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Revista Subjetividades

versão impressa ISSN 2359-0769versão On-line ISSN 2359-0777

Rev. Subj. vol.16 no.3 Fortaleza dez. 2016

http://dx.doi.org/10.5020/23590777.16.3.45-57 

ESTUDOS TEÓRICOS

 

Corpo-lixo: entre o dejeto e a potência na cultura contemporânea

 

Trash-body: between dejection and potency in contemporary culture

 

Cuerpo-basura: entre la desecho y la potencia en la cultura contemporánea

 

Corps-déchet: entre ordure et de la puissance dans la culture contemporaine

 

 

Pedro Henrique Lucas Costa (Lattes)I; Caio César Souza Camargo Próchno (Lattes)II

IMestrando em Psicologia Aplicada pela Universidade Federal de Uberlândia
IIMestre e Doutor em Psicologia Social pelo Instituto de Psicologia da USP, Pós-Doutorado na Universidade de Leipzig, Alemanha

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Tendo como pressuposto uma concepção histórico-cultural do corpo, no qual se entende que ele é efeito de jogos de poderes e saberes historicamente situados, assim como os processos de subjetivação adjacentes a tal corporeidade, fomos provocados pela questão de como o corpo é explorado e exaurido ao ponto de se tornar um dejeto. Tomamo-lo por corpo-lixo, conceito do qual partirmos para a jornada investigativa e que foi o combustível deste trabalho de pesquisa. Calcados nas premissas da pesquisa cartográfica, procuramos acompanhar o processo de "dejetificação" do corpo, mergulhando e afetando-nos pelas produções culturais contemporâneas, conforme representado nas manifestações midiáticas (sejam elas de cunho jornalístico-publicitário, seja voltadas para o entretenimento) e nas artes (dentre elas o cinema, a literatura e o teatro). Adotamos a esquizoanálise como principal referencial teórico e, por esse motivo, além de nos debruçarmos nas obras de Gilles Deleuze e Félix Guattari, compomos e decompomos com construtos teóricos de diversas áreas, como a psicologia, a história, a sociologia e a própria filosofia, tendo também Michel Foucault como um importante companheiro de viagem. Reconhecendo o corpo como um processo histórico metamorfoseante, e não meramente uma entidade biológica imutável, realizamos um apanhado histórico de como os exercícios de poder atravessaram os corpos ao longo dos tempos para evidenciar o percurso pelo qual se consolidaram as formas atuais de se abordar o corpo e que, porventura, o leva à sua dejetificação. O aspecto mais relevante deste trabalho cartográfico foi a busca por possibilidades inventivas a partir da suposta condição abjeta, evidenciando a potência e as composições de forças que levam o corpo-lixo à condição de corpo-potente.

Palavras-chave: corpo; lixo; potência; subjetivação; esquizoanálise.


ABSTRACT

Assuming a historical-cultural conception of the body in which it is understood that it is an effect of sets of historically situated powers and knowledge, as well as the processes of adjacent subjectivation to such corporeality, we have been provoked by the question of how the body is explored and exhausted to the point of becoming a detritus. We take by Body-trash the concept from which we started the investigative journey and was the fuel of this research work. Based on the premises of cartographic research, we seek to follow the process of "dejection" of the body, immersing ourselves and being affected by contemporary cultural productions, as represented in the mediatic manifestations (whether journalistic, publicity or entertainment oriented) and in the arts ( including cinema, literature, and theater). We adopted schizoanalysis as the main theoretical reference, and for this reason, besides focusing on Gilles Deleuze's and Felix Guattari's works; we compose and decompose theoretical constructs from several areas such as psychology, history, sociology and philosophy itself having Michel Foucault as an important traveling companion. Recognizing the body as a metamorphosing historical process and not merely an unchanging biological entity, we take a historical look at how power exercises have crossed bodies throughout the ages, in order to highlight the course through which the present forms of approaching the body have been consolidated and which leads him to his own dejection. The most relevant aspect of this cartographic work was the search for inventive possibilities from the supposed abject condition, evidencing the power and the compositions of forces that take the body-trash to the condition of body-powerful.

Keywords: body-ttrash; detritus; power; subjectivation; schizoanalysis.


RESUMEN

Teniendo como premisa una concepción histórico-cultural del cuerpo en el cual se entiende que él es efecto de juegos de poderes y saberes históricamente situados, así como los procesos de subjeti-vación adyacentes a tal corporeidad, fuimos provocados por la cuestión de cómo el cuerpo es explo-rado y agotado al punto de cambiarse a desecho. Tomamos por cuerpo-basura el concepto de lo cual partimos para la jornada investigativa y que fue el combustible de este trabajo de investigación. Basado en las premisas de la investigación cartográfica, buscamos acompañar el proceso de "dese-chización" del cuerpo, sumergiendo y afectándose por las producciones culturales contemporáneas, según representado en las manifestaciones mediáticas (sean de parte periodístico, publicitario o re-lacionados al entretenimiento) y en las artes (cinema, literatura y el teatro). Adoptamos la esqui-zoanálisis como principal referencial teórico y por este motivo, además de dedicarnos a las obras de Gilles Deleuze y Felix Guattari, compusimos y descompusimos con constructos teóricos de diversas áreas como la psicología, la historia, la sociología y la propia filosofía, teniendo también Michael Foucault como un importante compañero de viaje. Reconociendo el cuerpo como un proceso meta-morfoseante y no una inmutable entidad biológica, realizamos una búsqueda histórica de cómo los ejercicios de poder traspasaron los cuerpos a lo largo del tiempo, visando sobresaltar el trayecto por lo cual se consolidaron las formas actuales de abordar el cuerpo y que lo lleva a desechización. El aspecto más importante de este trabajo cartográfico fue la búsqueda de posibilidades inventivas partiendo de la supuesta condición abyecta, evidenciando la potencia y las composiciones de fuerzas que llevan el cuerpo-basura a la condición de cuerpo-potente.

Palabras clave: cuerpo; basura; potencia; subjetivación; esquizoanálisis.


RÉSUMÉ

À partir de la préssuposition historique-culturel du corps dans lequel on comprend qu'il est l'effet des jeux de pouvoir et des connaissances situées historiquement, ainsi que les processus de subjectivation adjacente à cettes corporéités, les auters ont été provoqués par la question de comment le corps est exploré et épuisé au point de devenir un déchet. Le corps-déchet a été le concept à partir duquel nous sommes partis en voyage d'enquête et ce qui a été le carburant de cette recherche. Les auteurs se sont appuyés sur la recherche cartographique, pour suivre le processus de «devenir déchet» du corps, Ils ont plongé et ont été affectés par la production culturelle contemporaine, comme représentée dans les événements médiatiques (qu'ils soient journalistiques, publicitaires ou orientés vers le divertissement) et dans les Arts (parmi elles, le cinéma, la littérature, le théâtre). Les auteurs ont adopté la schizo-analyse comme principale référence théorique et, pour cette raison, ils ont beaucoup regardé le travail de Gilles Deleuze et Félix Guattari, les auteurs ont composé et décomposé avec constructions théoriques de plusieurs domains tels que la Psychologie, l'Histoire, la Sociologie et la Philosophie et aussi Michel Foucault comme un important compagnon de voyage. Reconnaissant le corps comme un processus historique de métamorphose et non pas simplement une entité biologique immuable, les auteurs ont fait un aperçu historique de comment les exercices du pouvoir ont traversé les corps au cours des âges, pour mettre en évidence l'itinéraire par lequel les formes actuelles pour aborder le corps se sont consolidés, et qui, peut-être, puissent méner au "devenir déchet" du corps. L'aspect le plus important de ce travail cartographique a été la recherche de possibilités inventives à partir de l'abjecte condition présumée, en démontrant la puissance et les compositions des forces qui mènent le corps-déchets à la condition du corps-puissant.

Mots-clés: corps; déchet; puissance; subjectivation; schizo-analyse.


 

 

Um Prólogo ao Descarte

Uma menina de 5 anos foi encontrada ferida, no sábado, dia 29, no jardim de um prédio na zona norte de São Paulo. Segundo os bombeiros, ela chegou a ser socorrida e levada para o Pronto-Socorro da Santa Casa, mas não resistiu aos ferimentos e morreu por volta da 0h (Caso Nardoni - Portal Terra, 2008).

O corpo despenca e, em plena queda livre, se fragmenta em incontáveis partes antes mesmo de tocar o solo rigoroso, áspero e intransigente do estado de coisas. No momento do fatídico encontro, ele se condensa em amontoados de retalhos, reintegrando-se de modo sintético e adequado àquele leito que agora passa a "e-ditar" (partindo da virtualidade ao acontecimento, atravessado por intensidades compostas de velocidades imensuráveis) a sua forma, organizando-se em órgãos - organismo - e recebendo uma 'alma' no processo. Um estado instável e transitório de forma, pois o corpo - e a subjetividade adjacente a ele - se reforma em ação no mundo e pela ação do mundo: uma constante "reforma(t)ação". Tal formatação corporal é permeada por um emaranhado de estratégias de exercício de poder a partir de discursos - saberes - historicamente situados. Desse modo, não são apenas corpos, enquanto substância orgânica predefinida de modo apriorístico, mas "corporificandos". Trata- se de processos e não meros objetos. O corpo é um acontecimento.

De imediato surge a questão: De que outra forma, se não da própria queda, poderia ser constituído o corpo? Não seria a partir de suas ruínas, de sua mais inexorável desolação, que surgiria um campo de possibilidades que tenderiam ao infinito? Se não é de seu esfacelamento enquanto substância, de qual outra fonte poderia se fazer emanar certas forças, ainda sem nome ou circunscrição, que serão os embriões para a criação do novo?

O corpo cai, e com ele a provisória e inconvenientemente comprovada fragilidade do ego. A pequena Isabella Nardoni, ao ser atirada do alto do prédio para a sua terrível morte, também provoca uma profunda e vertiginosa desestabilização. Desta vez, não apenas naquilo concernente ao âmbito individual, mas também em alguns princípios sociais básicos, especialmente nos valores morais e familiares difundidos na classe média (como, por exemplo, no princípio de que o infanticídio é condenável e deve ser fortemente proscrito, e que os genitores devem zelar a todo custo pelo bem estar de sua prole), fazendo, a partir desse evento, abalar determinados aspectos do status quo. Com esse solavanco, fomentaram-se discussões, e a sociedade brasileira se comoveu como raras vezes em sua história, tornando o fato um fenômeno midiático: a queda de Isabella também produz movimento. A partir desses eventos da vida cotidiana ou da ficção, eis então o fenômeno motivador deste trabalho: a morte que produz vida, o fim que produz o novo. O corpo que desaba vai à condição de lixo e retorna de lá insuflado de potência.

Adotar essa perspectiva sobre o corpo pressupõe afirmar que ele é o próprio vestígio dos movimentos da história e não uma dimensão biológica estática. Tal postulado possibilita considerar o corpo como o campo de batalha no qual os embates das forças que permeiam a realidade e a história se inscrevem, se sedimentam e se evidenciam, sendo o próprio embate um fator crucial para a sua constituição. Por esse motivo, este trabalho parte de uma concepção histórico-cultural do corpo, especialmente do pensamento de Michel Foucault e sua difundida análise sobre as artimanhas do exercício de poder. Estabelecer uma abordagem histórica do corpo é crucial para se pensar como o poder se exerce nele, como o marca, o define, e como dele também se faz emanar técnicas de exercício de poder. Essa perspectiva foi essencial para discutir o processo que aqui chamamos de "dejetificação" do corpo, que se dá, preponderantemente, em meio a uma microfísica do poder.

Outro importante referencial teórico que convidamos ao debate é o pensamento de Deleuze e Guattari, especialmente ao que se denomina como esquizoanálise, e os diversos pensadores que intercruzam suas produções, como Friedrich Nietzsche, Baruch Spinoza, David Lapoujade e o próprio Michel Foucault. Inicialmente, adotar essa maneira muito particular de contemplar e vivenciar o mundo cria condições para se engendrar um campo e uma abordagem transdisciplinar e intertextual, relacionando várias camadas do conhecimento humano de modo altamente inventivo.

A partir da definição desse ponto de partida teórico, o mote central desta pesquisa circunda a questão de como a sociedade contemporânea exaure a potência do corpo e o transforma em dejeto (produto consumido, tornado mercadoria, que utilizado, esgota-se e produz restos inúteis ao modo de produção capitalista e à indústria cultural ou que se torna lixo em um processo de seleção, inclusão e exclusão) e como ele retorna e manifesta a potência que supostamente se esvai. Será importante balizar como tal esgotamento está articulado com a abnegação e renegação de aspectos ligados à produção desejante.

Mais do que simplesmente compreender os motivos a partir dos quais se originam tal fato, o objetivo dessa discussão é apresentar o acompanhamento do processo da "dejetificação" do corpo na contemporaneidade a partir das expressões culturais atuais que expõem e (de)compõem esse processo, e também por meio de situações cotidianas de deterioração produzidas no cerne das relações de produção da vida material. Além disso, tateando atentamente nos amontoados do corpo tornado lixo, procuramos encontrar reminiscências de potência e de vida que jazem imperceptíveis e que são constantemente e cuidadosamente escamoteadas.

Recorremos à cartografia, modalidade de pesquisa fortemente inspirada na esquizoanálise, que tem por objetivo acompanhar processos, e não meramente descrever estados de coisas. No campo do referencial teórico, como já dito anteriormente, os limites entre as filosofias e as ciências foram flexibilizados.

Estabelecemos uma intersecção entre a realidade concreta e a ficção, elegendo como maneira de acompanhar o processo de dejetificação do corpo as afetações produzidas pelas produções artístico-culturais recentes (ou nem tão recentes) e as manifestações midiáticas por meio de notícias que foram expressivas nos últimos anos. Procuramos cartografar e sermos afetados pelas expressões de nossa cultura que representam, replicam e produzem essa exaustão do corpo e os reflexos para os modos de subjetivação. Para acompanhar o processo de acontecimento da "dejetificação" do corpo na contemporaneidade a partir das expressões culturais atuais, é necessário coragem, atenção e desprendimento para efetuar um mergulho nos locais fétidos, insalubres e sujos que o corpo, muitas vezes, é obrigado a habitar, enganado com a promessa de ser um convite ao paraíso. Observando por outra perspectiva, talvez de fato poderia devir como tal.

 

Hódos-méta: Cartógrafo-catador em Deriva Metodológica

As ciências (incluindo as ditas ciências exatas e naturais) atualmente estão inseridas em um contexto de profundas discussões e revisões paradigmáticas, inclusive sobre as suas repercussões socioculturais, econômicas e ambientais. Isso ocorre de modo mais evidente com as ciências humanas - em especial com a Psicologia -, as quais passam a ter seus estatutos científicos colocados em pauta, situação que exige a reavaliação principalmente de suas metodologias de pesquisa.

Colocada essa condição de crise da ciência clássica, a estratégia de pesquisa proposta para contemplar os objetivos deste trabalho se adequou a essa realidade paradigmática de incertezas, instabilidades e multiplicidades. Por esse motivo foram exigidas flexibilidade e revisão constante dos referenciais teóricos e das estratégias de pesquisa. O que não foi apenas uma necessidade, mas sim uma importante vantagem, tendo em vista o teor não menos impreciso do tema investigado.

Para elaborarmos os mapas do corpo tornado lixo e desenvolvermos a pesquisa que propomos, lançamos mão da cartografia (que provisoriamente consideraremos um método de pesquisa). Cartografar é ser capaz de abarcar essa exigência contextual, enquanto método descentralizado, exposto à vivência do acontecimento, ou seja, princípio "inteiramente voltado para uma experimentação ancorada no real" (Deleuze & Guattari, 2011, p.30). Passos, Kastrup e Escóssia (2009), ao questionarem como um método acêntrico encontraria a direção metodológica, constataram que a própria etimologia da palavra método, méta-hódos implica em um caminho (hódos) predeterminado pelas metas da pesquisa, sendo então um conjunto de regras previamente estabelecidas. A cartografia seria uma reversão da lógica, um 'hódos-méta',

um método não para ser aplicado, mas para ser experimentado e assumido como atitude. Com isso não se abre mão do rigor, mas esse é ressignificado. O rigor do caminho, sua precisão, está mais próximo dos movimentos da vida ou da normatividade do vivo, de que fala Canguilhem. A precisão não é tomada como exatidão, mas como compromisso e interesse, como implicação na realidade, como intervenção. (Passos, Kastrup, & Escóssia, 2009, pp.10-11)

Cartografar é acompanhar processos, e não descrição de estado de coisas. Para tanto, procurar-se-á acompanhar os processos de manifestações midiáticas e artísticas que fazem referência a essa exaustão da representação corporal, produzindo afetações em nós espectadores/partícipes e, em certo sentido, nos dejetificando também. Adentramos no campo do cinema, da literatura, da ciência, da publicidade, do jornalismo e dos demais acontecimentos corriqueiros. Assim, pudemos estabelecer contato com o mundo humano e seus acontecimentos para além dos livros e artigos.

O campo/território foi constituído a partir do encontro com produções culturais e fenômenos com exposição relevante na mídia que decorreram ao longo do caminho percorrido, no período do processo de pesquisa ou anteriormente. Tais produções foram selecionadas tomando como critério o fato que em todas elas há uma apresentação e/ou representação do corpo em condições peculiares. Para demarcar um ponto de partida, foram selecionados alguns filmes relativamente conhecidos, sem que houvesse uma delimitação temporal específica, que representam o corpo de forma coisificada, mutilada ou superexposta, remetendo à sua condição de dejeto. Dentre eles, estão: Estamira, Encaixotando Helena, Tempos Modernos e Os Estagiários. É importante ressaltar que esses filmes foram apenas disparadores para promover afetos (que foram devidamente registrados em um diário de bordo), que atravessaram o corpo do pesquisador e propiciaram pensamentos.

O conceito de corpo-lixo foi o dispositivo de sobrevoo que utilizamos enquanto passagem de sentido para extrair, da virtualidade, o acontecimento, ao mesmo tempo em que criamos um mundo possível a partir de conexão entre os mundos possíveis da estética artística e midiática, capazes de promover afetações imanentes ao tido como atual, qual seja, o corpo-lixo nas formações culturais. A seleção e contato com alguns filmes, campanhas publicitárias, artes plásticas, cênicas e noticiários serviu apenas promover afetos que atravessaram o corpo do pesquisador e propiciaram pensamentos. Pautado na premissa da pesquisa cartográfica, entramos em contato com as produções artístico-culturais, sempre abertos para o devir e o inusitado que advém da experiência artística. Cartografar é "estar ao lado sem medo de perder tempo, se permitindo encontrar o que não se procurava ou mesmo ser encontrado pelo acontecimento" (Passos et al., 2009, p.137).

 

O Corpo e Suahistoricidade

Discutir o que chamamos de dejetificação do corpo demanda o reconhecimento do pressuposto de que ele é uma construção histórica, ou seja, se transforma no tempo e no espaço, afeta e é afetado. Faz-se plausível inclusive o questionamento: A história do corpo não seria a história do corpo-lixo? Por meio de uma abordagem histórico-cultural é possível se atentar à questão do corpo de modo a nos auxiliar na discussão da dejetificação do corpo que, antes de tudo, é um processo cravejado de história.

A partir de uma leitura foucaultiana, é propício traçar um amplo panorama da história do corpo, pois o trabalho desse pensador, mais do que determinar uma versão historiográfica, nos ensina uma maneira muito particular de enxergar a própria história e o corpo: por meio das relações de poder/saber que atingem o corpo, dimensão que, segundo ele, é a realidade mais concreta dos indivíduos e repercute diretamente em suas vidas cotidianas. Por esse motivo, tem-se uma microfísica do poder.

O corpo em Foucault não é um objeto a priori, ele é produzido constantemente. Não de forma passiva e pacífica, ele é produzido no embate de forças, ou seja, no interjogo dos vários poderes que o atravessam. O corpo é um campo de batalha, efeito de conflitos que o definem na história, refletindo e atualizando na carne o presente, o passado e o futuro. Para Foucault (1979, p. 22), a tarefa da genealogia deve ser "mostrar o corpo inteiramente marcado de história e a história arruinando o corpo". Segundo suas próprias palavras em Microfísica do Poder,

[...] sobre o corpo se encontra o estigma dos acontecimentos passados do mesmo modo que dele nascem os desejos, os desfalecimentos e os erros; nele também eles se atam e de repente se exprimem, mas nele também eles se desatam e entram em luta, se apagam uns aos outros e continuam seu insuperável conflito (Foucault, 1979, p. 22).

Foucault dedica grande parte de sua vida procurando evidenciar essa relação entre o poder, o saber e o corpo. Esse período de sua obra é conhecido como fase genealógica, a qual, conforme nos revelam Dreyfus e Rabinow (1995), pretendia uma investigação acerca das relações de poder e saber na sociedade e suas inscrições no corpo. A partir de sua genealogia, Foucault (1979, p. 22) pode considerar:

O corpo: superfície de inscrição dos acontecimentos (enquanto que a linguagem os marca e as idéias os dissolvem), lugar de dissolução do Eu (que supõe a quimera de uma unidade substancial), volume em perpétua pulverização. A genealogia (...) está, portanto, no ponto de articulação do corpo com a história. Ela deve mostrar o corpo inteiramente marcado de história e a história arruinando o corpo.

A temática do corpo perpassa toda a obra de Foucault, sendo central em seu pensamento. Ele procurou entender como o corpo era visto e vivenciado, e como estava em perfeita justaposição ao entendimento das tecnologias de exercícios de poder ao longo da história e na contemporaneidade. Ao mesmo tempo, entender como o poder se exerce sobre o corpo revela como este último (e o processo de subjetivação adjacente a ele) é concebido em cada momento histórico. Essa perspectiva foucaultiana propicia a concepção do corpo enquanto um objeto de discurso, um campo permeado por dispositivos discursivos. É importante destacar que, para Foucault (1999b), corpo e alma são dimensões indissociáveis e, mais do que isso, a alma seria um elemento edificado a partir do exercício dos poderes/saberes sobre o corpo, destituindo qualquer atributo transcendental que a ela fosse atribuído. Fazendo isso, ele revoluciona a história, retirando a consciência do posto de instrumento predileto para se alcançar a verdade histórica, tendo em vista sua imunidade à contaminação pelos fatos históricos.

Atualmente, o corpo vive uma condição paradoxal: ao mesmo tempo em que é o campo no qual a sociedade tem tido predileção para realizar os investimentos científicos, artísticos e filosóficos, há também uma imensa e constante tentativa de superá-lo, como expressão de absoluto ódio ao corpo. Nesse ponto, é bastante propício citar as concepções de David Le Breton (2003) sobre a temática do corpo. Sua visão no livro Adeus ao Corpo: antropologia e sociedade, pode vir a funcionar como um relevante provocador ou tensionador da abordagem "corpo-tornado-lixo" que fazemos neste trabalho, pois, ao final de sua peculiar avaliação do estatuto do corpo na contemporaneidade e das múltiplas formas como ele é apreendido hoje, podemos extrair a ideia de que o corpo não é tornado lixo em um processo de exaustão de suas potências, mas que o corpo, dada as suas vicissitudes inerentes, é tomado pela sociedade, talvez desde os tempos socráticos, como lixo (ou excesso que pode e deve ser superado) já em sua essência - o corpo, prisão da alma. Seria então o corpo, para a sociedade, apenas um lixo que, como tal, não merece mais do que o nojo, o escárnio, o desprezo e uma lata de lixo? Seria ele um lixo que passa então a ser tratado como tal? O corpo não seria lixo desde os tempos mais remotos da civilização ocidental?

Retomando o que Foucault chamou de biopoder, ele surge na transformação das estratégias de exercício de poder, que outrora se sustentava por meio da capacidade de causar a morte ou deixar viver, e agora se efetua "um poder que gera a vida e a faz se ordenar em função de seus reclamos" (Foucault, 1976/1988, p.128). Em outras palavras, o biopoder é a capacidade de se realizar um controle especialmente do coletivo humano por meio de um gerenciamento e regulamentação absoluta da vida, utilizando-se de técnicas objetivas e quantificáveis que justificam a existência da demografia, bioestatística, e da medicina sanitária. A normalização por meio de uma normatização total da vida é uma consequência da atuação do biopoder.

Em consonância com Foucault, uma história e filosofia do corpo se manifesta sorrateira no pregnante encontro de Deleuze com Nietzsche e Espinosa conforme nos provoca Zeppini (2010). Uma filosofia prática que se faz atuar pelo questionamento sobre aquilo que mutila e mortifica a vida, e que nos obstrui no processo de exercermos a máxima potência de existir enquanto corpos pulsantes - os poderes que se exercem nos corpos, tornando-os dóceis e subjugados ao registro e controle, preparando-os para a exploração máxima de um determinado modo de produção. É importante ressaltar que a vida (e a qualidade da mesma), na perspectiva deleuzeana, não é definida enquanto conceito geral a priori, pois está ligada intimamente com a experiência própria do ser vivente, sendo então a própria experiência do viver o criador da vida como tal. Longe de propor leis gerais para uma vida potente, é a imanência que será sempre tomada como critério de avaliação calcada e na intensidade do encontro. Deleuze é capaz de estabelecer esse encontro tomando como ponto de partida as três grandes semelhanças entre eles referentes às suas denúncias, conforme destaca Zeppini (2010): da consciência, dos valores morais e das paixões tristes.

Espinosa, ao denunciar a consciência, sugerindo sua desvalorização em proveito do pensamento, propõe "instituir o corpo como modelo". Isso implica uma destituição da boa consciência enquanto censora das paixões corporais, invertendo o princípio sustentador da própria moral. A relação mente-corpo a partir da leitura de Deleuze sobre Espinosa preconiza que os afetos e as ideias estão em permanente correlação. As ideias se articulariam de modo a intensificar ou amenizar os afetos, sendo o mote dessa variação afetiva, pois se manifestará enquanto uma ideia que se afirma no corpo ou não. O afeto é a própria variação de intensidades. Essa ideia mental que afeta o corpo de modo variante está implicada com nossa "vontade de existir" e nossa "potência de agir". Sendo assim, instituir o modelo do corpo, como sugere Espinosa, segundo a precisa leitura de Zeppini, pode ser considerado como

estar atento à experiência de modo a buscar quais são as potências ainda desconhecidas de nosso corpo capazes de violentar a nossa consciência e de nos levar a pensar de outros modos, quer dizer, trata-se de buscar as potências de nosso corpo capazes de potencializar também nosso pensamento. (Zeppini, 2010, p.43)

A partir dessa perspectiva, Deleuze concebe o corpo como o inconsciente do pensamento, sendo o corpo afetado que forçosamente propicia o próprio pensar. Em outras palavras, o pensamento é efeito de um intenso movimento do corpo.

Nietzsche, ainda segundo a peculiar leitura do filósofo por Deleuze (1976), leitura essa presente no livro Nietzsche e a Filosofia, em coerência com a crítica de Espinosa sobre a consciência, considera-a uma "modéstia necessária" da sociedade cristã ocidental, e o corpo pode ser definido como uma relação entre forças dominantes (ativas) e forças dominadas (reativas), as quais não se diferem apenas em quantidades que se oporiam em sentido, mas também em qualidade, ou seja, em direção. As forças ativas impõem forma, governam e regem, remetendo ao funcionamento do corpo. Já as forças reativas têm por função se adaptar e conservar, e estão subordinadas, por isso remetem às atribuições da consciência.

Desse modo, fica claro que Nietzsche e Espinosa procuram superar a dicotomia corpo e pensamento e propõem uma forma de pensar alicerçada no próprio corpo, em franca superação da consciência. Essa superação coincide com a superação de uma moralidade predefinida por valores fixos que são postulados como universais, e sugere uma ética imanente aos encontros dos corpos, marcados por afetos que farão por decidir "bons" ou "ruins", definindo bons ou maus, paixões alegres ou paixões tristes. Essa abordagem abre caminho para pensar a potência do corpo, assim como seu possível esvaziamento e dejetificação.

Em Mil Platôs, Deleuze e Guattari (2012) fazem um importante questionamento: Como criar para si um corpo sem órgãos ( CsO)? Tal pergunta aqui nos interessa, pois o CsO se encontra em um limite crítico entre o devir e o esvaziamento do corpo - entre o lixo-corpo e corpo-lixo. Segundo Deleuze e Guattari (2012), o CsO "é o campo de imanência do desejo, o plano de consistência própria do desejo (ali onde o desejo se define como processo de produção, sem referência a qualquer instância exterior, falta que viria torná-lo oco, prazer que viria preenchê-lo)" (p.18).

O corpo hipocondríaco, no qual todos os órgãos são explodidos; o corpo paranoico, que é atacado e reconstruído por forças externas; o corpo esquizo, que estabelece um ininterrupto embate contra os órgãos; o corpo drogado, que experimenta a auto de/composição de seus estratos; o corpo masoquista, que, para além da dor, tenta em seus rituais doloríficos construir um CsO. O corpo que resta pela falta de prudência no engenho do CsO é um corpo vazio, mas corpo-lixo também é um corpo cheio de órgãos - o organismo - o puro biologismo impregnado na cultura e fruto do exercício do biopoder, que evita com furor a situação limítrofe que se arrisca para o CsO. O corpo que se faz lixo, exaurido de potencialidades, não se trata simplesmente do corpo que fica estagnado ou repetitivo em relação ao modo de tentar compor um CsO, mas principalmente o corpo que já não faz experimentação alguma, mas que pode servir de mostruário para mercadorias: corpo manequim.

A história do corpo, como pôde ser observada no recorte realizado ao longo desta parte do artigo (obviamente, uma perspectiva da história, dentre diversas possíveis), acaba por ser também a história do processo de dejetificação do corpo e a história do corpo tomado como lixo desde os tempos remotos. Por outro lado, é também a história do corpo entendido e aprendido como potente, do qual emana certa potência constante que insiste em resistir.

 

Mídia, Arte e a Dejetificação do Corpo Na Cultura

Estamira é uma exímia cartógrafa. Cartografou o lixo, catou elementos múltiplos daquela condição e fez do "resto" o instrumento para cartografar a natureza, os homens, a saúde, a doença, a morte e a sua própria vida. Ainda transita por Jardim Gramacho, colhendo as irreconhecíveis flores plantadas naquele lixão que provavelmente não exala o mais agradável dos cheiros, mas mesmo assim pulsa em vida. Ela, em sua singular sapiência, afirma, de modo oracular, que há um transbordo, algo que está mais além do próprio infinito. Estamira escancara aí um excesso - ela vive e é o próprio excesso - que não cabe nos limites das bordas e que escoa infinitamente e de modo onipresente. Ela é e vive o que está para além da borda. Como ela mesma diz, é "a beira do mundo", está "aqui", está "lá", está "em tudo quanto é lugar", e então ela não cabe, pois é extrema potência, sendo a declarada manifestação das forças do fora. A sua intensa e incabível condição de ser a coloca em um estado de exclusão (exclusões das mais diversas, especialmente a socioeconômica), tornando-se renegada por um contexto, por um enquadramento que não é capaz e não se interessa em absorver essa força descomunal, pois abalaria seus próprios fundamentos. No limbo, ainda que envolta de potencialidades, é cravejada por estigmas ("mais uma louca!") e afetada por vetores que intentam mortificá-la constantemente, gerando o conflito que, no mesmo instante em que a fere, acaba por fazer evidenciar sua incômoda capacidade de evocar a pura diferença. O corpo de Estamira é cartógrafo, cartografado e se faz a partir de uma cartografia enquanto andarilha nos lixos de si mesma. Os profundos sulcos em seu rosto revelam não só uma ação da idade, mas os rastros da própria história dos homens, imprimida na carne.

Tomaremos de empréstimo (sem nenhuma garantia de devolução) o experiente, vívido e calejado corpo de Estamira, e com ele levantaremos algumas questões pertinentes às nossas próprias caminhadas enquanto cartógrafos do corpo e do lixo neste trabalho. A primeira questão: Se há um transbordo, um excesso, um algo a mais que não cabe, naturalmente há uma borda, um limite que delimita o que está dentro e o que está fora (em nosso caso, o corpo-que- está-dentro e o corpo-lixo)? Foucault (1999a) ressalta que, para melhor compreender as condições de um determinado contexto, não basta se atentar àquilo que está prescrito como prática recomendada ou que atenda aos critérios de normalidade, é necessário principalmente "buscar o que em uma sociedade é rejeitado e excluído".

Na realidade contemporânea, existem diversos modelos padronizados, que são modulados pela superfície de registro-controle e que tecem a malha institucional de prescrições e proscrições. Tal enquadramento social e historicamente construído estabelece maneiras aceitáveis de ter uma vida laboral produtiva, comportamento de consumo hegemônico, traços estéticos dominantes, padrões de sanidade e normalidade aceitável, uma orientação e postura sexual adequada, princípios morais consolidados, dentre outras diretrizes prontas para serem gestadas, aplicadas e aderidas pelas populações. Incólumes monólitos da verdade, manuais imperiosos e imperiais para uma vida feliz e próspera. Filhos pródigos na dinastia da consciência que repudia os afetos e o pensamento a partir do corpo, herdeiros da velha razão instrumental. Na contemporaneidade, as forças do modo de produção e consumo capitalista fazem o cabedal máximo de referência do absoluto.

Há uma profunda relação entre a axiomática do capital, um dos monólitos do absoluto (quiçá o monólito absoluto por excelência) e o lixo. Em meio a seu empenho na desterritorialização, e então facilitar o fluxo de capitais, conforme o entendimento de Deleuze e Guattari (2010) no que tange a axiomática do capitalismo mundial integrado (Guattari, 1990/2011), podemos apontar para a produção de um resto, de um lixo, de um algo que "não serve mais", pois a lógica do consumo sempre enuncia que o descarte é inevitável frente às opções up-to-date que o mercado tem para oferecer.

O corpo não é só visto como uma fonte de prazer, mas como o próprio objeto de consumo. Tal proposição nos indica que não se trata apenas de uma fragmentação do corpo do sujeito contemporâneo, é imprescindível compreender como ele é mutilado, destroçado, esquartejado e vendido em partes. Dizer dessa maneira implica em reconhecer que não é somente o sujeito isolado em sua ilha neurótica que deteriora seu corpo (tal como se observa na histeria a partir do escopo edipiano da psicanálise), mas a inegável presença de mecanismos do socius, em composição ou decomposição ao desejado e vivificado nesse corpo, que o atravessam por meio de forças e que o produzem como tal - o que pressupõe a paulatina superação da dicotomia demarcada pela interioridade e exterioridade. A produção desse corpo, mutilado e deteriorado, passa a ser uma subprodução. Se o real é fruto de agenciamentos de máquinas e de produções desejantes, o corpo que resta como lixo é o substrato renegado dessa mesma produção. O corpo-mutilado apodrecido acaba por se tornar um subproduto, uma consequência secundária de uma produção em que o mais importante é o que se pode extrair dele. O corpo vai de produtor de resíduo a resíduo social, um dejeto. Dado ao prazer, é subordinado à extração de valor-de-troca que ele pode proporcionar. É inadiável a defesa da posição de que o corpo se torna dejeto e se esvazia não apenas por meio de uma exclusão de classe socioeconômica e cultural (o corpo do mendigo, do morador de rua, do catador de lixo), mas também (e talvez principalmente) por seu exato inverso: uma absoluta inclusão na esteira do modo de produção e na ideologia dominante.

Assim, não se trata de um tornar-se lixo - ser pouco ou nada aproveitável - apenas aos olhos da máquina capitalística, mas um tornar-se lixo no sentido de ter suas potências de agir, em termos espinosanos, ou sua vontade de potência e forças ativas, em termos nietzschianos, drasticamente reduzidas por meio de uma exploração total do corpo. Há, de qualquer maneira, uma inclusão e exclusão. Mesmo que essa variação não seja pautada pelo simplismo binário, ou por mera exclusão socioeconômica, há uma variação de intensidades e nas capacidades de agir, ocasionadas pelos mais diversos motivos.

Sofremos em várias esferas uma mutilação de nossa capacidade de agir. Mantemos nossos braços, pernas e órgãos, mas temos diminuídas radicalmente as possibilidades oriundas de nossos membros. Somos retalhados e encaixotados, tal qual Helena em sua caixa (no filme Encaixotando Helena) e nos tornamos instrumentos de trabalho e/ou decoração. Parte de nós se encarcera dentro de uma caixa, o que não é útil (ou pode ser ameaçador, como era a beleza e sorriso de Helena ao seu captor) é colocado para fora e descartado. Mas, afinal, qual é esse limite que separa o "dentro" e o "fora", o que ele separa e como ele funciona na contemporaneidade?

Uma das mais relevantes dimensões na qual se opera a dejetificação do corpo diz respeito ao mundo do trabalho. Em algumas situações esse processo ocorre de modo evidente, conforme representado no cinema pelo filme Tempos Modernos de Chaplin, e também evidenciado pelas notícias sobre situações aviltantes no trabalho (ou ligados à questão laboral), ocorridas no Brasil e em outros lugares do mundo. Tais situações vão desde as situações análogas à escravidão, até as diversas formas como se aborda a imigração de haitianos para o país, passando pela morte de centenas de refugiados do Oriente Médio e África que, em sua maioria, tentam entrar na Europa em busca de trabalho e melhores condições de vida (ao passo que a mesma Europa exporta lixo para os países subdesenvolvidos).

O trabalho (quando alienado, opressor e vivenciado de modo absoluto e despótico) pode dejetificar o corpo visto que a experiência de existir fica totalmente a mercê dessa dimensão humana que se organiza de modo a não contemplar toda a potência de agir do corpo e que absorve sua capacidade de efetuação de forma viciada, sendo apenas uma parcela do possível (a parcela que interessa ao modo de produção). Outra forma de dejetificação produzida pelo trabalho se dá quando os sujeitos aderem completamente à lógica de submissão em relação às modalidades de trabalho que se transfiguram em mecanismos mais sutis de dominação, como visto no filme Os Estagiários, de 2013, dirigido por Shawn Levy e escrito por Vince Vaughn, teorizado pela concepção da chamada sociedade de controle. "Numa sociedade de controle a empresa substituiu a fábrica, e a empresa é uma alma, um gás" (Deleuze, 1992, p. 220). A política salarial ilustra claramente essa volatilidade da empresa com a acentuação do sistema de prêmios e o estímulo constante para a competição e a rivalidade entre os indivíduos, contrapondo-se à sociedade disciplinar que, segundo Deleuze, organizava os sujeitos em um só corpo, o que facilitava o gerenciamento do processo de trabalho e, ao mesmo tempo, criava condições coletivas de resistência contra a exploração.

A dejetificação também se efetua pela padronização da estética do corpo e pelos usos que se faz dessa padronização. Conforme nos revela Vigarello (2006), a feiura e a beleza são produções histórico-culturais que se consolidam ao longo dos tempos e são dotados de significados múltiplos, que se transformam constantemente, garantindo que o sujeito nunca seja universalmente belo, mas sim apenas perante um determinado referencial temporal e geográfico. Atualmente, inserido na lógica do capital e do consumo irrestrito, o culto ao corpo foi tomado por uma conotação mercadológica e publicitária. No capitalismo mundial integrado, como diria Guattari, ou no império, como diriam Hardt e Negri, estando tudo submetido à lógica do mercado, o corpo acaba por não ter destino diferente.

A publicidade modula determinado modelo de corpo, promovendo-o, por meio dos meios de comunicação, como mais uma mercadoria a ser consumida. Partindo da situação de Valeria Lukyanov, mulher ucraniana cuja intenção era se tornar a Barbie humana, e desaguando em Celso Santebañes, jovem brasileiro que se considerava o Ken Humano e acabou falecendo, é fato midiático a maneira como se cultua o corpo na cultura contemporânea, cujo principal objetivo é a adequação a um padrão de consumo. Temos que reconhecer que o processo de sofrimento pelo qual muitas pessoas passam representa de modo inexorável as consequências das diversas forças (políticas, sociais, econômicas, culturais) que atravessam suas existências e afetam seus corpos ao ponto de se mutilarem e flertarem com a morte em nome de uma demanda de adaptação. A necessidade de se estar em evidência também é uma condição bastante comum atualmente. Não basta o corpo estar modelado conforme padronização estética hegemônica, ele deve se fazer visível. Os reality shows ilustram de forma clara tal situação. Nunca foi tão completa a espetacularização da sociedade nos moldes pensados por Guy Debord (1997).

A dejetificação não se limita ao corpo e, por sua vez, a dejetificação do corpo tampouco se reduz às questões laborais ou de padronização estética. Ela se faz presente em todos os aspectos da existência como um subproduto da contemporaneidade e sua acelerada máquina capitalista civilizada. O aumento da produção de bens de consumo é uma das marcas mais relevantes do capitalismo mundial integrado, e a coisificação da vida em sua totalidade é fato irrevogável. Além de ser uma questão bastante relevante do ponto de vista das consequências ambientais, passa a ser também uma preocupação que atinge a própria condição humana (em que se deve operar inclusive uma ampliação da concepção de ambiente). Viver na era do consumo muitas vezes significa viver na era do lixo.

Guattari (1990/2011), em As Três Ecologias, traz importantes reflexões sobre a relação do sujeito com o mundo e propõe então um pensamento ecológico-filosófico (ecosofia). Busca-se, na ecosofia a superação do pensamento dicotômico que separa o aspecto cultural, que seria exclusivamente humano, do natural, considerado 'não-humano', interconectando com as dimensões supracitadas enquanto pontos de contato com a realidade. A perspectiva da ecosofia corrobora a ideia de que a dejetificação está para muito além (ou aquém) da mera dimensão ambiental, mas ainda assim mantém absoluta relação com ela. A produção de subjetividades no capitalismo é regida por um emaranhado de aspectos que se interconectam de forma móvel, flexível e híbrida, que transforma tudo em valor de troca. O lixo, inclusive o corpo-lixo e a subjetividade dejetificada, seriam um subproduto do capitalismo tal qual ele se configura atualmente? Grandes lixões de corpos, onde se espalham dejetos moribundos, trapos humanos, ora renegados e excluídos, ora adorados e tomados como referência de sucesso e de bons costumes. Ora nas cracolândias, Jardim Gramacho e Ilha das Flores, ora nas workstations das grandes corporações, repartições públicas e campanhas publicitárias.

É possível que nossos corpos se tornem objetos, coisas sem nomes, meros dejetos em potencial e ainda se movam? É possível que a partir de nosso esgotamento se abra a possibilidade para o novo? De que forma tornar a dejetificação do corpo um campo de manifestação de potência? As forças que nos atravessam são capazes de nos mortificar completamente? O que permanece e o que se produz a partir desse jogo de forças? Por essas questões ainda cabem algumas considerações a serem feitas neste trabalho.

 

Desejo e Produção: do Corpo-lixo à Potência

Toda cartografia é uma cartografia do corpo e seus afetos. Como tal, o cartógrafo do corpo é constantemente contemplado com o privilégio de ocupar precisamente a superfície na qual se entrecruzam as forças que afirmam a vida ou a reduzem. Em outras palavras, falar em poder e potência, em especial na concepção de Deleuze e sua inspiração em Nietzsche e Espinosa, pressupõe reconhecer que a potência está intimamente ligada aos meandros do corpo. A clássica questão de Espinosa em relação ao o que pode ou não um corpo nos remete imediatamente à dimensão da potência inerente ao corpo que pode ou não se efetuar.

Nas palavras de Espinosa,

(...) ninguém determinou, até agora, o que pode o corpo - isto é, a experiência a ninguém ensinou, até agora, o que o corpo - exclusivamente pelas leis da natureza enquanto considerada apenas corporalmente, sem que seja determinado pela mente - pode e o que não pode fazer. Pois ninguém conseguiu, até agora, conhecer tão precisamente a estrutura do corpo que fosse capaz de explicar todas as suas funções, sem falar que se observa[m] nos animais muitas coisas que superam em muito a sagacidade humana e que os sonâmbulos fazem muitas coisas, nos sonhos, que não ousariam fazer acordados. Isso basta para mostrar que o corpo, por si só, em virtude exclusivamente das leis da natureza, é capaz de muitas coisas que surpreendem a sua própria mente. (Espinosa, 1983, p.101)

Se há potência que é inerente ao corpo, um campo de possibilidades múltiplas intrínsecas a ele, conforme a leitura de Espinosa por Lapoujade (2002), o que faz com que ele se torne o que chamamos de corpo-lixo e tenha sua capacidade de agir reduzida ao extremo? Sobre essa questão, Deleuze (1997) em Abecedário, defende a necessidade de ser fazer uma importante distinção entre a potência e o poder. Ele afirma que "[...] não existem potências ruins. O ruim é o menor grau de potência. E este grau é o poder". Deleuze explica que o poder (como potestas e não potentia, o que o diferencia da acepção foucaultiana) é um obstáculo para a potência na medida em que impede que ela se efetue por completo. O poder, por meio de seus representantes (padres, juízes e etc.) separa as pessoas daquilo que elas podem graças às paixões tristes (por exemplo, o poder do padre que se exerce pela culpabilização crônica oriunda do pecado original, como uma dívida eterna e impagável), que inspira a submissão dos homens. Todo poder é triste, conclui Deleuze, ao passo que a potência é sempre alegre.

Da mesma forma, tal concepção de poder também está em justa coerência com o seu aspecto que se exerce por meio de suas estratégias disciplinares e de controle (conforme explorado por Foucault e Deleuze), que procuram moldar e modular de forma unívoca, unidimensional, hegemônica e, muitas vezes, despótica, toda a experiência do corpo e dos processos de subjetivação. O poder dejetifica o corpo, mas ele é capaz de matar a potência do dejeto? Paradoxalmente, as forças que atravessam o corpo dejetificando-o poderiam ser as mesmas que fazem manifestar sua potência? O que pode um corpo que supostamente já não pode mais?

A noção de potência aqui apresentada se articula intimamente com a ideia de produção e desejo na acepção de Deleuze e Guattari, podendo inclusive dar novo olhar para a questão do dejeto. Intrínseco ao desejo enquanto produção, e não como falta, o inconsciente esquizoanalítico é maquínico, uma máquina desejante que é alimentada não apenas pelo drama edipiano individual e familista, mas por todas as forças coletivas (e pelo coletivo de forças), sejam elas históricas, geográficas, étnicas, econômicas, políticas, artísticas, culturais, etc. A superfície de produção é então o domínio do inconsciente maquínico que tende a produzir incessantemente o novo. A superfície de registro e controle, cuja função é determinar, separar e dar destino àquilo que serve e aquilo que não serve, irá excluir o que é considerado indesejado, sobrecodificando (significando, simbolizando, formatando e subjetivando) a massa amorfa que se origina na superfície de produção.

Nesse sentido, o dejeto não é em si (essencialmente, desde sempre e para sempre, lixo), mas sim um vir a ser a partir da exclusão de uma gama incalculável de conteúdos oriundos da superfície de produção e engendrados pelo inconsciente maquínico. A partir desse processo, certa qualidade e quantidade de potência é também alijada como lixo, pois ela não caberia e não seria aprovada pelo crivo do socius. Tendo sua capacidade de expansão infinita cerceada, a potência acaba, muitas vezes, nos termos de Deleuze, por ser reduzida ao poder.

Análogo ao inconsciente individualizado, que na psicanálise é uma espécie de lixo do corpo (a pulsão que deve ser recalcada), o corpo-lixo funciona como um inconsciente da formação social e que não cessa de se manifestar como potência, como desejo e produção. O corpo-lixo se encontraria precisamente no ponto entre o dejeto e o desejo, pois ao mesmo tempo em que é tudo aquilo que foi descartado pela operação da superfície de registro e controle, é também a potência infinitamente e inconvenientemente excedente da superfície de produção, que não cabe no enquadramento do socius.

É pertinente recorrer a Lapoujade (2002), que anuncia que o corpo não aguenta mais e nos compara aos personagens de Beckett em Fim de Partida e outras obras, incapazes das ações mais elementares. Lapoujade nos chama a atenção para o fato de que o corpo já não aguenta mais desde sempre. O corpo está desde sempre em seu limite possível, ou melhor, na iminência de extrapolar esse limite. Neste ponto, Lapoujade propõe uma redefinição de potência, reconhecendo que esses corpos limítrofes (os corpos aviltados pelo trabalho pela padronização estética do consumo, do comportamento moralmente aceito, da sobriedade, da sanidade, da heteronormatividade) são dotados do que ele chama de uma estranha potência. Essa forma de conceber a potência prescinde da necessidade da atividade do agente que, por meio de um ato, a afirmaria e a confirmaria como potência. Sendo assim, ela é absolutamente liberada do ato que a direciona de uma força latente à sua materialidade concreta: é uma potência inerente ao corpo.

Ao questionar o que, afinal, o corpo não aguenta mais, ele afirma que a resposta é dupla. "Primeiro, ele não aguenta mais aquilo a que o submetemos do exterior, formas que o agem do exterior. Essas formas são, evidentemente, as do adestramento e da disciplina" (Lapoujade, 2002, p. 83). Tudo indica que essas forças externas que agem sobre o corpo, como nos exemplos do adestramento do corpo animalesco em Nietzsche e no disciplinamento do corpo em Foucault, são os mesmos poderes tristes que Deleuze condena e que engendram a sua dejetificação. Por outro lado, ao mesmo tempo em que aviltam o corpo, ressalta Lapoujade, essas forças colocam em evidência a sua capacidade discretamente alegre de resistir. Em segundo lugar, o corpo não aguenta mais as submissões advindas de dentro. Isso ocorre no momento em que a resistência do corpo cessa de colocar em xeque os seus limites e as forças produzem o assujeitamento.

A potência dos instintos é domada e, como desdobramento, emerge a "alma" como agente da interiorização. Lapoujade relembra ainda, como Deleuze e Guattari nos ensinam, como a alma produz um determinado tipo de organização corporal, uma forma prévia, um organismo para atender suas injunções de maneira adequada ao sistema de valores dominantes. Há uma subjetivação também submetida a esse juízo e então, uma submissão.

Referendando Nietzsche, Lapoujade revela que o modo de organização e subjetivação que transforma o sofrimento em doença é o mesmo que eleva a doença a algo inerente à vida (como a perpetuação da culpa presente na tradição judaico-cristã, fato também destacado por Deleuze ao falar sobre o poder em Abecedário). Eis a invenção do corpo mártir, cujo sofrimento é uma missão. O corpo é destituído de potência no instante em que ela deixa de ser inerente ao corpo e passa a ser consequência do agente por meio de seu ato. Adestrado e condenado à sua eterna condição de sofrimento patológico, ele oscila entre a doença e a anestesia, sendo o surgimento da alma o maior desses sintomas. A doença, desse modo, separa a vida do sofrimento que a ela seria próprio. A grande proposta de Nietzsche e de Deleuze, no entendimento de Lapoujade, é tomar o sofrimento como uma dimensão da saúde e da vida, e não mais como um sintoma de doença.

A partir dessa virada na compreensão do sofrimento, Lapoujade postula que sofrer é a condição primordial do corpo, é o resultado da exposição ao fora e aos encontros múltiplos que se dão a partir dessa exposição. O equilíbrio do corpo surge a partir de uma diferença fundante, uma variação de potencial entre o corpo passivo e as forças exteriores. O corpo deve primeiramente suportar o insuportável desse encontro com o fora para então se afirmar de forma ativa. A força reside na capacidade em suportar a dor e não recrudescer por completo a sensibilidade em relação às feridas, por menores que elas sejam. Para nos colocarmos à altura da potência do corpo, é necessário prudência, o que, por sua vez, diz respeito ao movimento paradoxal de se fechar e se proteger das forças que diminuem a capacidade de agir, ao mesmo tempo em que se faz necessário uma abertura suficiente para ser capaz de ser afetado por aquilo que passa pelo corpo e produz a sensibilidade. O corpo que não aguenta mais é o corpo que faz evidente a sua potência de resistir. O corpo esgotado é o único que tem verdadeiramente algo a mais a oferecer.

Nessa perspectiva certas forças presentes no contexto da cultura intentam estraçalhar o corpo, e só dessa forma (e não "apesar disso") fazem eclodir a estranha potência. O corpo da anorexia é um corpo que, de várias maneiras, se submete à forma e aos poderes, ao mesmo tempo em que exprime uma incômoda potência de resistir: é uma rebelde aceitação plena da forma, ao passo que agride e transgride essa forma (por meio da recusa absoluta da organização corporal "saudável"), levando-a em uma empreitada quase bélica às últimas consequências.

Se a tarefa última é diagramar a potência no corpo tornado dejeto, talvez sejamos bem-sucedidos ao encarar o corpo-lixo como um meio que também se faz possível para intensificar a potência da vida, e não o fim em si ou derradeiro resultado dessa extrema abertura para o possível. Corpo-lixo é um lugar de passagem que fabrica outros corpos possíveis, seja pela disciplina, pelo controle, pela sua exaustão, superexposição, fragmentação, coisificação, seja pelo esgotamento que obriga a emergência da potência de resistir e de se reinventar.

 

O que Restaria de Considerações?

Mais que dizer que deixamos arestas, nos cabe aqui reconhecer que esta cartografia é por si só uma aresta. Disforme e instável, essa empreitada não se fecha em si mesma e não é capaz de responder todas as questões que surgiram ao longo do trajeto.

Percebemos que um trabalho que se pretende esquizoanalítico não deve apenas buscar ligações rizomáticas no suposto campo empírico exterior a ele mesmo ou distante da realidade afetiva do pesquisador, sejam eles nos ditos objetos de pesquisa, sejam sujeitos investigados. É imprescindível que ele mesmo se faça rizoma, ou seja, não o causador primordial das conexões, mas efeito de tais conexões múltiplas, incontáveis e algumas imperceptíveis. Para isso, é necessário que se opere, por outro lado, uma articulação constante com a sua exterioridade conceitual, o que pressupõe ir além da literalidade e dos conceitos apresentados por Deleuze e Guattari, seja dando sentidos absolutamente novos para eles, buscando concepções no mais longínquo pensador, seja criando conceitos que produzam inéditos pontos de passagem capazes de propiciar novas ramificações conectivas.

Dentre esses conceitos (se é que podemos usar essa denominação), o conceito de corpo-lixo, com o qual resolvemos bailar e combater, nos afetou ao ponto de gerar pensamentos muito especiais e específicos para pensar a contemporaneidade e a cultura. No capitalismo pós-industrial, que é demarcado pelo seu avanço global e pelo aumento vertiginoso da população mundial, há uma imensa produção de lixo material de toda natureza. Tomar o corpo como mais um dejeto em potencial nos permitiu trazer a questão da corporeidade e da subjetivação para o âmago do fenômeno capitalista, reconhecendo o lixo (pelo menos nas quantidades, qualidades e sentidos encontrados hoje), como algo muito próprio da contemporaneidade. Inventar um conceito atualizado e atual nunca foi o objetivo do trabalho. Utilizar esse conceito de corpo-lixo tinha como meta trazer à tona um conceito que atualize, de uma maneira singular, os desdobramentos da ação dos jogos de poderes, especialmente no modo de produção e consumo hegemônico e seus reflexos no processo de subjetivação.

Talvez seja oportuno nos abrirmos para o paradoxal, enxergarmos o capitalismo mundial integrado e as forças que se articulam nele como um campo onde se fecham diversas possibilidades de vivenciar o corpo, mas que se abrem diversas outras, especialmente porque essa forma atual de organização do capitalismo é a máquina de desterritorialização por excelência. De que forma fomentaremos linhas de fuga e corpos potentes nesse contexto? Seria o corpo-lixo capaz de escapar de sua condição mortificada e propiciar o enfrentamento da desterritorialização-reterritorialização do capital por meio da desterritorialização-reterritorialização da própria existência corporal? Mais do que trazer conclusões e apresentar resultados de pesquisa, cabe o incipiente reconhecimento - ainda que precário e tão instável e transitório quanto o tema discutido -, de que o corpo dejetificado é o verso e o inverso de um mesmíssimo processo de inclusão e exclusão ao crivo do socius. De onde se origina sua ruína, é gestada sua potência de resistir e produzir. As produções culturais contemporâneas evidenciam isso de modo irretocável a partir de sua ambígua relação de apreço e desprezo ao corpo e suas múltiplas formas.

O esfacelamento do corpo de Isabella Nardoni ao solo é emblemático no que se refere ao fato de que ele, em sua vertiginosa queda rumo à completa destruição, pode ser tomado como objeto de consumo, mercadoria que agora coisificada e mortificada atrai para si a condição de dejeto e, nessa mesmíssima condição de "tornar-se lixo", ainda guarda a possibilidade de ser consumido até a última gota de sangue. Contudo, mesmo na sua queda, em sua morte, o corpo que cai em direção ao seu fim emana uma potência estranha (potência que faz movimentar, doutrinar, comover e insuflar as massas, tal qual o corpo do penitente dado ao suplício). Ainda não somos capazes de responder com precisão quais os efeitos, usos e usuras que pode advir dessa relação dilemática e talvez paradoxal entre o corpo-lixo e o corpo-potência. O que sabemos com relativa segurança é que os drones norte-americanos e as espadas do Estado Islâmico já decretaram aos corpos o estatuto definitivo de dejetos.

 

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Endereço para correspondência:
Pedro Henrique Lucas Costa
Email: plucascosta@gmail.com

Caio César Souza Camargo Próchno
Email: c.prochno@uol.com.br

Recebido em: 15/05/2016
Revisado em: 01/11/2016
Aceito em: 21/12/2016

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