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Revista Subjetividades

versão impressa ISSN 2359-0769versão On-line ISSN 2359-0777

Rev. Subj. vol.16 no.1 Fortaleza abr. 2016

http://dx.doi.org/10.5020/23590777.16.1.64-77 

DOCÊNCIA E PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADES

 

Criatividade docente: Winnicott e a construção de subjetividades

 

Teaching creativity: Winnicott and the construction of subjectivities

 

Creatividad docente: Winnicott y la construcción de subjetividades

 

Créativité de L'enseignant: Winnicott et la Construction des subjectivités

 

 

Maria Vitória Campos Mamede MaiaI; Camila Nagem Marques VieiraII

IProfessora adjunta da UFRJ em Psicologia da Educação, Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRJ, doutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2005). Membro do Fórum do CPRJ e membro da ANPED. Coordena o grupo de pesquisa Criar&Brincar: o lúdico no processo de ensino-aprendizagem - LUPEA. Desenvolve pesquisas na área do brincar, dificuldades de aprendizagem, psicologia do desenvolvimento e aprendizagem, necessidades especiais e inclusão, emateriais lúdicos para o desenvolvimento do processo de ensino-aprendizagem e avaliação projetiva psicopedagógica e psicanalítica
IIProfessora de Artes Visuais do Colégio Pedro II, mestre e doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGE/UFRJ). Atualmente, desenvolve pesquisa sobre criatividade na prática docente, ludicidade e processo de ensino-aprendizagem

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo tem por objetivo discutir a temática criatividade docente e o olhar winnicottiano em diálogo com a produção de subjetividades docentes e discentes. Partindo da premissa de queé necessário que haja vínculo entre ensinantes e aprendentes para se aprender, buscamos na psicopedagogia psicanalítica nossas bases para a compreensão desse processo. Assim, centraremos esta análise no docente, "responsável" pela tarefa de ensinar ou, como preferimos dizer, responsável por manter um ambiente suficientemente bom para que seja possível aprender. Dessa forma, iniciaremos discutindo o que seria criatividade docente. Em seguida, buscaremos dialogar com questões como autoria de pensamento e autonomia, entendidas como expressões práticas da produção de subjetividades. Nossa metodologia está estruturada em dois campos de análise. O primeiro, parte de análise documental de teses e artigos dos últimos 5 anos acerca da criatividade docente, e o segundo é composto por falas e depoimentos coletados em nossas pesquisas nos mais diversos contextos escolares, estabelecendo, assim, conexões com a temática proposta.

Palavras-chave: criatividade docente; Winnicott; subjetividades.


ABSTRACT

This article aims to discuss the theme of teaching creativity and the winnicottian view in dialogue with the production of teaching and student subjectivities. Starting from the premise that in order to learn it is necessary that there is a bond between teachers and learners, we seek in psychoanalytic psychopedagogy our bases for the understanding of this process. Thus, we will focus this analysis on the teacher, who is "responsible" for the task of teaching or, as we prefer, responsible for maintaining a good enough environment for learning. Thus, we will begin by discussing what would be teacher creativity. Next, we will seek to dialogue with issues such as authorship of thought and autonomy, understood as practical expressions of the production of subjectivities. Our methodology is structured in two fields of analysis, the first starts with documentary analysis of theses and articles of the last 5 years about teacher creativity, and the second is composed of statements and testimonies collected by our researches in the most diverse school contexts, thus establishing connections with the proposed theme.

Keywords: teaching creativity; Winnicott; subjectivities.


RESUMEN

Este trabajo tiene el objetivo de discutir la temática creatividad docente y la visión winnicottiana en diálogo con la producción de subjetividades docentes y discentes. Partiendo de la premisa de que para aprender es necesario que haya relación entre enseñantes y aprendientes, buscamos en la psicopedagogía psico-analítica nuestras bases para la comprensión de este proceso. De esta forma, centraremos este análisis en el docente, "responsable" por la tarea de enseñar o, como preferimos decir, responsable por mantener un ambiente bueno lo suficiente para que sea posible aprender. Así, iniciaremos discutiendo acerca de lo que sería creatividad docente. En seguida, buscaremos dialogar con cuestiones como autoría de pensamiento y autonomía, entendidas como expresiones prácticas de la producción de subjetividades. Nuestra metodología está estructurada en dos campos de análisis. El primero parte del análisis documental de tesis y artículos de los últimos 5 años sobre la creatividad docente y el segundo es compuesto por hablas y declaraciones recogidas por nuestras investigaciones en los más distintos contextos escolares, estableciendo, así, conexiones con la propuesta.

Palabras clave: creatividad docente; Winnicott; subjetividades.


RÉSUMÉ

Cet article a l'objectif de discuter sur le thème de la créativité d'enseignant et la pensée de Winnicott en dialogue avec la production de subjectivités des enseignants et des étudiants. En admettant que, pour apprendre, est nécessaire créer des liens entre les enseignants et les apprenants, nous avons utilisé la psychopédagogie comme notre base pour comprendre ce processus. Ainsi, nous concentrerons cette analyse dans l'enseignant «responsable» de la tâche d'enseignement ou, comme nous préférons dire, responsable de mantenir un environnement assez bon pour que soit possible d'apprendre. De cette façon, nous commencerons à discuter ce que serait la créativité. Ensuite, nous chercherons dialoguer sur la propriété de la pensée et de l'autonomie, comprises comme des expressions pratiques de la production des subjectivités. Notre méthodologie s'articule en deux champs d'analyse, le premier pars de l'analyse des thèses et des articles des cinq (05) dernières années sur la créativité de l'enseignant, et le second est composé de témoignages recueillis par nos recherches dans divers contextes scolaires, et donc, établir des connexions avec le thème proposé.

Mots-clés: créativité de l'enseignant; Winnicott; subjectivités.


 

 

Este artigo tem por objetivo discutir a temática criatividade docente a partir de pesquisas acadêmicas dos últimos cinco anos e extratos de vivências, buscando no olhar winnicottiano um diálogo com a produção de subjetividades docentes e discentes. Partindo da premissa de que é necessário que haja vínculo entre ensinantes e aprendentes para se aprender, encontramos na psicopedagogia psicanalítica nossas bases para a compreensão deste processo. Assim, centraremos esta análise no papel do docente, "responsável" pela tarefa de ensinar ou, como preferimos dizer, responsável por manter um ambiente suficientemente bom para que seja possível aprender. Dessa forma, iniciaremos discutindo o que compreendemos por criatividade docente. Em seguida, buscaremos dialogar com questões como autoria de pensamento e autonomia, entendidas como expressões práticas da produção de subjetividades e fundamentais para a formação docente.

Segundo Paín (2009, p. 17), "na escola, ao mesmo tempo em que promovemos um conhecimento, promovemos também a emergência de sujeitos que se sentem mais seguros, capazes, felizes, à medida que dominam, ou que se apropriam do conhecimento transmitido". Deste modo, para a autora, a apropriação de conhecimento é fortificadora do ego e também responsável pelos processos de subjetivação. Ao atribuir esse papel à escola, e consequentemente aos seus profissionais, se faz necessário repensar a tarefa de ensinar. É a partir desse fato que estruturamos nossa questão central de trabalho: como desenvolver uma docência responsiva e promotora de subjetividades que possam ter como âmago o ser criativo?

Nossa metodologia está estruturada em dois campos de análise. A primeira parte da análise documental de teses e artigos dos últimos 5 anos acerca da criatividade docente, e o segundo é composto por falas e depoimentos coletados em nossas pesquisas nos mais diversos contextos escolares, estabelecendo, assim, conexões desses com a temática, processos de subjetivação e o olhar winnicottiano.

Buscamos, neste artigo, ampliar as discussões já iniciadas em Vieira e Maia (2014), no qual as autoras desenvolvem uma reflexão acerca das subjetividades docentes em formação acreditando na necessidade de aprofundamento desta questão. Pretendemos validar, pelo olhar da psicanálise winnicottiana, a tese de que a construção e a manutenção de um ambiente suficientemente bom para a aprendizagem são promotores de subjetividades docentes e discentes. Mas o que entendemos por ambiente suficientemente bom? De que maneira a psicanálise e a psicopedagogia psicanalítica podem colaborar para o campo do trabalho docente?

 

Um Ambiente Suficientemente Bom para Mim, para Você, para Nós.

Iniciaremos nossa exposição teórica apresentando o que entendemos por criatividade, ambiente e aprendizagem. Em seguida, faremos a transposição para o contexto escolar, centrando na relação entre ensinante e aprendente. Nosso referencial teórico está pautado em Winnicott (1975, 1990, 1994, 1996), nas discussões promovidas por Paín (2008, 2009) e Fernández (2001, 2010), e o espaço do entre ou transicional, no qual emergem produtos criativos.

Para Winnicott (1996), a criatividade está centrada no início da vida, na relação estabelecida entre mãe e bebê. Logo, a criatividade se coloca como uma criatividade primária, no sentido de estar no cerne do tornar-se humano, ou seja, no âmago de um viver criativo que constitui o self. Viver criativamente advém de uma maternagem suficientemente boa, em que o ser humano se dá a partir da presença humana de outro ser humano. Não existe o humano sem esse vínculo corporal e afetivo. Assim, estar vivo é poder ser nutrido física e emocionalmente, é poder ser sustentado no tempo e no espaço, e poder conviver, compartilhar. Ou, como nos afirma Loparic (2008),

o homem só pode tornar-se um existente, alguém que se sente real e que é capaz de estar-no-mundo e de se relacionar com os outros e com as coisas (as primeiras delas sendo os brinquedos), de modo criativo, depois de ter sido acolhido por um colo materno, do qual dependeu totalmente e que foi seu primeiro lugar para ser. (p. 37)

Se conseguirmos lidar com as dificuldades, se aprendermos a suportar dentro de nós as oscilações naturais da vida, não seremos somente sobreviventes, e sim seres criativos. Para que esse gérmen de criatividade seja inserido na nossa vida cotidiana, no continuar-a-ser, temos de ter um ambiente constante, sem grandes sobressaltos, ou seja, a regra do jogo da vida deve ser sempre mantida. Fora isso, viveremos em estado de alerta e incapacitados para aprender significativamente, de forma original e criativa. Estaremos criando couraças ou falsos selfs, como nos propõe a teoria winnicottiana para a falência do espaço do viver criativo. Como nos afirmam Maia e Pinheiro (2010),

Assim sendo o corpo revela o lugar que uma pessoa ocupa no mundo, sendo este sempre relacional, não individual. Em um gesto está presente a pessoa humana e aqueles que os constituíram. O corpo tem possibilidade de ser morada e lugar de descanso para o self se esse corpo habita o outro. Safra (2007), ao conceituar placement articula o habitar, que é ter um lugar, com holding, que é a oferta de um tempo e de um lugar. Igualmente articula com o idioma pessoal de um sujeito humano, que é o acolhimento do que é singular nessa pessoa humana e também com o processo de personalização, que seria o corpo banhado pela presença do outro, acolhido por um lugar. (p. 179)

Portanto, para sermos criativos, temos de ter sido banhados por segurança, por constância, para que nosso corpo seja morada e produza um idioma pessoal, formando uma pessoa que seja no mundo e que não apenas esteja. Deste modo, ser criativo significa ser flexível, conseguir se adaptar ao mundo em constantes mudanças sem que este se quebre.

Os processos de individuação e subjetivação pelos quais o indivíduo passa ao longo de seu crescimento são fundamentais para a estruturação de um sujeito pleno e capaz de ser criativo. Como nos lembra Winnicott, no desenvolvimento humano, o ego1 precisa ser entendido como um conceito inseparável do conceito de existência do bebê como pessoa (Winnicott, 1962), sendo a partir de uma mãe-ambiente que o ego é capaz de se desenvolver e cumprir o papel de integração. A cobertura egóica propiciada por sua mãe2 é que permite o vir-a-ser e, posteriormente, o continuar-a-ser aqui já apresentado. É no processo de integração do sujeito que o ego se transmuta em eu e, como afirma Winnicott (1975, p. 60), "possibilita à nova pessoa humana construir uma personalidade".

Acreditamos que precisamos aprofundar a questão da transicionalidade para que possamos, adiante, discutir o que é para nós a criatividade docente. A criatividade, para Winnicott, em toda sua obra, tem relação intrínseca com a possibilidade de ser/ver o que seja a realidade externa. Como afirma este autor, "entre o subjetivo e aquilo que é objetivamente percebido existe uma terra de ninguém, que na infância é natural, e que é por nós esperada e aceita" (Winnicott, 1990, p. 127). Esse espaço natural infantil perdura ao longo de nossa vida. O que denominamos de algo objetivamente percebido ou externo é, de fato, uma construção criativa do ser humano, não havendo existência deste objeto dito real.

O fato é que um objeto externo não tem existência para vocês ou para mim exceto na medida em que vocês ou eu o alucinamos, mas sendo sãos, tomamos o cuidado de não alucinar, exceto quando sabemos o que ver. Naturalmente, quando estamos cansados ou há penumbra, podemos cometer alguns equívocos. (Winnicott, 1994, p. 45)

Winnicott postulará, e corroboramos com sua teoria, que "o problema da criatividade primária foi discutido como pertencendo à mais terna infância; mas para sermos precisos, trata-se de um problema que jamais deixa de ter sentido enquanto o indivíduo estiver vivo" (Winnicott, 1990, p.131).

Portanto, para podermos nos constituir como seres criativos, não podemos estar cansados ou, do contrário, olhamos o mundo com penumbra. Temos de continuar alimentando em nós a capacidade de estarmos sós na presença de alguém, temos de ter saído de uma posição exclusivamente onipotente para podermos aceitar "brincar" com o outro e construir, nessa transicionalidade ou deslizamento entre o nosso interior e o que nos é exterior, algo que faça sentido para os dois, eu e o outro. Este processo não é jamais findo, mas é ele que instaura em nós, subjetivamente, a percepção de que temos uma individualidade.

Como relata Winnicott (1994),

A partir desta experiência de onipotência inicial o bebê torna-se capaz de poder experimentar a frustração e até mesmo de um dia chegar ao outro extremo da onipotência, ou seja, de adquirir um sentimento de ser uma gota d'água no oceano, um oceano que já existia antes mesmo dele ser concebido por pais que tinham prazer um com o outro. Não é sendo Deus que os seres humanos adquirem a humildade tão peculiar à individualidade humana? (pp.89-90)

Em sua teoria, o autor nos deixa muito claro o que considera importante de ser entendido em relação à área de transicionalidade, ou espaço potencial, para a subjetivação do ser humano:

1) O lugar em que a experiência cultural se localiza está no espaço potencial existente entre o indivíduo e o meio ambiente (originalmente, o objeto). O mesmo se pode dizer do brincar. A experiência criativa começa com o viver criativo, manifestado primeiramente na brincadeira;

2) Para todo indivíduo, o uso desse espaço é determinado pelas experiências da vida que se efetuam nos estádios primitivos de sua existência;

3) Esse espaço potencial encontra-se na interação entre nada há ver se não eu e a existência de objetos e fenômenos situados fora do controle onipotente;

4) O espaço potencial acontece apenas em relação a um sentimento de confiança por parte do bebê, isto é, confiança relacionada à fidedignidade da figura materna ou dos elementos ambientais, com a confiança sendo a prova da fidedignidade que se esta introjetando;

5) Esse espaço pode ser visto como sagrado para o indivíduo por que é aí que este experimenta o viver criativo. (pp.139-140)

O espaço transicional deve ser visto como sagrado. Perguntamo-nos: como assim, sagrado? Sagrado porque não deve ser questionado no sentido de ser o que para nós ele é. Em outras palavras, para podermos ser criativos como seres humanos no mundo, devemos manter o processo de alucinação/ olhar singular para o que olhamos (notem que não estamos nos referindo ao ver somente). O contato com o mundo externo existe devido a essa alucinação permitida dentro de nós. Para exemplificar o que ele está chamando de alucinação e da necessidade dela existir para que possamos entrar em contato com o mundo externo, o autor utiliza-se de uma poesia, de dois limericks3. Um deles de autoria de Ronald Knox; o outro, um acréscimo do próprio Winnicott (1994) em resposta ao poeta:

A pedra e a árvore

Continuam a existir

Quando não há ninguém no pátio?

E a resposta:

A pedra e a árvore

Continuam a existir,

Tal como observadas pelo sinceramente seu... (p.45)

Maia (2007, p. 69) acrescenta a esses dois olhares outro: o olhar de Alberto Caeiro, um dos heterônimos de Fernando Pessoa (1977, pp. 217-218), que igualmente nos diz,

O que nós vemos das cousas são as cousas.
Porque veríamos nós uma cousa se houvesse outra?
Porque é que ver e ouvir seria iludirmo-nos
Se ver e ou vir são ver e ouvir?

O essencial é saber ver,
Saber ver sem estar a pensar,
Saber ver quando se vê,
E nem pensar quando se vê
Nem ver quando se pensa.

Mas isso (tristes de nós que trazemos a alma vestida!)
Isso exige um estudo profundo,
Uma aprendizagem de desaprender
E uma sequestração na liberdade daquele convento
De que os poetas dizem que as estrelas são as freiras eternas
E as flores as penitentes convictas de um só dia,
Mas onde afinal as estrelas não são se não estrelas
Nem as flores são flores,
Sendo por isso que lhes chamamos estrelas e flores. (grifo da autora)

Interpretando essa poesia com o olhar de Winnicott, Maia (2007) analisa a articulação entre alucinar, criar e simbolizar, falando-nos que;

Porém, como afirma Caeiro, nós, seres humanos, temos "a alma vestida" e assim sabemos que entre a pedra e a árvore que lá fora existe, e a pedra e a árvore que dentro de nós subsiste, há uma representação desses objetos e que "vestimos" esses objetos com ilusão, mais tarde com o símbolo e assim, pedra e árvore, para cada ser humano, terá a singularidade que o uso da ilusão possibilitou a nós construir, para depois fazermos "uma aprendizagem de desaprender", ao sairmos da onipotência e compartilharmos o mundo com os demais seres humanos. (p. 69)

Este processo aqui descrito e vivenciado desde a mais tenra infância é promotor dos processos de subjetivação que se estendem à vida escolar. Neste sentido, se grande parte da rotina de nossas crianças se passa na escola, há de se necessariamente pensar sobre a questão e o papel da escola e de seus educadores na construção de subjetividades criativas e criadoras de um mundo significativo.

 

Criatividade Docente: Pesquisas Acadêmicas

Entendemos ser necessário, a fim de justificar e respaldar nossa abordagem, compreender de que maneira as pesquisas da academia brasileira têm desenvolvido a temática da criatividade docente. Em nossas pesquisas, temos percebido que a cada vez mais a temática criatividade vem sendo explorada, porém, "desenvolver o pensar de uma maneira criativa e inovadora não tem sido uma preocupação da escola" (Araújo, 2009, p. 63). Segundo a autora, a maioria das escolas ainda privilegia a memorização e a reprodução de conhecimentos qualificando parcialmente seus alunos para pensar de maneira flexível e imaginativa. No mesmo sentido, as pesquisas de Santos (2013a) e Morgon (2013) reiteram a necessidade da criatividade habitar nossas escolas de maneira a promover o pensamento divergente, a liberdade, a autonomia e a autoria de seus sujeitos.

A partir do exposto, é possível identificar uma lacuna entre teoria, pesquisa acadêmica e prática, ou, como se diz usualmente, entre o que se passa no chão da escola e o que se pesquisa na academia. Segundo Mitjáns Martínez (2002, p. 190), esse distanciamento pode ser entendido pela complexidade do fenômeno da criatividade, que dificulta ações educativas efetivas. A autora busca defender que a própria dificuldade de definição teórica do que é criatividade e o reconhecimento do ato criativo como multifacetado e heterogêneo em contraposição a uma abordagem simplista e banalizada constituem barreiras consideráveis à determinação de eixos de trabalho para a criatividade no contexto educacional.

Mitjáns Martínez (2002, p. 189) apresenta três frentes de ação para a discussão da criatividade na escola, são elas: o desenvolvimento da criatividade do aluno, o desenvolvimento da criatividade dos educadores e o desenvolvimento da criatividade da escola como organização. Dessa maneira, a posição da autora coaduna com a ideia de ambiente suficientemente bom aqui defendida (Maia, 2014), já que entende que "para ajudar a desenvolver nos alunos os recursos pessoais que lhe permitam uma ação criativa e transformadora, é necessário que se constituam espaços de relação e ação favoráveis" (Maia & Vilhena, 2002, p. 191), chamados de "relação criativa professor-alunos", a qual deve ser caracterizada pelo clima emocionalmente positivo e o respeito pelas diferenças e individualidades.

Nesse sentido, trazemos o seguinte questionamento: se a escola é vista como não criativa e pouco flexível, qual a percepção do docente em relação à sua prática? Como ser criativo em ambientes tão pouco propícios? Como ser criativo se não foi possível experimentar sê-lo?

Segundo Alencar & Fleith (2003, p. 183), "(...) predomina entre professores uma concepção errônea de criatividade, considerando-a um dom, privilégio de poucos, presente apenas em grandes artistas, inventores e cientistas (...)". Nas universidades e nos espaços de formação do professor não há muita oportunidade para se estudar a teoria da criatividade ou para se ter contato com disciplinas que abordem temas similares, pois essas não são contempladas pelo currículo mínimo, restando para muitos desses futuros profissionais o senso comum. De acordo com Nachmanovitch (1993, p. 23), "o conhecimento do processo criativo não substitui a criatividade, mas pode evitar que desistamos dela quando os desafios nos parecem excessivamente intimidadores (...)".

Estes questionamentos vêm habitando nossas pesquisas e, para buscar respondê-los, nos debruçamos primeiramente no que a academia tem elaborado acerca dessa questão. A partir de pesquisas realizadas junto ao banco de teses e dissertações da Capes e da Biblioteca Digital de Teses e Dissertações (BDTD)4, utilizando como chave de pesquisa o termo criatividade docente, selecionamos, dentre os dados encontrados, 11 produções, sendo 6 teses e 5 dissertações, de 2009 a 2014, que dialogam com nossa questão (Tabela 1).

Observando as teses e dissertações aqui apresentadas, é possível identificar que 7 (sete) das 11 (onze) produções relacionadas foram produzidas na Universidade Católica de Brasília (UCB), em seu programa de Pós-Graduação em Educação, e, em sua maioria, sob orientação da Prof.ª Dra. Eunice Maria Lima Soriano de Alencar, autora de livros e pesquisas na área da criatividade e considerada referência teórica na área. As produções relatadas dialogam com os projetos de pesquisa coordenados pela professora de 2008 a 2012, ano de seu desligamento da instituição, em especial com a pesquisa intitulada "Processos criativos nos contextos educacional e das organizações", e indicam um alinhamento com a temática aqui discutida. A partir de 2014, não foram encontradas, nas bases acessadas, outras produções da UCB que dialoguem com o tema criatividade docente, o que indica a influência desta pesquisadora na produção acadêmica sobre o assunto. Em seguida, buscaremos analisar as proximidades e os distanciamentos das pesquisas selecionadas.

Em sua tese de doutoramento, intitulada "As crenças docentes sobre a criatividade e as práticas pedagógicas criativas: o caso do programa do ensino médio inovador do RN", Santos (2013a, p.7) objetiva, a partir de um estudo de caso, estudar "as crenças dos professores sobre a criatividade dos estudantes no ensino médio inovador". Desta maneira, o enfoque de Santos é a percepção do docente sobre a criatividade de seus alunos e não sobre sua própria prática, lacuna esta que ainda acreditamos necessitar ser preenchida pela academia.

Suanno (2013) busca verificar, a partir de um contexto escolar específico e da aplicação de instrumento de valoração do grau de desenvolvimento criativo de instituições criativas, se determinada instituição pode ser entendida como criativa. Partindo dos conceitos de ecoformação e transdisciplinariedade, assim como da percepção dos mais diversos sujeitos inseridos neste campo, o autor pretende, em sua escrita, dialogar com a perceptiva de uma escola do século XXI, na qual a criatividade é entendida como uma necessidade. Neste sentido, acreditamos que as perspectivas abordadas por ele convergem com o entendimento de Morgon (2013), aqui já apresentado, e com os buscados por nossas pesquisas. Destacamos ainda o caráter dialógico pretendido pela autora ao dar voz aos sujeitos pesquisados.

Já a tese de Testoni (2013) e a dissertação de Santos (2013b) buscam entender a questão da criatividade na produção de conhecimento e nas práticas pedagógicas a partir de campos disciplinares específicos, Física e Artes respectivamente. As produções colaboram para pensar que a necessidade e a busca por uma criatividade docente não estão restritas a determinadas disciplinas, sendo objeto de pesquisa da área de Ciências Exatas e de Ciências Humanas. As pesquisas em questão colaboram para contrapor determinadas máximas relativas à criatividade no espaço escolar, as quais consideram áreas como Artes, Literatura e Educação Física mais propícias à criatividade do que disciplinas de Exatas, fato este também discutido por Santos (2013a).

As teses de Oliveira (2012), Pinto (2011) e Fadel (2010), assim como a dissertação de Lima (2010), investigam o ensino superior e de que maneira as universidades vêm dialogando com questões como criatividade e docência inovadora (Pinto, 2011). A dissertação de Lima (2010) trabalha especificamente com a percepção de docentes de cursos de pós-graduação em Educação acerca de sua prática, o que se relaciona com este artigo e colabora para a construção da relevância do mesmo.

A dissertação de Oliveira (2009) traz como enfoque a percepção de coordenadores pedagógicos sobre a prática docente e, assim como Santos (2013a), faz uso apenas de questionários como instrumento de coleta de dados. Não há, nesse primeiro estudo, a construção de dados relativos à percepção do docente para a triangulação com as percepções dos coordenadores. Além disso, a autora define como cenário de pesquisa a rede particular de ensino, o que, apesar de trazer outra percepção da educação básica, não permite, a partir dos dados apresentados, a naturalização dos dados e sua aplicação em base macro.

Em linhas gerais, as produções analisadas contribuem para a observação dos recortes dados à questão da criatividade e, em especial, às discussões acerca da criatividade docente, tanto na educação básica como no ensino superior. Entendida como uma temática necessária para a construção da escola do século XXI e que deve ser incluída especialmente na formação de professores e nas discussões que permeiam a formação continuada dos já formados, as produções acadêmicas aqui discutidas comprovam a atualidade da temática para o contexto educacional, além de explicitar os caminhos que ainda necessitam ser percorridos. Acreditamos ser preciso fortalecer o campo de discussão da criatividade docente por sua relevância para o entendimento do contexto educacional, em especial para o trabalho docente. Deste modo, buscamos pensar em uma docência responsiva capaz de transformar/flexibilizar práticas para a garantia de um ambiente suficientemente bom para as aprendizagens.

 

Subjetividades Forjadas: O Docente em Formação

Neste segundo momento de análise, daremos enfoque ao profissional docente e à sua relação com a criatividade em seu ambiente de formação e trabalho, entendendo seu papel na construção de espaços de criar e aprender. Iniciaremos com alguns questionamentos na tentativa de ilustrar quais caminhos buscamos seguir.

Qual o papel do professor no contexto educacional atual? Seriam nossos docentes cientes de suas práticas ou mero reprodutores de modelos educacionais impostos por seus cursos de formação ou instituições que normatizam e enquadram?

Ao focar nossa discussão na temática saberes docentes (Tardif, 2014), pretendemos compreender melhor o universo desse professor que, forjado em nossas universidades e/ou cursos de formação de professores, chega às escolas e se torna, junto com seus alunos, protagonista do ato de ensinar/aprender. Para colaborar com as discussões propostas neste artigo, utilizaremos relatos de experiência e falas extraídas de diversos contextos nas quais atuam as respectivas autoras, sejam instituições públicas de educação básica (federais ou municipais) ou salas de aula do ensino superior5.

Parafraseando Tardif (2014, p. 9): seria a criatividade um saber docente? Onde ela é forjada? Em nossas experiências pessoais? Em processos de formação desenvolvidos em nossas instituições? Em nossas práticas? Nas escolas em que lecionamos? O próprio autor nos ajuda a responder à questão em parte, "o saber dos professores é o saber deles e está relacionado com a pessoa e a identidade deles, com sua experiência de vida e com a sua história profissional, com as suas relações com os alunos em sala e com os outros atores escolares na escola" (Tardif, 2014, p. 11).

Assim sendo, o saber docente se compõe com vários saberes provenientes de diferentes fontes, sendo organizados pelo autor como saberes disciplinares, profissionais, curriculares e experienciais (Tardif, 2014), os quais estão diretamente relacionados à sua prática. Neste sentido, a reflexividade é uma característica que deve ser levada em conta, pois, no próprio desempenho de seu trabalho, o docente mobiliza ampla gama de saberes, sendo esses reutilizados, readaptados e transformados no trabalho, pelo trabalho e para o trabalho. É importante ressaltar que esses saberes, antes de serem próprios, são, acima de tudo, saberes sociais, forjados pela sociedade e mobilizadores de perspectivas ideológicas, éticas e culturais. Desta maneira, não há neutralidade possível. O trabalho docente e seus saberes são construídos de maneira coletiva, a partir da negociação de diversos grupos com o sujeito.

A partir disso, nos perguntamos: seria a criatividade um saber docente ou seria o ato criativo mobilizador de saberes? Um professor que possua dificuldade em lidar com o espaço de criação seria capaz de acessar seus saberes da mesma maneira que um docente que tenha criado espaços de criar e brincar em seu trabalho? Neste sentido, acreditamos que a criatividade pode ser entendida não apenas como um saber docente, mais como ferramenta mobilizadora, portanto fundamental para a prática e para a formação docente como um todo.

Segundo Mitjáns Martinéz (2002),

A ação criativa do professor em sala de aula demanda não só sua capacidade de elaborar atividades inovadoras que permitam atingir os objetivos educativos de forma mais eficiente, mas também demanda habilidades comunicativas que lhe permitam criar um espaço comunicativo que se constitua no espaço onde as atividades possam fazer sentido para o desenvolvimento da criatividade. (p. 196)

Ao buscarmos diálogo com a autora, sabemos que, teoricamente, o espaço de que nos fala Winnicott não é o mesmo proposto por ela, porém acreditamos ser possível colocar em articulação ambas as concepções tratando-se do contexto pedagógico. Ao focar a ação pedagógica na construção do vínculo aluno-professor, ou entre ensinante-aprendente (Fernández, 2001), é possível trazer à cena a possibilidade de uma vivência lúdica e criativa.

A fim de fomentar nossas discussões, escolhemos uma fala de um professor que acreditamos representar algumas questões recorrentes no que se refere à criatividade na escola e à percepção do docente:

[para] ter uma atividade lúdica, para fazer algo diferenciado, eu preciso de tempo. Capacidade não nos falta de produzir material, capacidade não nos falta de fazer algo mais lúdico, capacidade não nos falta da gente produzir, é... uma coisa exequível com as condições existentes, porém, não temos tempo. (Professor J.R.)

Ser criativo no espaço escolar, trabalhar de maneira lúdica é, por muitos, ainda visto como sinônimo de produção de material, e não há de se negar de que muitas vezes falta tempo para a maioria de nossos docentes, acabando por impactar em seus planejamentos pedagógicos. Muitas redes de ensino no país ainda não cumprem a lei do 1/3 da carga horária dedicada ao planejamento (Lei 11.738, Para. 4º): "na composição da jornada de trabalho, observar-se-á o limite máximo de 2/3 (dois terços) da carga horária para o desempenho das atividades de interação com os educandos". Em outros casos, quando cumprem, nem sempre possuem em suas escolas espaço, infraestrutura e mão de obra especializada suficiente para desempenhar o papel de orientação pedagógica de seus docentes, como também percebido por Mariani e Alencar (2005) em sua pesquisa. Nessas realidades, muitas vezes, de fato, o simples pensar pedagogicamente fica comprometido. O professor J.R. afirma sua capacidade de produzir, de ser lúdico, mas a falta de tempo é entendida como vilã. Talvez, para esse docente, não seja possível ainda compreender que, como nos lembra Mitjáns Martinéz (2002), um docente criativo necessita não apenas produzir atividades inovadoras, mas desenvolver as capacidades comunicativas em sua sala de aula.

Outras falas, tais como: "Eu não sou criativo, deixa isso pro [sic] professor de Artes", "nós temos carga horária para um trabalho 'normal'", e "esse trabalho normal a gente faz", ditas por outro professor, demostram quanto o entendimento de criatividade no espaço escolar não é tratado com naturalidade. O trabalho normal, conceituado por este professor, é visto como não criativo, sendo a criatividade mais uma vez associada ao tempo do docente para sua execução. Na falta de tempo, o que resta é a não criatividade, entendida neste contexto como algo normal, o tradicional "cuspe e giz" de tantas salas de aula. Mas será que, de fato, a criatividade no contexto escolar é algo assim tão inatingível para nossos professores?

Em uma oficina ministrada por uma das autoras em uma escola de ensino fundamental de uma rede municipal, o seguinte lhe foi dito: "você [pesquisadora] falou a nossa língua. De todo mundo de fora que veio aqui, você faz jus ao título de doutora". Essa fala demonstra como, muitas vezes, o que a academia e seus doutores produzem sobre a escola e sobre a criatividade não é de fato compreensível por seus docentes. É necessário transpor saberes, estimular trocas e construir parcerias para que a pesquisa colabore mais efetivamente para o chão da escola. Se defendemos a construção de vínculos entre ensinantes e aprendentes, temos que, antes de mais nada, propiciar vínculos entre docentes e pesquisadores, de maneira que consigamos "falar a mesma língua".

Neste sentido, é necessário considerar o que nos relatou um licenciando: "Acredito que os professores também são modelos identificatórios e, mesmo que inconscientemente, quando ocupamos o mesmo cargo, acabamos repetindo práticas que marcaram positiva ou negativamente nossas vidas" (D.S., estudante de licenciatura). Ao pensarmos a história da educação em nosso país, é possível perceber que predomina em nossas escolas um modelo de ensino dito tradicional (Romanelli, 2009), forjando em muitos dos professores que estão hoje em sala de aula um modelo tantas vezes visto e aprendido. Não pretendemos aqui culpabilizar determinado modelo, mas fomentar a reflexão e buscar em nossas escolas práticas de ensino-aprendizagem que dialoguem de maneira mais inclusiva com as diferenças e que favoreçam as subjetividades em suas práticas.

Sobre a ludicidade em sala de aula, o depoimento de outro licenciando sobre suas vivências escolares ilustra a ausência da ludicidade em muitas salas de aula: "Raras foram as vezes que tive o lúdico presente na minha vida escolar. Tive algumas vezes na época de colégio com aulas com dinâmicas em grupo e, no ensino superior, em aulas de psicologia e didática" (M.A., aluno de pedagogia); "Meu ensino foi basicamente tradicional" (H.T., aluno de pedagogia). Ao pensar a formação docente em nossos cursos de licenciatura e Pedagogia, é possível notar certa dissonância entre o que se discute nas salas de aula da graduação e o que encontra o licenciando ou o licenciado no ambiente escolar/universitário. Alguns depoimentos de futuros professores demonstram o quanto o abismo entre universidade e futuros docentes é algo que permeia a construção identitária de uma classe:

Na teoria aprendemos que a ludicidade é importante, no entanto, em nossa própria universidade, só há uma professora (que conheço) que de fato a pratica, que entende a importância do lúdico para a aprendizagem. (F. F.)

Tive poucas experiências de práticas de professores que valorizavam o lúdico, mas estas poucas que tive foram muito importantes para a minha formação. (H.F.)

Percebo que, devido à grande quantidade de "teóricos" que o professor propõe analisar, pouco se atenta ao processo ensino-aprendizagem dos graduandos com relação ao lúdico, que considero essencial. (R.R.)

Por ser um local onde se privilegia o fazer científico. Práticas lúdicas podem ser consideradas pouco científicas. (O.H.)

As práticas docentes são engessadas no método tradicional, em que o professor fala e os alunos tomam nota. (L.M.)

Há muita resistência por parte dos professores universitários quanto à inovação. Percebo até que os professores mais tradicionais criticam aqueles que acreditam em outras maneiras, formas e metodologias de ensinar e aprender. (D.A)

As falas desses estudantes demonstram que algo vem sendo feito, porém desconfiamos que este espaço de discussão construído pelas Universidades não tem sido suficientemente bom para nossos futuros professores. Excesso de teorias que não encontram aplicação prática, modelos de ensino que não valorizam a autoria de pensamento de seus graduandos, falta de abertura para a inovação e a falta de articulação dos saberes. Como fazer? Como transpor? Seriam as matérias práticas suficientes para dar conta de tanto conhecimento teórico transplantado e não refletido? Neste sentido, de que maneira forjamos, em nossos cursos de graduação, subjetividades docentes?

Foucault (2001) nos fala sobre o cuidar de si para podermos nos constituir como sujeitos. Como o conceito que o autor nos apresenta pode estar articulado com a formação da subjetividade docente ao longo de um curso de graduação?

Para Foucault (2001, p. 11), "o cuidado de si é uma espécie de aguilhão que deve ser implantado na carne dos homens, cravado na sua existência, e constitui um princípio de agitação, um princípio de movimento, um princípio de permanente inquietude no curso da existência". O cuidado de si é "realmente o quadro, o solo, o fundamento a partir do qual se justifica o imperativo do conhece-te a ti mesmo" (2001, p.12).

Podemos articular esse percurso histórico que Foucault nos relata com o conceito de criatividade primária desenvolvido por Winnicott em sua obra e já abordado por nós. Somos criativos quando podemos lidar com o ambiente que nos cerca de forma original e singular; somos criativos desde que "somos", ou seja, desde o momento em que começamos a existir na subjetividade de outro. Não somos criativos no vazio, na não significação subjetivante do olhar do outro para nós. Reconhecemo-nos porque nos vemos no olho do outro e, nesse sentido, acreditamos que o cuidar de si é exatamente o momento em que nos tornamos criativos como lastro, ou ludens, como nos diria Huizinga (2007). Poderemos, assim, associar o cuidar de si com a criatividade e, se do outro precisamos para que esse movimento possa existir ou se constituir, devemos acreditar que a criatividade docente advém de uma construção em um espaço de entrelinhas. Nesse espaço tecemos nosso olhar com o olhar do outro e, esse outro criativamente cria-se, cuida-se e se conhece, forjando-se docente a partir deste que dele cuida. Voltando ao Foucault (2001), o autor nos enuncia três pontos sobre os quais deveríamos analisar a expressão "epiméleia heautou" (cuidado de si):

Primeiramente, o tema de uma atitude geral, um certo modo de encarar as coisas, de estar no mundo, de praticar ações, de ter relações com o outro. A epiméleia heautou é uma atitude - para consigo, para com os outros, para com o mundo. Em segundo lugar, a epiméleia heautou é também uma certa forma de atenção, de olhar. Cuidar de si mesmo implica que se converta o olhar, que se o conduza do exterior para ... eu ia dizer "o interior"; deixemos de lado esta palavra (que, como sabemos, coloca muitos problemas) e sigamos simplesmente que é preciso converter o olhar, do exterior, dos outros, do mundo, etc. para "si mesmo". O cuidado de si implica uma certa maneira de estar atento ao que se pensa e ao que se passa no pensamento. Há um parentesco da palavra epiméleia com meléte, que quer dizer, ao mesmo tempo exercício e meditação(...). Em terceiro lugar, a noção de epiméleia não designa simplesmente esta atitude geral ou esta forma de atenção voltada para si. Também designa sempre algumas ações, ações que são exercidas de si para consigo, ações pelas quais nos assumimos, nos modificamos, nos purificamos, nos transformamos e nos transfiguramos. Daí, uma série de práticas que são, na sua maioria, exercícios, cujo destino (na história da cultura, da filosofia, da moral, da espiritualidade ocidentais) será bem longo. São, por exemplo, as técnicas de meditação"; as de memorização do passado; as de exame de consciência"; as de verificação das representações na medida em que elas se apresentam ao espírito etc. (pp. 14-15)

Desta longa e necessária citação podemos destacar certos pontos que constroem uma reflexão sobre a criatividade docente e as subjetividades.

Epiméleia heautou é "um certo modo de encarar as coisas, de estar no mundo, de praticar ações, de ter relações com o outro". Para que possamos ser criativos e igualmente docentes, ensinantes, que convivem na díade ensinar-aprender, necessitamos desenvolver esse modo de estar no mundo e de se relacionar, tendo um duplo olhar para si e para o outro.

Epiméleia heautou "implica certa maneira de estar atento ao que se pensa e ao que se passa no pensamento", ou seja, é manter aberta e sustentada a área que Winnicott (1975) denominou de transicional, já que neste espaço se gesta a criação de si e do mundo. Nesse sentido, exercer uma docência criativa é cultivar e desenvolver igualmente "epiméleia heautou".

E, por fim, Foucault (2001) nos alerta que epiméleia heautou "também designa sempre algumas ações, ações que são exercidas de si para consigo, ações pelas quais nos assumimos, nos modificamos, nos purificamos, nos transformamos e nos transfiguramos". Podemos afirmar que, para sermos e constituirmos em nós uma subjetividade criativa, devemos necessariamente nos apoderarmos " da parte que nos cabe nesse latifúndio" chamado educar, a parte que a nós é dada de per si, mas que precisa de um apossamento para poder de fato existir e se fazer acontecer no âmbito educacional e, assim, criar um espaço onde não exista quem criou o que ou quem; de haver subjetividades que se conectam e se modificam, se purificam, nos transfigurando no sentido de nos iluminar e iluminar o outro.

Esse apossamento, que Winnicott (1975) denominou de objeto transicional, será o instrumento base do trabalho docente criativo e certamente forjará futuros docentes criativos, já que não se terá ensinado por movimentos externos o ser docente criativo, terá sido vivido e experienciado em conjunto, na mesma metáfora winnicottiana da díade mãe-bebê e do olhar que cria neste o bebê e o ser bebê no mundo. Teremos uma experiência de mutualidade e de comunicação não verbal, já que o que é importante para o ser humano normalmente não é nomeado, e sim sentido.

Como nos alerta Maia (2007), quando analisa a constituição da subjetividade do ser humano na teoria winnicottiana,

Antes de a linguagem ser verbal e nomear o mundo que a cerca, há uma outra linguagem: a linguagem silenciosa - a comunicação não-verbal. Para Winnicott, a comunicação silenciosa é uma comunicação inconsciente. A habilidade de comunicar-se não está fundada, inicialmente, na aquisição da linguagem, mas sim em uma interação pré-verbal, estabelecida por intermédio da mutualidade. Consequentemente, a habilidade do bebê de brincar e simbolizar precede o período em que passa a fazer uso de palavras. (pp. 55-56)

Assim sendo, nossa habilidade em sermos criativos e guardarmos essa experiência como marca de nossa subjetividade advém não do quanto aprendemos como homo sapiens, homem da consciência e da razão, e sim do quanto, sem perceber, inconscientemente, vivenciamos. Muito antes de sabermos dar aula sobre algum assunto, temos de ter vivido a experiência de "ter sido Deus e ter criado o mundo". Cabe ao docente, que aqui denominamos de criativo, poder permitir ao outro ser Deus e criar o seu mundo para depois, vagarosamente, ir apresentando a esse outro o arqui-inimigo da espontaneidade e da criatividade, segundo Winnicott, o princípio da realidade. Se não há palavras para exprimir esse movimento e essas vivências, como nos forjamos seres criativos em essência? Sugerimos seguir mais uma vez o pensamento de Winnicott (1990) quando nos pergunta:

"O que o bebê vê ao olhar o rosto da mãe?" E nos responde: "Sugiro que, normalmente, o que o bebê vê é a si próprio. A mãe olha para o bebê e aquilo que ela parece relaciona-se com aquilo que ela vê". Ele também enfatiza que "a fim de olhar criativamente e ver o mundo, o indivíduo, antes de tudo, deve ter internalizado a experiência de ter sido olhado". Para Winnicott, "o precursor do espelho é o rosto da mãe". (pp.153-155)

Dessa forma, Maia (2007) afirma que

para poder especular sobre si e sobre o mundo, a pessoa deve primeiro ter sido olhada com interesse por alguém e esse alguém deve ter olhado para essa pessoa com sua alma, para poder permitir ao outro a possibilidade de perceber em si mesmo a alma que nele habita. (p.179)

Logo, devemos elencar como necessários para que uma subjetividade criativa emerja dentro de um espaço educacional, similar para nós, no sentido de criação de símbolos e vivências, ao espaço familiar, ou não educacional,: o desenvolvimento do cuidado de si; a necessidade de um ambiente facilitador, que não constitua sujeitos copistas, e sim inventivos e sensíveis; assim como a necessidade de um docente olhar com interesse para seu aluno, futuro docente, que o veja como um ser criativo e criador, permitindo a ele "a possibilidade de perceber em si mesmo a alma que nele habita".

O humano é o precursor do humano. Os olhos maternos permitem que a criança possa gostar de se olhar ao espelho e de descobrir-se ao espelho. Primeiro acreditando que há outro lá, talvez atrás do espelho - virando a porta para ver se encontra, lá, o outro visto. Depois, achando-se efetivamente na imagem que vê refletida, porque essa imagem é exatamente a imagem que ela, antes, via nos olhos de sua mãe.

 

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Endereço para correspondência:
Maria Vitória Campos Mamede Maia
End.: Rua Visconde de Pirajá 303/1103 - Ipanema
Rio de Janeiro - CEP: 22410-001
E-mail: mariavitoriamaia@gmail.com

Camila Nagem Marques Vieira
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E-mail: camilanagem@yahoo.com.br

Recebido em: 27/08/2015
Revisado em: 03/01/2016
Aceito em: 20/04/2016

 

 

1 Diferente do que nos propõe Freud, para Winnicott, há um ego ainda não desenvolvido em princípio, sendo assim o ego não advém do id como defendido por seu antecessor.
2 Cabe esclarecer que, para a teoria winnicotiana, o papel da mãe é meramente ilustrativo, podendo esta figura ser desempenhada por qualquer pessoa que cumpra o papel de cuidar, alimentar e amparar, necessários para a manutenção do bebê e que principalmente estabeleça vínculo com o indivíduo, construindo o que conceituamos como 'entre'.
3 Espécie de verso de cinco linhas com a rima na 1ª, 2ª e 5ª linhas e na 3ª e na 4ª. (N. do R.) (p.45)
4 No momento da pesquisa, o banco de teses e dissertações da Capes disponibilizava apenas dados referentes ao ano de 2011 e 2012. Disponível em: http://bancodeteses.capes.gov.br/#20 Acesso em 03 de maio de 2015. Disponível em: http://bdtd.ibict.br/
5 Os nomes e demais dados que possibilitem o reconhecimento de seus autores serão suprimidos afim de manter a ética da pesquisa.

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