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Revista Subjetividades

versión impresa ISSN 2359-0769versión On-line ISSN 2359-0777

Rev. Subj. vol.16 no.1 Fortaleza abr. 2016

http://dx.doi.org/10.5020/23590777.16.1.166-180 

ARTIGO ORIGINAL

 

Ancestralidade africana da cultura e da identidade do samba

 

African ancestry of samba culture and identity

 

Ancestralidad africana de la cultura y de la identidad de la samba

 

Culture d'ascendance africaine et l'identité de la samba

 

 

Nilcemar NogueiraI; Regina Glória Nunes AndradeII; Georgie Echeverri VásquezIII

IDoutora em Psicologia Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e mestra em Bens Culturais e Projetos Sociais pela Fundação Getúlio Vargas. Coordenou a pesquisa de reconhecimento do samba carioca como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil. Atualmente é a diretora do Museu do Samba do Rio de Janeiro
IIPsicóloga e doutora em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professora titular do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Coordenadora do Convênio CAPES-COFECUB: UERJ-UFRJ-Lille. Coordenadora do Convênio UERJ-Universidade Agostinho Neto (Luanda-Angola). Coautora de coletâneas como Território Verde e Rosa: construções psicossociais no Centro Cultural Cartola e Territórios sem fronteiras: o social no contemporâneo. Coordenadora dos Grupos de Pesquisa CNPq Pesquisas Participativas em Comunidades e Pesquisas em Territórios Sociais
IIIDoutorando em Psicologia Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Comunicador Social - Jornalista pela Universidad Pontificia Bolivariana (Medellín-Colômbia). Atualmente vem estruturando o modelo de educação patrimonial no Museu do Samba a partir do enfoque da educação experiencial. Faz parte do Grupo CNPq de Pesquisas Participativas em Comunidades

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo aborda o processo de configuração das identidades negras dos povos da diáspora africana no Brasil, frisando os lugares e os contextos de emergência e o desenvolvimento da negritude como conceito. A partir dessa perspectiva sócio-histórica, faz referência à construção da identidade nacional brasileira apontando para a hibridação como fenômeno cultural tangível nas tradições musicais. Nessa linha de preservação das tradições, o texto finalmente apresenta a forma como o samba carioca foi registrado como patrimônio cultural imaterial do Brasil sob a liderança do Centro Cultural Cartola, hoje Museu do Samba.

Palavras-chave: cultura; identidade; negritude; hibridação; samba.


ABSTRACT

The article deals with the process of configuring the black identities of the peoples of the African diaspora in Brazil, highlighting the places and contexts of emergence and the development of blackness as a concept. From this socio historical perspective, it makes reference to the construction of the Brazilian national identity pointing to the hybridization as tangible cultural phenomenon in the musical traditions. In this line of preservation of traditions, the text finally shows how samba in Rio was registered as intangible cultural heritage of Brazil, under the leadership of the Cartola Cultural Center, today the Samba Museum.

Keywords: culture; identity; blackness; hybridization; samba.


RESUMEN

Este trabajo aborda el proceso de configuración de las identidades negras de los pueblos de la diáspora africana en Brasil, subrayando los lugares y los contextos de emergencia y el desarrollo del concepto de negritud. Partiendo de esta perspectiva socio-histórica, haz referencia a la construcción de la identidad nacional brasileña indicando para la hibridación como fenómeno cultural tangible en las tradiciones musicales. En este rumbo de preservación de las tradiciones, el texto finalmente presenta la forma como la samba carioca fue registrada como patrimonio cultural inmaterial del Brasil, bajo liderazgo del Centro Cultural Carlota, hoy Museo de la Samba.

Palabras clave: cultura; identidad; negritud; hibridación; samba.


RÉSUMÉ

L'article décrit le processus de création des identités noires du peuple de la diaspora africaine au Brésil, en mettant en relief les lieux et les situations d'urgence et le développement de la négritude comme un concept. De ce point de vue socio-historique, il fait référence à la construction de l'identité nationale brésilienne montrant l'hybridation en tant que phénomène culturel tangible dans les traditions musicales. Dans cette ligne de préservation des traditions, le texte montre, enfin, comment la samba a été enregistré en tant que patrimoine culturel immatériel du Brésil, sous la direction du Centre Culturel Cartola, aujourd'hui, le Musée de la Samba.

Mots-clés: culture; identité; noirceur; hybridation; samba.


 

 

De 2011 a 2014, no quadro do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e associado ao projeto Construção de Identidade Cultural e Autoestima com jovens do Centro Cultural Cartola - comunidade da Mangueira (Andrade & Macêdo, 2010, 2014), foi desenvolvida uma pesquisa de doutorado sobre o processo de patrimonialização do samba carioca, apontando para a forma como o Centro Cultural Cartola, hoje Museu do Samba, virou centro de referência e espaço de memória e salvaguarda de um bem cultural imaterial (Nogueira, 2015).

Nesse contexto, optamos pela elaboração de um artigo que abordasse, do ponto de vista teórico, o processo de construção das identidades negras dos povos da diáspora africana no Brasil, frisando os lugares e contextos de emergência e desenvolvimento da negritude como conceito. Nessa ordem de ideias, além de discutirmos como se configurou a identidade nacional no Brasil, faremos referência aos conceitos de memória cultural, hibridação e tradição, para finalmente abordarmos o samba carioca e seu registro como patrimônio cultural imaterial.

O processo histórico da presença do africano e de seus descendentes nas Américas tem sua base na expansão do colonialismo europeu e nas formas de incrementar as riquezas: o comércio mercantilista e a acumulação primitiva de capital, tudo isso estimulado com a realização de um conjunto de relações econômicas e sociais, baseadas na compra e venda de mercadoria humana, e na exploração tanto dos indígenas como dos africanos.

Como afirma Ramos (2014), os africanos e seus descendentes submetidos à escravatura, além da função econômica que exerciam no denominado "Novo Mundo", também deixaram suas impressões na formação e na integração étnico-cultural dos povos e civilizações que surgiram nas Américas após a chegada dos europeus. A ênfase na diáspora africana é para colocar especial atendimento ao processo de dispersão em que viveram os africanos durante a escravidão que, no Brasil, teve início no século XVI.

Lao-Montes (2007) assinala que a diáspora africana, como categoria geo-histórica significa, por um lado, um processo de longa duração, dentro do qual se constituem sujeitos históricos, expressões culturais, correntes intelectuais e movimentos sociais; e, por outro lado, implica uma condição ora colonial (de opressão em todas suas dimensões: culturais, socioeconômicas, políticas, epistêmicas e existenciais), ora moderna, como de agência histórica e de autodesenvolvimento dos sujeitos da África moderna.

O interesse pelo estudo das civilizações africanas teve de esperar a abolição da escravatura, pois, até aquela data, no negro só se via o trabalhador e não o portador de uma cultura. O estudo de uma instituição e de um modo de produção de desenvolvimento, de valor econômico, somente preocupava aos filósofos ou aos cientistas. Mas, quando o negro se converteu em cidadão, outro problema foi deflagrado: saber se aquele novo sujeito podia ou não se integrar à nação, ou seja, seria o negro "assimilável", no sentido de ser capaz de converter-se em "anglo-saxão" ou "latino" dos pés à cabeça ou, pelo contrário, possuía uma "cultura" estrangeira, portadora de costumes diferentes e de formas de pensar que impediam a sua incorporação - ou, ao menos, ofereciam sérios obstáculos -na sociedade ocidental. Bastide (1974) assinala que:

Os navios negreiros transportavam a bordo não somente homens, mulheres e crianças, mas ainda seus deuses, suas crenças e seu folclore. Contra a opressão dos alvos que pretendiam arrancar-lhes de suas culturas nativas para impor-lhes outra cultura, os negros opuseram forte resistência, sobretudo nas cidades, onde podiam reunir-se de noite e reconstruir suas comunidades primitivas. No campo, sua resistência foi mais débil; sem dúvida, suas revoltas foram o depoimento de uma vontade de escapar da exploração econômica e do regime odioso de trabalho ao que estavam submetidos. (Bastide, 1974, p. 26)

O referido autor acrescenta que havia mais do que isso em suas revoltas: elas foram também o depoimento da luta contra a dominação de uma cultura que lhes era estranha. Não surpreendem, pois, as marcas das civilizações africanas ainda estarem tão presentes no território americano.

O regime escravo dispersava membros da mesma família, tornando impossível toda continuidade na vida de linhagens antigas. Também deixava em aberto um número de rotas verticais, tanto no interior da própria estrutura escrava como no interior da estrutura da sociedade como um todo. Mas essas rotas de subida só estavam abertas para os negros que aceitaram o cristianismo e os valores ocidentais, e que, portanto, renegaram costumes e crenças de seus antepassados. Tal fenômeno fez com que as civilizações africanas acabassem por perder-se ou por esconder-se. Por outro lado, formaram, em todas as partes, suas próprias comunidades, relativamente isoladas, no interior de uma Nação que só lhes concedia um estatuto de inferioridade e que lhes negava a integração. São, portanto, impróprias as ideias de ausência de cultura para essas comunidades de negros e de cultura desintegrada. Para permanecerem vivas, elas forjaram, efetivamente, uma cultura própria, capaz de responder ao novo ambiente socioespacial.

O projeto da diáspora como prática de libertação e de construção de comunidade multinacional baseou-se nas condições de subalternização dos povos afrodiaspóricos e em sua luta histórica pela resistência e pela autoafirmação.

Negritude e Identidade Negra

O conceito de raça tem sido empregado de diversas maneiras, segundo diferentes contextos temporários e espaciais. Cada momento histórico e contexto nacional propõe, em seus discursos hegemônicos, determinadas concepções de raça, e ações como consequência dessa noção.

Segundo Arruti (2006), no Brasil, desde a década de 1930, quer no discurso acadêmico, quer no das instituições oficiais, cristalizou-se uma percepção dicotomizada de separar os indivíduos de ascendência africana - designados negros e relacionados à ideia de raça - daqueles de origem americana - designados índios e relacionados à ideia de etnia. Enquanto, no primeiro caso, o enfoque estava centrado no aspecto físico, conformado como signo externo a partir da cor da pele, rasgos faciais, tipo de cabelo etc., no segundo, o ponto de análise associava-se a um conteúdo cultural específico, fundado em tradições ancestrais.

Como remarca Segato (2006), em outros países, como nos Estados Unidos, o conceito de raça associado aos negros não se desprendeu da ideia de um conteúdo diferenciado e substantivo de etnicidade, traduzido em costumes, crenças, formas de vida, visões de mundo, entre outros. No Brasil, entretanto, os conteúdos étnicos dos negros foram esvaziados em função de uma apropriação do discurso da nacionalidade. Em um processo de expropriação dos ícones culturais dos subordinados, presente também em outros contextos nacionais, as elites se folclorizam para incluírem, em seu panteão, os símbolos apropriados. Dessa forma, os ritmos afro-brasileiros (samba, maracatu, jongo, frevo, baião) foram transformados em música nacional, bem como as danças e as religiões, como a umbanda e o candomblé, passaram a ser parte de um repertório de conteúdos nacionais pertencentes a todos os brasileiros e não de um patrimônio cultural diferencial dos afrodescendentes.

A identidade objetiva apresentada através de características culturais, linguísticas e outras descritas pelos estudiosos são confundidas, muitas vezes, com a identidade subjetiva - maneira como o próprio grupo se define ou é definido pelos grupos vizinhos. Quando se fala de identidade, nem sempre está claro qual o critério escolhido para caracterizá-la: identidade atribuída pelos estudiosos, por meio de critérios objetivos; identidade como categoria de autodefinição ou de autoatribuição do próprio grupo; identidade atribuída ao grupo pelo grupo vizinho.

Conforme Andrade (2012), se o processo de construção da identidade nasce da tomada de consciência das diferenças entre "nós" e "outros", não é possível afirmar que o grau dessa consciência seja idêntico entre todos os negros, considerando os contextos socioculturais diferenciados. Partindo desse pressuposto, não é possível confirmar a existência de uma única identidade cultural entre grupos de negros que vivem em comunidades religiosas diferentes, por exemplo: os das comunidades de terreiros de candomblé, dos templos evangélicos e das igrejas católicas etc., sem esquecer-se da comunidade negra militante, altamente politizada sobre a questão do racismo, ou das comunidades remanescentes dos quilombos.

Para Andrade (2012), essa diversidade contextual advém de alguns fatores essenciais na construção de uma identidade ou de uma personalidade coletiva, a saber: o fator histórico, o fator linguístico e o fator psicológico.

A identidade cultural perfeita corresponderia à presença simultânea desses três componentes no grupo ou no indivíduo. Mas isso seria um caso ideal, pois, na realidade, todas as transições são constatadas, desde o caso ideal até o caso extremo da crise de identidade pelas atenuações nos três fatores distintivos. As combinações específicas deles oferecem todos os casos possíveis, individuais e coletivos. Enquanto um fator interage plenamente, outro tem um efeito muito fraco ou mesmo nulo, como aconteceu com a perda da língua materna na diáspora.

A consciência histórica é mais forte nas comunidades de base religiosa, por exemplo, nos terreiros de candomblé, graças justamente aos mitos de origem ou de fundação, conservados pela oralidade e atualizados através de ritos e de outras práticas religiosas. A questão da busca ou da crise da identidade não se colocaria nesse contexto. Nas bases populares negras, sem vínculos com as comunidades religiosas de matriz africana, a consciência histórica e, consequentemente, a identidade se diluiria nas questões de sobrevivência que tomam o passo sobre o resto e podem desembocar num outro tipo de identidade: a da consciência do oprimido economicamente e discriminado racialmente. "Na militância negra há uma tomada de consciência aguda da perda da história e, consequentemente, a busca simbólica de uma África idealizada", como alerta Munanga (2009, p.133).

Quanto ao fator linguístico, a crise não foi total, pois nos terreiros religiosos persistem algumas línguas de origem africana, com todo um vocabulário específico, que servem de comunicação entre os humanos e os deuses (orixás e eguns) e reforçam o fator de identidade. Nas outras categorias, foram criadas outras formas de linguagem ou comunicação como estilos de cabelos, penteados e estilos musicais que são marcas de identidade. Algumas comunidades rurais negras isoladas teriam conservado estruturas linguísticas africanas enriquecidas com vocábulos e expressões de língua portuguesa.

O fator psicológico, entre outros, levou à indagação de ser o temperamento do negro diferente do temperamento do branco e se essa característica constitui marca de sua identidade. Tal diferença, se existir, deve ser explicada, notadamente, pelo condicionamento histórico do negro e de suas estruturas sociais comunitárias, e não com base nas diferenças biológicas, como pensariam os racistas.

Sintetizando, a identidade de um grupo funciona como uma ideologia na medida em que permite a seus membros se definirem em contraposição aos membros de outros grupos para reforçarem a solidariedade existente entre eles, visando à conservação do grupo como entidade distinta. Dentro dessa linha, chama atenção o fato de que essa consciência identitária é passível de sofrer tentativas de manipulação por parte uma ideologia dominante, quando considera a busca da identidade como um desejo separatista, implicando um enfraquecimento quanto às reivindicações políticas.

Como toda construção é fruto de um processo atravessado pelo tempo; acerca da construção da identidade negra, em particular, cabe questionar de que identidade se trata: da identidade mítico-religiosa conservada nos terreiros religiosos? Da identidade do grupo oprimido, que vacila entre a consciência de classe e a de raça? Da identidade política de uma "raça" afastada de sua participação política na sociedade que ajudou a construir? Esta última, caracterizada pela tomada de consciência da jovem elite negra politicamente mobilizada, parece ser a mais problemática de todas; nela se misturam os critérios ideológicos, culturais e raciais, e a luta por direitos.

No mesmo momento em que aumenta o interesse em recorrer aos conceitos de identidade e de negritude no movimento negro contemporâneo da diáspora, surgem dúvidas e perguntas. Afinal, o que significam a negritude e a identidade para as bases populares negras e para a militância do movimento negro? Há quem se pergunte se no Brasil seria possível a identidade dos negros constituir-se diferente da dos demais cidadãos. Outros chegam até a indagar se as ditas negritude e identidade negra não refletem uma divisão da luta de todos os oprimidos.

São dúvidas e preocupações que merecem um esclarecimento, ou melhor, uma discussão. Uma perspectiva mais viável seria situar e colocar a questão da negritude e da identidade dentro do movimento histórico, apontando seus lugares de emergência e seus contextos de desenvolvimento. Se, historicamente, a negritude é, sem dúvida, uma reação racial negra a uma agressão racial branca, por que não entendê-la e cercá-la, sem, contudo, usar dos mesmos mecanismos racistas do qual é consequência e resultado?

Para ser racista, coloca-se como postulado fundamental a crença na existência de "raças" hierarquizadas dentro da espécie humana, ou seja, no pensamento de uma pessoa racista, existem raças superiores e raças inferiores. Em nome das chamadas raças, inúmeras atrocidades foram cometidas na humanidade: genocídio de milhões de índios nas Américas, eliminação sistemática de milhões de judeus e ciganos durante a Segunda Guerra Mundial e outras tantas agressões particularizadas e, por isso mesmo, igualmente cruéis.

Como se não bastasse o antissemitismo, a persistência dos mecanismos de discriminação racial na África do Sul, como o apartheid, vem somar-se a outros tantos nos Estados Unidos, na Europa e em todos os países da América do Sul, encabeçados pelo Brasil, numa clara demonstração de que o racismo é um fato que confere à "raça" sua realidade política e social, não importando o continente. Se cientificamente a realidade da raça é contestada, política e ideologicamente esse conceito é muito significativo, pois funciona como categoria de dominação e de exclusão nas sociedades multirraciais contemporâneas observáveis.

Em outros termos, poder-se-ia reter como traço fundamental próprio a todos os negros (pouco importa a classe social) a situação de excluídos em que se encontram em nível nacional, implicando que a tão buscada "identidade do mundo negro" se inscreve no real sob a forma de "exclusão" (ser negro é ser excluído). Por isso, sem minimizar os outros fatores, não corro o risco ao afirmar que a identidade negra mais abrangente seria a identidade política de um segmento importante da população brasileira, excluída de sua participação política e econômica e do pleno exercício da cidadania.

Quais seriam, fora do campo científico-acadêmico, os interesses daqueles que falam e escrevem sobre a identidade negra? Os interesses seriam, sem dúvida, ideológicos. O que significa que a identidade negra ou afrodescendente não teria outra substância a não ser as relações políticas e econômicas. Isso não quer dizer que outros aspectos importantes na formação da identidade, como a história, devam ser desconsiderados; ao contrário, a história escrita ou oral não se faz sem a memória.

Como apontam os trabalhos de Halbwachs (1968), esse é um fenômeno construído coletivamente e sujeito a constantes reelaborações. No caso da população negra brasileira, como de qualquer outra, a memória é construída, de um lado, por acontecimentos, personagens e lugares vividos por esse segmento da população, e, de outro lado, por acontecimentos, personagens e lugares herdados, isto é, fornecidos pela socialização, enfatizando dados pertencentes à história do grupo e forjando fortes referências a um passado comum (por exemplo, o passado cultural africano ou o passado enquanto escravizado). O sentimento de pertencer à determinada coletividade está baseado na apropriação individual desses dois tipos de memória, que passam, então, a fazer parte do imaginário pessoal e coletivo (Halbwachs, 1968).

Dois problemas são, dessa forma, colocados politicamente em relação a uma identidade submetida à cor e à cultura, dentro do contexto brasileiro. Em primeiro lugar, tem- se a espinhosa questão de saber se os negros seriam capazes de construir sua identidade e sua unidade baseando-se somente na pigmentação da pele e em outras características morfobiológicas do seu corpo, numa sociedade em que a tendência geral é fugir da cor da pele "negra", de acordo com a prática de embranquecimento, sustentada pela ideologia de democracia racial fundamentada na dupla mestiçagem biológica e cultural. Esse obstáculo da cor rejeitada por alguns e reivindicada por outros teria sido resolvido pelo conceito de "afrodescendência".

Partindo da verdade histórica de que a África é o berço da humanidade, qualquer cidadão, pouco importando a cor da sua pele, teria o direito de reivindicar sua afrodescendência. Em segundo lugar, poderiam os negros construir sua identidade com uma cultura já expropriada, cujos símbolos fazem parte da cultura nacional? (Pereira, 1987).

Outro ponto a ponderar é a participação dos negros na sociedade brasileira. Sente-se um deslocamento ou, pelo menos, uma confusão entre raça e classe. Aqui está um dos dilemas da questão racial brasileira: os oprimidos brancos da sociedade nem sempre têm consciência da exclusão política e econômica do negro; além disso, parte deles é racista pela educação e pela socialização recebidas na família e na escola. Raça e classe tornam-se, então, duas variáveis da mesma realidade de exploração na estrutura de uma sociedade de classe (Pereira, 1987).

Em nome dessa dialética entre raça e classe, alguns estudiosos de formação marxista pensavam que a solução definitiva do racismo no Brasil só viria com a transformação da atual estrutura capitalista em uma estrutura socialista, mais igualitária, ou seja, numa sociedade sem classes sociais, em que negros e brancos participam igualmente das decisões políticas e da distribuição do produto econômico (Fernandes, 1966). Certa militância negra assumiu esse discurso, acreditou que a solução às suas mazelas logo viria com a transformação da sociedade, daí talvez a explicação de sua indiferença em relação às políticas de ação afirmativa em prática nos Estados Unidos desde os anos 1960. Como explicar que a palavra "cotas" só explodiu da garganta do movimento negro explicitamente na marcha de Brasília de 1995, quando a política de ação afirmativa já dava resultados positivos nos Estados Unidos há quase 40 anos?

Os que pensam que a situação do negro no Brasil é apenas uma questão econômica, e não racista, não fazem esforço para entender como as práticas racistas impedem ao negro o acesso à participação e à ascensão econômica. Numa sociedade capitalista, ao separar raça e classe comete-se um erro metodológico que dificulta a sua análise e os condena ao beco sem saída de uma explicação puramente economicista:

A busca da identidade negra não é uma divisão de luta dos oprimidos. O negro tem problemas específicos que só ele sozinho poderá resolver, embora possa contar com a solidariedade dos membros conscientes da sociedade. Entre alguns dos seus problemas específicos está a alienação do seu corpo, de sua cor, de sua cultura e de sua história, acarretando, consequentemente, o sentimento de 'inferiorização' e de baixa estima, a falta de conscientização histórica e política, etc. (Vicente, 2012, p. 39)

Munanga (2009) assinala que, pela busca de sua identidade, que funciona como uma terapia do grupo, o negro, instrumentalizado, é capaz de despojar-se do seu complexo de inferioridade e colocar-se em pé de igualdade com os outros oprimidos, condição preliminar para uma luta coletiva. A recuperação dessa identidade começa pela aceitação dos atributos físicos de sua negritude antes de atingir os atributos culturais, mentais, intelectuais, morais e psicológicos, pois o corpo constitui a sede material de todos os aspectos da identidade.

O autor frisa que a negritude, embora tenha sua origem na cor da pele negra, não é essencialmente de ordem biológica. De outro modo, a identidade negra não nasce do simples fato de tomar consciência da diferença de pigmentação entre brancos e negros ou negros e amarelos. A negritude e/ou a identidade negra se referem à história comum que liga, de uma maneira ou de outra, todos os grupos humanos que o olhar do mundo ocidental "branco" reuniu sob o nome de negros.

Para Munanga (2009), a negritude não se refere somente à cultura dos povos portadores da pele negra, pois, de fato, são todos culturalmente diferentes. Na realidade, o que esses grupos humanos têm fundamentalmente em comum não é, como parece indicar o termo negritude, a cor da pele, mas sim o fato de terem sido ao longo da história vítimas das piores tentativas de desumanização, e de terem sido as suas culturas objeto de políticas sistemáticas de destruição. Mais do que isso, tentou-se negar a existência dessas culturas, tal como, nos primórdios da colonização, a África negra foi considerada como um deserto cultural, e seus habitantes, o elo entre o Homem e o macaco.

Segundo Vicente (2012), tomada de consciência de uma comunidade da condição histórica de todos aqueles que foram vítimas da inferioridade e negação da humanidade pelo mundo ocidental, a negritude deve ser vista também como afirmação e construção de uma solidariedade entre as vítimas, saindo da condição de objeto e da aceitação passiva.

A negritude torna-se uma convocação permanente de todos os herdeiros dessa condição para que se engajem na restituição dos valores de suas civilizações destruídas e de suas culturas negadas. Vista desse ângulo, para as mulheres e os homens descendentes de africanos, no Brasil e em outros países do mundo, ainda existe a luta para reconstruir positivamente sua identidade e é, por isso, um tema atual.

Discussões Acerca da Identidade Negra

Hall (2011), em seu trabalho, inclina-se claramente pela visão construtivista. Para ele, a identidade não é algo que "se tem" e não se refere a um núcleo duro e imutável, mas que se constrói estratégica e posicionalmente frente a outro constitutivo. Nesse sentido, o conceito de identidade proposto por Hall distancia-se do conceito dos essencialistas que consideram que a identidade nasce da unidade naturalmente constituída, assinalando o núcleo estável, do princípio ao fim, desdobrando-se sem mudanças através de todas as vicissitudes da história, idêntica a si mesma ao longo do tempo. Hall quebra esse modelo e propõe a identidade não como conjunto de qualidades predeterminadas, mas como uma construção nunca acabada, aberta à temporalidade, à contingência, uma posição relacional só temporariamente fixada no jogo das diferenças. "Ela permanece sempre incompleta, está sempre 'em processo', sempre 'sendo formada'" (Hall, 2011, p. 38).

As identidades têm a ver com as questões referidas ao uso dos recursos da história, da língua e da cultura no processo de devir e não de ser; não "quem somos" ou "de onde viemos", mas em que "poderíamos converter-nos", e como "poderíamos representar-nos". Assim, a identidade é compreendida dentro do contexto semântico ou histórico em que emerge e se constrói.

A identidade, nessa concepção sociológica, preenche o espaço entre o 'interior' e o 'exterior' - entre o mundo pessoal e o mundo público. O fato de que projetamos a "nós próprios" nessas identidades culturais, ao mesmo tempo em que internalizamos seus significados e valores, tornando-os "parte de nós", contribui para alinhar nossos sentimentos subjetivos com os lugares objetivos que ocupamos no mundo social e cultural (Hall, 2011, p.11).

No que se refere à identidade negra, Sodré (1983) assinala que ela é entendida como construção múltipla, social e historicamente (re)construída com base em matrizes africanas e nas relações socioculturais, políticas e históricas que se deram a partir dos ancestrais africanos trazidos para o Brasil.

Segundo Munanga (1999), o negro, desde que foi trazido ao Brasil, escravizado, ficou reduzido a uma situação de oposição ao branco. Com isso, o branco e aquilo que se relaciona a ele é apresentado como algo bom e harmonioso, enquanto as coisas relacionadas ao negro são vistas como negativas e más. A identidade afro-brasileira, ou identidade negra, passa, necessária e absolutamente, pela negritude enquanto categoria sóciohistórica, e não biológica, e pela situação social do negro num universo racista. Enquanto processo, essa identidade se constrói paralelamente à identidade nacional brasileira plural, num país cuja mestiçagem é inegável.

Pensar questões relativas à presença de africanos e seus descendentes no Brasil, bem como nos lugares destinados para suas práticas sociais e nas memórias construídas sobre suas presenças, implica pensar no processo de construção de mentalidades na sociedade brasileira, na projeção de uma ideia de nação e de cultura nacionais, assim como de identidades daí decorrentes. Esse processo de construção efetuou-se e perpetua-se por meio de narrativas que são historicamente formuladas.

Existir enquanto cidadão nacional implica identificar-se no conjunto de referências culturais apresentadas através de discursos da história e da cultura nacional, marcados pela homogeneização de expectativas, valores e atitudes culturais, tendo em vista as idealizações propostas. Como argumentou Anderson (2008), a identidade nacional é uma "comunidade imaginada".

Hall (2011) identifica o sujeito pós-moderno como um indivíduo fragmentado, composto de várias identidades, por vezes contraditórias, e mal resolvido, em um processo de identificação mais provisório, variável e efêmero. Sujeito que assume identidades múltiplas em diferentes momentos, que traduz e sintetiza referenciais diversos em composições, por vezes, inteiramente novas, impensadas e imprevisíveis.

A ideia de uma homogeneidade traz consigo, normalmente, um processo de subordinação, de exercício de poder de certo grupo que opera os conceitos e as práticas oficiais da sociedade em detrimento de outros grupos, subordinados e inferiorizados no quadro das referências culturais e das decisões e definições. No quadro do que é identificado como cultura nacional, temos, pois, de estar atentos para a complexidade de sua constituição e reconstituição, que implicam na diversidade, pluralidade. As culturas nacionais devem ser vistas como tão complexas e diversificadas quanto os indivíduos que as compõem, e a ideia de "culturas nacionais" contribui para "costurar" as diferenças numa única identidade (Hall, 2011, p. 65).

Formado por uma diversidade étnica muito grande, em que cada um dos segmentos consagrados - índios, brancos e negros - traz, em seu contexto, desdobramentos de grupos culturais que potencializam muitos devires, a realidade da nação brasileira expõe contextos extremamente plurais de referências culturais, fundindo-se em novos agrupamentos culturais, mas também conservando traços referenciais antigos e longínquos, em ambiente em que a tradição e a inovação dialogam permanentemente em fusões e rupturas, acréscimos e exclusões.

Daí a necessidade, sempre reposta, de passar a ideia de identidade nacional brasileira, monolítica, homogênea, para a ideia de identidades brasileiras, de culturas brasileiras, que devem ser pensadas como resultantes de conflituosos encontros desenvolvidos ao longo de 500 anos.

Tais identidades, constituídas em processos nos quais valores, crenças e costumes sintetizaram-se em novos desdobramentos residuais, e sobrevivências, inovam-se, reforçam-se ou são recalcadas na emergência de nova correlação de forças, reconfigurando exercícios e práticas culturais. Encontram-se em permanente processo de renegociação com outras culturas, principalmente se forem considerados os processos de colonização e o da globalização atual, os quais, por um lado, tornam mais difícil a conservação de identidades culturais, num movimento em direção ao hibridismo, e, por outro, também reforçam movimentos de preservação de tradições, embora de forma que elas venham interpretadas sob novas concepções.

Tradições Musicais Afro-brasileiras: Encontros, Fusões, Cruzamentos e Hibridações

Os estudos contemporâneos de orientação etnomusicológica têm buscado enfatizar a importância de noções como o hibridismo (fusão, cruzamento, interconexão) ao enfocarem as tradições musicais afro-brasileiras como objeto de estudo. As pesquisas têm procurado perceber tais tradições culturais (muitas vezes locais) inseridas na dinâmica de um mundo globalizado, e não como formas puras, afastadas dessas relações de interconexão. Considerando isso, a noção de hibridismo pretende também posicionar-se contra as concepções essencialistas da identidade (Canclini, 2003).

De acordo com as considerações de Hall (2003), as formações culturais dos povos da diáspora negra resultam de um encontro complexo de tradições, o que revela o caráter híbrido dessas formas. A partir disso, e pensando também o samba enquanto parte dessa cultura popular negra a que se refere Hall, acreditamos ser necessário incluir aqui alguns pontos do debate sobre as questões do hibridismo e, com isso, situar um posicionamento na discussão desses processos no âmbito das pesquisas etnomusicológicas.

Canclini (2003) propôs a noção de hibridação na tentativa de buscar uma ferramenta teórica para a compreensão das fusões culturais na América Latina, focalizando-a enquanto objeto de estudo.

Entendo por hibridação processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas. Cabe esclarecer que as estruturas chamadas discretas foram resultado de hibridações, razão pela qual não podem ser consideradas fontes puras. (Canclini, 2003, p. 19)

Para Canclini (2003), o conceito de hibridação possibilita uma interpretação das culturas latino-americanas que contemple as diversas fusões entre o culto, o popular e o massivo. Dentro do debate sobre as mudanças culturais observadas com a globalização, o autor chama atenção para uma interpretação que considere o fato de que:

O culto moderno inclui, desde o começo deste século, boa parte dos produtos que circulam pelas indústrias culturais, assim como a difusão em massa e a reelaboração que os novos meios fazem de obras literárias, musicais e plásticas que antes eram patrimônio distintivo das elites. A interação do culto com os gostos populares, com a estrutura industrial da produção e circulação de quase todos os bens simbólicos, com os padrões empresariais de custo e eficácia, está mudando velozmente os dispositivos organizadores do que agora se entende por "ser culto" na modernidade. (Canclini, 2003, p. 62)

O trecho citado aborda apenas um dos vários exemplos que o autor utiliza para demonstrar a complexidade de cruzamentos entre o que ele define como o culto, o popular e o massivo. Nesse sentido, o estudo dos processos de hibridação propõe uma interpretação da cultura que não pode mais ser pensada através dos pares de oposição estabelecidos entre tradição-modernidade, centro-periferia, local-global (Canclini, 2003). Em uma perspectiva semelhante, Hall (2003) também enfatiza que a cultura popular não se reduz a explicações por meio de oposições como: alto-baixo, autêntico-inautêntico, resistência-cooptação.

A proliferação e a disseminação de novas formas musicais híbridas e sincréticas não podem mais ser apreendidas pelo modelo centro/periferia ou baseada simplesmente em uma noção nostálgica e exótica de recuperação de ritmos antigos. É a história da produção da cultura, de músicas novas e inteiramente modernas da diáspora - é claro, aproveitando-se dos materiais e formas de muitas tradições musicais fragmentadas. (Hall, 2003, p. 38)

Ambos os autores atentam, porém, que as relações de poder devem ser consideradas quando se trata dos processos de hibridação. Ao pensar sobre as formações culturais latino-americanas, há de se considerar as desigualdades de poder envolvidas no encontro de diferentes tradições musicais. Portanto, ao discorrer sobre o caráter híbrido das formas da cultura popular negra, Hall faz a seguinte ressalva:

Não se quer sugerir aqui que, numa formação sincrética, os elementos diferentes estabelecem uma relação de igualdade uns com os outros. Estes são sempre inscritos diferentemente pelas relações de poder - sobretudo as relações de dependência e subordinação sustentadas pelo próprio colonialismo. (Hall, 2003, p. 34)

Para Canclini (2003), outra preocupação aparece em relação às situações que envolvem desigualdade de poder nos processos de hibridação, como a necessidade de se atentar para aqueles elementos que resistem ou mesmo que se perdem ao longo das fusões.

É útil advertir sobre as versões excessivamente amáveis da mestiçagem. Por isso, convém insistir em que o objeto de estudo não é a hibridez e, sim, os processos de hibridação. Assim é possível reconhecer o que contém de desgarre e o que não chega a fundir-se. Uma teoria não ingênua da hibridação é inseparável de uma consciência crítica de seus limites, do que não se deixa, ou não quer ou não pode ser hibridado. (Canclini, 2003, p. 27)

Isso implica dizer que pensar os processos de hibridação como uma possível ferramenta para a interpretação dos encontros culturais não significa necessariamente elogiar ou exaltar o hibridismo. De fato, há que se considerar que as mudanças culturais observadas na pós-modernidade têm possibilitado o "descentramento de antigas hierarquias e de grandes narrativas" (Hall, 2003, p. 337).

Vale citar alguns aspectos apontados por Carvalho (2003, 2004) para uma reflexão sobre a questão do hibridismo, principalmente no que se refere às tradições musicais afro-brasileiras. De acordo com Carvalho (2003), ao mesmo tempo em que se vive um momento de descolonização e de luta antirracista no Novo Mundo, tem crescido demasiadamente a exploração comercial das artes performáticas de tradições afro-brasileiras. O autor relembra a participação do bloco afro Olodum no disco de Paul Simon, apontando esse encontro como uma das tantas formas da world music "estabelecer vínculos com as tradições africanas através de estruturas empresariais de cooperação muito desiguais e específicas" (Carvalho, 2003, p. 8).

Segundo Carvalho (2003, p. 12), esse tipo de encontro é, em geral, designado como canibalismo musical: "Quando interessa a trajetória de um determinado compositor ou de um grupo 'exorcizar' sua música, sempre pode buscar canibalizar algo, porém, depois, sua trajetória segue por sua própria conta". O tratamento dado à música de Olodum no disco de Simon - "uma citação de um bloco percussivo sem se misturar com as demais partes da canção" - transformou profundamente as finalidades estéticas que tinha a música do grupo antes desse encontro (Carvalho, 2003, p. 9). O encontro realizado entre Paul Simon e o Olodum (Simon, 1990) mostrou que, ao adentrar no mundo ocidental, as músicas de tradições afro-brasileiras são transformadas em fetiche cultural (Carvalho, 2003, p. 5).

A exploração comercial das tradições musicais afro-brasileiras não tem sido observada somente na relação entre primeiro e terceiro mundo, pois no Brasil também é notável o crescente interesse da indústria do entretenimento com relação às artes performáticas dessas tradições. Ao constatar que muitos etnomusicólogos têm assumido o papel de mediadores entre os grupos musicais e a indústria cultural, ou até mesmo se transformado em produtores culturais dos grupos que pesquisam, Carvalho (2004) questiona o uso da noção de hibridismo e traz a discussão para o âmbito das questões éticas na pesquisa etnomusicológica:

E até certo ponto também nós, pesquisadores, estamos agora produzindo uma legitimação ideológica (disfarçada de teoria) dessa mercantilização sem precedentes, no momento em que enfatizamos os processos de negociação, fusão e hibridismo das culturas tradicionais sem mencionar as monumentais desigualdades econômicas de acesso às esferas de poder e decisão, quase sempre desfavoráveis às comunidades indígenas e afro-brasileiras. (Carvalho, 2004, p. 74)

No entanto, além de apontar a questão da espetacularização das tradições afro-brasileiras, Carvalho (2004, p. 75) também atenta para o que ele define como uma nova forma de canibalismo musical: situações em que o pesquisador (etnomusicólogo) "se apropria da arte performática que pesquisou e se mascara de artista nativo", reunindo a sua função de mediador com a de artista antropofágico. Segundo o autor, vem crescendo a participação de pesquisadores como artistas performáticos (com frequência descontínua) nesses grupos, e observa-se até mesmo algumas situações em que o pesquisador cria um grupo próprio para realizar a performance das tradições afro-brasileiras que ele pesquisa (Carvalho, 2004, p.75).

Carvalho (2004) aponta para a crescente formação de grupos de tradições musicais afro-brasileiras (maracatu, jongo, capoeira, congado etc.) nas capitais do país, constituídos essencialmente por indivíduos brancos, de classe média, e em grande parte, universitária. Talvez por isso, como no caso do maracatu, esses grupos são muitas vezes denominados como "maracatu universitário". Frente a essa constatação, Carvalho (2004) busca um aprofundamento da discussão sobre certos usos das manifestações culturais afro-brasileiras, chamando atenção para a problemática em torno da questão racial no Brasil:

Como hipótese inicial, é possível que esse novo canibalismo tenha surgido agora talvez como sintoma de que o fosso de classe e racial no Brasil cresceu ainda mais nas últimas décadas, tornando-se quase um esquema estrutural de segregação implícita. Quem sabe, a classe média branca que solicita e necessita de pesquisadores para performar para ela tradições musicais e coreográficas "nativas" já não suporta a proximidade física e simbólica dos verdadeiros nativos em seus espaços de convivência e sociabilidade. (Carvalho, 2004, p. 76)

Ancestralidade Africana e a Música

A ancestralidade é um traço comum que se pode estabelecer com a maior parte das diversas culturas existentes em África. Os ancestrais, além disso, parecem estabelecer a ligação entre estes homens e mulheres do mundo contemporâneo com a África mítica, quase em uma ligação simbólica com o útero da mãe. Uma das marcas da ancestralidade africana no Brasil é o samba, tendo como ancestral o batuque africano. Lopes explica que ancestralidade é essa:

E, no amplo território em que se localizam os povos Bantos, quase toda a África ao sul da linha do equador (linha imaginária que divide ao meio, horizontalmente, o planeta Terra) predomina um tipo de música e dança que foi fundamental para o nascimento do samba brasileiro. (Lopes, 2015, p.24)

O interessante, como ressalta Lopes (2015), é que a música servia à dança e vice-versa, até expandir-se por todo o território nacional.

Falamos "dança" porque, na tradição dos africanos bantos, como entre grande parte dos povos tradicionais - aqueles em que os conhecimentos se transmitem oralmente - a música nasce para acompanhar a dança, a qual precisa da música para existir. (Lopes, 2015, p.24)

No começo do século XX, o samba começou a expandir-se fortemente no Rio de Janeiro, então capital do País. Teve como fonte inspiradora negra vinda pelo mar da Bahia, onde existia a maior descendência de negros iorubas, que na capital se estabeleceram na região do Cais do Porto. O samba no Rio começou a aperfeiçoar-se e a delimitar-se como gênero musical com a chegada de negros bantos, vindos, por terra, do Vale do Paraíba.

Na passagem para o Século Vinte, na cidade do Rio de Janeiro, então Capital Federal, sob a influência da indústria fonográfica (a das "gravadoras", produtoras e vendedoras de discos com músicas gravadas); e do advento e expansão das emissoras de rádio, o Samba começou a ganhar a forma com que hoje o conhecemos. O mais importante desse momento é que, nele, o que eram apenas "corinhos", refrãos destinados a animar as danças, foram se estendendo, abordando temas, contando casos, expressando juras de amor. E, aí, o simples "batuque" toma a forma de canção, que é a poesia lírica ou satírica, apoiada em uma melodia e feita para ser cantada. (Lopes, 2015, p.26)

O primeiro samba a fazer sucesso, Pelo telefone, gravado em 1917, era considerado um samba-maxixe. Historicamente, o maxixe é a fusão da polca europeia com a habanera cubana. A mudança de território e a perseguição sofrida pelos praticantes do samba, gestado nas camadas pobres e de população negra, impuseram mudanças em suas práticas e provocaram transformações rítmicas.

Vianna (1995) destaca que o samba não nasceu "autêntico", mas foi "autenticado" ao longo dos anos 20 e 30. Dentro desses aspectos, destaca-se o processo de "invenção de uma tradição" do samba como expressão social de raiz, resultando na mediação cultural pela qual o samba passou de música "marginal" a música "brasileira".

Outro problema central investigado por Vianna (1995), a partir dos encontros socioculturais e ideológicos, é a clivagem que a questão da mestiçagem sofreu nos anos 20 e 30: "Da raiz dos males do Brasil à definidora do caráter nacional". Esse é um mistério do qual o samba é locus fundamental, pois muda o parâmetro pelo qual se pensa a nacionalidade. O autor rejeita as teses que localizam o samba como patrimônio cultural negro, expropriado pelos brancos e transformado em artigo de consumo; ao contrário, tenta demonstrar que boa parte das elites intelectuais, ainda que sob o signo do exótico, sempre foram atentas aos sons das ruas, como o choro e a modinha.

O livro de Vianna (1995) trabalha a ideia de que mitos, como o da autenticidade do samba de raiz, da resistência cultural que ele teria desempenhado, são invenções históricas de forte caráter ideológico. É a invenção da tradição que, pelas práticas sociais do presente, se ancora com tal força no passado que, muitas vezes, essas práticas passam a ser vistas como um processo herdado "naturalmente", sem a mediação de interesses e ideologias que buscam a legitimação histórica. Na verdade, pensar nos detentores desses saberes tradicionais pressupõe um modo de viver, em que a reprodução da cultura se dá na convivência; basta, para isso, conhecer o modus operandi dessa cultura.

A transmissão do samba se dá pela oralidade e pela vivência. As crianças das comunidades costumam acompanhar seus pais, irmãos e vizinhos às quadras das escolas e às rodas de samba. Lá brincam com as peças da bateria, tocando a seu modo, sambando ao lado de seus avós, mães e tias, copiando seus passos, numa total integração da criança no universo do samba. A observação da constante transmissão de conhecimento em que o sambista ensina a seu filho o que aprendeu de seu pai é exatamente um dos mais importantes traços da permanência do samba em um valor cultural dotado de grande importância na comunidade estudada. Este processo natural de transmissão se encontra hoje ameaçado.

Na exposição permanente do Centro Cultural Cartola, um depoimento de Martinália, compositora e cantora de samba, filha de Martinho da Vila, compositor consagrado e integrante da Escola de Samba Vila Isabel, ganhador de vários sambas de enredo, comprova como isso se dava:

Eu nasci do samba, né?! Nasci em Vila Isabel, cercada por sambistas de todas as escolas. Eu entendia como uma festa na minha vida, nesse sentido de união, de família, de comilança, de festejo, de amizade. É uma forma de união, o samba é a união da gente.

Vianna (1995) explora ainda a conexão entre intelectuais da elite e o samba para tentar explicar como essa manifestação cultural tornou-se um retrato do Brasil. Na sua argumentação, dá ênfase demais ao papel dos intelectuais, como avaliadores da arte e da brasilidade do samba, terminando por reduzir o papel dos próprios sambistas na construção de espaços de convivência, ocupação e negociação.

Discursos sobre tradição são usados para os mais variados propósitos. Falar de tradição não significa, unicamente, pensar no que se faz hoje e no que se fez no passado, mas fundamentalmente está ligado ao que espera poder continuar a se fazer no presente e futuro.

Nas discussões em torno de tradição no campo das ciências humanas e sociais, o termo foi utilizado largamente associado à ideia de construcionismo social (Sandroni & Samson, 2013). E esse viés construcionista encontrou ecos nos estudos de Hobsbawm e Ranger (1984), em que a tradição esteve relacionada ao tema da invenção. Tradição inventada foi definida da seguinte forma pelos autores:

Um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácitas ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado. Aliás, sempre que possível, tenta se estabelecer continuidade com um passado histórico apropriado. (Hobsbawm & Ranger, 1984, p. 9)

Na esteira dos estudos de Hobsbawm e Ranger (1984), inúmeros outros trabalhos se dedicaram a denunciar o caráter inventado, fabricado das tradições. O apelo ao passado seria, portanto, enganador, ocultando estratégias de dominação. "Muitas tradições consideradas antigas e veneráveis possuem, na verdade, origens relativamente recentes, devendo a falsa imputação de idade ser compreendida no quadro de uma análise de estruturas de poder e dominação ideológica" (Sandroni & Samson, 2013, p. 28).

Entretanto, falar em tradições inventadas pode parecer redundante, haja vista que os homens estão sempre a criar, recriar, inovar, transformar suas ações em sociedade. "Tradições seriam, por definição, continuamente reinventadas em função das sempre renovadas conjunturas do presente" (Sandroni & Samson, 2013, p. 30).

Apesar das inovações provocadas pelos estudos precursores de Hobsbawm e Ranger (1984), é preciso ir além da "simples" nomeação que as tradições são inventadas. É necessário compreender os caminhos dessa construção. É importante atentar para as redes que deram sustentação ou permitiram essa ou aquela escolha.

Não mais se aceita um debate acadêmico que tome os praticantes da dita cultura popular como ingênuo. Esses sujeitos, em meio às suas comunidades, têm seus desejos, seus anseios, estabelecem negociações e provocam disputas e tensões.

Nesse sentido, é que se faz importante compreender porque determinados sujeitos, em dado momento histórico, escolheram certa tradição. Quais os mecanismos que permitiram aquela escolha e que deram sustentação para que esta permitisse ainda atuar no presente.

Se toda tradição é uma criação, uma invenção, também é verdade que ela parte de fatos concretos, históricos e sociais. Quando a "Deixa Falar" surge, tida como a primeira Escola de Samba, fundada em 1928, não dependeu de um aval das elites para ser criada. A Mangueira, também fundada em 1928, também não teve "autorização" das classes mais abastadas. Quando Paulo da Portela (um dos fundadores da Escola de Samba Portela) intercedia junto ao poder público em favor de sua escola e das escolas em geral, ele não era um coadjuvante, mas um protagonista da história das classes populares do Rio de Janeiro, uma história que ainda está por ser escrita e interpretada por seus próprios agentes. Portanto, um patrimônio cultural concreto. Invertendo a fórmula, caberia a pergunta: seria a atuação dos intelectuais em favor do samba uma invenção de forte caráter ideológico?

Imagino que há um caminho do meio, de interseção entre grupos diferentes, numa encruzilhada que era também a da história do Brasil entrando numa nova época industrial. Não é possível negar o papel de protagonistas dos sambistas na construção de sua história social, como não é possível negar o papel de intelectuais como Villa-Lobos na valorização da cultura popular. É desse encontro, de dois grupos protagonistas, que surgirá uma ideia de nacionalidade. Mas ela está ancorada num fato concreto: o samba urbano, uma criação das primeiras gerações afrodescendentes pós-abolição da escravatura.

Velloso (1990) traça um panorama sobre a situação da comunidade negra durante a organização modernizadora que caracterizou a cidade do Rio de Janeiro no início do século XX. A autora examina a especificidade dessa participação, que se manifestou fora dos canais políticos e institucionais formais.

Associando a ideia de espaço à de identidade cultural, a autora mostra como o grupo formado pelos negros baianos se esforçou por reterritorializar seus valores e tradições, imprimindo sua marca na história da cidade. Especial ênfase é dada ao papel de liderança das "tias baianas", mães e filhas de santo, "formadas" que se revelaram capazes de reunir, através de "centros" e "terreiros", todo um conjunto de tradições.

Tias baianas é a denominação dada às senhoras negras, muitas delas nascidas e "formadas" na Bahia, que viviam no Rio de Janeiro em finais do século XIX. Algumas se notabilizaram e ficaram mais conhecidas, como a Tia Ciata. A existência obrigatória, até hoje, da ala de baianas nas escolas de samba do Rio de Janeiro, e também pelo resto do Brasil, é uma referência à importância dessas senhoras para a organização do carnaval do Rio de Janeiro.

As tias baianas eram lideranças sociais de uma comunidade que buscava se afirmar em uma nova cidade, uma nova civilização e uma nova era, em que os ex-escravos almejavam, finalmente, a integração social que lhes foi negada desde o dia em que desembarcaram dos navios negreiros no território brasileiro. Em suas casas, configuraram-se espaços de aconchego, participação, luta e festa (Carvalho, 2010).

Entre as tias baianas que emigraram da Bahia para o Rio de Janeiro destacam-se ainda tia Amélia (mãe de Donga), tia Perciliana de Santo Amaro (mãe de João da Baiana), tia Veridiana (mãe de Chico da Baiana). Tia Ciata, a mais famosa de todas, instalou-se num sobrado da rua Visconde de Itaúna, nº 117, em frente ao Colégio Pedro II: era grande quituteira, com tino comercial, alugava roupas típicas para o teatro e o carnaval. Mãe de santo respeitada, as festas em sua casa eram famosas, onde se praticava o partido alto e se dançava o miudinho (uma forma de dançar com os pés quase juntinhos). Na sua casa nasceu "Pelo telefone", primeiro samba registrado. Sua casa é considerada por muitos o berço do samba. Além da reconhecida importância dos baianos no nascimento do samba carioca, vale também destacar a contribuição de migrantes negros descendentes da última geração de africanos e escravizados no Sudeste, oriundos dos velhos vales de café do interior do estado do Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo (Abreu, 2004).

O carnaval não oficial da cidade acontecia na Praça Onze, onde havia os blocos e os pontos de encontro dos malandros e valentes, que não tinham nada em comum com o carnaval oficial. Ainda que não fosse permitido a negros, mulatos e pobres percorrerem as ruas centrais das cidades durante o carnaval, os cordões, agrupamentos de populares mascarados e os blocos, grupos espontâneos e temporários, estavam em todos os lugares.

Os primeiros sambistas encontravam-se à margem do mundo oficial. Eram músicos de boates e cabarés da Praça Onze ou ainda moradores dos morros e bairros periféricos do Rio de Janeiro, que nem sempre tinham trabalho ou fonte de renda regular, vivendo de biscates, em meio à violência, identificados ao mundo da marginalidade, situados em um espaço conhecido como a Pequena África (Moura, 1983).

Os terreiros de santo, com o ritmo e a batucada da religião afro-brasileira, exerceram uma influência muito forte sobre o carnaval que acontecia em fundos de quintais, esquinas, bares e bondes. Religião, música e dança entrelaçavam-se. O samba era de improviso e não tinha uma produção individualizada, o que refletia a forma comunitária que os músicos tinham de divertir-se. Esse samba começou a sair às ruas em blocos de carnaval e atraiu a atenção geral não apenas porque inverteu valores, mas também porque trouxe para as ruas exuberância, valentia e sensualidade, experiências e sentimentos que não faziam parte do cotidiano do resto da sociedade.

A partir dos primeiros concursos e regulamentos ordenando essas manifestações populares, a criação do samba ganhou um novo espaço: o da apresentação do samba. É então que se estabelecem novos limites às esferas anteriores entre público e privado. O samba dos temas livres, das rodas, bares e botequins, festas e pagodes, era um samba de pares, protegido do olhar externo. Os blocos de fundo de quintal, ao tornarem-se escolas de samba, não só se apresentaram ao público sem a proteção de máscaras, encantando a todos, como abriram seu espaço à participação de diversos setores sociais, que imediatamente passaram a disputar sua liderança.

O negro procurava reunir-se em grupo para assim preservar sua cultura ancestral, incluindo, nesse patrimônio, línguas e dialetos, ritos, religiões, costumes, medicina das plantas e das raízes, música, dentre outros. Sem dúvida, tal estratégia foi responsável pela garantia da permanência e da recriação de uma cultura riquíssima, mas pouco considerada como tal pelos elementos de poder que fizeram questão de bani-la ou de colocá-la em segundo plano.

Considerando-se que a constituição da identidade negra, como de qualquer outra identidade (independente da classificação), se faz por um conjunto de fatores - preservação da memória, sentimento de pertença a um grupo, identificação com a cultura produzida - que ainda está em movimento, pode-se afirmar que se trata, por um lado, de um processo não homogêneo, incompleto sempre (vir a ser), sofrido, já que de margem; e, por outro lado, de luta contínua por estratégias de sobrevivência, que vão desde as reuniões furtivas nas senzalas, passando pelo silêncio da não exposição e pelo grito do desconforto, as perseguições, até pela conquista de direitos, de força política, de ocupação de espaços públicos de prestígio, da possibilidade de garantir a diferença, de poder resistir às pressões do mercado.

O Samba Carioca como Patrimônio Cultural Imaterial

Nessa linha de preservação da memória, em 2001 foi fundado na Mangueira, uma das 763 favelas do Rio de Janeiro (IBGE, 2010), o Centro Cultural Cartola. Localizado em um dos berços do samba carioca, onde se encontra a escola de samba Estação Primeira de Mangueira, o Centro Cultural Cartola foi criado por dois netos de Angenor de Oliveira, Cartola (1908-1980), fundador da emblemática escola, 18 vezes campeã do carnaval do Rio de Janeiro.

Após o reconhecimento do samba de roda do Recôncavo Baiano como patrimônio cultural do Brasil em 2004, e como obra-prima do patrimônio oral imaterial da humanidade em 2005, (IPHAN, 2014), em 2006, o Centro Cultural Cartola decidiu articular e liderar uma pesquisa que situasse o valor do samba no Rio de Janeiro como patrimônio, mostrando seu papel na tradição cultural da cidade e fator de afirmação da identidade brasileira.

Dito trabalho - realizado entre janeiro e outubro de 2006 - foi desenvolvido por uma equipe integrada por pesquisadores vindos de diferentes áreas da Música e das Ciências Sociais, como Aloy Jupiara, Carlos Monte, Carlos Sandroni, Felipe Trotta, Haroldo Costa, Helena Theodoro, Janaína Reis, João Batista Vargens, Lygia Santos, Marília Andrade, Nei Lopes, Rachel Valença, Roberto Moura, Sérgio Cabral, Martinho da Vila e Luciano Nascimento, dentre outros.

O que motivou o Centro Cultural Cartola e os sambistas a assumirem esse desafio foi verificar que boa parte da memória do samba carioca estava se perdendo e, principalmente, o fato do que os detentores dos saberes tradicionais associados a essa manifestação cultural (as Velhas Guardas, por exemplo) já não tinham espaço dentro dos seus núcleos de origem, isto é, as escolas de samba. Em outras palavras, o carnaval, embora considerado o maior espetáculo do planeta, não traduzia sozinho a complexidade e riqueza do samba.

Seguindo a metodologia do Inventário Nacional de Referências Culturais do Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Nogueira, 2015), a pesquisa abordou três matrizes do samba carioca (o samba de terreiro, o partido-alto e o samba-enredo) a partir da descrição das suas expressões, isto é, a música, a poesia, a dança e a cena, focalizando seis das escolas de samba representativas dessas matrizes pesquisadas: Estação Primeira de Mangueira, Portela, Império Serrano, Acadêmicos do Salgueiro, Unidos de Vila Isabel e Estácio de Sá. As matrizes do samba do Rio de Janeiro foram reconhecidas como patrimônio cultural brasileiro por meio da inscrição no Livro de Registro das Formas de Expressão do IPHAN, em 20 de novembro de 2007 (IPHAN, 2014).

Quinze anos depois de sua fundação e nove após o registro, o Centro Cultural Cartola tornou-se Museu do Samba em agosto de 2015, enquadrando-se nos princípios da nova museologia (Desvallées & Mairesse, 2013), isto é, aquela que preconiza que a função de um museu deve estar para além dos objetos, pois envolve as práticas a eles associadas e as comunidades a que servem, ou seja, precisa de um contexto e das memórias que os sujeitos constroem a partir do estímulo provocado.

Parafraseando Hall (2003), poder-se-ia dizer que o Museu do Samba, ao longo destes 15 anos, virou um espaço conquistado, que surgiu como lugar de resistência. Hoje, além de salvaguardar o legado de afro-brasilidade a que viemos fazendo referência neste artigo, favorece a experiência do samba como linguagem, preservando o vínculo da nossa identidade cultural:

As estratégias culturais capazes de fazer diferença são o que me interessa - aquelas capazes de efetuar diferenças e de deslocar as disposições do poder. Reconheço que os espaços "conquistados" para a diferença são poucos e dispersos, e cuidadosamente policiados e regulados. Acredito que sejam limitados. Sei que eles são absurdamente subfinanciados, que existe sempre um preço de cooptação a ser pago quando o lado cortante da diferença e da transgressão perde o fio na espetacularização. Eu sei que o que substitui a invisibilidade é uma espécie de visibilidade cuidadosamente regulada e segregada. Mas simplesmente menosprezá-la, chamando-a de "o mesmo" não adianta. Depreciá-la desse modo reflete meramente o modelo deles, nossas identidades no lugar das suas - a que Antonio Gramsci chamava de cultura como 'guerra de manobra' de uma vez por todas, quando, de fato, o único jogo corrente que vale a pena jogar é o das 'guerras de posição' culturais. (Hall, 2003, p.377)

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Nilcemar Nogueira
End.:
E-mail: nilcemar.nogueira@gmail.com

Regina Glória Nunes Andrade
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E-mail: reginagna@terra.com.br
Georgie Echeverri Vásquez
End.:
E-mail: mensajerodevida@gmail.com

Recebido em: 04/08/2015
Revisado em: 07/12/2015
Aceito em: 11/01/2015

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