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Revista Subjetividades

versão impressa ISSN 2359-0769versão On-line ISSN 2359-0777

Rev. Subj. vol.16 no.2 Fortaleza ago. 2016

http://dx.doi.org/10.5020/23590777.16.2.34-45 

ESTUDO TEÓRICO

 

O declínio da função paterna na anorexia feminina

 

The decline of paternal function in female anorexia

 

La disminución de la función paterna en la anorexia femenina

 

Le déclin de la fonction paternelle dans l'anorexie féminine

 

 

Raoni Pereira da Silva Ramos Geraldo (Lattes)I; Elaine Soares Neves Lange (Lattes)II

IUniversidade Nove de Julho
IIPsicóloga e acupunturista. Mestre em Psicologia da Saúde pela Universidade Metodista de São Paulo (1997) e Doutora em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo (2005). Experiência na área Clínica, com ênfase em Intervenções terapêuticas em nível individual, grupal e institucional. Docente do Curso de Graduação em Psicologia da UNINOVE e do CEPPS

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo tem por objetivo analisar a falência da função paterna na constituição da anorexia feminina. A anorexia é um transtorno alimentar que se define por uma demasiada redução da massa corporal. Divulgada na mídia como uma patologia da atualidade, por meio de um breve histórico, verificou-se que, em épocas anteriores, como na Idade Média, existiram evidências de privações alimentares em mulheres. O estudo da anorexia é imprescindível para a compreensão desse tema urgente e comum na clínica atual. O principal objetivo deste trabalho foi analisar de que forma o declínio da função simbólica do pai determina a construção da anorexia na mulher. Analisou-se a dinâmica familiar da anorexia feminina por meio da relação intensa entre mãe e filha, pela ausência da função paterna e pelas consequências dessa dinâmica familiar para a sua constituição. Para compreender essa problemática foi realizado um levantamento bibliográfico por meio do referencial teórico psicanalítico, com a utilização de artigos e livros de autores contemporâneos orientados pelas teorias de Freud e Lacan.

Palavras-chave: anorexia; função paterna; psicanálise; feminilidade.


ABSTRACT

This article aims to analyze the failure of the paternal function in the female anorexia constitution. Anorexia is an eating disorder that is defined by too much body mass reduction. Disclosed in the media as a current pathology, through a brief history, it was verified that in previous times, as in the Middle Ages, there was evidence of food deprivation in women. The study of anorexia is essential for understanding this urgent and common theme in the current clinic. The main objective of this study was to analyze how the decline of the symbolic function of the father determines the construction of anorexia in female. The family dynamics of female anorexia were analyzed through the intense relationship between mother and daughter, the absence of paternal function and the consequences of this family dynamics for its constitution. In order to understand this problem, a bibliographical survey was carried out using the psychoanalytical theoretical framework, using articles and books by contemporary authors guided by the theories of Freud and Lacan.

Keyword: anorexia; paternal function; psychoanalysis; femininity.


RESUMEN

Este artículo tiene el objetivo de analizar la falencia de la función paterna en la constitución de la anorexia femenina. La anorexia es un trastorno alimentar definido por una demasiada reducción de la masa corpórea. Difundida en los medios como una patología de la actualidad, por medio de un breve histórico, se ha verificado que en épocas anteriores, como en la Edad Media, existían evidencias de privación alimentaria en mujeres. El estudio acerca de la anorexia es imprescindible para la comprensión de ese tema urgente y común en la clínica actual. El principal objetivo de este trabajo fue analizar de qué forma la disminución de la función simbólica Del padre determina la construcción de la anorexia en la mujer. Se analizó la dinámica familiar de la anorexia femenina por medio de la relación entre madre e hija, por la ausencia de la función paterna y por las consecuencias de esa dinámica familiar para su constitución. Para la comprensión de esta problemática fue realizado un levantamiento bibliográfico por medio del referencial teórico psico-analítico, con la utilización de artículos y libros de autores contemporáneos orientados por las teorías de Freud y Lacan.

Palabras clave: anorexia; función paterna; psico-análisis; femenilidad.


RÉSUMÉ

Cet article vise à analyser l'échec du rôle paternel dans la constitution de l'anorexie féminine. L'anorexie est un trouble alimentaire défini par une diminution excessive de la masse corporelle. Présenté dans les médias comme une pathologie de nos jours, au moyen d'un bref étude historique, il a été constaté que, dans l'autres époques, comme au Moyen Age, Il y a eu la privation de nourriture chez les femmes. L'étude de l'anorexie est essentielle pour la compréhension de ce thème urgent et commun dans la clinique actuelle. L'objectif principal de cette étude a été d'examiner comment le déclin de la fonction symbolique du père détermine la construction de l'anorexie chez les femmes. Nous avons analysé la dynamique familiale de l'anorexie féminine par la relation intense entre la mère et la fille, par l'absence de la fonction paternelle et par les conséquences de cette dynamique familiale à sa constitution. Pour comprendre ce problème, nous avons mené une revue de la littérature à travers la théorie psychanalytique en utilisant des articles et des livres des auteurs contemporains guidés par les théories de Freud et de Lacan.

Mots-clés: anorexie; fonction paternelle; psychanalyse; feminité.


 

 

A anorexia é um transtorno alimentar que se define por um intenso prejuízo sobre o peso corporal. Segundo o DSM-5 (2014), as principais características da anorexia são: privação alimentar em relação às necessidades nutricionais básicas, produzindo a rejeição do sujeito em manter uma massa corporal no nível normal mínimo, temor acentuado em aumentar o peso ou práticas constantes que intervém na aquisição de peso, e inquietação na forma como o próprio peso ou volume corporal são vivenciados.

O DSM-5 (2014) distingue dois subtipos de anorexia. O primeiro, o tipo restritivo, caracteriza-se por quadros nos quais a redução de peso corporal é obtida, de preferência, por meio de regime alimentar, privação parcial ou total de alimentos e atividades físicas, sem a ocorrência de episódios de compulsão alimentar ou de purgação. No segundo tipo, designado como tipo "compulsão periódica/purgativo", o indivíduo se envolve, frequentemente, em períodos de consumo alimentar compulsivo ou de purgação, como a provocação de vômitos ou uso impróprio de laxantes, diuréticos ou enemas.

Embora o DSM possua extrema relevância para o entendimento da anorexia, os critérios do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais são exclusivamente descritivos e definidos, destacando apenas a descrição dos sintomas, como a privação de alimentos e a distorção da imagem corporal, dentre outros. Assim, essa concepção da patologia não examina o sofrimento psíquico e a subjetividade de cada sujeito, o que, para compreensão psicanalítica, é imprescindível (Gaspar, 2005).

Leite (2010) afirma que mesmo que a psicanálise seja descendente da psiquiatria, permanecem diferenças essenciais em ambas as clínicas. Na psiquiatria, o sintoma é observável e pode ser descrito. O psiquiatra se situa exteriormente ao campo de observação e concebe um diagnóstico clínico que ele considera dentro dos sintomas descritos pelo paciente submetido ao exame. Por sua vez, na psicanálise o sintoma não pode ser observado e também não é capaz de ser descrito, já que são restringidas as associações livres do sujeito e o que é relatado numa análise psicanalítica é o que se converte em sintoma.

Para a psicanálise o sintoma tem um sentido. Freud (1895/2006c) afirma que, por meio do trabalho psicanalítico, é possível verificar que os sintomas possuem mais de um significado, manifestando ao mesmo tempo diferentes pensamentos inconscientes e que apenas um pensamento ou fantasia inconsciente dificilmente produzirão um sintoma.

Segundo Bidaud (2008), existe uma ligação afetuosa pré-edipiana com a mãe, o que resulta em obstáculos para a menina anoréxica substituir o objeto de amor materno para o paterno. Vários autores, estudiosos da anorexia sob a perspectiva psicanalítica, consideram que o ponto central da anorexia é a existência de uma ruptura considerável da fase pré-edípica associada ao fracasso da função paterna (Gaspar, 2005).

A função paterna, para Dor (2011), possui demasiada importância para diferenciar a criança do grande Outro (mãe) e, também, para o processo de subjetivação. É no complexo de Édipo que o pai interdita o vínculo mãe-filha e que a criança percebe não ser aquilo que preenche a falta materna, o desejo materno agora recai sobre o pai, não como antes, momento no qual a criança possuía a onipotência de completar a mãe. Para o pai assumir a função paterna, é necessário que ele interdite a relação fusional, na qual se estabeleçam limites. Portanto, o pai tem a função de ser o representante da lei e da castração, aquele que intervém na relação mãe-filha.

De acordo com Folberg e Maggi (2002), a falência da função paterna não permite uma diferenciação entre o Eu e o Outro, a constatação da incompletude é negada e, diante dessas circunstâncias, o sujeito encontrará objeções para procurar e elaborar as lacunas da sua falta, já que nada lhe falta. Lacan (1987) afirma que o declínio da função paterna produz o aparecimento de novas patologias. Na anorexia feminina é necessário investigar essa problemática, de que maneira o desejo da menina ficou aprisionado à onipotência materna e quais determinantes levaram o pai a não assumir sua função e interditar essa relação.

 

Um Breve Histórico da Anorexia

Apresentada como uma doença contemporânea, a anorexia nervosa promove, nas atuais discussões psiquiátricas, a indagação convencional sobre as semelhanças entre o adoecimento e a cultura, isto é, a propósito daquilo que se integra a uma particularidade mórbida permanente - o patogenético - e o que é complemento e influência da cultura - o patoplástico (Weinberg, 2010).

Para Weinberg (2010), a presença de transtornos alimentares em diferentes épocas e civilizações, anteriores às descrições de Morton (1689), Gull (1868) e Lasègue (1874), possui elevada importância no estudo das doenças mentais, pois torna secundária a influência da contemporaneidade que, em inúmeras ocasiões, é posicionada como a principal causa da propagação de transtornos alimentares.

A prática do jejum autoinduzido não constitui, essencialmente, um transtorno alimentar e possui uma extensa trajetória na história do homem. Entende-se que diversos povos de épocas remotas estimulavam a recusa nutritiva voluntária como uma prática religiosa e contemplavam a privação alimentar como um modo de elevação espiritual. Nas doutrinas e religiões orientais, o jejum de grandes durações era um ato habitual que proporcionava um absoluto distanciamento do mundo material, conduta essa que culminava no falecimento do praticante em alguns casos (Weinberg, 2010).

Publicado em 1689, o livro Tisiologia sobre a doença da consunção, de Richard Morton (1697-1638), médico inglês, caracterizou, pela primeira vez, o conjunto de sintomas observáveis que se aproxima da descrição atual anorexia. A consunção é um enfraquecimento físico descrito por três sintomas predominantes: perda do apetite, amenorreia e redução significativa do peso corporal. Morton atribuía ao sistema nervoso a gênese da privação alimentar (Bidaud, 1998/2008).

Entretanto, segundo Bidaud (1998/2008), somente em 1789, um francês, Naudeau, relata uma doença acompanhada por uma recusa nutritiva fora do comum. Gaspar (2010) salienta que a contribuição desses dois autores é de fundamental importância para o desenvolvimento dos estudos da anorexia, uma vez que destacaram a relevância do aspecto mental na gênese dos sintomas observáveis. Dessa forma, descartaram a probabilidade de uma origem endógena para a explicação da doença e, portanto, propiciaram um rompimento com o pensamento comum da época.

Ainda para Bidaud (1998/2008), coube a Pinel (1745-1826), no início do século XIX, estabelecer uma primeira reflexão sobre as semelhanças entre a conduta alimentar e suas peculiaridades. Pinel definia a anorexia e a bulimia como neuroses das funções nutritivas, considerando, assim, a conduta alimentar sob uma perspectiva social e cultural, em que as práticas alimentares partilham de um conjunto de normas, hábitos e inibições aos quais convém estabelecer no contexto de cada época.

Em 1868, nos trabalhos do médico inglês William Gull (1816-1890), surge o termo "anorexia nervosa". Antes das publicações de Gull, a privação alimentar estava relacionada à doença mental ou à doenças orgânicas, como tuberculose, diabetes e câncer. A partir dele a anorexia passou a ser definida como uma doença autônoma, na qual o diagnóstico acarretava uma desordem moral ou mental inerente ao sistema nervoso, todavia acentuada pela idade da paciente e/ou seus hábitos (Weinberg, 2010).

Weinberg (2010) afirma que, definida como "indigestão histérica" a princípio, a descrição do conjunto de sintomas passou a ser denominada de anorexia nervosa, porque Gull constatou que a "anorexia" (ausência de apetite) era uma expressão mais adequada do que indigestão, visto que, com exceção das últimas etapas da enfermidade, o alimento podia ser satisfatoriamente digerido.

Gaspar (2010) afirma que, a partir do século XIX, ocorreu um esforço classificatório das ciências médicas para particularizar a anorexia como uma doença, com a possibilidade de delimitá-la a medidas mais compreensíveis e sua descrição corresponder à semiologia contemporânea.

Em 1873, Charles Lasègue (1816-1883), psiquiatra francês, publica um artigo nomeado De l'anorexie hystérique (Da anorexia histérica), que constitui uma descrição aprofundada de oito casos de mulheres anoréxicas, no qual relata as três fases dessa doença. A primeira fase inicia-se pela diminuição alimentar como alívio para as dores gástricas obtidas após as refeições. A paciente reduzia sua conduta nutritiva por meio de alguns alimentos sem apresentar traços de fadiga ou esgotamento (Weinberg, 2010).

Na segunda fase, após um intervalo de tempo, quando a família, os amigos e o médico constatam o quanto suas tentativas de alimentá-la são ineficientes, configura-se o quadro principal da doença designada como "perversão mental", descrita por uma demasiada resistência da paciente. Caracteriza-se pelo adoecimento e configura a anorexia histérica (Weinberg, 2010). Na fase final, constata-se a ausência de menstruação, ressecamento da pele, enfraquecimento e sensação de desfalecimento. Por conta da preocupação dos familiares, a anoréxica se atormenta e pode aderir ao método terapêutico (Weinberg, 2010). Pereira (1998) afirma que, com esse estudo, Lasègue estabelece uma das principais contribuições para a história da compreensão psicopatológica da anorexia nervosa. Esse transtorno foi esquecido por cerca de dois séculos até ser alvo de exploração por William Gull, em 1868.

O método de Lasègue apoiava-se em investigar separadamente cada sintoma dessa doença, adotando um recurso clínico de essência analítica, no qual rejeitava qualquer particularidade de hipótese etiológica antes de alcançar um conhecimento aprofundado das distintas formas de manifestação do fenômeno analisado. Tinha por objetivo publicar uma sucessão de estudos clínicos que relatassem em profundidade as diferentes características da histeria. O mesmo considerava que a anorexia era somente um dos tipos de exibição da histeria (Pereira, 1998).

Para Bidaud (1998/2008), pode-se comprovar, sem dificuldades, que sempre existiram anoréxicas, porém somente adquiriram evidência por meio de sua inclusão em um discurso científico, o de Lasègue, que constituiu um marco decisivo no domínio das ciências médicas.

Os estudos de Lasègue, para Gaspar (2010), ampliaram a compreensão da conduta anoréxica, pois esse autor assegurava que as anoréxicas possuíam um "otimismo inexpugnável", ou seja, nenhum pedido ou advertência as amedrontava, para elas não havia sofrimento, portanto a saúde estava em harmonia. Coube também a Lasègue as primeiras observações da obtenção de prazer ou algum modo de satisfação como moção essencial na organização psíquica dessas mulheres.

Posteriormente a Lasègue, Jean-Martin Charcot (1825-1893), psiquiatra francês, identificou na anorexia um sintoma estritamente histérico. Essa relação com a "grande neurose", evidenciada pela teoria psicanalítica, se preservou até nos estudos mais atuais. Observa-se, atualmente, que essa semelhança desperta dúvida (Bidaud, 1998/2008).

Gorgati (1999) adverte que o problema da histeria, conforme investigado pela especificidade do modelo médico da época, baseava-se somente na distinção da anorexia diante de outras doenças, tais como a epilepsia e a neurastenia, e também da simulação, pois faltavam recursos teóricos mais adequados para a compreensão dessa patologia, como a conceituação do inconsciente, a noção de fantasia e mecanismos de defesa que só posteriormente vieram a ser aprimorados por Sigmund Freud (1856-1939).

 

Freud e a Neurose Alimentar

Desde o início de suas obras, Freud (1883/2006a) demonstrava um demasiado interesse pela psiconeurose da histeria. Embora em nenhum momento tenha abordado diretamente a etiologia da anorexia, interessava-se por essa patologia. O ponto central das contribuições freudianas estava relacionado principalmente à neurose, com o objetivo de compreender, de modo extenso, a dinâmica psíquica da histeria. Portanto indicava, na anorexia, uma manifestação histérica.

No artigo "Um caso de cura pelo hipnotismo" (1883/2006a), Freud se submeteu às condutas anoréxicas em uma manifestação histérica e analisou o caso clínico de uma jovem mulher que apresentou sintomas anoréxicos após o nascimento do primogênito e precisou suspender temporariamente a amamentação por ausência de leite materno. Os mesmos sintomas (vômito, baixa autoestima, humor deprimido e repulsa alimentar) tornaram a aparecer no nascimento do segundo filho. Freud definiu esse caso como uma "histeria ocasional", conforme o vínculo teórico que ainda mantinha com Charcot, porém não concedeu uma explicação psicanalítica, observando os sintomas de maneira análoga à Lasègue, com a definição de perversão da vontade (Gaspar, 2010).

Para Bidaud (1998/2008), esse caso clínico coloca em destaque, no surgimento dos sintomas, a complexidade da relação inicial mãe-criança, em que se compreende a equação simbólica: comer = amamentar. Mesmo que esse não seja o ponto central de sua atenção, por meio dessa vinheta clínica, Freud demonstra a importância da relação com o objeto primário que, nos estudos atuais, é imprescindível para a compreensão da anorexia.

Em 1895, Freud (1895/2006b) publica seus Estudos sobre a Histeria, no qual relata, particularmente no caso clínico de Emmy Von N, a evidência de privação alimentar em seu sintoma conversivo. Para essa paciente, a ingestão alimentar se associava às lembranças de repugnância. Em sua infância, a paciente era coagida a concluir suas refeições, mesmo que os alimentos estivessem gelados, para se esquivar de ameaças de castigos por parte da mãe rígida.

Freud (1895/2006c) esclarece a anorexia de Emmy Von N pela dificuldade de reduzir sua repugnância pela comida, visto que precisou sempre reprimir, não havendo possibilidade de ab-reação. Segundo Gaspar (2010), nesses estudos sobre a histeria, Freud progrediu nas investigações. Em sua hipótese, a origem das privações alimentares se localizava na histeria. Os sintomas histéricos estariam associados a um trauma psíquico, da tenra infância, no qual o afeto foi prejudicado por uma experiência vivida penosamente.

Nesse período, a teoria freudiana explicava os sintomas histéricos por meio de traumas psíquicos que não haviam sido ab-reagiados. Muito embora o foco central da teoria fossem as lembranças reprimidas, observa-se que a repulsa diante das refeições provinha de uma tentativa de se libertar do desejo materno.

Gaspar (2010) reconhece os limites teóricos desse estudo tendo em vista a época em que foi elaborado e considera as evoluções no decorrer no pensamento psicanalítico. Porém ressalta o trauma psíquico como uma característica imprescindível que persiste nas investigações sobre a problemática da anorexia.

No mesmo ano, Freud (1895/2006b) escreve o Manuscrito G, no qual relaciona a proximidade entre a melancolia e a anorexia. Para ele, a anorexia seria uma neurose alimentar similar à melancolia que atingia jovens do sexo feminino nas quais a sexualidade não havia progredido. O próprio Freud acreditava que a ausência da necessidade de se alimentar designava, em termos sexuais, a perda da libido.

Gaspar (2010) ressalta a importância desse escrito para o contexto atual da anorexia, pois Freud relaciona a privação alimentar com uma problemática no âmbito sexual em vista da diminuição da libido e da presença de demasiadas excitações no psiquismo produzirem muito sofrimento, portanto, precisarem ser esvaziadas. Portanto, mesmo que Freud (1895/2006b), nesse texto, identifique que a sexualidade não havia sido desenvolvida na anorexia, o autor compreende a anorexia sob o ponto de vista da histeria. Desse modo, conceitua a ausência de fome e a aversão diante da alimentação como uma saída para os sintomas conversivos, ou seja, o retorno do recalcado na consciência.

Bruch (1973), uma das pioneiras dos estudos sobre a psicodinâmica do funcionamento da anorexia, destaca a importância do papel da família no tratamento da doença, salientando que uma precoce má organização na relação mãe e bebê seria capaz de promover déficits no senso de indiferenciação e autonomia, distorção de imagem corporal e um desconhecimento das fronteiras egoícas. Portanto, poderia ocorrer uma demanda de repúdio ao corpo, como uma forma de repúdio à mãe devido à dificuldade de desvincular-se desta.

Bidaud (1998/2008), posteriormente aos estudos freudianos, assegura que diversos autores se libertaram da concepção primária que filiava a anorexia como um sintoma conversivo da histeria. Atualmente, há inclinação a se identificar a anorexia como uma problemática autônoma. A anorexia adquiriu existência própria depois de ter sido descrita apenas como um sintoma.

Longe de ser uma doença contemporânea, observou-se que existem profundas semelhanças entre as praticantes do jejum autoinduzido de outrora e as atuais jovens anoréxicas (Weinberg, 2010). Convém analisar, contudo, a dinâmica familiar na anorexia, permitindo, assim, identificar de que forma o pai não encarnou sua função simbólica, definida por Dor (1989) como uma encruzilhada estrutural da subjetividade, e não interveio na relação fusional para impedir o domínio materno sobre a filha.

 

O Complexo de Édipo em Freud

O corpo da criança é um corpo erógeno, afirma Freud (1905/2006e). Por meio dos cuidados maternos, determinadas zonas do corpo proporcionam prazer. A princípio, qualquer região corporal é capaz de se transformar em uma zona erógena, porém existem determinadas regiões que funcionam como fontes diretas para obtenção desse prazer: a cavidade bucal, o ânus e, por fim, os órgãos genitais.

Conforme Freud (1905/2006e), as fases do desenvolvimento sexual constituem-se em três: na primeira, a fase oral, na qual o prazer sexual é obtido na boca, a moção sexual ainda não se separou da função alimentar. Devido ao contato com o seio da mãe, o lactante obtém prazer ao sugar e satisfação nutricional. A fase anal, localizada a partir do segundo ano de vida, caracteriza-se pela aquisição do controle esfincteriano. Por fim, a fase fálica, determinada pela primazia da genitália, na qual a satisfação é obtida por meio da atividade masturbatória.

O complexo de Édipo se baseia em uma fase organizadora do desenvolvimento psicossexual infantil, a fase fálica, por volta dos quatro anos, quando a zona genital alcança um interesse especial no desenvolvimento sexual da criança. Portanto, o complexo de Édipo é um fenômeno universal que organiza a sexualidade humana (Freud, 1905/2006e).

Em 1900, na publicação do livro A interpretação dos sonhos, Freud (1900/2006d) afirma que os psiconeuróticos, quando submetidos à análise, possibilitavam a identificação do núcleo dos desejos sexuais que se originavam precocemente na infância. Inicialmente, postula, em sua teoria, o pai como primeiro objeto de amor de uma menina. À medida que os primeiros desejos sexuais de um menino, em tenra idade, se direcionam a mãe.

Para Nasio (2007), o menino está apaixonado por sua mãe e deseja afastar o pai; a menina, por seu lado, apaixonada pelo pai, deseja afastar a mãe. Configura-se, assim, o Complexo de Édipo, uma experiência vivida por uma criança de aproximadamente quatro anos que, tomada por um desejo sexual indomável, direciona-o para as figuras parentais.

Para esse autor, nenhuma criança, independente do sexo, consegue escapar ao Complexo de Édipo, pois a criança possui uma grande quantidade de moções sexuais que lhe transbordam e nenhum adulto do seu mundo externo pode impedir ser o objeto das pulsões eróticas infantis ou se esforçar para barrá-las (Nasio, 2007).

Freud (1925/2006f) constata em ambos os sexos a mãe como primeiro objeto de amor, uma vez que ela desempenha a função alimentar e provedora de cuidados, condição primária nos dois sexos, e permanece como escolha de objeto primordial até ser substituída por outra pessoa que exerça essa função. Por fim, Freud (1931/2006g) afirma a impossibilidade de compreensão do sexo feminino a não ser pela consideração com o vínculo afetivo estabelecido da relação pré-edipiana com a mãe.

O complexo de Édipo feminino difere do masculino, pois, ao contrário do menino, que possui uma atração sexual direcionada ao genitor do sexo oposto, a menina vive uma fase pré-edipiana por sua ligação com a mãe. Para que a mesma entre definitivamente no Édipo, é necessário que ocorra uma mudança de objeto, ou seja, a menina precisa transferir seu desejo inicial da mãe para o pai (Nasio, 2007).

Para Nasio (2007), o menino sai do Complexo de Édipo pela angústia da castração, com medo de ser punido pelo pai, abandona a mãe. A menina, ao contrário, entra no Édipo privada do falo, marca feminina, e reage com profunda decepção ao constatar que a mãe é um ser castrado. Afasta-se do objeto materno por um conflito, uma mistura de dor e ódio. Já que a mãe não possui falo, a menina toma o pai como objeto de amor secundário, acredita que o pai possa lhe dar o falo. Difere-se assim o Complexo de Édipo entre ambos: o menino sai dele movido pela angústia da castração e a menina nele entra pelo constatar da castração.

Para Nasio (2007), o Édipo feminino constitui-se em quatro tempos: no primeiro tempo, pré-edipiano, a menina possui excitações clitoridianas, acredita ter o falo e, assim como o garoto, deseja possuir a mãe. No tempo da solidão, a menina, ao se deparar com um menino nu, descobre que não tem o falo, sofre pela privação e certifica-se que a mãe também é desprovida desse atributo. Deste modo, menospreza o objeto materno por tê-la feito mulher.

No tempo do Édipo, a menina volta-se ao pai e solicita uma reparação para o seu narcisismo ferido. Ao perceber a mãe como objeto do desejo paterno, a menina se identifica com um modelo de feminilidade e almeja ser possuída pelo pai, ou seja, ser o objeto do desejo do pai. Por fim, na resolução do Édipo feminino, o pai renuncia ao desejo da menina, que é obrigada a abandoná-lo, mas incorpora traços de sua personalidade masculina (Nasio, 2007).

Para Freud (1931/2006g), o complexo de Édipo estabelece nas mulheres a consequência derradeira de um desenvolvimento que permanece por um longo tempo e não é destruído, todavia, é construído pela influência do complexo de castração. Diferentemente do homem, que abandona a fase edípica devido ao resultado avassalador produzido nele, a mulher jamais consegue superar o Édipo.

 

A Metáfora Paterna em Lacan

Jacques Lacan (1901-1981), ao tratar sobre da teoria do complexo de Édipo freudiano, desenvolveu um retorno ousado à perspectiva original. À medida que Freud afirma que toda criança, durante a fase fálica, possui desejos sexuais direcionados aos seus pais, Lacan assegura que, antes de nascer, a criança foi objeto de desejo do Outro e que está inserida imediatamente no Complexo de Édipo (Diaktine, 1999).

Para Lacan (1979, p.223), "o desejo do homem é o desejo do Outro", ou seja, a criança está alienada aos desejos dos pais, pois indicam expectativas e atribuem valores ao filho antes mesmo do nascimento. Portanto, a linguagem é anterior ao sujeito. Fink (1998) afirma que a alienação não é uma condição definitiva, longe disso, é uma operação que acontece em determinados momentos.

A alienação indica que a criança, ao nascer, se situa em momento de total dependência ao desejo do outro, mais particularmente ao desejo da mãe, pois um sujeito não existe sozinho. A esse primeiro momento deve se suceder um segundo, que insira uma primeira separação na relação entre a mãe e a criança, e proporcione uma saída de uma dominação completa do desejo materno (Zalcberg, 2003).

Para Lacan (1964/1999), o primeiro contato que a criança vivencia com a realidade ocorre por meio da relação com a mãe, por intermédio dessa relação a criança experimenta as primeiras constatações de sua comunicação com o mundo vivo. Inicia-se, nesse momento, o primeiro tempo do Complexo de Édipo lacaniano. Nessa etapa inicial, a mãe assume a função de promover a sobrevivência da criança por intermédio dos cuidados essenciais.

Assim como Freud, Lacan também afirma que a mãe ocupa a função de manter os primeiros cuidados básicos da criança e, por meio desse cuidado materno, a criança experimenta sensações prazerosas. O que a princípio se instaura nessa relação mãe e criança é uma relação fusional, na qual a criança depara-se com uma posição de total assujeitamento aos desígnios maternos, visto que a mãe proporciona satisfação além das necessidades básicas. Lacan se refere ao assujeitamento da criança, pois inicialmente a mesma experimenta em demasia os desejos daquela da qual depende, mesmo que esses desejos sejam excessivos (Faria, 2010).

A mãe espera ser "tudo" para a criança. Ela deposita no filho o lugar do falo imaginário e o filho, no que lhe diz respeito, identifica-se com esse lugar para preencher a falta materna. Portanto, constitui-se uma relação imaginária estabelecida, por um lado, pela mãe, que supõe ter o falo, e, de outro, pelo filho, que acredita sê-lo (Nasio, 2012).

Segundo Dor (2011), inicialmente a criança vive numa relação fusional com a mãe, na qual o pai é percebido pela criança, enquanto ser real, como um estranho. A relação com a mãe produz na criança a sensação de ser o único objeto que pode satisfazer o desejo materno. Isto é, a criança está alienada ao desejo da mãe, ela acredita ser aquilo que completa a falta, ser o falo imaginário.

Portanto, nesse primeiro tempo, a criança busca atender ao desejo da mãe, ou seja, ser o falo, que a criança identifica como o objeto do desejo da mãe. O pai pode estar presente ou ausente na constituição familiar, porém, por sua vez, aparece de uma forma velada, pois, para a criança, tudo se passa nesse primeiro momento como se não existisse nada além da mãe (Lacan, 1964/1999).

O segundo tempo do Édipo (idem) consiste em ser ou não ser o falo. Essa etapa posiciona a saída da criança da sua relação com a mãe. A criança, que não vai além desse tempo do Édipo, mantém, de algum modo, uma identificação com o objeto do desejo materno. Aceitar ou recusar a privação materna pelo pai é o ponto nodal do Édipo, porque dessa etapa se originam as diferentes estruturas clínicas.

Para o pai assumir sua função é necessário que ele interdite essa relação. A intrusão paterna coloca em dúvida a convicção que a criança tinha de ser o objeto do desejo da mãe e, a partir daí, ela ingressa numa incerteza psíquica mediante seu desejo, já que outrora era convicta de ser o objeto de completude da mãe. No decurso dessa incerteza é possível que a criança comece a se confrontar com a castração como consequência da presença paterna (Dor, 2011).

Conforme Dor (2011), o pai real aparece gradativamente perante a criança como um sujeito que possui privilégios quanto ao desejo da mãe. Ele surge como um obstáculo na relação fusional por se constituir como portador da lei e por proibir o incesto. O segundo tempo do Édipo se sustenta pela presença paterna, que surge como uma presença privadora mediada pelo discurso materno. Assim sendo, a função paterna não exige um pai real. Quando a mãe faz referência a algo externo a ela, remete a uma instância terceira nessa relação mãe e filho, e alude ao discurso paterno, pois se expõe submetida à falta para a criança. A mãe deixou de ser "toda" e se tornou castrada agora, apresenta-se como "não toda". Dessa forma, a mãe demonstra para a criança que não é completa, pois também precisa de alguma coisa exterior (Leite, 2010).

Para Lacan (1964/1999), não existe o complexo de Édipo quando o pai está ausente. De maneira oposta, ao tratar da questão do Édipo, é necessário inserir como fundamental a função paterna. Primeiramente, o pai interdita a mãe, pois cabe a ele assumir a representação da lei e proibir o incesto. O pai proíbe a mãe por essa ser seu objeto, e não do filho. Assim, se estabelece em ambos os sexos, ao menos em um período, uma rivalidade com a figura paterna, pois o pai, de modo efetivo, frustra a intenção do filho de possuir a mãe.

O terceiro tempo é tão significativo quanto o segundo, pois é dele que resulta a dissolução do Complexo de Édipo. O pai é uma metáfora e sua função no complexo de Édipo é simbólica. A entrada do pai nessa relação só é possível se ele se colocar como um enigma ao desejo materno, ou seja, para isso ele precisa dar provas, em um determinado momento, de que possui aquilo do qual todo ser é privado: o falo (Lacan, 1964/1999).

Portanto, este é o terceiro tempo do Édipo: o pai pode dar aquilo que falta à mãe, o falo, e pode dar porque o possui. A saída do complexo de Édipo só é possível uma vez que a identificação com o pai é realizada nesse terceiro tempo, em que ele intercede como aquele que possui o falo. Define-se essa identificação como Ideal do Eu, pois é intercedendo como o possuidor do falo que o pai é introjetado na criança e, por meio dessa realização, o complexo de Édipo chega ao seu fim (Lacan, 1964/1999).

O Édipo, conforme Faria (2010), baseia-se em um movimento essencial da supremacia do simbólico, que tem o falo como componente regulador e efeito da metáfora paterna. Esse movimento essencial tem como resultado a instalação da identidade sexual, em que as saídas femininas estão em direção à busca pelo falo que não possui, e a masculina, com a suposição de possuir o falo, assim como o pai.

Ao atravessar o Complexo de Édipo a menina herda do pai, assim como o menino, uma identificação viril que lhe estrutura a subjetividade. No entanto, o pai não pode conceder uma identificação exclusivamente feminina, pois não existe um significante do sexo feminino, assim como o falo é para o sexo masculino. Portanto, pela ausência de um significante que caracterize o sexo feminino, isto é, de um símbolo que possa determinar o que é ser uma mulher, novamente a menina retornará sua contemplação e seu apego para a mãe (Vieira, 2008).

 

A Falência Paterna na Relação Mãe e Filha

Segundo Zalcberg (2003), não se pode analisar a anorexia das jovens mulheres somente em termos da influência que ideais estéticos de um idolatrado e ambicioso corpo esguio apresentado por modelos exercem. A relação com a mãe se interpõe à subjetividade dessas jovens, a começar pela constatação da menina, mais do que o menino, de possuir uma dificuldade de ultrapassar a relação primordial com a mãe, na qual se verifica, constantemente, a representação da mulher idealizada que abriga o enigma da sua sexualidade.

Lacan (1972/2003) afirma que a menina aguarda adquirir, como fêmea, mais substância de sua mãe do que de seu pai. Embora a função paterna opere de maneira parcial na mulher, isto é, deixe um rastro, não lhe oferece uma identidade exclusivamente feminina. A metáfora paterna também é essencial para a menina se libertar do assujeitamento ao desejo materno, ou seja, da alienação absoluta, característica do período inicial do Édipo, base da estrutura psicótica. O destino da criança deriva, então, da intervenção, ou não, da função simbólica do pai (Zalcberg, 2003).

Caso o pai, ou alguém que encarne sua função simbólica, não interceda, a criança permanecerá totalmente alienada aos desejos maternos. Por surgir do corpo da mãe, a criança se torna objeto do desejo materno e não existe outro papel a desempenhar, pois, para a mãe, a criança é apenas uma extensão de seu corpo. Assim, a criança permaneceria numa relação devastadora com a mãe, ou seja, a de ser apenas um objeto do desejo materno (Zalcberg, 2003).

Como consequência da ligação exclusiva que a menina estabelece com a mãe na fase pré-edipiana, ela permanece com mais facilidade, de algum modo, alienada ao desejo materno. De tal modo que, a alienação ao desejo materno produz dificuldades para uma menina separar-se de sua mãe e ter seu próprio desejo, além do que o Outro materno deseja (Zalcberg, 2003).

Segundo Zalcberg (2003), uma maneira da criança se contrapor à sua posição passiva frente ao desejo materno é pela possibilidade de se separar do objeto que ela é para a mãe. Por meio da separação, a criança atribui à mãe uma falta. Trata-se de uma operação contrária à localizada na fase fálica, aquela definida pelo esforço da criança em busca de completar a falta materna, e não lhe impor uma falta.

Na anorexia que pode conduzir à morte, o que está em jogo, na menina, é uma fantasia de seu próprio desaparecimento para atribuir uma falta ao Outro materno. Por meio dessa fantasia, a anoréxica almeja deixar de ser o único objeto que pode satisfazer à mãe, o gozo materno. Por sua vez, a mãe toma a filha como um investimento libidinal para mais além do seu prazer, beirando o excesso (Zalcberg, 2003).

Segundo Vieira (2008), a anorexia é uma tentativa de separação da menina diante do desejo da mãe. A anoréxica, por meio do seu sintoma, exige que a mãe busque algo além da sua existência, pois dessa maneira impõe à mãe uma falta. Ao recusar a incorporação do objeto alimentar, por meio da oralidade, a menina barra o gozo invasivo da mãe.

Lacan (1998) afirma que na anorexia existe uma confusão entre necessidade e demanda por parte da mãe. A necessidade visa à satisfação da criança pelos cuidados vitais; a demanda, por sua vez, é uma convocação ao outro, um apelo. A demanda é uma procura pela presença ou ausência da mãe, uma demanda de amor.

Por meio da inanição a criança busca a mãe para eliminar esse desprazer, todavia, além da satisfação nutricional, a criança procura o Outro materno como alguém que seja capaz de lhe oferecer amor e lhe dar algo além da satisfação da necessidade. Por sua vez, a mãe interpreta incorretamente a solicitação de amor e empanturra a criança, com possibilidades de refeições vivenciadas como insuportáveis (Lacan, 1958/1998).

Conforme Lacan (1958/1998, p.634), "é a criança alimentada com mais amor que recusa o alimento e usa sua recusa como um desejo (anorexia mental)". Assim, a criança ao rejeitar os caprichos maternos, reivindica que a mãe não a use como uma realização dos seus desejos, e que procure por algo exterior a ela.

Conforme dito anteriormente, a menina busca a separação, por meio da anorexia, como uma forma de evitar o gozo invasivo da mãe. Porém, Recalcati (2001) afirma que, na anorexia, ocorre uma pseudo-separação, visto que funciona como uma separação contra a alienação, pois se caracteriza como uma forma de negação diante da dependência materna. Assim, atribui à mãe uma falta e ela, a anoréxica, com seu desejo de comer nada, assume a onipotência, porque, ao levar até o limite as suas consequências, nada lhe falta.

Para Fernandes (2003), a anoréxica abrigaria um fantasma de indestrutibilidade do corpo por meio da negação da realidade humana, ou seja, a anoréxica rejeita a olhar-se como vulnerável. Prevalece o sentimento de onipotência e a negação da realidade corporal que mantém o sujeito na fantasia de um corpo imune, e consequentemente inatingível pela finitude humana.

Por meio da descrição do caso clínico da paciente Emmy Von N, Freud (1893/2006c) relata que, na infância, a paciente era forçada a comer carne fria pela mãe como uma forma de punição por suas rebeldias. Posteriormente, na fase adulta, a paciente desenvolveu um quadro de anorexia. Não estaria aí uma tentativa de separação frente ao desejo da mãe? E onde está o pai para barrar a submissão ao Outro materno?

Lacan (1964/1999) afirma que o pai é um significante que substitui o significante primordial, a mãe. Porém, o pai só assume a função paterna na medida em que interfere na relação mãe e criança, e ocupa o lugar do desejo da mãe no discurso ao lhe oferecer o falo. Esse é o princípio do Complexo de Édipo: o pai deve interditar a mãe para que a criança não ocupe o lugar do falo materno.

Se a mãe não direcionar o seu desejo para o pai ou para outra pessoa que se apresente como um terceiro e não atribuir a ele o lugar de representante da lei, a relação mãe e criança permanecerá fusionada. Então, quando o pai ou alguém que deve assumir esse lugar é distante e permite que não ocorra uma separação entre mãe e criança, a função paterna jamais será realizada (Fink, 1998).

Na anorexia, via de regra, a função paterna é retratada como ausente ou inexistente, ainda que exista a presença real do pai na dinâmica familiar. O pai não consegue encarar sem medo a filha anoréxica. A mãe, por sua vez, silencia e despreza o pai, assim exerce um domínio completo e assume o lugar da lei para filha (Bidaud, 1998/2008).

Bidaud (1998/2008) em seu livro Anorexia, narra algumas vinhetas clínicas e, por meio dos discursos das adolescentes anoréxicas quando submetidas à análise, o pai é descrito como amoroso, extremamente permissivo e carinhoso, porém não consegue assumir a sua função, ou seja, impor limites à filha. Portanto, a anorexia é determinada pelo declínio da função paterna, como consequência da relação fusional entre a mãe e a filha. A mãe não permite a intrusão paterna e, desse modo, o pai se apresenta como impotente, pois não assume seu lugar de representante da lei na constelação familiar (Gaspar, 2005).

Lacan (1955-1956/2010) afirma no seminário III sobre "As psicoses" que a foraclusão do significante do Nome-do-pai é o que está na gênese das psicoses. Segundo Gomes (2002), a princípio seria tentador relacionar esta problemática à psicose, uma vez que, existe um declínio da função paterna na anorexia. Todavia, não é isso que aparenta acontecer nos casos de anorexia feminina, visto que existe uma dificuldade da menina em lidar com o desejo materno. A anorexia surge como uma tentativa de barrar o gozo invasivo da mãe.

Logo, para realizar um diagnóstico diferencial da anorexia como uma neurose ou uma psicose, Fuks e Pollo (2010) afirmam que é necessário encontrar em cada caso clínico se o que está em evidência é um conflito neurótico, em que a menina por meio do corpo anoréxico tenta impedir o desejo materno, para fazer valer o seu próprio desejo, ou se está, na verdade, aprisionada na posição de objeto submetido ao gozo da mãe.

 

Uma Breve Ilustração Clínica

Na prática clínica observaram-se os princípios descritos neste trabalho, como no caso de Genuína, filha adotiva que não recebeu da mãe (avó) os cuidados necessários. Ao nascer, Genuína não ocupou o lugar no desejo materno, portanto foi objeto do gozo desta mãe quando lhe espremia ainda bebê ferimentos a sangue frio. A mãe, neste momento, não permitia a entrada do pai na relação que estabelecia com a filha, e, ao mesmo tempo, o pai não foi capaz de se posicionar nesta relação dual, de forma que não impôs a lei na constelação familiar.

Tal modo de relação, ao enfraquecer os vínculos, enfraqueceu também a percepção corporal na medida em que os investimentos libidinais da mãe para com Genuína também não se configuraram. A falta e a segurança da presença do outro, na relação dual entre mãe e filha, não intermediada pela presença paterna, refletiram-se através dos sintomas anoréxicos apresentados por Genuína, paciente com quadro de anorexia restritiva, IMC 13, 23 anos.

A falência paterna evidenciou-se pela frágil aliança entre Genuína e seu pai, principalmente no que se refere a sua função, pois a sua permissividade e impotência perante o domínio materno levaram Genuína, nesta relação de dominação com a mãe, à quase morte. O corpo esquelético, morto em vida, parecia ser o grito necessário de autonomia e fortalecimento de sua própria identidade.

 

Considerações Finais

A anorexia é um transtorno alimentar cuja existência tem se tornado frequente na atualidade. Porém, longe de ser uma doença contemporânea, suas origens remetem a tempos remotos. Para Weinberg (2010), as mulheres da Idade Média, por meio das recusas alimentares, aspiravam a um modelo ascético, no qual os jejuns autoinduzidos tinham por finalidade a purificação e o encontro com o divino. Atualmente, por influência dos padrões culturais de beleza, as mulheres anoréxicas almejam alcançar um corpo perfeito.

Zalcberg (2003), por sua vez, é contrária à afirmação de que a anorexia é decorrente apenas da influência dos ideais estéticos. Para essa autora, na anorexia feminina deve-se analisar a relação mãe e filha, pois, diferentemente do menino, a menina tem dificuldades para se separar da relação primordial com a mãe, visto que a filha espera receber um significante feminino de seu sexo por meio do Outro materno.

A anorexia é um transtorno alimentar que exige o acompanhamento de uma equipe interdisciplinar. Médicos, psicólogos, nutricionistas, entre outros profissionais, são necessários para o tratamento dessa patologia. O trabalho do psicólogo é essencial para a compreensão da anorexia, visto que, na anorexia feminina, conforme Lacan (1958/1998), existe um desejo velado por trás do não comer nada.

Por meio do levantamento bibliográfico, com base na abordagem psicanalítica, percebeu-se que, em muitos casos de anorexia feminina, a função paterna está ausente na dinâmica familiar, ainda que exista a presença real do pai, sua função simbólica é inoperante. Fink (1998) afirma que se o pai ou um terceiro não assumir esse lugar de representante da lei, a relação mãe e filha permanecerá dual.

Para Bidaud (1998/2008), o pai é impotente na dinâmica familiar, pois sua função simbólica não intervém na relação mãe e filha. Uma vez que a mãe exerce domínio sobre a filha, assume o lugar da lei para essa e o discurso paterno é inválido.A anorexia feminina surge como uma tentativa de separação diante do Outro materno, como uma forma da anoréxica assumir seu próprio desejo, oposto aos desígnios maternos. Portanto, a anoréxica, ao apresentar-se "morta em vida", homologa no corpo a dor do conflito não resolvido.

 

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Recebido em: 15/05/2016
Revisado em: 26/07/2016
Aceito em: 03/08/2016

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