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Revista Subjetividades

Print version ISSN 2359-0769On-line version ISSN 2359-0777

Rev. Subj. vol.16 no.2 Fortaleza Aug. 2016

http://dx.doi.org/10.5020/23590777.16.2.82-92 

ESTUDO TEÓRICO

 

O cinismo como metáfora da cultura

 

Cynicism as a metaphor of culture

 

El cinismo como metáfora de la cultura

 

Le cynisme comme metaphore de la culture

 

 

Maria de Fátima Pessoa de Assis (Lattes)I; Maria Lúcia de Oliveira (Lattes)II

IPsicóloga, professora da Universidade Federal de Goiás - UFG, Regional Jataí, GO. Doutora em Educação escolar (UNESP)
IIPsicóloga, ex-docente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia (UNESP/Assis) e Educação Escolar da Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara, SP (FCLAR/UNESP). Mestre e doutora em Psicologia clínica (PUC/SP)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho teve como objetivo analisar o cinismo enquanto metáfora da cultura na atualidade. Buscamos estudá-lo em seus aspectos histórico-sociais e em suas relações com a economia libidinal dos sujeitos. Trata-se de pesquisa teórica, fundamentada na Psicanálise, desde Freud e em Fábio Herrmann, autor que nos permitiu realizar a recuperação do método psicanalítico na análise da cultura contemporânea. A partir das leituras realizadas, verificamos que a racionalidade cínica é modo de funcionamento das estruturas de sociabilidade que aparecem em processos de crise de legitimação e erosão das normas da vida social. O desempenho erótico das subjetividades encontra-se alinhado com as condições econômicas e sociais, o que implica em uma nova economia libidinal dos sujeitos, no âmbito do capitalismo cínico.

Palavras-chave: cinismo; psicanálise; cultura; capitalismo.


ABSTRACT

This work aimed at analyzing cynicism as a metaphor of contemporary culture. We seek to study it in its historical-social aspects and in its relations with the subjects' libidinal economy. It is a theoretical research, based on Psychoanalysis, from Freud and Fábio Herrmann, the author who allowed us to realize the recovery of the psychoanalytic method in the analysis of contemporary culture. From the readings, we verify that cynical rationality is the mode of functioning of the structures of sociability that appear in processes of a crisis of legitimation and erosion of norms of social life. The erotic performance of subjectivities is aligned with economic and social conditions, which implies a new libidinal economy of the subjects, within the framework of cynical capitalism.

Keywords: cynicism; psychoanalysis; culture; capitalism.


RESUMEN

El objetivo de este trabajo fue analizar el cinismo como metáfora de la cultura en la actualidad. Buscamos estudiarlo en sus aspectos histórico-sociales y en sus relaciones con la economía libidinal de los sujetos. Se trata de una investigación teórica, basada en la Psicoanálisis, desde Freud y en Fábio Herrmann, autor que nos permitió realizar la recuperación del método psicoanalítico en el análisis de la cultura contemporánea. De las lecturas realizadas, verificamos que la racionalidad cínica es el modo de funcionamiento de las estructuras de sociabilidad que surgen en procesos de crisis de legitimación y erosión de las reglas de la vida social. El rendimiento erótico de las subjetividades se encuentra alineado a las condiciones económicas y sociales, lo que implica en una nueva economía libidinal de los sujetos, en el ámbito del capitalismo cínico.

Palabras clave: cinismo; psicoanálisis; cultura; capitalismo.


RÉSUMÉ

Ce travail a eu l'objectif d'analyser le cynisme comme métaphore de la culture aujourd'hui. Nous recherchons étudier le cynisme dans ses aspects historiques et sociaux et dans ses relations avec l'économie libidinale des sujets. C'est une recherche théorique, basée dans la Psychanalyse, depuis Freud et à Fábio Herrmann, auteur qui nous a permis de réaliser la récupération de la méthode psychanalytique dans l'analyse de la culture contemporaine. D'après les lectures realisées, nous avons verifié que la rationalité cynique est une façon de fonctionnement des structures de sociabilité qui apparaissent dans les processus de crise de légitimité et de l'érosion des normes de la vie sociale. La performance érotique des subjectivités est alignée avec les conditions économiques et sociales, cela implique une nouvelle économie libidinale des sujets, dans le cadre du capitalisme cynique.

Mots-clés: cynisme; psychanalyse; culture; capitalisme.


 

 

As transformações socioculturais e seus efeitos na estética, na ética e nas relações entre os homens, acarretam novos modos de subjetivação e novas formas de sofrimento. Com efeito, habitamos um mundo em plena crise de legitimação, no qual perdemos a crença na seriedade das instituições sociais, em especial as de nosso país, onde somos surpreendidos por inúmeros episódios de corrupção, conforme atestam as mídias diversas. Sendo assim, compartilhamos uma realidade histórica peculiar, a era do cinismo, da transgressão das leis e de regras estabelecidas no pacto social.

Neste estudo, procuramos realizar uma reflexão sobre uma das metáforas da cultura na atualidade: o cinismo. Para tanto, elegemos leituras que pudessem nos informar sobre os possíveis entrelaçamentos entre Psicanálise, História e Cultura, com destaque para a noção de "corpo da representação inconsciente" como recurso para conhecermos o que se passa nas subjetividades na atualidade.

A Psicanálise é tomada como instrumento teórico para realizarmos uma reflexão crítica da cultura atual, uma "psicanálise extramuros", expressão cunhada por Laplanche (1988) para designar o emprego do método psicanalítico à análise de questões de ordem social e cultural, contexto em que ela nos auxilia a elucidar o plano do imaginário coletivo.

A presente pesquisa situa-se no contexto dos estudos que abordam as consequências, para as subjetividades, da crise de legitimação que assola as sociedades na atualidade em razão das transformações incessantes produzidas pelo capitalismo globalizado, sob o efeito da economia de mercado e da aceleração tecnológica (Melman, 2008; Safatle, 2008; Sloterdijk, 2011;Türcke, 2010; Bauman & Donskis, 2014; Birman, 2014).

A atualidade aqui considerada é o período histórico conhecido como modernidade tardia (Giddens, 1991), contexto em que as conseqüências da modernidade estão se tornando radicalizadas e universalizadas, como a interdependência em escala mundial das economias e mercados, o ritmo vertiginoso das transformações tecnológicas, a intensificação do consumo, a intensa conexão entre o local e o global, as relações sociais desencaixadas ou deslocadas de seus contextos locais e reestruturadas através de extensões indefinidas de tempo-espaço, dentre outros. Para Giddens (1991), a modernidade não esgotou seu projeto, portanto, ainda não podemos falar em pós-modernidade. Um dos efeitos deste contexto para o autor é o cinismo, expressão da sensação subjetiva de viver em constante risco, desamparo e incerteza.

Verificamos que as mutações históricas e culturais engendram novos padrões de socialização, demandados pelo capitalismo de consumo, os quais passam a requerer um tipo de subjetividade adaptada não mais às instituições normativas que fixam modelos de conduta, mas a dispositivos de controle que invocam a flexibilização e a inconsistência dos modelos identitários e uma atitude de descrença em relação às normas e leis. Sendo assim, pensar a esfera da cultura hoje, a partir do aporte teórico da Psicanálise, requer que possamos fertilizar seus instrumentos teóricos à luz das mutações histórico-culturais que lançam o sujeito em uma realidade que não é "levada a sério" e em um mundo "sem culpa", inexoravelmente ligado à lógica do mercado de consumo, onde as subjetividades devem mudar continuamente, de um instante a outro.

Iniciaremos nossa abordagem ao tema pelo esclarecimento de alguns conceitos que foram utilizados como operadores analíticos de nosso estudo. A seguir, buscamos contextualizar o cinismo a partir de suas raízes históricas no pensamento ocidental até suas manifestações contemporâneas. Para concluir nossa reflexão, buscaremos os possíveis entrelaçamentos entre o cinismo e a economia libidinal dos sujeitos.

 

O Corpo da Farsa Cínica

A psicossexualidade é o marco zero da constituição da vida psíquica, sendo o corpo biológico o suporte de toda experiência representada. Nosso corpo é erógeno e pulsional, ou seja, é suporte de nossas experiências de satisfação e de busca por repetição destas ou tentativa de recuperação do objeto que ampara e gratifica.

A espera de satisfação é o tempo necessário para a simbolização da ausência - este é o tempo da fundação do psiquismo, de sua ontogênese. Trata-se de um intervalo vazio de espera, momento em que se dá a constituição da representação do objeto e de sua ausência. A vida psíquica é o que permite, portanto, a construção de um mundo de representações objetais, de modo que, pela via da representação, podemos suportar o vazio, a ausência do outro que ampara e torna suportável a experiência da frustração.

Sendo assim, para a psicanálise freudiana o corpo é psicossexual (Freud, 1980a), ou seja, é corpo da representação inconsciente, o que permite a experiência de gratificação pulsional e atribuição de sentido ao vivido, enigma a produzir incessantemente uma linguagem metaforizada que nos desafia a perscrutarmos os sentidos e significados contidos por detrás de suas máscaras e disfarces.

No dicionário Houaiss e Villar, (2009), a palavra 'metáfora' aparece assim descrita:

Designação de um objeto ou qualidade mediante uma palavra que designa outro objeto ou qualidade que tem com o primeiro uma relação de semelhança. [...] Sentido etimológico: do latim metaphorae; do grego methaphorá - mudança, transposição do sentido próprio ao figurado; do verbo transportar. (Houaiss & Villar, 2009, p. 1017)

As metáforas nos transportam para o real humano, universo de representações que vão compondo um tecido simbólico por intermédio do qual a realidade passa a fazer sentido para o homem. A possibilidade de obter outros sentidos encontra-se no cerne da comunicação advinda do inconsciente, cuja linguagem metaforizada nos revela a riqueza infindável de possibilidades de representações de que o ser humano é capaz.

Para elaborarmos nossa reflexão sobre as metáforas da cultura, estaremos também utilizando alguns dos conceitos de Fábio Herrmann, particularmente em alguns pontos centrais:

- a consideração que o autor faz sobre a teoria implícita do real, tendo a realidade como representação subjetiva ou psique social, a qual possui as mesmas características do desejo inconsciente (Herrmann, 1999);

- a relação dialética entre realidade e identidade, o que nos leva a conceber o inconsciente enquanto real humano, estrutura produtora de sentidos, que é sempre tanto singular quanto coletiva (Herrmann, 1991, 1999, 2001);

- o valor heurístico do disfarce, segundo o modelo da interpretação dos sonhos de Freud, em que os conteúdos do inconsciente obtêm acesso à superfície representacional da consciência por meio dos artifícios da censura. As metáforas - disfarces - são os produtos da psique social, nossos pontos nodais, marcas simbólicas que nos mobilizam ao exercício de reflexão e deciframento (Herrmann, 1999).

Dentro desse quadro de referência, a cultura é psique mundanizada, concreta, sempre ativa; é o real humano simbólico. A porção do real sequestrada no interior do sujeito e que se esforça por representar a realidade é a identidade (Herrmann, 1999, 2001).

O autor procura explorar a teoria implícita do real, que concebe a realidade como estrutura produtora de sentidos emocionais, esta que somente chegou a representar-se por meio da consciência humana e que se expressa por meio do pensamento que toma forma na cultura humana. O inconsciente então seria a lógica que estrutura o pensamento, pois "o lugar do inconsciente só pode concebivelmente ser a lógica que organiza, seleciona e constrói nosso pensamento, o campo de toda e qualquer relação psíquica representada"(Herrmann, 2001, p. 289).

Dessa forma, para o autor, é preciso descrever o mundo real no âmbito da teoria implícita do real, entendido como o próprio processo psíquico que se encontra encarnado na cultura. Ao trabalharmos com a teoria implícita do real, atingimos o realismo fantástico, pois o real humano é efeito do próprio modo de funcionamento inconsciente: "o inconsciente não é, de fato, individual nem coletivo, mas é o real, enquanto real humano. Surge do mundo para o homem e do homem para o mundo, de cá para lá e de lá para cá, num conflito produtivo e insolúvel" (p. 294).

Dentro deste quadro de referência podemos compreender o valor do modelo de experimentação epistemológica, proposto por Herrmann quando toma o campo representacional para estudo, em sua dupla face, interna e externa, ou seja, identidade e realidade respectivamente. Nosso recorte de estudo são os campos de significação inconscientes, enquanto metáforas da identidade e da realidade, subconjuntos particulares, circunstanciais, sócio-historicamente determinados. A consideração da comunicação metaforizada como via de acesso aos campos de significação inconsciente é um exercício epistemológico de considerar a presença de sentidos outros em produtos simbólicos contidos na cultura.

Nosso corpo é trânsito de representações, suporte das representações de realidade e de identidade. Ele é metáfora da cultura, matriz de sentidos e significados, sendo ele próprio uma ficção, escravo das projeções de nossos desejos. Buscamos os simbolismos, a dramática do corpo-sujeito em sua materialidade plástica, ética, estética e existencial, cujas marcas, não objetivadas como dado concreto, fazem-se metáforas.

O corpo da farsa cínica é a metáfora da vida social por excelência na atualidade, quando as sociedades ocidentais encontram-se no auge da crise de legitimidade, o que lança os sujeitos em estado de desorientação. Com efeito, na atualidade, a sociedade se reduz, no limite, à condição de mercado de bens e serviços, em que as leis são transgredidas sem culpa e por sujeitos hedonistas e descrentes dos sistemas éticos estabelecidos.

O corpo-sujeito, isto é, o corpo habitado pela subjetividade, é expressão de fantasias, máscaras e disfarces, de modo que o disfarce está em toda parte na vida cotidiana: nos símbolos de status, nas cerimônias, na moda, na propaganda publicitária, na mentira, na farsa da corrupção, etc (Assis, 2012).

No atual contexto histórico, o jogo de máscaras e disfarces é levado ao extremo, ao ponto de Safatle (2008) utilizar a expressão "capitalismo carnavalesco" para se referir ao universo sociocultural em que tudo se transforma em aparência, sem estofo substancial. Em um capitalismo carnavalesco, convivemos todo momento com a profanação do sério, de modo que a força ordenadora do modelo e da norma é desativada pela ironização generalizada das condutas. Trata-se, enfim, de um momento histórico peculiar, em que a dimensão da vida como um todo passa a ser encenada e, como tal, a realidade passa a ser vista com descrédito e desconfiança. As imagens de si e do mundo perdem sua força legitimadora, ou seja, não são levadas a sério.

Cabe aqui uma diferenciação entre o uso dos termos imagem e representação. A crise atual é do campo das representações, das balizas simbólicas da cultura. Vale ressaltar que, diante da retórica do novo e da novidade, do efeito viciante da aparelhagem midiática e da busca de satisfação sem interdições, os conhecimentos passados de geração em geração perderam sua força, seu valor. Nada mais hoje pode ser conhecido com segurança e qualquer coisa pode ser conhecida de um modo diferente, pois tanto o conteúdo quanto o modo de conhecer tornaram-se voláteis.

Nesse contexto de mutações contínuas, os pais estão mais preocupados em legar aos filhos o acesso ao consumo, ao conforto e ao status social, do que em transmitir valores e deveres morais. Assim sendo, a questão dos fundamentos, isto é, a questão da autoridade, das interdições, não mais está na ordem do dia. Encontramo-nos diante de uma multiplicidade de referências e de flexibilização das normas e regras, estado de coisas que gera desestabilização nos processos de validação do saber da tradição, ou seja, uma crise dos vetores simbólicos da cultura.

Trata-se de uma transformação radical, como destaca Birman (2014), cujo ponto crucial encontra-se na perda do potencial de simbolização da subjetividade contemporânea, que não mais consegue simbolizar, utilizar seus recursos de linguagem para lidar com o sofrimento. No lugar da conflitualidade simbólica, são os registros do corpo, da ação e das intensidades que roubam a cena, contexto em que a linguagem perde seu poder metafórico, sendo permeada por imagens.

Ao contrário das representações que, como balizas simbólicas, encontram-se em crise, as imagens, por sua vez, são cada vez mais pregnantes e norteiam as subjetividades numa verdadeira sociedade do espetáculo. No cenário dessa sociedade, Debord (2008) argumenta que houve uma evidente degradação do ser para o ter, e do ter para o parecer, de modo que só é permitido aparecer naquilo que não se é. Este autor considera que o espetáculo é a afirmação da aparência. A afirmação de toda vida humana como simples aparência: "o que aparece é bom, o que é bom aparece" (p. 16). Se o imperativo da aparência é categórico, vivemos sempre sob disfarces, em busca da imagem ideal.

O "fazer fingindo" torna-se a estratégia de ironização encontrada pelos sujeitos para enfrentarem a intensa fragilização de papéis, vínculos sociais e modelos identificatórios numa sociedade inundada por uma cultura fake.

A palavra fake, tal como nos esclarece Thomas Friedrich, reúne dois verbos latinos: facere e fingire, portanto, 'fazer' e 'fingir', mas também 'fato' e 'ficção'. Noutras palavras, com a utilização desse termo procura-se nomear um tipo de experiência social na qual se tornou impossível para a percepção humana distinguir entre realidade e ficção. (Lastória, 2009, p. 281)

Nosso corpo, enquanto território de construção de identidades e disfarces, quando inserido no contexto de uma cultura fake, torna-se colonizado pelo design, ou seja, passa a ser projetado, programado e simulado em condições de perpétua inovação tecnológica, como é o caso das modificações corporais e cirurgias plásticas.

Portanto, em última instância, faz-se necessário aproximarmos a leitura do inconsciente, enquanto psique social, de uma reflexão sobre a dinâmica conflitual, dos processos de socialização do desejo, no âmbito das atuais sociedades de consumo.

O cinismo configura-se como precipitado de significações condensadas ou metáforas, um ponto nodal estratégico que nos instiga na direção de seu deciframento. Trataremos, inicialmente, da apresentação um breve histórico do cinismo enquanto corrente filosófica, e depois o abordaremos como metáfora da cultura atual.

 

Aspectos Históricos Gerais

A filosofia do cinismo, na Grécia, representou para a história do pensamento filosófico ocidental um retorno a uma moral naturalista, que toma a animalidade do homem como padrão regulador de condutas. Representou também uma crítica aos costumes e à moral ateniense, servindo de inspiração para uma vida de retorno à physis, uma alternativa às convenções sociais. Um de seus mais célebres representantes foi Diógenes (Safatle, 2008).

Diógenes, de Sínope (413 a 323 a. C.), possuía uma aparência descuidada e uma vida simples. Todos os seus pertences o levavam ao seu próprio corpo. Não se trata, entretanto, no caso de Diógenes, de tomá-lo como defensor de uma dogmática da pobreza, mas de o concebermos como um denunciador dos falsos lastros, os quais roubam ao homem a sua mobilidade.

Diógenes foi quem trouxe para a filosofia ocidental a conexão original entre felicidade, carência de necessidades e inteligência; uma racionalidade que muito mais tarde reaparece em todos os movimentos naturalistas de culto à vida simples e combate dos excessos (de bens, comida, etc.), como o movimento hippie e as dietas naturalistas (Sloterdijk, 2011).

A modalidade de existência de Diógenes pode ser conferida nas anedotas que contava. O gracejo era sua arma, e ele aproveitava suas anedotas provocativas e sua competência filosófica para satirizar os colegas mais sérios. Sendo assim, são as anedotas que melhor ilustram o espírito de Diógenes, as quais tomam como objeto de sarcasmo as fraquezas humanas, a partir das quais o filósofo obteve fama de crítico e perturbador social.

Sloterdijk (2011) argumenta que o filósofo cínico possui um faro certeiro para os fatos que não se adaptam à grande teoria ou sistema teórico, tomando a liberdade de denunciar o engano, os aspectos oblíquos e lacunares dos sistemas filosóficos. Dessa forma, a sátira cínica é crítica por conhecer as possibilidades de expressão da verdade de maneira burlesca e repentina.

O autor destaca que a primeira gaya ciência é a inteligência satírica, que mais se assemelha à literatura do que à episteme científica. Nesse aspecto, a inteligência de Diógenes aproxima-se da dos artistas, dramaturgos e escritores. Seu pensamento é arte política, quase uma antifilosofia, uma vez que seu pensamento é antidogmático, antiteórico e antiescolástico.

De acordo com o autor, na tradição satírico-europeia, a história do cinismo é a história da consciência combativa, a qual caminha em conjunto com a história da arte, do teatro e do carnaval. Contudo, em todo grande pensador e artista há também um cínico combativo e provocador. Diógenes demarca o início de uma linhagem de pensadores que se destacaram pelo seu inconformismo, como Montaigne, Voltaire e Nietzsche (Sloterdijk, 2011).

No âmbito do cinismo romano tardio, outro filósofo destacado por Sloterdijk (2011) é Luciano (120 a.C.), que se dedicou a ensaios morais e a atividades satíricas durante o período inicial de decadência do império romano, quando ocorreu a diminuição de sua força ideológica e sua transformação num colossal aparato burocrático, incapaz de despertar sentimentos positivos de pertencimento e de cidadania.

Segundo Sloterdijk (2011), o impulso cínico manteve-se presente principalmente nos períodos de ruptura e crise, nos momentos intensos de transformação política. No âmbito do período moderno, em pleno século XVIII, o autor destaca a figura de Mefistófeles, o famoso diabo de Goethe, como exemplo do cinismo.

No auge da revolução cultural burguesa do século XVIII, Mefistófeles encarna a figura que desfruta da liberdade de dizer aos homens "as coisas como elas são". A figura do diabo de Goethe representa o filósofo burguês realista, dotado de fino sarcasmo, de habilidade linguística, cosmopolitismo e empirismo. Ali onde o demônio abre a boca para dizer como realmente se encontra o mundo, são varridas a metafísica cristã, a teologia e a moral.

Em suas metamorfoses, Mefistófeles faz diferentes aparições, nas quais se disfarça com símbolos sociais inofensivos, como de 'grande conhecedor do mundo', 'grande erudito' e de 'elegante senhor mago', máscaras pelas quais a modernização do mal assume formas poético-irônicas.

Nenhum cínico poderia desenvolver sua tarefa de maneira mais elegante que Freud, que não subtraiu a faceta subversiva, irônica e rebelde da teoria psicanalítica. Pelo contrário, fez todo o possível para imprimir ao seu trabalho o vigor de uma ciência crítica. Melhor que ninguém, Freud emprestou uma face cínica à história de vida de cada ser humano ao fazer do disfarce a atividade vital, o recurso cotidiano do funcionamento psíquico (Sloterdijk, 2011).

Afinal, Sloterdijk procurou recuperar e evidenciar o potencial disruptivo da crítica cínica nos costumes e na moral, os quais podem ser ilustrados nos diferentes sentidos atribuídos à noção de cinismo ao longo de seu trabalho Crítica de la razón cínica (2011).

Em uma primeira versão, o cinismo aparece como uma intuição que expressa o mal-estar que impregna a vida social, o que pode ser visto sob a forma de 'falsa esperança' e 'desengano'. Em um segundo ângulo, a noção de cinismo adquire uma dimensão histórica e expressa a tensão que pode ser experimentada nos movimentos de resistência e oposição política. Trata-se de uma espécie de "provocação cínica", um movimento de tornar visível a crise moral da civilização.

Por fim, o autor procura contrapor o cinismo enquanto corrente crítica de pensamento ao cinismo próprio à ideologia do capitalismo contemporâneo. Neste, deparamo-nos com a patologia da racionalidade cínica, que reina em uma cultura na qual mente-se regularmente, quando o cinismo se transforma em ironização generalizada das condutas e é sustentado por estruturas perversas de funcionamento psíquico, tanto individual quanto social.

É com Vladimir Safatle (2008, 2009) que pudemos conhecer uma melhor sistematização do cinismo enquanto estratégia ideológica do atual capitalismo de consumo, um sintoma de patologia social, uma metáfora da cultura.

 

Configurações Contemporâneas do Cinismo

O cinismo tornou-se, na atualidade, um modo hegemônico de relação com a norma social em sociedades onde os sujeitos conhecem os pressupostos ideológicos que arregimentam a ação, mas não encontram razões para orientar, a partir daí, suas condutas, uma vez que a razão cínica dribla a lei e joga com a ambiguidade. Tudo se passa como se a norma fosse proposta para ser transgredida ou desconsiderada. (Safatle, 2008).

O longo processo de implantação do capitalismo, que atravessou todo o período moderno, acarretou a contínua erosão das formas tradicionais de vida e abriu espaço, de forma crescente, para a indeterminação e o esvaziamento de toda a substancialidade normativa da esfera social. De acordo com Berman (2007), o processo diluidor de "tudo o que é sólido".

Ao acompanhar o debate sobre o diagnóstico da cultura atual a partir de autores como Gilles Deleuze, Félix Guatarri e Lyotard, Safatle (2008) nos mostra que as formas hegemônicas de vida tendem a organizar-se de maneira cínica em virtude do modo como o capitalismo codifica o desejo na atualidade.

De forma sintética, Safatle nos mostra que os referidos autores procuram estabelecer relações entre os modos de reprodução econômica e a dinâmica pulsional dos sujeitos. A partir desse prisma, o atual capitalismo de consumo não procura mais impor conteúdos normativos privilegiados, mas socializa o desejo de forma a desenraizá-lo violentamente por intermédio da fragilização dos seus próprios códigos e da flexibilização das identidades.

Uma vez desterritorializadas, as identidades passam a ser tratadas como se fossem "semblantes", isto é, perdem a substancialidade em um universo de imagens, de "aparências como aparências". Trata-se de um regime que não mais faz apelo às identidades fixas, mas flexíveis, em que não se exige engajamento a uma ética da convicção. Sendo assim, os sujeitos não se deixam capturar por uma imagem estável de si e transformam sua insegurança em ironia.

Se o ocultamento do caráter fetichista dos processos de determinação da vida social produzia a "alienação" e a "falsa consciência" nas sociedades ideológicas, atualmente, nas sociedades pós-ideológicas, categoria analítica utilizada pela crítica marxista o caráter fetichista dos processos de determinação social já se encontram desmascarados. Isto significa que a indústria cultural e as estruturas de comunicação de massa tornaram-se auto-irônicas, ou seja, os sujeitos, sob o efeito da ironização generalizada das condutas, compactuam com os jogos de farsa, arregimentados pelo poder da indústria cultural: "eles sabem o que fazem, mas continuam fazendo".Trata-se de uma crença desprovida de crença, quando o cinismo se transforma na ideologia da contemporaneidade. O cinismo "é o nome correto dessa posição subjetiva que é capaz de sustentar identificações socialmente disponibilizadas, ao mesmo tempo em que ironiza toda e qualquer determinidade, por reconhecer seu caráter descartável" (Safatle, 2008, p. 138).

As atuais sociedades pós-ideológicas continuam a lançar mão de procedimentos de controle social, mas estes se tornaram mais complexos e sutis, de modo que a ideologia hoje não atua mais como uma falsa consciência ou crença cega e ilusória. Ela age como uma repetição de rituais materiais, uma repetição automática que pode prescindir de qualquer engajamento pessoal: "nossas sociedades pós-ideológicas não são marcadas pela ausência de construções ideológicas, mas marcadas pela perpetuação de tais construções sob a forma de ironia" (p. 101).

Sendo assim, o capitalismo tardio tornou-se um capitalismo cínico, no qual o cinismo não mais se restringe à esfera moral, pois transformou-se no modo de racionalidade hegemônica das múltiplas esferas de interação social, abarcando os campos do trabalho, da linguagem e do desejo.

Nesse contexto, a razão cínica não se constitui apenas como uma modalidade de insinceridade, relaciona-se "a um problema geral referente à mutação nas estruturas de racionalidade em operação na dimensão da práxis" (p. 13).

A razão cínica é o modo de funcionamento das estruturas de sociabilidade que costuma aparecer em processos de crise de legitimação e erosão das normas da vida social. Em contextos de anomia e crise, o cinismo é estratégia de conduta que transforma o sofrimento da indeterminação em motivo de gozo; tentativa de superação da insegurança generalizada, da degradação dos vínculos sociais e desamparo dos sujeitos.

Sendo assim, deparamo-nos com a "usura da verdade", certo dizer sobre a linguagem que anula sua força legitimadora. Hoje, as fronteiras entre essência e aparência dissolveram-se, por essa razão, em um mundo em que a nudez não desmascara mais.

O cinismo transformou-se na moralidade do capitalismo. Ele distorce nossos parâmetros de orientação, tornando obsoletas as categorias da crítica social, como as noções de "reificação" e "falsa consciência". No entanto, voltamos a ressaltar, não se trata do fim da ideologia, mas de sua perpetuação sob a forma de ironia, modalidade sofisticada de exercício do poder. Com efeito, encontramo-nos hoje no contexto de ação de novas formas de ideologia e também de utopia:

Diante da impossibilidade de concretização desses ideais e valores individuais mediante o desenvolvimento de uma práxis com consequências efetivas para a vida social, verifica-se uma retração do horizonte utópico até então definido pelas grandes utopias racionais dos séculos XVIII e XIX (iluministas e/ou românticas), que delineavam o caminho a ser percorrido para se chegar a uma suposta sociedade absolutamente livre e justa. (Lastória, 2009, p. 284)

[...]

No entanto, 'o fim das ideologias' tão alardeado pelos pós-modernos está longe de significar o fim das utopias. Por mais paradoxal que isso possa parecer, em ambos os casos, o impulso utópico aloja-se hoje no próprio corpo ressurgindo como utopias somáticas. (p. 286)

Para Lastória (2009), quanto mais a práxis social é recuada em relação aos grandes horizontes utópicos da modernidade, mais a dimensão somática ressurge como possibilidade de resposta dos sujeitos, os quais passam a reivindicar a propriedade do corpo para reinventá-lo à sua maneira. Os recursos das tecnologias estéticas (cirurgias plásticas, tatuagens, implantes, etc.) são cada vez mais convocados para que o corpo possa afirmar-se como lócus da identidade e utopia atuais, como foi colocado anteriormente.

 

Uma Nova Economia Libidinal

Em Freud (1980a), pela mediação do superego, a cultura obtém êxito no enfraquecimento dos desejos de agressão do indivíduo, desarmando-o, a partir do seu interior, pela via da ação do superego. Freud (1980a) argumenta que a consciência moral surge através da repressão de um impulso agressivo, sendo depois reforçada por novas repressões do mesmo tipo.

Tal internalização dos impulsos agressivos conforma o núcleo do superego de tipo repressor, efeito da imago paterna interditora que se manifesta por consciência moral. A intensificação do sentimento de culpa é o legado da cultura, o qual se expressa por um afeto de ansiedade difusa ou insatisfação, que acarreta um mal-estar generalizado. Numa ordem repressiva, própria do capitalismo de produção, as manifestações de prazer pelo prazer são consideradas um mal a ser evitado e a civilização pressupõe o sentimento de culpa, introjetado nos sujeitos pela ação do superego repressor. O neurótico típico é aquele que sofre em razão da repressão. Na atualidade, entretanto, este tipo de sofrimento entra em declínio, o que intentamos demonstrar a seguir.

Podemos afirmar, referendados pelos autores trabalhados (Lastória, 2009; Safatle, 2008, 2009; Sloterdijk, 2011), a propósito das condições atuais do mal-estar na cultura, que o desempenho erótico das subjetividades encontra-se alinhado com as condições econômicas e sociais, o que nos permite abordar a ideia de uma nova economia libidinal dos sujeitos no âmbito do capitalismo cínico.

Na atualidade, uma economia libidinal, atuante no âmbito social, não se instalou a partir de uma ética baseada na ação do superego repressor, mas desde uma nova configuração ética, sustentada por um superego que determina o imperativo do gozo, assentado em uma realidade social "sem culpa e sem lei" (Safatle, 2008).

Tal configuração presente no campo da psique social nos coloca diante de uma dinâmica psíquica perversa, e não mais em face das neuroses clássicas, típicas do período de implantação inicial da psicanálise freudiana, inaugurada pelos estudos sobre o corpo histérico. Para que possamos compreender a atual hegemonia da dinâmica perversa no âmbito da economia libidinal das sociedades capitalistas de consumo, reportaremo-nos inicialmente a Plon e Roudinesco (1998) para situarmos as descobertas freudianas no campo da temática da perversão.

Os referidos autores salientam que, ao contrário da sexualidade dos neuróticos, a sexualidade perversa não conhece nem a proibição do incesto, nem o recalque e a sublimação. A perversão estrutura-se, assim, desmedida da castração, com uma fixação (e regressão) na sexualidade infantil (Plon & Roudinesco, 1998).

Os autores informam que, entre 1905 e 1927, Freud passou de uma descrição geral das perversões sexuais (tratadas inicialmente no campo das práticas sexuais) para uma teorização do mecanismo geral da perversão. Nesta segunda acepção, ela já não era apenas considerada como o resultado de uma predisposição polimorfa da sexualidade infantil, mas a consequência de uma atitude do sujeito confrontado com a diferença sexual, atitude marcada pela organização do eu baseada na clivagem, ou atitude dividida do sujeito em relação à castração feminina, descobertas que foram ilustradas pelo caso do fetichismo.

Em seu trabalho O fetichismo, Freud (1980b) destaca que o objeto fetiche seria o objeto substituto do pênis da mulher, em que a criança outrora acreditava. Ele constatou o mecanismo de clivagem do ego numa atitude paradoxal do sujeito em que coexistem duas ações: a que se ajusta ao desejo e a que se ajusta à realidade. Na primeira, há a recusa em aceitar a castração feminina; e, na segunda, existe a aceitação dela. Afirma Freud (1980b):

Retornando à minha descrição do fetichismo, posso dizer que existem muitas provas adicionais e de peso quanto à atitude dividida dos fetichistas para com o tema da castração feminina. Em casos bastante sutis, tanto a rejeição quanto a afirmação da castração encontram caminho na construção do próprio fetiche. (Freud, 1980b, p. 184)

No fetichismo, Freud constatou a utilização de um objeto-fetiche, que permitia ao sujeito agir como se nada soubesse a respeito da verdade da castração. O objeto fetiche é assim suportado pela negação, mas uma negação perversa, a qual se diferencia da negação neurótica, marcada pelo esquecimento próprio ao recalcamento.

Com efeito, na forma perversa de negação, há a produção de um objeto a partir de determinações contraditórias, possuindo a consistência de um simulacro, objeto cuja funcionalidade é negar a experiência da diferença sexual e da castração. Mediante a criação deste objeto fetiche, o sujeito conserva a castração, e, ao mesmo tempo, a abandona.

Assim, o pé, o sapato, as peles, as lingeries, dentre outros, são comumente utilizados como objetos-fetiche, "como se a última impressão antes da estranha e traumática fosse retida como fetiche" (Freud, 1980b, p. 182). A estrutura psíquica que se encontra subjacente ao fetichismo é, assim, a estrutura perversa.

Para Plon e Roudinesco (1998), foi Jacques Lacan quem finalmente retirou a perversão do campo do desvio, onde era vista como expressão de uma aberração sexual, para tomá-la como expressão da pulsão de morte. Para estes autores, Lacan conferiu privilégio à duas noções: o desejo e o gozo, "para fazer da perversão um grande componente do funcionamento psíquico do homem em geral, uma espécie de provocação ou desafio permanente à lei" (Plon & Roudinesco, 1998, p. 586).

O gozo, portanto, implica a ideia de uma transgressão à lei. Enquanto que o desejo encontra-se inserido na dinâmica do funcionamento do princípio do prazer, o gozo sustenta-se no prazer destrutivo, na obediência a uma ordem que leva à destruição.

Ao nos reportarmos ao contexto da economia libidinal dos sujeitos nas sociedades de consumo, podemos argumentar, na esteira da análise de Safatle (2008, 2009), que, no lugar da centralidade do recalcamento, observa-se a clivagem do eu, posição subjetiva que nos leva a retomar o problema psicanalítico do fetichismo. Trata-se, hoje, de uma espécie de fetichismo social, processo mais amplo de constituição da sexualidade na contemporaneidade.

Em consonância com a sexualidade perversa, o modo de subjetivação de nossa época atual passa a ser realizado de maneira paródica, ou seja, de forma encenada e humorística, o que rompe a força identitária das imagens de si no ato mesmo que assume tais imagens. Tal modo de subjetivação absorve, ao mesmo tempo, o código e sua negação: "o modo de subjetivação de nossa época atual é realizado de maneira paródica por procurar levar sujeitos a constituírem sexualidades e economias libidinais que absorvem, ao mesmo tempo, o código e sua negação, a norma e sua transgressão" (Safatle, 2008, p. 175).

Em última instância, a estrutura das formas de vida na atualidade requer que possamos reconstruir nossos quadros conceituais para que seja possível a elaboração de uma crítica renovada, a partir da qual possamos encontrar saídas para os impasses de uma cultura que ironiza as próprias leis estabelecidas no pacto social.

Para que a Psicanálise continue fecunda para pensar o mal-estar na cultura na atualidade, faz-se necessário que ela tome em consideração o modo como as estratégias de dominação se apropriaram do corpo e da psicossexualidade para moldar um mundo ajustado às novas regras de um mercado, sem fronteiras para o consumo.

Tal realidade nos coloca diante de uma situação em que nosso corpo, colonizado pelas atuais retóricas do consumo e da indústria cultural, não mais ocupa o lócus de identidade estável e unificadora do sujeito. Aparece cada vez mais como matéria plástica ou espaço de afirmação de uma multiplicidade de possibilidades identificatórias. O poder hoje "se apropriou do corpo e do sexo para ativar uma política da perversão" (Safatle, 2008, p. 177).

Melman (2008), em Um homem sem gravidade, permite-nos conhecer um pouco mais sobre a emergência dessa nova economia libidinal ou nova economia psíquica (NEP), modo de funcionamento das subjetividades em consonância com as intensas transformações econômicas, sociais e culturais no bojo da modernidade tardia. Com efeito, de acordo com o referido autor, não se trata de evocar uma simples modificação social e suas incidências na subjetividade de cada um, mas de examinar uma mutação inédita e seus efeitos, os quais nos reportam consequências antropológicas incalculáveis.

A nova economia psíquica vem se instalando sem ideologia organizadora e à revelia dos sujeitos, ou seja, sem o reconhecimento deles. Contudo com um vigor que nos afeta de forma ampla e sem precedentes, cujo ponto nevrálgico situa-se na crise de referências, que desenraiza o sujeito de seu passado e de suas tradições. Afirma o autor:

Estamos no exato ponto do abandono de uma cultura, ligada à religião, que obriga os sujeitos ao recalque dos desejos e à neurose, para nos dirigir a outra em que se propagandeia o direito à expressão livre de todos os desejos e à plena satisfação deles. Uma mutação tão radical traz consigo uma desvalorização rápida dos valores que a tradição moral e política transmitiam. (Melman, 2008, p. 107)

O crescimento do liberalismo econômico e o desenvolvimento das tecnociências, a evolução das democracias, enfim, todas estas mutações, lançam os sujeitos na lógica de mercado, uma espécie de 'liberalismo psíquico' em que são os objetos de consumo que passam a nortear nossas relações conosco e com os outros. Assim, trata-se hoje de uma busca de harmonização com o objeto da satisfação, e não com ideais de regulação social que prescreviam condutas, como outrora, de uma economia libidinal de incitação ao gozo sem restrição, de modo a sorver dos objetos toda a gratificação possível, conforme já destacamos com Safatle (2008); Lastória (2009) e Sloterdijk (2011).

Nessa nova economia psíquica (NEP) passamos da representação para a apresentação do objeto, como se não habitássemos mais a linguagem. Tudo se passa como se não houvesse mais uma aproximação organizada pela representação; vamos direto ao objeto mesmo, nu e cru.

De fato, a relação do homem com o mundo e consigo mesmo não é instaurada pela presença do objeto, mas pela falta dele. O que nos constitui como sujeitos humanos é nossa relação com esse objeto primordial que falta e que tentamos recuperar. Reiteradas perdas e recuperações instalam a possibilidade de representação do que nos falta, o acesso ao semblante. É da perda primordial do objeto que o limite é instalado, o que mantém o desejo e a vitalidade do sujeito. A única forma de ser humano é lidar com esse determinismo da linguagem, da representação (Melman, 2008).

Como podemos perceber, a nova economia psíquica apresenta uma influência considerável na subjetivação. Tudo se passa hoje como se não fôssemos mais capazes de suportar o desconforto causado pelo desejo, pela dimensão da falta. A lógica desta economia psíquica conduz o sujeito a não querer pagar o preço de estar submetido às leis da linguagem, substituindo a fala pela imagem, onde tudo passa a ser vivido no plano da virtualidade.

Outro traço da nova economia libidinal é o excesso, o gozo excessivo. "Um gozo hoje só é considerado como aceitável, digno de ser promovido, com a condição de pertencer à categoria do excesso, isto é, por produzir um eclipse do subjetivo, seja por meio do álcool, da rapidez, da droga, do excesso escópico, do excesso auditivo" (Melman, 2008, p. 86).

O excesso promove a violência, que aparece a partir do momento em que as palavras perdem a sua eficácia, o que mobiliza um contexto propício ao desencadeamento do ato puro. Como podemos perceber, a nova economia libidinal encontra-se atrelada à pulsão de morte, ao real traumático e sem mediações, porque não há mais semblante.

Estaríamos perdendo a dimensão simbólica, a esfera da metáfora, da metonímia, da poesia, enfim? Não seria mais precisamente quando estamos perdendo o vigor da metáfora como recurso interpretativo do humano que mais fica patente a importância de reativarmos nossa humanidade, embotada no revigoramento da própria noção de inconsciente, no seu potencial como crítica da cultura? Mas, como afima Birman (2014, p.150), fica difícil "inventar mediações num mundo dolorosamente medicalizado e desencantado".

Com efeito, a existência do inconsciente é o refúgio para a humanidade, "o último lugar que fornece um abrigo para o sujeito, o que o coloca em posição de operar uma retirada, de lançar um olhar para o desenrolar de sua vida, de fazer sobre ela um julgamento e de ser capaz de tomar decisões" (Melman, 2008, p. 131).

 

Considerações Finais

O inconsciente é um antídoto contra a desumanização. É ele que permite ao ser humano encontrar a sua morada, a sua singularidade, em um momento histórico assolado pelo excesso (de violência, de consumo, de mentira) e tão desfavorável ao pensamento, à criatividade, à constituição de vínculos afetivos - à vida psíquica como um todo.

O corpo enquanto psicossexual é o marco zero da constituição do humano como ser de representação, de criação, de cultura e memória. O cinismo é metáfora do homem e de seu mundo, é metáfora da cultura, enigma que emite mensagens metafóricas, figuração condensada de sentidos múltiplos.O corpo da farsa cínica arquiteta o jogo dos disfarces, a ironização generalizada das condutas, a vitória das aparências, do simulacro e do fetichismo social.

No exato ponto em que a vida psíquica - nossa vida de fantasia, pensamento e criatividade - recua e é enfraquecida diante do imperativo do gozo, que não permite frustrações e limites e desafia nossas possibilidades sublimatórias, é então que reativamos o lugar do inconsciente, da representação. Esse lugar é o abrigo do humano (ánthropo), onde o ser é cifrado pela linguagem e recupera sua comunicação metafórica, a qual pode lhe conferir sua morada ao integrar passado, presente e futuro à sua verdade.

A recuperação do método psicanalítico numa psicanálise da cultura deve nos servir como instrumento reflexivo no sentido do esclarecimento das condições da vida humana, fundadas no inconsciente e vice-versa, isto é, de como as condições da vida social acarretam profundas modificações no próprio funcionamento inconsciente do sujeito singular.

 

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Endereço para correspondência:
Maria de Fátima Pessoa de Assis
End.: Av. Jorge Zaiden, nº 342, Setor Santa Maria
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Maria Lúcia de Oliveira
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Recebido em: 21/12/2015
Revisado em: 24/06/2016
Aceito em: 10/08/2016

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