenção do prazer. Pouco importa se ele seja adulto ou criança, humano ou animal, vivo ou inanimado." (Ceccarelli, 2005, p.7).

No conceito de Racamier (1991) de perversão narcísica, podemos incluí-lo no que Ceccarelli (2005) diz sobre o sexual perverso, já que é uma forma de prazer obtida quase que exclusivamente a partir da manipulação de um objeto, que se torna útil para este fim (Racamier, 1988). Segundo tal autor, a perversão dita narcísica se ancora em uma tentativa de se proteger de conflitos internos e

(...) evitar o impacto dos sentimentos de luto, angústia, desilusão e separação, tratando de colocar ativamente sobre alguém as dores, as dificuldades e os conflitos vinculados a eles. Trata-se de evitar, de se desembaraçar dessas tarefas de elaboração da angústia e do luto, próprias a todo ser humano. (...) as tarefas psíquicas que um sujeito repele e que seu ego não está em condições de assumir, vão cair, inevitavelmente, sobre outros ombros. (Racamier, 1991, p.63)

Naves (1999), por sua parte, observa que o que embasa a atuação do perverso narcísico são suas necessidades contra-depressivas inconscientes, ou seja, o constante ataque desses indivíduos ao outro se baseiam em uma "tentativa de se tornar um ser simbólico único e todo poderoso" que não tenha que enfrentar as vicissitudes pulsionais fatalmente vivenciadas por todo ser humano.

Acerca dessas questões, Naves (1999) discute a relação entre perversão e narcisismo e sugere que a perversão deve ser considerada como uma defesa estruturada do ego contra as angústias narcísicas. A perversão narcísica pode ser compreendida a partir de uma falha narcísica inicial, em que o sujeito, ao invés de voltar-se para si, busca no poder exercido sobre o outro uma forma de sustentação do seu próprio narcisismo (Martins, 2009). Dessa forma, os mecanismos de defesa utilizados pelos perversos narcísicos (como o assédio moral) seriam vistos como uma garantia da unidade narcísica do indivíduo, de sua autonomia e dominação. Portanto, é em busca de sua própria preservação que eles sentem a necessidade de afrontar, desonrar e controlar o outro. Na perversão narcísica, o uso do outro como objeto se dá pelo poder e domínio. Se por um lado, a perversão sexual, também ligada ao narcisismo, responde a uma denegação da diferença sexual, por outro lado, a perversão narcísica, conforme Martins (2009), necessita do outro para sua própria sustentação egóica.

Ceccarelli (2005) afirma que o traumatismo e a humilhação são os ingredientes fundamentais da perversão. O autor recorre a Stoller (1984) que sugere a existência de um fantasma de vingança subjacente à atuação perversa, o qual é sustentado pela hostilidade. Nessa dinâmica, o traumatismo infantil é transformado em triunfo e os papéis são invertidos: o sujeito age ativamente lá onde sofreu passivamente (Ceccarelli, 2005). Assim, como reforça Stoller (1984), o ato perverso pode ser considerado uma cura momentânea.

Também nesse sentido, Enriquez (2006) define o perverso como aquele que define as relações com o mundo a partir do próprio referencial, colocando-se no domínio do total e, assim sendo, a realidade deve-se conformar ao modelo que ele próprio constrói. Humilhando e submetendo o outro ao cenário perverso, conforme Ceccarelli (2004), o traumatismo é vencido, e o outro, por sua vez, é desumanizado e transformado em objeto (fetiche). Assim, a manipulação, a instrumentalização das pessoas de forma a reduzir o outro a pouquíssimas possibilidades de escolha, para não dizer nenhuma, corroboram para o gozo do perverso. Uma vez que o outro se torna instrumento de gozo, perde, ao mesmo tempo, o controle sobre seu próprio desejo. Nas relações, o perverso assume o papel do agente da castração ou daquele que a desvela no outro. A dinâmica da relação perversa subtrai o direito ao desejo, eé justamente por esse motivo que o perverso tenta demonstrar que a única lei é a lei do seu próprio desejo, não a do desejo do Outro.

Hirigoyen (2011), considera que esses indivíduos foram, na infância, muitas vezes negados em sua individualidade, e, por terem sido vítimas, trazem já consigo uma ferida narcísica, ou uma "identidade ferida". Portanto, por não terem um ego suficientemente forte, essa dor acaba por não ser devidamente elaborada, recaindo sobre o outro, que então é transformado em vítima. A autora sublinha que a vítima comumente chama atenção por ter algum valor positivo na sociedade. Assim, costuma se destacar, ser alvo de inveja e, ao contrário do que habitualmente se pensa, não se apresenta como uma pessoa frágil. Martins (2009) comenta que o ego da vítima é paradoxalmente forte e carente, e não precisa de aprovação do outro, apesar de ser desejoso desta aprovação. Para o autor:

É um ego desejoso de dar, de auxiliar, pois servir faz sentir-se dando ao outro aquilo que ele desejaria receber. Daí - de sua força, no sentido de resistência ao desamor - vem sua fragilidade que o faz colocar-se em relação à alguém que não lida bem com o receber, pois considera que a mãe, e portanto, o outro, o ambiente e o mundo, lhe deve algo, numa dívida sem fundo e sem fim. Um deseja dar amor ao ponto de buscar aquele que demasiadamente não o teve, enquanto que este cobra um amor que não existe, permanecendo insatisfeito. (Martins, 2009, p. 45)

Enquanto os perversos narcisistas estão fixados em sua rigidez, as vítimas tentam se adaptar, compreender o que seu perseguidor quer, consciente ou inconscientemente, procurando sua parcela de culpa (Hirigoyen, 2011). Dessa forma, para conseguir atingi-las, o perverso narcísico se mostra portador de certo magnetismo e se apresenta, em alguma medida, sedutor para a vítima. Depois de seduzida e submetida às humilhações, desvalorizações e agressões por parte do perverso narcísico, a vítima tem sua autoestima ferida, e segue provavelmente o caminho de uma crise de identidade e da doença. A dinâmica da culpa acaba mantendo o assédio presente nas relações entre agressor e a vítima, assim, enquanto a vítima continuar a assumir a culpa do comportamento típico do agressor e a justificá-la, o perverso narcísico perpetuará os abusos e as agressões.

Tendo em vista as considerações apresentadas, será que caberia a ideia de um jogo erótico? Em geral, para a psicanálise, é fundamental que se considere a parcela da vítima no processo. Martins (2009), por sua vez, entende que a violência exercida pelo perverso narcísico sobre seu cúmplice não pode ser considerada como a mesma de uma relação sádica ou sadomasoquista. Hirigoyen (2011) explica que nas relações sadomasoquistas, que correspondem ao masoquismo erógeno freudiano, os dois parceiros encontram prazer na agressividade a que se entregam. Na relação com os perversos, há apenas a dominação de um pelo outro, e a impossibilidade para a vítima de reagir e tentar acabar com a luta. É importante frisar que a violência incidente nos processos de assédio é velada e insidiosa, e a vítima sofre em silêncio, já que os atos perversos não são assumidos pelo agressor que, por sua vez, sutilmente inverte a relação e coloca a culpa do processo na vítima. Para Martins (2009, p. 39), nesse caso de perversão, "não é cabível atribuir uma responsabilidade à vítima pela agressão em si ou por sua manutenção, por mais que ela consinta com essa agressão por vias indiretas e complexas".

O único aspecto de uma fantasia descrita como legitimamente perversa, conforme McDougall (1997), é a tentativa de impor a imaginação erótica ao outro que não consente nisso ou que não é responsável, como crianças, animais, pessoa não responsável ou "psiquicamente frágil" (Reis et al., 2004). Assim sendo, no âmbito educacional, cenário que interessa analisar no presente trabalho, adolescentes podem ser compreendidos como psiquicamente frágeis, o que nos leva a analisar as situações de assédio com maior cuidado.

Partindo da explicação em pauta, é possível transpor a caracterização da perversão narcísica para uma cena social específica do contexto educacional, que é de maior interesse na presente discussão. Nesse caso, o que se faz é identificar a figura que se tem de um perverso narcísico ao professor que assedia moralmente seus alunos. Observa-se que esse professor tende a atuar "desprezando eventualmente o direito, as leis ou a mais elementar cortesia, designando o outro, um indivíduo ou uma categoria de indivíduos, suas ideias ou expressões, como ilegítimas ou indignas" (Sirota, 2008, p. 558).

 

Assédio Moral: Uma Questão "Bem Natural" No Ensino

Há em qualquer ato perverso algo parecido com o estupro, no sentido de que é importante que o outro seja arrastado contra a sua vontade numa experiência que se inscreve em falso com relação a todo um contexto. (Clavreul, 1990, p. 134)

A autoexaltação desmensurada da individualidade na atualidade implica, de acordo com Birman (2011), em uma crescente volatilização da solidariedade. A solidariedade pode ser considerada como o correlato das relações inter-humanas fundamentadas na alteridade e, para que isso ocorra, é necessário que o sujeito reconheça o outro na sua diferença e singularidade. Contudo, o autor afirma que o que vem a caracterizar a subjetividade na cultura do narcisismo é a impossibilidade de admirar o outro em sua diferença, o que tem levado o sujeito a utilizar a violência para lidar com as diferenças e singularidades, ou recorrer à indiferença, que também pode ser considerada uma forma de violência.

O assédio articula-se dentro deste tema maior que é a violência. Na ausência de projetos compartilhados, as relações podem se tornar um campo fértil para manifestações de intolerância. Assim, intrigado com as questões relativas ao sofrimento no trabalho, Heinz Leymann desenvolveu, na década de 1980, pesquisas na Suécia, e associou o termo mobbing para designar a perseguição de um trabalhador pelos seus pares e/ou superiores. Leymann resgatou o termo mobbing dos estudos do etiologista francês Konrad Lorenz sobre o comportamento agressivo de animais que ameaçavam outros membros, com o objetivo de expulsá-los (Hirigoyen, 2011). Atualmente, este termo é utilizado para designar assédio.

Apesar de vários pesquisadores afirmarem que o assédio é tão antigo quanto o trabalho, foi a partir dos estudos de Leymann que as discussões sobre o tema foram ampliadas, ganhando espaço na mídia e na literatura (Freitas, Heloani, & Barreto, 2008). Somente em 1998, a psiquiatra, psicanalista e psicoterapeuta familiar francesa Marie-France Hirigoyen utilizou a expressão "assédio moral" pela primeira vez, gerando debates em escolas, universidades, sindicatos e empresas. No Brasil, a questão foi levantada em 2000, quando a médica do trabalho Margarida Maria Silveira Barreto abordou o assédio moral em sua dissertação de mestrado em Psicologia Social intitulada Uma jornada de humilhações, em que entrevistou 2.072 empregados, de 97 empresas, filiados ao Sindicato de Trabalhadores nas Indústrias Químicas, Plásticas, Farmacêuticas, Cosméticas e Similares, de portes variados, na região da grande São Paulo (Avila, 2008; Rodrigues, 2005).

Tendo apresentado um breve histórico sobre o assédio, retomaremos a proposta inicial deste estudo, que é promover uma reflexão a partir da psicanálise do que, em termos corriqueiros, se costuma chamar de autoritarismo dos professores, adjetivo este que, muitas vezes, dissimula um amplo leque de práticas que aqui serão julgadas como prejudiciais ao psiquismo dos alunos. Essas práticas são observadas com uma frequência surpreendente em instituições de ensino, sejam escolas, sejam universidades, mas normalmente sua conotação danosa não é percebida por alunos e funcionários dessas instituições.

Assim, dispõe-se no presente artigo a olhar mais atentamente algumas dessas manifestações, mais especificamente as abarcadas pelo que se chama atualmente de assédio moral. Considera-se esse mecanismo como tipicamente perverso observando-se como ele se configura como a principal forma de atuação do perverso narcísico.

O assédio moral pode ser abordado no ambiente de trabalho sob a perspectiva de Hirigoyen (2011), e é definido como a conduta abusiva, manifestada por gestos, palavras, comportamentos ou atitudes, que de alguma forma atingem a integridade psíquica ou física do indivíduo. Essa conduta se caracteriza por ser insidiosa e quase invisível, atingindo o outro pela repetição ou sistematização com que é manifestada.

Em suas considerações, a autora caracteriza a área da educação como das mais propícias ao surgimento de processos perversos de assédio moral, principalmente devido à rivalidade entre os indivíduos favorecida pelo ambiente escolar e universitário. A fim de lidar com a rivalidade e a hierarquia presentes nesse meio, desenvolvem-se defesas, como formas de dissimular as próprias fraquezas e assumir uma posição de superioridade (Hirigoyen, 2011). A autora destaca algumas fases que compõe o assédio moral. Uma primeira, chamada de "sedução perversa", em que o perverso narcisista busca fascinar e, por meio dela, é capaz de encobrir a realidade e manipular as aparências. Uma segunda fase, chamada de "enredamento", que consiste em fazer com que o outro pense, decida-se de maneira diferente do que teria feito espontaneamente. E, uma última fase, que se refere a uma "retirada da vítima a capacidade de se defender", em que, a fim de se evitar uma reação, retira-se o senso crítico da pessoa, o que a autora sugere que equivale a um roubo moral.

Sirota (2008) reforça que as práticas de assédio moral são traços perversos de fato comuns no âmbito educacional, e acrescenta, ainda, que elas podem ser de certa forma sustentadas pela cultura da instituição, configurando-se como uma fonte de violência induzida pelas escolas e universidades. Ele explica melhor essa afirmação e discorre em torno da questão da lei na escola e sua influência na relação entre os atores que compõem a instituição.

A lei se constitui como a base da relação do indivíduo com o outro. Como estamos tratando do ambiente educacional, a lei que rege o cotidiano de uma escola é marcada por uma distribuição explícita dos lugares a serem ocupados por cada um - professores, funcionários e alunos - e, dessa forma, determina o lugar e o que é esperado dos seus respectivos papéis. Traduzida nos regulamentos internos das escolas, a lei determina muitas vezes papéis ilegítimos ou de dignidade inferior para alguns sujeitos (normalmente os alunos e suas famílias), ou ainda sugerem que somente alguns de seus membros estão submetidos às regras (Sirota, 2008).

É importante considerar que a configuração da lei na instituição pode, portanto, induzir a manifestação de comportamentos perversos, como o assédio moral, mais especificamente quando parte dos professores em meio a práticas de autoritarismo consideradas comuns. Nesses casos, assume-se que o professor que assedia moralmente um aluno se sente engrandecido por meio do rebaixamento do outro, sem culpa e sem sofrimento. O assediador se baseia nisso para desenvolver uma boa autoestima e demonstrar poder perante outros alunos. Ele se mostra ávido por admiração e aprovação, e assim manipula os outros para alcançar esses objetivos. Por essas características, torna-se muito comum que o assédio moral tenha início com um abuso de poder, (uma observação indecorosa, uma crítica ferina ou mesmo um olhar de desprezo) mas, por meio da repetição, venha a se tornar um abuso narcísico no qual a vítima perde sua autoestima e se vê acuada, muitas vezes sem reação diante de ameaça tão pouco palpável e delineada (Freitas, 2001).

Considerando ainda que, no caso do professor, há uma diferença hierárquica (como ocorre em grande parte dos casos de assédio moral), o assédio passa a não se configurar como ameaça na visão de terceiros, que a veem quase como algo já esperado ou, muitas vezes, passível de ser aceito de alguém em tal posição. Nessa conjuntura, a vítima tende a não denunciar, submetendo-se a tais danos psíquicos.

Nota-se, ainda assim, que comportamentos como esses não necessariamente partem de indivíduos qualificados como perversos ou que deliberada e conscientemente os promovem para desqualificar o outro. Nesses casos, é realmente importante a influência da cultura a que estão submetidos os indivíduos e as formas como estes aprenderam a utilizá-la (Sirota, 2008). No entanto, há de se considerar que outra possibilidade de silenciamento refere-se à probabilidade desse professor ministrar outras disciplinas futuramente e a perseguição e o assédio se darem de forma mais incisiva e recorrente.

A partir do conceito de assédio moral aqui trabalhado, Neto (2002) realizou uma pesquisa com 1132 alunos de instituições de educação superior (IES), públicas e particulares, a fim de buscar relatos de situações constrangedoras e humilhantes vivenciadas nas IES. A partir desses relatos, constatou-se que o assédio moral é real neste contexto e que os alunos são com frequência atingidos em sua autoestima por professores que fazem uso da relação hierárquica para constrangê-los. Os resultados disso são danos à integridade psíquica dos alunos e a deterioração da relação estabelecida entre alunos e professores, influenciando negativamente os processos educacionais.

A análise dos relatos conseguidos nessa pesquisa gerou uma listagem de 12 categorias descritivas de diferentes tipos de assédio moral vivenciados em IES: agressão física; agressão verbal aos alunos; ameaças aos alunos; acusação agressiva e sem provas; assédio sexual; comentários depreciativos, preconceituosos ou indecorosos; tratamento discriminatório e excludente; rebaixamento da capacidade cognitiva dos alunos; desinteresse e omissão; uso inadequado de instrumentos pedagógicos, prejudicando os alunos; recusa em realizar seu trabalho; abandono do trabalho em sala de aula.

É importante reforçar que as categorias formuladas são, de fato, comuns no meio acadêmico, mas deve-se lembrar que sua manifestação não é suficiente para caracterizá-las como assédio moral, quiçá como atos perversos. Para tanto, essas precisam aparecer de forma repetitiva no cotidiano dos alunos, pois é da frequência e repetição no tempo que vem seu poder destrutivo.

 

O Papel Do Professor Como Educador

A partir dos pontos analisados, têm-se elementos para engendrar uma discussão acerca do que possivelmente fundamenta as ações dos professores que, de alguma forma, se encaixam no conceito aqui descrito de perversão narcísica. Conforme a proposta do artigo, a base de análise são os comportamentos dos professores em sala de aula que podem ser considerados agressivos ao psiquismo dos alunos, comportamentos esses tratados aqui por assédio moral.

É possível supor que o quadro de perversão narcísica observado nesse caso se delineie como forma de defesa do sujeito frente a uma situação ameaçadora, como indubitavelmente se classifica uma sala de aula atualmente. Nesse contexto, principalmente considerando as relações estabelecidas, tem-se que, muitas vezes, o professor é defrontado com antigas cenas, conscientes ou inconscientes, que remetem às suas vivências infantis de castração e trazem à tona os afetos relacionados aos conflitos mais marcantes dessa época: a penosa perda do objeto desejado e a submissão ao poder do Pai. Diante da ameaça como a trazida pela reedição do Complexo de Édipo e sem um ego forte o suficiente para reviver tal conflito, o assediador tende a fugir de tal enfrentamento por meio de mecanismos perversos de defesa, tornando-se o exemplo do professor perverso narcísico descrito aqui.

Assim, observa-se que a situação de sala de aula coloca o professor em um lugar tal que favorece que ele assuma o papel de castrador, outrora almejado, e dê vazão a sua pulsão sádica. É como se as relações que se estabelecem dentro da sala de aula oferecessem ao professor a oportunidade de ser esse castrador, de representar, enfim, a Lei, e quando este agarra a chance, ele usa do lugar que ocupa para satisfazer sua pulsão. Nessa situação, na qual o professor manipula de forma sádica seus alunos, fica claro que esses últimos não representam somente objetos parciais para o professor, visto que são usados como um meio de alcançar a satisfação almejada.

Considerando essas formas de relação e todas as suas implicações, torna-se interessante pensar, por um breve momento, o lugar do aluno nesse mesmo contexto. Na lógica que se segue, é possível afirmar que, para ele, a situação de sala de aula também tende a reavivar os conflitos edipianos, nesse caso, há pouco deixados para trás. O que se vê é que, para o aluno, o professor representa mais uma vez a castração, mais uma vez a perda do objeto desejado, enfim, mais uma vez ter que se submeter à Lei. Sem a intenção de tecer uma análise mais aprofundada sobre a situação, aventa-se que a indisciplina, tão comum atualmente e tida cada vez mais como um problema, seja uma forma de reação do aluno contra essa Lei, reação essa que talvez tenha sido esboçada nos tempos do Édipo, mas que somente agora, com maiores recursos da criança, encontra meios de ser tão manifesta e contestadora. Essas reações, no entanto, teriam como efeitos mais prováveis somente a utilização mais intensa e feroz de mecanismos de defesa sádicos por parte dos professores, como se vê por vezes acontecendo na realidade.

Dando continuidade à análise da atuação perversa do professor, fazem-se necessárias ainda algumas considerações. É necessário lembrar, de início, que, na discussão que se delineia, é imprescindível que se considere a subjetividade e as vivências individuais dos professores, visto que somente parte deles atua como castrador sádico em sala de aula. No entanto, deve-se ter em vista que esse traço perverso é também muito influenciado por uma cultura de organização presente nas instituições de ensino, que, com sua Lei, designam lugares de dignidade supostamente superior, dos quais alguns se servem para desqualificar os outros. Assim, a perversão moral, conforme Heloani (2016), encorajada por práticas organizacionais, pode revelar uma fonte importante de indução da violência direta e indireta nas relações que são estabelecidas nas escolas e universidades, que não deve ser desconsiderada em nenhum momento.

Vale lembrar o que Ferraz (2008, p.9) aponta acerca do sentido psicanalítico da palavra perversão. Segundo o autor, o termo pode ser encarado como "(...) a designação de uma estrutura psíquica particular não necessariamente ligada à perversidade manifesta, mas também muitas vezes caracterizada por uma relação com os objetos, na qual estes são manipulados de forma a ser usados (...)". Recorre-se a essa citação para ilustrar a análise aqui desenvolvida, que diz do mesmo aspecto do termo perversão, mantendo o foco na relação professor-aluno e suas implicações decorrentes dos processos de subjetivação relativos a professores que se utilizam de práticas perversas. Não é intenção do artigo, todavia, classificar qualquer manifestação perversa pontual como perversão, bem como classificar os autores desses atos como perversos. O que se intenciona é discutir esse termo no contexto educacional, lembrando o quanto este é alvo de violência atualmente e levar a psicanálise na tentativa de auxiliar na compreensão das possíveis razões de alguns atos perversos serem, por vezes, comuns em escolas e universidades.

A importância deste trabalho está em estimular a reflexão sobre o assédio moral e incentivar discussões que contribuam para uma maior conscientização sobre condutas, atitudes e comportamentos que precisam ser repensados, não só nas organizações do trabalho, mas também nas instituições de ensino. Tais comportamentos devem ser inaceitáveis, principalmente quando a formação de futuros cidadãos deveria ser a razão de existir dessas instituições. Questionamo-nos se seria possível ter um processo educacional emancipatório quando o papel do principal ator, no caso o professor, é levado aos alunos a partir de humilhações e constrangimento.

Apesar deste trabalho ter enfocado as situações em que o professor pode assumir um papel de perverso narcísico e assediador, há de se considerar também que o assédio por parte de alunos é uma realidade presente nas escolas e universidades. Tendo em vista a expansão do ensino superior privado, marcado fundamentalmente pela lógica mercantilista, os valores educacionais, conforme Souza-Silva e Davel (2005), podem se prostituir, trazendo uma série de malefícios nas relações que permeiam o processo de ensino-aprendizagem. Nessa dinâmica, a função do professor é colocada em questão, pois o aluno assume um papel de cliente e, conforme os autores, a necessidade satisfazê-lo a qualquer custo torna-se um mote, pois ele é visto como fonte de lucro. A concepção aluno-cliente facilita que situações de assédio ocorram e que o professor seja submetido a cenas constrangedoras, afastando-se de seu papel de educador. Como em qualquer outro contexto, no âmbito educacional também encontramos alunos com o perfil perverso-narcísico que são afeitos ao assédio moral. Apesar de não ter sido pretensão deste trabalho aprofundar na perspectiva do assédio do aluno para o professor, esta é uma discussão merecedora de atenção.

Por fim, qualquer que seja o direcionamento do assédio (professor-aluno ou aluno professor), vítimas são criadas. O trauma vivido pela manipulação perversa engendra sérias perturbações naquele que é agredido e ultrapassa os limites das instituições, afetando também aqueles que compartilham do cotidiano dessas vítimas. Apesar de existir na Constituição Federal parágrafos que tratam do assédio sexual e moral, as maiores dificuldades em relação à penalização do agressor são a "invisibilidade" e o alto grau de subjetividade envolvido na questão. Provar a relação de causa (agressão) e consequência (sofrimento da vítima) não é simples já que o agressor dificilmente deixa rastro. No entanto, fechar os olhos para as incidências e consequências do assédio é colaborar para que ele se torne ainda mais violento. Somente por meio de ações que incentivem a conscientização sobre o tema é que será possível coibir os assediadores e prevenir situações em que ocorre o assédio.

 

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Recebido em: 06/08/2015
Revisado em: 15/12/2015
Aceito em: 23/01/2016

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