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Revista Subjetividades

versão impressa ISSN 2359-0769versão On-line ISSN 2359-0777

Rev. Subj. vol.16 no.3 Fortaleza dez. 2016

http://dx.doi.org/10.5020/23590777.16.3.70-83 

ESTUDO TEÓRICO

 

Inventar um corpo: Schreber e sua metáfora delirante

 

Invent a body: Schreber and his delirious metaphor

 

Inventar un cuerpo: Schreber y su metáfora delirante

 

Inveter un corps: Schereber et sa métaphore délirante

 

 

Carlos Eduardo Rodrigues (Lattes)I; Júlio Eduardo de Castro (Lattes)II

IMestre em Psicologia pela UFSJ. Especialista em MBA em Gestão de Recursos Humano, pela Faculdade Tecnologia de Curitiba, FATEC-PR
IIMestre em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Doutor em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e Pós-Doutorado em Psicologia pela PUC-Minas

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo aborda a construção da metáfora delirante de Schreber, o surgimento do significante "mulher de Deus" e os pontos nos quais ele vivencia transformações em seu corpo por meio dos fenômenos elementares, mais especificamente suas alucinações e delírios. Pretende aí articular a evolução de seu delírio com a invenção de um corpo que possa ser gozado e que lhe permita se nomear. O corpo, segundo a psicanálise, é atravessado pela linguagem, não é o corpo biológico e, por isso mesmo, é marcado pelo significante. Na psicose, o acontecimento do corpo vem como uma resposta a algo que ultrapassa o sujeito, pois o significante aí se corporifica como gozo do Outro. Os acontecimentos de corpo na psicose são efeitos da foraclusão do Nome-do-Pai, significante que, por estar incluído fora, no máximo mantém o Imaginário fragilmente atado ao Real e ao Simbólico por meio das 'bengalas imaginárias'. Essas são recurso de compensação à amarração borromeana aí inexistente por efeito da foraclusão. Uma vez que a imagem do corpo é o suporte da relação do sujeito com o desejo do Outro, Schreber inventa o seu corpo com a imagem feminina delirada para satisfazer a Deus. E se o delírio já é uma tentativa de cura, uma invenção de um saber (S2) que vem dar sentido ao S1, pretendemos aqui esclarecer como o delírio pode servir para inventar um corpo, que na psicose está despedaçado por efeito da foraclusão. Schreber, ao consentir o gozo do Outro na figura de Deus, fez sutura em sua realidade psíquica e inventou um corpo próprio habitável. Inventar um corpo próprio foi, portanto, o modo de Schreber fazer suplência ao Nome-do-Pai foracluído. Com isso, houve uma restituição da realidade psíquica e uma contenção do gozo do Outro por meio da imagem desse corpo transmudado em corpo de mulher, restaurando assim a imagem de si e, desse modo, estabilizando seu delírio.

Palavras-chave: psicose; foraclusão do nome-do-pai; metáfora delirante; corpo; invenção.


ABSTRACT

This article discusses the construction of Schreber's delusional metaphor, the emergence of the significant "Woman-of-God" and the points at which he experiences transformations in his body through elementary phenomena, more specifically his hallucinations and delusions. He intends to articulate the evolution of his delirium with the invention of a body that can be enjoyed and that allows him to be named. The body, according to psychoanalysis, is crossed by language, is not the biological body and is therefore marked by the signifier. In psychosis, the event of the body comes as a response to something that surpasses the subject, for the signifier therein is embodied as an enjoyment of the Other. The events of a body in psychosis are effects of the foreclusion of the Name-of-the-Father, a signifier that, being included outside, at most keeps the Imaginary weakly attached to the Real and to the Symbolic by means of the imaginary canes. These are a compensating resource for the borromean mooring that does not exist due to the effect of foreclusion. Since the image of the body is the support of the subject's relation with the desire of the Other, Schreber invents his body with the feminine image delirious to satisfy God. And if the delusion is already an attempt at healing, an invention of knowledge (S2) that gives meaning to S1, we intend here to clarify how delusion can serve to invent a body, which in psychosis is shattered by the effect of foreclusion. Schreber, by consenting to the enjoyment of the Other in the figure of God, made suture in his psychic reality and invented a habitable body itself. To invent a body of its own was, therefore, Schreber's way of making a substitution for the forbidden Name-of-the-Father. With this, there was a restitution of the psychic reality and a containment of the enjoyment of the Other by means of the image of this body transmuted into a woman's body, thus restoring the image of itself and, as a result, stabilizing its delirium.

Keywords: psychosis; forbidden name-of-the-father; delusional metaphor; body; invention.


RESUMEN

Este trabajo se refiere a la construcción de la metáfora delirante de Schreber, el surgimiento del significante "Mujer-de-Dios" y los puntos de los cuales él vivencia transformaciones en su cuerpo por medio de los fenómenos elementares, más específicamente sus alucinaciones y delirios. Pretende articular la evolución de su delirio con la invención de un cuerpo que pueda ser gozado y que le permita ser nombrado. El cuerpo, según el psicoanálisis, es traspasado por el lenguaje, no es el cuerpo biológico y, por eso, es marcado por el significante. En la psicosis, el acontecimiento del cuerpo viene como una respuesta a algo que ultrapasa el sujeto, porque el significante se corporifica como gozo del Otro. Los sucesos del cuerpo en la psicosis son efectos de la forclusión del Nombre-del-Padre, significante que, por estar incluso fuera, en el máximo mantiene el Imaginario débilmente atado al Real y al Simbólico por medio de los "bastones imaginarios". Estas son recurso de compensación a la amarra borromeana allá inexistente por efecto de la forclusión. Una vez que la imagen del cuerpo es el soporte de la relación del sujeto del Otro, Schreber inventa su cuerpo con la imagen femenina delirada para satisfacer a Dios. Y si el delirio ya es un intento de cura, un invento de un saber (S2) que viene a dar sentido al S1, pretendemos aquí aclarar cómo el delirio puede servir para inventar un cuerpo, que en la psicosis está destrozado por efecto de la forclusión. Schreber, al consentir el gozo del Otro en la figura de Dios, hizo sutura en su realidad psíquica e inventó un cuerpo propio habitable. Inventar un cuerpo propio fue, por lo tanto, el modo de Schreber hacer suplencia al Nombre-del-Padre forcluido. Con eso, hubo una restitución de la realidad psíquica y una contención del gozo del Otro por medio de la imagen de este cuerpo cambiado en cuerpo de mujer, restaurando así la imagen de sí y, de esa forma, estabilizando su delirio.

Palabras clave: psicosis; forclusión del nombre-del-padre; metáfora delirante; cuerpo; invención.


RÉSUMÉ

Cet article traite de la construction de la métaphore délirant de Schreber, de l'émergence du signifiant «Femme de Dieu» et des points dans lesquels il expérience des transformations dans son corps à travers des phénomènes élémentaires, plus précisément ses hallucinations et ses délires. Il prétend articuler l'évolution de son délire avec l'invention d'un corps qui peut être puissé et que lui permet se nommer. Le corps, selon la psychanalyse, est traversé par la langue, n'est pas le corps biologique et, par conséquent, est marqué par le signifiant. Dans la psychose, l'événement du corps vient comme une réponse à quelque chose qui va au-delà du sujet, parce que le signifiant s'incarne comme la jouissance de l'autre. Les événements du corps dans la psychose sont des effets de forclusion du Nom-du-Père, signifiant que, à cause d'être inclus dehors, dans maximum ils maintien l'Imaginaire fragilement lié au Réel et au Symbolique par moyen des «cannes imaginaires». Celles-là sont les ressources de compensation pour le noeud borroméen inexistant là à l'effet de la forclusion. Une fois que l'image corporelle est le rapport du sujet avec le désir de l'Autre, Schreber invente son corps avec l'image féminine délirée pour satisfaire Dieu. Et si le délire est une tentative de guérison, une invention d'un savoir (S2) qui vient donner un sens à S1, nous voulons préciser ici comme le délire peut servir pour composer un corps, qui est déchiré chez la psychose à cause de la forclusion. Schreber, quand il permet la jouissance de l'Autre sur la figure de Dieu, il a fait de suture en sa réalité psychique et a inventé un corps propre habitable. Inventer un corps propre était, par conséquent, la façon de Schreber de faire une substitution au Nom-du-Père forclos. Ainsi, il y avait un remboursement de la réalité psychique et un confinement de la jouissance de l'Autre à travers de l'image de ce corps transmuté en corps de femme, en restaurant, donc, l'image de lui-même et, par conséquent, en stabilisant son délire.

Mots-clés: psychose; forclusion du nom-du-père; métaphore délirante; corps; invention.


 

 

Antes do nascimento da psicanálise, o corpo já sofria em decorrência do mal-estar, dos valores morais de sua época e daquilo que, em suas observações, se assim podemos dizer, Freud entende que são consequências de palavras amordaçadas, de palavras que não poderiam ser ditas. Isso era observado nas histéricas, mais precisamente na histeria de conversão. Freud, diferentemente de seus colegas médicos, ficou intrigado com aqueles fenômenos, com os sintomas que não eram de fundo fisiológico, mas que faziam os corpos das histéricas pagarem pelas exigências da sociedade, da cultura. Nesse sentido, antes de Freud, o sofrimento psíquico não existia pelo fato de não ser nomeado. Freud começa a se questionar sobre a origem de tais sintomas e, com isso, inaugura o Inconsciente e inventa a psicanálise.

Existem várias abordagens sobre o corpo, tais como o corpo biológico, o organismo, o corpo anatômico-fisiológico, que é estudado pela medicina e que sofre intervenções da ciência, o corpo social, que é um corpo que interage, que está inserido no meio social e que é influenciado por esse meio. Atualmente, o corpo que está em alta é o corpo ideal, o corpo da estética, da bela forma física, corpo que tem exigido muito por apresentar padrões veiculados pela mídia.

Nosso objetivo, neste artigo, é abordar a relação possível de um psicótico com seu corpo. O corpo que interessa à psicanálise não é simplesmente um organismo com todas as suas funções fisiológicas, sociais, estéticas, mas um corpo marcado pelo significante, atravessado pelas pulsões, pela linguagem - um corpo com significado subjetivo em que consideramos as relações discursivas de cada sujeito com o corpo que tem, mas que não é o corpo em si, e sim uma representação psíquica desse, ou uma imagem corporal, levando-se em conta que, para Lacan (1974-1975), o corpo é amarrado ao sujeito graças ao Imaginário, tal como formulado no Seminário 22.

Consideramos esse artigo como uma importante contribuição à clínica psicanalítica e psicológica, pois é importante entender que não lidamos com um organismo, é importante levarmos em conta a constituição subjetiva do corpo e sua posse, corpo do qual o sujeito fala, corpo do qual o sujeito goza. Para que se possa entender melhor a proposta deste artigo, passa-se agora a apresentação breve do que seria a constituição subjetiva.

 

Uma Falha Elementar na Constituição Subjetiva

Inicialmente, na constituição do aparelho psíquico, há a inscrição de um traço, de uma primeira marca (S1), marca que instaura o inconsciente. Após essa primeira inscrição ocorre o seu apagamento, é o que Freud chamou de recalque. Esse apagamento, essa rasura também deixa derivados ou efeitos significantes que indicam a abertura/formação de cadeia, de série: S1 S2. Portanto, tem-se aí o S1, significante mestre, o traço unário, primeiro significante no sujeito e o S2, o saber que daí surge. Esses significantes formam, portanto, cadeia na junção com outros significantes, e é entre eles que se localiza o sujeito dividido ($).

Nesse processo de inscrição da primeira marca e marca da rasura, ainda se tem o momento em que o sujeito dará uma significação própria às marcas do inconsciente. Ele irá interpretar suas marcas no campo do Outro, o reino dos significantes que irá abrir caminho para a significação fálica. O Nome-do-Pai é o grande operador nesse processo de leitura e interpretação, pois é ele que ordena a cadeia significante, ex-sistindo a ela. Ele é, pois, um significante-função que não faz parte da cadeia, mas que, no entanto, estabelece a divisão do sujeito, que se encontra a partir daí dividido entre S1 e S2. Esse estabelecimento se dá pela linguagem, que submete o sujeito a uma lei simbólica instaurada pela metáfora paterna e, assim, interdita o Desejo da Mãe (DM), barrando nele o que há de gozo do Outro, gozo esse figurado por Lacan como 'desejo de reintroduzir em si a própria cria'.

No Seminário 5, As formações do inconsciente (1957-1958/1999), mais precisamente na lição de 22 de janeiro de 1958, Lacan nos apresenta os três tempos do Édipo, que é fundamental na constituição subjetiva.

No primeiro tempo encontramos como característica principal, uma alienação da criança ao Outro materno. A criança busca satisfazer o desejo materno, numa posição de objeto desse desejo, que se apresenta como um ser ou não ser o objeto, regido pelo desejo de desejo. A criança deseja o que é o desejo da mãe, vai procurar ser um objeto satisfatório para sua mãe. "No primeiro tempo e na primeira etapa, portanto, trata-se disto: o sujeito se identifica especularmente com aquilo que é objeto do desejo da mãe" (Lacan, 1957-1958/1999, p.198). Em outras palavras, a criança precisa se identificar ao falo, objeto desejado por sua mãe.

No segundo tempo a principal característica é a intervenção de um terceiro, que irá introduzir a lei de interdição. Não que a instância paterna não esteja presente no primeiro tempo, mas essa introdução é feita de maneira velada, essa presença é velada. Já no segundo tempo, "o pai se afirma em sua presença privadora, como aquele que é o suporte da lei" (Lacan, 1957-1958/1999, p. 200). Nesse momento essa presença não é velada, ela ganha uma mediação da mãe, que é quem insere o pai como aquele que é suporte da lei, é necessário que a mãe dê peso à fala do pai para que ele possa representar a lei.

No terceiro tempo do Édipo ocorre a instalação da função simbólica paterna, o pai aparece como aquele que tem o falo, nesse ponto pode ocorrer a identificação com o pai, o que promoverá uma saída satisfatória do complexo de Édipo. O pai é investido como Ideal do eu, com o qual a criança irá se identificar e então se posicionar como desejante.

A inscrição do Nome-do-Pai cumpre então a função no primeiro ensino de Lacan, de inserir o sujeito na ordem/significação fálica, na crença de que temos uma realidade que nos é comum e standard e, antes de tudo, que a relação com o corpo próprio se faz de modo corriqueiro. Portanto, tal Nome nos faz crer que não somos tão estranhos assim uns aos outros, que pertencemos a uma única e mesma realidade.

O que Acontece nas Psicoses

A passagem pelos três tempos do Édipo, como descrito acima, é o que acontece mais especificamente nas neuroses, pois na perversão há uma recusa dessa lei paterna e na psicose não ocorre a entrada de um terceiro que pudesse inserir a lei (NP) e que fizesse barreira ao gozo do Outro materno, impedindo assim que o Desejo da Mãe (DM) prevaleça.

Essa falha na entrada do significante Nome-do-Pai, mantendo a criança no primeiro tempo do Édipo, alienada ao gozo do Outro e impossibilitando de se tornar desejante, é o que verificamos, portanto, nas psicoses.

Pode-se dizer que na psicose não houve a rasura, a segunda marca (S2). Não ocorreu o recalque primário, o que deixa o sujeito exposto a um enxame de S1, "que soa em francês essaim, um enxame significante, um enxame que zumbe" como Lacan afirma no Seminário XX, Mais, ainda (1972-1973/2008, p.154). Em outras palavras, não há efeitos de significação, pelo fato de que na psicose o sujeito não conta com um ponto de basta (NP) que impeça que esse enxame faça zumbido em forma, por exemplo, do verbo alucinado.

Na neurose a maneira de negar a castração do Outro [S(Ⱥ)] ocorre por esse processo de apagamento da marca, pelo recalque primário no qual um o elemento é negado, porém, conservado no inconsciente. No caso da psicose essa marca não deixou rastro, não conserva nada no inconsciente. Está foracluído do lado de dentro e será o que retornará desde fora, ou seja, a foraclusão não quer dizer que a marca deixou de existir, mas que esse significante está incluído fora do campo do Simbólico, no Real. Segundo a conhecida fórmula lacaniana, o que é foracluído do Simbólico retorna a partir do Real.

Quando ocorre a foraclusão do Nome-do-Pai significa que o sujeito não atravessou o drama edipiano, pois não teria sido submetido à castração simbólica. Diante desses elementos, Lacan estabelece, em sua primeira abordagem da psicose, que a condição necessária para que um sujeito se torne um psicótico é a foraclusão do Nome-do-Pai no lugar do Outro e o fracasso da metáfora paterna, provocando aí um prejuízo da relação do sujeito com o Simbólico.

O Nome-do-Pai é o que permite ao sujeito adentrar na significação fálica por decorrência da metaforização do desejo da mãe (DM). Ele promove, portanto, a subversão do sujeito (sua divisão) e a dialética do desejo, ou seja, a articulação significante do desejo segundo a lógica metafórica. O que acontece quando não há a inscrição desse significante no lugar do Outro são, entre outros, os distúrbios da linguagem, assim como a alucinação que, antes de tudo é, para Lacan, verbal.

A foraclusão do significante paterno "implica sempre o retorno no real daquilo que foi foracluído no simbólico" (Quinet, 2006b, p. 50). De modo que a foraclusão do Nome-do-Pai, ou seja, a não inclusão desse significante no Simbólico, tem como efeitos a formação de delírios, alucinações e fenômenos/vivências de despedaçamento do corpo. "Algo advém daquilo que está foracluído para o sujeito. Mas não advém sob a forma de retorno do recalcado" (Miller, 2010, p. 34). O que retorna então é algo desprovido de sentido fálico e, por isso mesmo, ininterpretável. Esse retorno se dá, portanto, a partir do Real, uma vez que esse é o domínio do que está fora da simbolização. Os fenômenos que ocorrem na psicose são mais facilmente observados naquelas psicoses desencadeadas, como são apresentados na psicose de Schreber1: os fenômenos no corpo, a linguagem, as alucinações e os delírios, que são chamados, por Clérambault, de fenômenos elementares.

O delírio, tal como Freud (1911/1996) nos apresenta, é uma tentativa de estabilização, de cura, tentativa de o sujeito suturar sua realidade psíquica rompida, desatada. Pensando pela perspectiva borromeana, pode-se dizer que a estabilização do delírio é uma tentava subjetiva de amarrar os registros do Real, do Simbólico e do Imaginário, que antes do primeiro surto era sustentada por bengalas imaginárias, facilmente quebradas quando o sujeito é chamado a responder a demandas sociais sustentadas na significação fálica. Principalmente se, por algum motivo, o psicótico sofrer um abalo em sua vida devido a algum chamado do Nome-do-Pai, ou seja, a ocupar um lugar social similar à posição do pai-metáfora na cultura, como será apresentado adiante sobre Schreber.

Bem, antes de falarmos sobre a metáfora delirante de Schreber, faz-se necessário uma apresentação deste que é um dos grandes casos de Freud, apesar de que o pai da psicanálise nunca atendeu Schreber, mas leu seu livro de Memórias (1984). Apresentaremos então, o mais breve possível, a história do Presidente Schreber. Destacamos os pontos de sua história pessoal que são importantes para o propósito deste artigo.

Um breve Histórico de Schreber

Daniel Paul Schreber2 (1842-1911) provinha de uma família de protestantes burgueses da Alemanha, uma família de intelectuais. Schreber era um magistrado e já com 19 anos de carreira, aos 42 anos de idade, apresenta um quadro de hipocondria. Em 1884, foi internado numa clínica para doenças nervosas da Universidade de Leipzig, dirigida por uma das maiores autoridades da psiquiatria e da neurologia daquela época, o Prof. Paul Emil Flechsig.

O pai de Daniel Paul, o Dr. Daniel Gottlieb Moritz Schreber (1808-1861), conhecido como Dr. Schreber, era médico ortopedista e pedagogo, autor de uma série de livros sobre ginástica, educação de crianças (puericultura) e higiene. Ele dizia se orgulhar de ter aplicado pessoalmente seus métodos e técnicas em seus filhos. Esses métodos invasivos e traumáticos tiveram uma negativa relevância na vida dos filhos, como na constituição da psicose de Daniel Paul e no suicídio de Daniel Gustav, filho mais velho do Dr. Schreber. Representações psíquicas dessa "tortura" aparecem nos delírios de Schreber, tal como os delírios de milagres do calor e frio dirigidos contra ele, com o intuito de impedir o seu bem-estar físico.

Quanto à sua mãe, "os biógrafos de Schreber quase não fazem referência à figura materna: sabe-se apenas que era uma mulher pouco afetiva, deprimida e inteiramente dominada pelo marido" (Carone, 1984, p.9). Em suas Memórias (Schreber, 1984), há um destaque colocado sobre sua relação com a figura paterna e similares, Flechsig e Deus por exemplo. O próprio Freud (1911/1996) coloca essa relação no cerne do conflito de Schreber, numa relação de amor e ódio que reaparece em seu delírio com Deus e em seu delírio com o Prof. Flechsig. A esse respeito, Freud observa que o nome do pai de Schreber, "Daniel Gottlieb" aparece o radical alemão Gott, que significa Deus.

Um ano depois da morte de seu irmão, em 1877, Schreber se casa com Ottlin Sabine Behr, de nível social inferior a ele e quinze anos mais jovem. Ottlin era diabética e tinha um temperamento infantil. O casal não conseguiu ter filhos, ela teve seis abortos espontâneos.

Em sua carreira como jurista, Schreber evoluía regularmente sendo promovido sucessivamente. Começou como escrivão, passando a auditor, assessor do Tribunal, conselheiro da Corte de Apelação, vice-presidente do Tribunal Regional de Chemnitz. Em outubro de 1884 concorreu às eleições parlamentares e sofreu uma derrota fragorosa. Em 1886 ficou seis meses internado em função de sua crise hipocondríaca. Assume suas atividades como juiz-presidente do tribunal Regional de Leipzig após seis meses de uma longa viagem de convalescência.

Nessa cidade, ele ocupou altos cargos, como o de presidente do Tribunal Regional e participou de duas eleições internas para membro do Colegiado Distrital. Em 1893 recebe em sua casa a visita do ministro da Justiça da Saxônia, que veio lhe anunciar sua iminente nomeação para o cargo de juiz-presidente da Corte Superior de Apelações da cidade de Dresden. Era uma determinação direta do rei, por isso irreversível.

Justamente nesse momento é que se desencadeia sua psicose, ou seja, quando é chamado a ocupar um cargo que o colocaria como representante da lei máxima. Isso o desestabiliza, pois, simbolicamente esse é o lugar do pai e como o Nome-do-Pai já estava foracluído, Schreber não possuía a inscrição/registro da metáfora paterna (NP) para responder a isso. Alguns dias após o anúncio de sua nomeação, ele se descobre pensando em como seria bom ser uma mulher durante o ato sexual. Diante de seus sintomas de insônia, sensibilidade a ruídos, angústia intensa e sensação de ser objeto de manobras intencionais e maldosas, recorre a Flechsig, que tenta inicialmente tratá-lo em casa, o que não foi possível, sendo necessário interná-lo por causa da gravidade de seu quadro. Ele fica nove anos internado dessa vez.

Nesse período Schreber relata em suas Memórias (1984) as mais diversas passagens alucinatórias e delirantes, como a experiência de emasculação, inventando, gradativa e delirantemente para si mesmo, um corpo feminino. Aí Schreber se entrega cada vez mais às suas fantasias alucinatórias místico-religiosas. Deus falava com ele e demônios zombavam dele. Em novembro de 1895 ocorre uma transformação fundamental em sua vida. É quando Schreber consente/acata a sua transformação em mulher, em ser a mulher de Deus. Para atender a um princípio maior, seria fecundado pelos raios divinos para gerar uma nova raça humana.

A criação da metáfora delirante de Schreber chama a atenção de Castro (2012), que vê nela o resultado de um longo processo em busca da estabilização, com ênfase na necessidade de recepção das produções delirantes na clínica da psicose.

A 'mulher de Deus', ponto terminal do delírio schreberiano, não é uma metáfora padrão, comum, coordenada pela norma fálica, pelo contrário. Sua metáfora delirante foi, antes de tudo, localizada/construída fora do laço/pacto social (que atribui valor fálico a certas formas significantes e convida, aos sujeitos, a elas se identificarem por similaridade). A 'mulher de Deus' é o resultado de um processo que se iniciou com um devaneio estranho (deve ser prazeroso copular como uma mulher copula) seguido da vivência do corpo despedaçado e de um delírio hipocondríaco daí derivado, passou pela erotomania de Flechsig e de Deus, avançou pelas construções persecutórias dirigidas aos dois e, finalmente, se caracterizou como delírio místico. Essa construção/evolução do delírio é singularíssima e somente possível se seguirmos o fio metonímico que prevalece nas construções delirantes, se não tentarmos ou contê-lo ou incentivá-lo. Seguir esse fio é pressupor que a metáfora delirante é um trabalho de responsabilidade do sujeito, cabendo-nos, quando muito, secretariá-lo. Qualquer tentativa de imposição da norma fálica - leia-se, de implante da metáfora paterna inexistente - desincentivará as produções delirantes, ou seja, a tentativa própria de recuperação. (Castro, 2012, p. 162)

Schreber então se interessa por sua situação legal e denuncia a curatela provisória, a qual era submetido, como ilegal. Julgado incapaz de gerir seus bens é levado a escrever um livro sobre sua história psíquica, Memórias de um doente dos nervos (1984), que é usado como argumento quando faz na justiça o requerimento de seus direitos civis e de sua alta. A primeira sentença lhe é desfavorável. Em um segundo recurso, a sentença concede o levantamento da interdição.

O trabalho de seu delírio constituiu uma estabilização pela via da metáfora delirante que lhe permitiu reinvestir nos objetos do mundo social, a começar na escrita, em busca da restauração de seus direitos civis. Ele passou um tempo estabilizado, fruto de sua metáfora delirante, e depois de um tempo tem uma recaída, ficando em estado grave até sua morte, em 1911.

Ao se falar em estabilização da psicose, aponta-se para as elaborações lacanianas no que dizem respeito ao tratamento desta, uma vez que Freud não considerava a possibilidade de tratamento pela via da psicanálise, não sem fazer algumas modificações na técnica. Freud não trata da estabilização da psicose nem de solução, mas chama a atenção para o fato de que o delírio é uma tentativa de cura, uma tentativa de sutura do mundo que se desaba em uma catástrofe imaginária. O delírio não é, portanto, uma doença, e sim uma construção singular para tentar recompor a unidade perdida do eu por meio da invenção de uma metáfora incomum e própria (mulher de Deus). Recompor o eu é, portanto, uma de suas funções no tratamento da psicose.

Muitas vezes, o que se segue ao momento do surto psicótico - à vivência do corpo feito em pedaços e à imposição maciça do gozo do Outro - é uma tentativa do sujeito de explicar o que lhe aconteceu(ce). Interpretar a partir de si mesmo o que lhe aconteceu(ce) é já, de início, um trabalho de recuperação que pretende recompor/reparar o imaginário (I) e suas ligações aos outros dois registros (S e R). Freudianamente falando, é na regressão ao narcisismo que o delírio decola, daí suas formas iniciais serem preferencialmente a megalomania (igual) e a paranoia (rival), formas essas ligadas à gênese do eu. (Castro, 2012, p. 159)

No texto "De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose" (1972-1973/2008), Lacan fala sobre estabilização a propósito da construção delirante de Schreber e utiliza o esquema I para demonstrá-la. Nesse esquema, a estabilização se apresenta como efeito da construção de uma nova realidade, aquela que se desestabilizou pelo aparecimento do objeto a no campo do Ouro. Aqui Lacan representa o estado terminal da psicose de Schreber, a estabilização pela via da metáfora delirante. Nesse caso, pode-se dizer que o que se desestabilizou foi a realidade psíquica e é o que volta a se estabilizar. Eis o esquema:

 

 

Esse esquema demonstra que, na psicose, o campo da realidade encontra-se remanejado. Ainda nesse esquema, encontram-se os elementos que circunscrevem o campo da realidade no esquema R3, imIM. E a partir de dois triângulos inversos e homólogos formados por iMm e mMI, segundo Darmon (1994), encontra-se a forma geral do esquema I. Há uma torção de m a i gerando uma hipérbole por causa da falta de significação fálica (Φ0), e outra torção de M a I gerando outra hipérbole por causa da foraclusão do significante Nome-do-Pai (P0). Percebem-se nesse esquema dois abismos: um no Simbólico e outro no Imaginário, que

reenviam para o infinito os quatro parâmetros fundamentais do sujeito m, i, M e I, sendo que este último, o Criado I, acorre ao lugar de P como que lançado pelo vazio, segundo um movimento acelerado sobre uma trajetória infinita. (Darmon, 1994, p. 120)

Observamos que não existe aí a torção no Real, aquela que produziria uma banda de Moebius e que articularia Simbólico e Imaginário. O objeto a não cai. Lacan (1957-1958/1998) escreve que a disposição do campo da realidade (campo R) é uma espécie de ilhota, que representa as condições em que o sujeito tem sua realidade restabelecida, "ligada ao que a torna habitável para ele, mas que também a distorce, ou seja, excêntricos remanejamentos do imaginário, I, e do simbólico, S, que a reduzem ao campo do descompasso entre ambos" (Lacan, 1957-1958/1998, p. 580).

Na direção da estabilização de Schreber, segundo Quinet (2006a), há uma prática transexualista (i) e uma fantasia sem mediação de sua iminente transformação em mulher (m) que irá recompor seu Imaginário. Já no lado simbólico situam M e I, respectivamente o Criador e as criaturas da palavra (uma série de alucinações), lugar do eu Ideal em que figura o vazio da lei. Nesse lugar do simbólico Schreber situa a Ordem do Mundo "da qual ele se considera o garante. Com isto há uma restituição do campo da realidade e uma contenção pela imagem" (p.55).

Em "De uma questão preliminar..." (1957-1958/1998), numa nota de rodapé em que Lacan fala sobre o esquema R, ele nos apresenta o objeto a, objeto que surge oficialmente no Seminário 10, A angústia (1962-1963/2005). Essa invenção lacaniana, o objeto a, oferece mudanças na perspectiva de pensar a estabilização na psicose. Primeiro, porque é ao surgir para o sujeito no campo da realidade que esta se desestabiliza, e, segundo, porque esse objeto permite pensar que há uma invasão de gozo, um excesso de gozo, que se desvela para o sujeito como gozo do Outro.

A estabilização, portanto, pode ser pensada como decorrência do apaziguamento do gozo do Outro e da invasão do objeto a sobre o campo da realidade graças à metáfora delirante, ela "é uma operação que circunscreve, localiza, deposita, separa ou apazigua o gozo, correlativa de uma entrada em algum tipo de discurso, por mais precário que seja" (Alvarenga, 2000, p.18). Esse apaziguamento permite que o sujeito psicótico possa voltar a investir sua libido em objetos do mundo social, bordejando, mesmo que precariamente, algum tipo de discurso, de liame ao social.

Mesmo que a estabilização, todavia, nos ateste o apaziguamento do gozo do Outro, deve-se entendê-la como precária, não absoluta, já que o que se estabiliza pode vir a se desestabilizar. Mesmo assim a estabilização é, para Lacan, em seu primeiro ensino, o critério de cura para a psicose. Se em Schreber a estabilização nos mostrou ter surgido por decorrência do trabalho de reconstrução simbólica realizado por meio da metáfora delirante (a criação do mundo), a sustentação do novo mundo reconstruído não lhe poupou novas recaídas, novos surtos.

A Metáfora em Lacan como Operação/função Atribuída ao Pai

É interessante entender o que é a metáfora antes de se falar da metáfora delirante. A metáfora é uma figura de linguagem que aparece na teoria psicanalítica desde muito cedo, principalmente na lacaniana. Ela tem força explicativa tanto quanto as leis empíricas, o tipo de explicação, contudo, é diferente. Freud percebeu que a metáfora (condensação) poderia auxiliá-lo em suas teorizações do aparelho psíquico, uma vez que esta figura de linguagem permite que os processos mentais, conscientes ou não, sejam representados, e assim Freud o fez para expor sua teoria do inconsciente. "Uma metáfora ricamente elaborada foi desenvolvida de modo a atribuir ao inconsciente uma vida própria, a capacidade de assumir um amplo leque de diferentes disfarces e a pô-lo constantemente em atuação exercendo "pressão" sobre o ego" (Spence, 1992, p.60).

Metáfora quer dizer transporte (Houaiss, 2001), é transferência de ideias, de sentido, ao tomarmos 'uma palavra por outra'. Isso no campo linguístico. Entretanto, Lacan lê a metáfora como uma operação que se instala como função elementar no aparelho psíquico. De modo que a substituição de um significante por outro encontra seu fundamento na metáfora paterna ou Nome-do-Pai, ou seja, na seguinte formulação: O Nome-do-Pai (NP) é a operação que, ao barrar o desejo da mãe (DM), permite a substituição significante.

Se Freud, ao se referir ao mecanismo da condensação, o fez sob a lógica da metáfora, sem, contudo, dispor desse nome, a palavra metáfora se faz presenteno ensino de Lacan. Uma palavra por outra, "eis a fórmula da metáfora e, caso seja você poeta, produzirá, para fazer com ela um jogo, um jato contínuo ou um tecido resplandecente de metáforas" (Lacan, 1957-1958/1998, p. 510). No texto "A instância da letra no inconsciente" (1957/1998), Lacan diz que "a metáfora se coloca no ponto exato em que o sentido se produz no não-senso" (p.512), ou seja, no ponto em que Freud descobriu as formações do inconsciente, entre elas o chiste, o dito espirituoso, esse dito que vem sempre em lugar de algo que não se pode dizer diretamente, pelo transtorno que causaria. Portanto, a metáfora e a metonímia são, em Lacan, correspondentes dos dois princípios do funcionamento mental freudiano, a condensação e o deslocamento.

A Verdichtung, condensação, é a estrutura de superposição dos significantes em que ganha campo a metáfora, e cujo nome, por condensar em si mesmo a Dichtung, indica a conaturalidade desse mecanismo com a poesia, a ponto de envolver a função propriamente tradicional desta.

A Verschiebung ou deslocamento é, mais próxima do termo alemão, o transporte da significação que a metonímia demonstra e que, desde seu aparecimento em Freud, é apresentado como o meio mais adequado do inconsciente para despistar a censura. (Lacan, 1957-1958/1998, p. 515)

A metáfora está diretamente ligada ao conceito de significante, é o efeito da substituição de um significante por outro numa cadeia. Na verdade, ela é uma função do significante, como defende Soler (2007), que vem substituir outro significante recalcado e com isso gerar um efeito inédito de significação. A metáfora não comporta necessariamente toda substituição, mas é na articulação significante que a substituição se faz pautada por alguma similaridade entre a palavra substituta e a palavra substituída, surgindo daí a criação de sentido/significado. Segundo Lacan (1957-1958/1999, pp. 43-44):

A substituição é a articulação, o meio significante, onde se instaura o ato da metáfora. Isso não quer dizer que a substituição seja a metáfora. (...) Dizer que a metáfora produz-se no nível da substituição significa que a substituição é uma possibilidade de articulação do significante, que a metáfora exerce sua função de criação de significado no lugar onde a substituição pode se produzir, mas isso são duas coisas diferentes. Do mesmo modo, a metonímia e a combinação são duas coisas diferentes.

A atribuição da metáfora ao Pai foi um modo inédito de Lacan ler Freud. Nesse momento de seu ensino, portanto, a metáfora paterna foi um modo de configurar o complexo de Édipo freudiano. Lacan ainda não cogitava outros modos de amarração subjetiva fora desse modelo freudiano, ou seja, fora do Pai.

A Metáfora Delirante

Em "De uma questão preliminar..." (1957-1958/1998) a metáfora é posta por Lacan como um princípio de estabilização, que faria o papel de ponto de basta, interrompendo o deslizamento do significado sobre o significante, possibilitando assim que uma significação seja sustentada. Sem esse ponto de basta, acontece o que se vê no surto psicótico, o deslizar constante do significado, uma sucessão de S1, de significantes mestre, sem o advento do S2 (saber) que viesse para dar sentido ao S1.

Colette Soler (2007, p.196) escreve que "a metáfora é justamente o que permite fixar, "reter" a significação". Ela ainda acrescenta que não é qualquer metáfora que, na clínica do sujeito, interessa, mas uma em especial que seja capaz de metaforizar um "significável" especial. "Lacan emprega ocasionalmente o termo "significável" [signifiable], que se distingue do significante e do significado e que designa aquilo que há para expressar" (Soler, 2007, p.196), por exemplo, o que ele designa em "De uma questão preliminar..." (1957-1958/1998) como sendo o que há para expressar; o ser do ente, sua inefável existência.

Quando se fala de metáfora em Lacan, logo vem à mente a metáfora paterna e é justamente essa metáfora que ele distingue como a que dá sustentação ao ser de vivente do sujeito, é essa a metáfora que funciona como ponto de basta. O efeito da metáfora paterna é a separação do sujeito da vacilação própria da relação imaginária com a mãe. "Uma vacilação que faz com que o sujeito possa oscilar entre uma identificação transitiva com a própria mãe e uma identificação com o objeto do desejo da mãe" (Soler, 2007, pp.197-198). A metáfora paterna repercute no nível das identificações imaginárias por introduzir a dialética fálica no Imaginário. A significação do falo é, portanto, evocada no Imaginário por ação da metáfora paterna. Para entender como isso se dá, usa-se a fórmula da metáfora, ou da substituição significante:

 

 

Têm-se os S, que são os significantes, e o x como uma incógnita que representa a significação desconhecida. O s é o significado induzido pela metáfora, que consiste na substituição de S' por S na cadeia significante. A condição do sucesso da metáfora paterna é a eliminação do S', que aqui aparece cortado, riscado.

Diante disso, pode-se construir a metáfora do Nome-do-Pai. Colocando esse significante em substituição ao significante do Desejo da Mãe, surge uma nova significação que dará sentido ao ser do sujeito, a saber: a significação fálica. Essa metáfora é, portanto, uma formalização lacaniana do Édipo, assim:

 

 

Lacan aponta que aí não se trata do pai como personagem real, mas de uma função lógica e que, ao apelo do Nome-do-Pai na psicose, corresponde não à ausência desse pai personagem ou função social, mas à inexistência do significante Nome-do-Pai. Nesse sentido, a psicose pode ser especificada pela falta da metáfora paterna, por não haver essa metáfora que promova a substituição significante, deixando assim o sujeito na condição de objeto do Desejo da Mãe. Por não ter o significante que funcione como ponto de basta (NP) - o que possibilitaria a metaforização do Desejo da Mãe - é que o sujeito se encontra em uma psicose, e, ao ser evocado esse Nome, o sujeito tende a se desestabilizar, ou mesmo entrar em surto, e aí apresentar vários fenômenos. Dentre eles, o delírio.

O campo da realidade oscila quando o objeto a aí aparece, então o sujeito se desestrutura. No caso da psicose, esse objeto não está velado, não há uma fantasia que sustente o campo da realidade e encubra/vele tal objeto. Isso seria para Lacan consequência da foraclusão do Nome-do-Pai. Esse significante é que deveria incidir sobre a regulação do gozo, por isso é que, na psicose, o gozo se presentifica de forma excessiva, não havendo mediação do gozo do Outro por meio do Simbólico. Nesse sentido, a construção de um delírio é uma tentativa de regular o gozo do Outro, de circunscrever, de tratar esse gozo por meio da linguagem, buscando dele cunhar algum sentido. Portanto, pela via do delírio, o psicótico tenta uma articulação possívelde seu gozo ao Outro, recorrendo ao delírio como meio de fazê-la. Mas isso não é uma regra válida para todos, alguns psicóticos não caminham nessa direção.

Na psicose não há, portanto, a suposição de saber ao Outro, há sim uma certeza subjetiva. Sobre essa certeza, Maleval, (1998) extrai das próprias Memórias de Schreber a seguinte citação:

A certeza de meu conhecimento de Deus e das coisas divinas é tão grande e tão inabalável que, basicamente, não me importo de saber o que os outros pensam sobre a verdade ou probabilidade das minhas ideias. Portanto, nunca farei nada (...), para difundir publicamente minha experiência e minhas opiniões, exceto para dar às minhas Memórias uma forma adequada para publicação. (Schreber citado por Maleval, 1998, p. 126, tradução nossa)

Portanto, na fase final de seu delírio, Schreber traz a certeza de que conhece Deus, bem como de sua própria função enquanto mulher de Deus. E essa construção delirante, ponto final de seu delírio, além de lhe oferecer uma maior paz em relação ao gozo do Outro, lhe permite fazer suplência ao Nome-do-Pai foracluído. Isso aparece nitidamente na citação acima em termos de exceção: "... exceto para dar às minhas Memórias uma forma adequada para publicação". Ele manifesta assim sua preocupação com aqueles a quem essas Memórias estariam endereçadas, a esfera pública.

Se, para Lacan, o que está foracluído o estará para sempre (Lacan, 1955-1956/2002), ele, contudo, não deixa de apostar em um tratamento possível para a psicose, uma vez revisto o conceito de cura. Como vimos anteriormente, o principal critério de cura da psicose para Lacan é a estabilização pela via do delírio. E essa via não 'desforclui' o que está foracluído. De modo que a aposta lacaniana na possibilidade de haver uma suplência ao Nome-do-Pai foracluído como tratamento do gozo do Outro é relativa, pois pressupõe alguma forma de investimento libidinal do sujeito que se enderece ao Outro, mesmo que o sujeito psicótico não faça disso um laço/pacto social propriamente dito.

A suplência seria então um remendo próprio (metáfora delirante) colocado sobre essa falha/deficiência elementar (a foraclusão) do Simbólico. Ela é, portanto, forçada pelo delírio como meio de, mesmo sem fazer laço, o sujeito manter alguma forma de endereçamento ao Outro, e sua função seria suprir a localização desse sujeito fora do pacto social. Essa suplência, contudo, não transforma o sujeito em outro, apenas abre a perspectiva para formas outras de convívio social, de modos de ser, de estilo subjetivo. Para tal, a abordagem lacaniana acerca de um tratamento psicanalítico da psicose coloca o psicótico no lugar do trabalhador, o analista no lugar de secretário e o delírio no lugar da produção. E a suplência seria, portanto, efeito de uma metáfora elementar (delirante) construída pelo sujeito de modo singular/próprio e endereçada ao Outro, que vem acompanhada de uma relativa pacificação do gozo do Outro.

O Fenômeno Elementar

Os fenômenos elementares postulados por Clérambault (alucinação, delírio, vivência da inexistência de unidade do corpo próprio e sensações de invasões e de despedaçamento desse corpo) não podem ficar de fora dessa discussão, já que esses são fenômenos característicos da psicose que ajudam no diagnóstico diferencial. Segundo Miller (1995), a presença do delírio caracteriza um tipo específico de fenômeno elementar que, ao lado de outros, tem a função de formulação de uma hipótese diagnóstica de psicose. Os fenômenos elementares são encontrados em sujeitos psicóticos e é através da avaliação da existência desses fenômenos que se fecha um diagnóstico mais preciso, já que é raro um psicótico que não apresentealguns desses fenômenos.

O delírio é, pois, um fenômeno elementar diferenciado dos demais, principalmente no que tange ao tratamento psicanalítico. Ele é uma tentativa própria de inventar/criar algum sentido para as experiências bizarras vividas pelo sujeito psicótico. "Em certo sentido, o fenômeno elementar representa para a psicose o que a formação do inconsciente representa para a neurose" (Miller, 1995, p. 7). O próprio autor defende que ambos, delírio e formação do inconsciente, estão estruturados como uma linguagem (p. 10), mesmo que de modo diferenciado: a formação do inconsciente traz a marca da metáfora paterna (NP) e o delírio, mesmo que dependente da linguagem para a sua construção, não (P0). Segundo Quinet (2006a), se o sujeito neurótico habita a linguagem, o psicótico é habitado por ela. Isso é nítido no fenômeno da alucinação verbal, que bem caracteriza a imposição/invasão do gozo do Outro no corpo e no pensamento do próprio sujeito por meio da voz.

Lacan iniciou sua carreira pela psiquiatria e, em decorrência de seus estudos nesse campo do saber, os fenômenos elementares foram uma de suas primeiras preocupações. Esse conceito foi extraído de modificações feitas por aquele que Lacan antecipa como sendo seu único mestre (1946/1998, p.169) em psiquiatria, Clérambault, no que este extrai de seus antecedentes. Daí Lacan formulou que os fenômenos elementares são fatos de linguagem próprios da psicose. Esses fenômenos não produzem associações, como ocorre nas formações do inconsciente (atos falhos, chistes, sonhos, sintomas e transferência) - formações essas em que o simbolismo, ou seja, o sentido (cifrado) decorrente da ação do Nome-do-Pai, se destaca. E se não houve a cifração promovida pela metáfora paterna (NP), não será possível qualquer interpretação/decifração dos ditos fenômenos elementares, por isso as manifestações psicóticas não são interpretadas pelo psicanalista, e sim através do delírio.

Miller (1995) diz que o fenômeno elementar representa um x para o sujeito, representa algo que não se sabe muito bem o que é. É como um significante Um, S1, esse significante sozinho é elementar por não se saber o que quer dizer, pois somente quando aparece o S2 que a significação do S1 poderá surgir retroativamente. O fenômeno elementar nos coloca, portanto, na presença solitária do S1, o que impede o desdobramento da significação. Em contrapartida, o delírio equivale ao S2. Assim, o sentido irá ocorrer a partir do delírio e colocando-se o delírio no lugar do saber, S2, o qie "mostra-nos que todo saber é um delírio e o delírio é um saber" (Miller, 1995, p.19). Desta feita, pode-se extrair que aquilo que o sujeito produz a partir de suas construções delirantes é a invenção de um saber. O psicótico, portanto, não recua "diante da elaboração de saber com o elemento de delírio que sempre há nessa invenção" (Miller, 1995, p.19). Se os demais fenômenos elementares, portanto, não estão articulados, já o delírio é um saber articulado, subentende-se, com estrutura de linguagem. É preciso recorrer à linguagem para construí-lo e para manifestá-lo.

O delírio é, portanto, uma articulação, uma produção de saber por meio da qual o sujeito vai tentar mobilizar significações para construir uma nova realidade. Há também aí um esforço para localizar o gozo do Outro, gozo esse que se impõe pelo fato de o sujeito não dispor, devido ao fracasso da metáfora paterna, de recursos sustentados na significação/ resposta fálica.

É o delírio que faz remendo ao traumático insuportável, ou seja, é o que explica a ausência de lei, de simbolização mediante a foraclusão do Nome-do-Pai que tende a retornar no real, fazendo o corpo aparecer no campo da realidade, nos fenômenos de automatismo mental. (Sternick, 2009, pp. 265-276)

O sujeito, antes ou mesmo no começo do delírio, está imerso no gozo do Outro e é atacado por ele de todos os lados. O delírio é uma resposta à invasão do real e, nessa tentativa de localizar o gozo, Jean-Claude Maleval (2002) sustenta uma lógica quaternária. Para ele existe uma evolução específica do delírio em direção à estabilização, uma lógica evolutiva que se encontra na pena de Lacan, porém ele não deixa isso de maneira sistematizada, tal como se encontra nos textos de Maleval. Por isso, optou-se por usar as referências do livro La forclusión del Nombre del Padre (2002) ao invés de Lógica del delirio (1998), porque aí as formulações lacanianas são apresentadas de forma sistematizada.

Bem, o referido autor aponta que, em Lacan, o primeiro estágio encontra-se representado no esquema I, é o P0, é o momento do desencadeamento da psicose a partir de uma ruptura na cadeia significante. Esse período tem como principal característica a deslocalização do gozo e ainda uma inquietação, uma perplexidade angustiante. Esse estágio é também chamado de incubação e revela uma carência paterna fundamental. Está fortemente relacionado aos transtornos hipocondríacos observados na primeira internação de Schreber. O segundo momento, marcado como P1, tem como característica principal as tentativas de significantização do gozo, trata-se de uma mobilização do significante com a finalidade de remediar a situação insuportável, explicar os fenômenos que lhe afligem. Maleval diz que o sujeito, para conseguir essa explicação, recorre com frequência a uma função paterna, "capaz de acalmar o gozo deslocalizado" (Maleval, 2002, pp. 282-283, tradução nossa). Geralmente o sujeito se apresenta em forma paranoide, tal como Schreber apresenta em seu delírio de que seu médico, o Prof. Flechsig estaria tramando um complô contra ele. O delírio, nesse ponto, não consegue fazer a sutura. Sua primeira resposta delirante não reduz a angústia de Schreber. É preciso que um compromisso razoável seja elaborado.

No P2, terceira fase, trata-se de identificar o gozo do Outro, de transferir o gozo para um significante, o que possibilita ao sujeito recuperar um ponto de apoio. O sujeito se identifica, se nomeia, assim como Schreber, ao aceitar sua transformação em a mulher de Deus e passa a cultuar a feminilidade. A esse fenômeno Lacan nomeia de'empuxo à mulher'. Esse ponto de apoio se torna o organizador do que está acontecendo ao sujeito. Os perseguidores ainda não desaparecem nessa fase, contudo, agora eles estão identificados, localizados. O delírio está organizado agora em torno de uma significação fixa, daí a característica da certeza irremovível nessa fase. Essa fase é alcançada por poucos psicóticos na sistematização de seu delírio.

No quarto estágio do delírio, P3, o psicótico consente o gozo do Outro, já não tem mais tantas preocupações com os perseguidores e se encontra em acordo com sua nova realidade construída a partir da certeza delirante de que um conhecimento supremo foi adquirido por sua experiência. Esse saber é frequentemente "entregue" por uma figura paterna onipotente. O desenvolvimento de temas megalomaníacos está intimamente ligado ao acesso a esse conhecimento supremo. Schreber será fecundado por raios divinos e, como mulher escolhida por Deus, dará a luz a uma nova raça, construção que consente com seu devaneio inicial de que seria bom ser uma mulher na hora do ato sexual.

Vê-se que o que ocorre no caso de Schreber é a criação de uma metáfora delirante, uma metáfora que auxilia o sujeito na suplência à falta da metáfora paterna, a suprir a falta de inscrição do significante Nome-do-Pai, a tratar/localizar o gozo do Outro. O trabalho do delírio culmina em uma pseudometáfora, como propõe Colette Soler (2007), já que a suplência pela metáfora delirante viria suprir a falta da metáfora paterna, que não ocorreu. O que está em jogo é uma tentativa de cura pela criação de uma significação própria, que não é uma substituição significante ordenada pela metáfora paterna, e sim pela metáfora delirante que, ao funcionar como restauradora da relação entre o significante e significado e do Imaginário rompido, ganha o estatuto de metáfora. E esse novo modo, na verdade modo próprio de relacionar significado e significante, tem como resultado uma relativa pacificação do gozo do Outro graças à construção/estabilização do delírio.

A metáfora delirante não deixa de ser um delírio, não um delírio qualquer, mas um delírio que promove algum significado sobre a existência do sujeito. Ela é um segundo tempo do delírio, é um delírio menos perturbador que o do início do surto. Ela organiza o campo da linguagem, devolvendo a função da palavra, funcionando como um terceiro termo entre o sujeito psicótico e o Outro, função que caberia ao Nome-do-Pai, por isso o delírio normalmente é confidenciado a alguém, quiçá ao psicanalista.

Portanto, nem todo delírio assume a forma sistematizada da metáfora delirante. O delírio que não é organizado traz mais sofrimento para o sujeito: quanto mais desorganização, mais sofrimento, pois, "em relação à cadeia do delírio, se assim se pode dizer, o sujeito parece ao mesmo tempo agente e paciente. O delírio é tanto mais sofrido por ele quanto mais ele não o organiza" (Lacan, 1955-1956/2002, p. 253). A metáfora delirante é o resultado dessa sistematização subjetiva. Ela evita que vivências alucinatórias coloquem o sujeito na posição absoluta de objeto do gozo do Outro, permitindo-lhe estabelecer uma explicação elementar para esse gozo. Quando ocorre a metáfora delirante, o sujeito se referencia na linguagem, usando-a tanto para nomear o gozo do Outro como para construir o saber delirante.

O que se vê nesse percurso feito até aqui é que o delírio não é uma doença, e sim uma solução inventada pelo sujeito psicótico para tentar suturar sua realidade quebrada. A metáfora delirante abre a possibilidade de um trabalho de simbolização em que o significante adquire um valor de inscrição primária, criando um ponto de basta no deslizamento do significado e fundando uma referência por meio da qual o sujeito se dirige ao Outro. Trata-se de uma operação de linguagem.

Nesse ponto de estabilização da psicose - mesmo que precária pelo fato de poder se desestabilizar diante de determinada situação social - há a invenção de um saber delirante, que é uma nova significação que vem como S2 para dar sentido ao S1, para designar o ser do sujeito. O delírio de Schreber é uma invenção, uma vez que ao se nomear mulher de Deus, ele faz algo com o Real de suas alucinações, com o Real do gozo do Outro. O delírio é, portanto, um modo de fazer com o Real, pois através dele o sujeito tem a chance de remendar o traumático que lhe é insuportável.

Quando Schreber inventa em seu delírio a mulher que não existe, ou seja, a mulher de Deus, aí ocorre uma transformação do gozo, há um apaziguamento do gozo do Outro. Esse trabalho delirante contribui ainda para a restauração do Imaginário. Essa substituição que a mulhre de Deus opera como suplência ao Nome-do-Pai foracluído será entendida posteriormente no ensino de Lacan, (1975-1976/2007) como sinthoma, quarto elo que amarraria os registros Real, Simbólico e Imaginário.

Dessa maneira, o que faltava ao sujeito foi inventado, ou seja, uma substituição ao Nome-do-Pai foracluído se instaura pela via metafórica delirante, funcionando como ponto de basta. Pode-se dizer que ao se inventar como a mulher de Deus, Schreber traz, para suprir o Imaginário rompido, um quarto elo. Sendo assim, a metáfora delirante é uma maneira de inventar o que faltava, com toda a singularidade do sujeito. Numa particular relação com sua história de vida, Schreber dá uma significação à sua marca inexistente, o Nome-do-Pai, principalmente ao inventar para si mesmo um pai (Deus) e um corpo (mulher de Deus) próprios.

Atualmente, existem novas tentativas de tratamento da psicose que não centram suas forças apenas nos psicofármacos, respeitando a singularidade e com isso apresentam bons resultados. É o caso da inserção da arte. Contudo o que se pode esperar do sujeito enquanto solução para lidar com seu sofrimento são coisas das mais diversas ordens. Uma questão relevante aqui, tal como demonstrado inicialmente, é a relação do ser falante com seu corpo.

Em Schreber aparece um corpo inventado em seu delírio que apazigua o gozo do Outro. Ele sofre em suas alucinações diversas transformações em seu corpo (as evirações, as emasculações), até que seu delírio lhe restitua a unidade imaginária do corpo como corpo de mulher. De modo que há de se destacar, nessa invenção de um corpo sustentado na metáfora delirante, o caráter assintótico de a mulher de Deus, caráter esse formulado no esquema I (Lacan, 1957-1958/1998, p. 578). Schreber inventa um corpo ao consentir ('deixar cair') perante o Criador sua nova condição (como 'imagem da criatura onde se sustenta o criado') de mulher de Deus para justificar assim porque o Outro quer de seu corpo gozar. Esse caráter assintótico, portanto, contribui decisivamente para a estabilização de Schreber, possibilitando-lhe servir-se desse ponto fixo como núcleo elementar para a recomposição do Imaginário rompido. A partir daí tudo, toda a sua nova realidade passa a girar ao redor dessa assíntota: mulher de Deus.

Não se observam, porém, transmutações no corpo apenas nos delírios e alucinações de um psicótico. Existem as incisões nos corpos, as tatuagens, os piercings, as cirurgias de mudança de sexo, de transformação do corpo. Às vezes, o psicótico se automutila para fazer do corpo uma localização de seu gozo. O que nos faz pensar que o corpo entra em cena em alguns psicóticos quando o delírio por si só se torna insuficiente enquanto metafórico e numa tentativa de enlaçamento do imaginário, que flutua no delírio, o corpo entra como possibilidade de amarração dos três registros (Sternick, 2009, p. 267).

Essa autora nos assinala que a automutilação na psicose seria uma tentativa de localizar o gozo do Outro no corpo e, nos casos em que o delírio esteja presente, de amarrar Real, Simbólico e Imaginário. No último caso, como ocorreu com Schreber, o corpo faria suplência, fazendo as vezes do quarto elo. Schreber não precisou recorrer à automutilação, uma vez que suas alucinações e delírios (que evolui do hipocondríaco ao místico) conseguiram produzir as transformações necessárias para que ocorresse a estabilização.

Se o corpo está enraizado no Imaginário, ele, contudo, não deve ser pensado somente como objeto real (o corpo carne), mas ainda como imagem corporal i (a). A imagem do corpo próprio é, justo por isso, o reflexo do eu (a). O corpo é falado, simbolizado e imaginarizado. Ele é composto a partirdo Imaginário, sustentado por meio de construções verbais (Simbólico) e ainda lugar daquilo do que se goza (lugar de onde as pulsões partem e em que se satisfazem). Dito de outra maneira, o corpo é a imagem que se vê refletida no espelho e que ganha seus limites à medida que os pais vão nomeando as partes do corpo para os filhos, valorizando umas mais e outras menos.

Na psicose, a relação do sujeito com a construção de seu eu é um tanto quanto problemática. O eu na psicose não está enraizado, está à flor da pele, funcionando como um litoral, como limite entre o mundo interno e o mundo social. E mesmo não sendo o propósito deste artigo diferenciar os tipos de psicose segundo a nosologia freudiana (esquizofrenia, paranoia, melancolia e hipocondria), destacamos aqui a vivência do corpo despedaçado, tão comum na esquizofrenia, inclusive a de Schreber.

Na esquizofrenia não há constituição do eu e do corpo como unificados, o corpo na esquizofrenia é um corpo despedaçado. Talvez por isso Freud a diferencie da paranoia: enquanto a primeira caracterizaria a regressão da libido ao autoerotismo (daí sua maior propensão aos acontecimentos corporais), a segunda seria marcada pela regressão ao narcisismo (daí sua maior propensão às construções delirantes).

Há na esquizofrenia uma espécie de problematização em relação à constituição do eu, da imagem corporal, daí as pulsões, que circulam pelo corpo, ficarem à deriva, sem ancoradouro simbólico. Portanto, a tentativa de inventar um corpo foi um modo próprio de circunscrever um corpo que Schreber possa fazer seu (tomar posse), um corpo que, com o seu consentimento, possa ser gozado pelo Outro, apaziguando-o.

Na esquizofrenia, as pulsões ficam à deriva, sem rumo, sem direção, mas não param de navegar. "Isso se dá em função da problematização do sujeito psicótico mediante a construção do eu" (Sternick, 2009, p.270). Diante dos impasses da construção desse eu - que é da ordem do Imaginário, que dá corpo ao Imaginário, uma vez que o corpo é o suporte deste - as pulsões ficam sem rumo, à deriva, e assim o sujeito fica exposto à vivência do corpo despedaçado.

Portanto, em Schreber, o delírio que o apaziguafrente ao gozo do Outro é o de que ele é a mulher de Deus. Se no início e no meio de sua psicose ele experimenta alucinatoriamente mudanças em seu corpo, só lhe resta, ao final do delírio, entregá-lo a Deus, mas segundo as justificativas apresentadas pelas construções delirantes (Deus o escolheu para gerar uma nova raça superior). Seu delírio foi, portanto, uma tentativa de dar um porto para as pulsões que estariam à deriva. Pode-se entender ainda como tentativa de fazer existir um corpo que o sujeito vivencia como despedaçado. Nesse sentido, inventar um corpo é, para o psicótico, uma tentativa de cura, de estabilização dos efeitos da foraclusão do Nome-do-Pai.

Entretanto, a construção da metáfora delirante exige do psicanalista, em contrapartida, uma escuta diferenciada, não sustentada no gozo fálico, ou seja, fora do senso comum e dos símbolos e metáforas-padrão. É o que nos esclarece Castro (2012) nesses dois trechos:

O tratamento psicanalítico do psicótico exige, portanto, uma escuta a mais desprovida possível dessa pretensão de tudo entender, de tudo explicar, ou seja, uma escuta a mais desligada possível do gozo do sentido. Certamente foi esse espírito de escuta - que dá ao fora do comum/sentido um lugar na estrutura subjetiva - que levou Lacan a propor, como um refrão que atravessa praticamente todo o Seminário dedicado às psicoses (Lacan, 1955-1956/1988), a renúncia do psicanalista a toda e qualquer tentativa de compreender o que o psicótico diz. 'Partir de um mal-entendido fundamental' é a recomendação lacaniana para o tipo de escuta que a psicose exige. Não compreender o psicótico é, ainda e antes de tudo, uma coordenada clínica que, indiretamente, exige do sujeito um esforço para se fazer entendido, um esforço de trabalho em forma de fala articulada, delirante.Ao psicanalista, nessa perspectiva de um tratamento possível da psicose, cabe muito bem a posição de ser o 'secretário do alienado' na construção delirante, do que a posição de agente de cura. Subsidiar o delírio é, pois, a função elementar do psicanalista na condução do tratamento da psicose. Quem na verdade deveria ser, segundo Lacan, tomado como agente de cura é o delírio - e não o psicanalista. Cabe ao psicanalista, todavia, dar o devido suporte transferencial à recepção do delírio, atinando-se para seus detalhes, quais sejam, seus antecedentes (a ocorrência do primeiro surto, momento em que o imaginário se desata dos outros dois registros, momento esse, por conseguinte, de desamarração subjetiva), sua instalação, sua evolução e sua estabilização. (pp. 155-156)

De modo que ser 'secretário do alienado' exige do psicanalista que escuta o sujeito psicótico um descolamento da norma fálica e das padronizações sociais, com a consequente valorização de suas produções subjetivas, principalmente as delirantes. Se Schreber não dispôs de uma escuta que o auxiliasse na construção delirante, nem por isso ele deixou de fazer uso de um recurso cultural para se fazer ouvido: o texto escrito de suas Memórias. E ao escrevê-las na solidão do manicômio, ele nos dá o testemunho de um outro mundo que lhe permitiu tanto construir um saber que fizesse existir um Pai inexistente (Deus) como também um corpo (mulher de Deus) no lugar da vivência do corpo despedaçado.

Essas duas invenções de Schreber nos fazem concluir que Pai e Corpo são termos que, independente da estrutura clínica, se articulam na formação do sujeito. E o inusitado de Schreber foi tê-los feito existir a partir da inexistência ou vacuidade constitutiva do Nome-do-Pai, ou seja, a partir de um lugar em que não havia suporte simbólico para tal. Assim sendo, o seu delírio, do início ao fim, foi um meio próprio inventado, não sem angústia, de fazê-los existir fora da significação fálica.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Carlos Eduardo Rodrigues
Email: kadurz@yahoo.com.br

Júlio Eduardo de Castro
Email: julioecastro@mgconecta.com.br

Recebido em: 23/06/2015
Revisado em: 12/06/2016
Aceito em: 25/07/2016

 

 

1 Em seguida será feita uma breve apresentação do caso Schreber, para ilustrar e possibilitar a discussão que nos interessa.
2 Esse histórico foi extraído de um texto que se encontra no início da edição brasileira (1984) do livro de Schreber, Memórias de um doente dos nervos (1905/1984). Texto intitulado: Da loucura de prestígio ao prestígio da loucura (pp.7-19), por Marilene Carone.
3 Compare. Esquema R (Lacan, [1957-1958] 1998, p. 559).

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