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Revista Subjetividades

Print version ISSN 2359-0769On-line version ISSN 2359-0777

Rev. Subj. vol.16 no.3 Fortaleza Dec. 2016

http://dx.doi.org/10.5020/23590777.16.3.109-120 

RELATOS DE PESQUISA

 

Declínio da autoridade e seus eeitos no campo escolar: uma perspectiva psicanalítica

 

Decline of authority and its effects on the school field: a psychoanalytic perspective

 

El declive de la autoridad y sus efectos en el campo escolar: una perspectiva psicoanalítica

 

Déclin de l'autorité et son effet sur le champ scolaire: une perspective psychanalytique

 

 

Maria Gláucia Pires Calzavara (Lattes); Bianca Ferreira Rodrigues (Lattes); Samira Paula Carvalho Pontes (Lattes); Luiz Diego Sacramento do Carmo (Lattes); Maria Luiza Guimarães de Pádua (Lattes)

Universidade Federal de São João Del Rei

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Buscamos, neste artigo, investigar como a escola vem sofrendo os efeitos da contemporaneidade no que se refere ao declínio das figuras de autoridade. Esta investigação se deu por meio de entrevistas semiestruturadas, realizadas com professores que lecionam nas séries do ensino fundamental I de uma escola do interior de Minas Gerais. As principais questões colocadas pelos professores foram as dificuldades em assumir o papel de autoridade, o currículo escolar defasado, a necessidade de um professor apoio/recuperador, a função apaziguadora do diagnóstico do aluno "problema" e a participação das famílias no processo educativo. Ao considerarmos tais questões pela perspectiva psicanalítica, o relato de professores que se sentem desautorizados evidenciao não saber fazer diante do mal-estar da atualidade, revelando, assim, a posição daquele que não se inscreve e poderá não se inscrever frente à inconsistência da autoridade. Sabemos que no campo psicanalítico transmite-se um saber fazer frente ao que não se sabe, ao que escapa ao sujeito. Desse modo, a proposta de interlocução da psicanálise e da educação não se dá pela via da restauração da autoridade pelo autoritarismo, muito próprio à educação tradicional, mas pelo exercício de uma função que visa preservar a hiância própria ao impossível do campo da educação.

Palavras-chave: psicanálise; escola; contemporaneidade.


ABSTRACT

In this article, we sought to investigate how the school has been suffering the effects of contemporaneity with regard to the decline of authority figures. This research was done through semi-structured interviews, carried out with teachers who work in the elementary school grades of a school in the interior of Minas Gerais. The main questions posed by the teachers were the difficulties in assuming the role of authority, the lagged school curriculum, the need for a support/regenerator teacher, the calming function of the diagnosis of the problem student and the families' participation in the educational process. When we consider these questions from a psychoanalytic perspective, the report of teachers who feel they are unauthorized shows that they do not know how to deal with the current malaise, thus revealing the position of the one who does not register and may not register with the inconsistency of authority. We know that in the psychoanalytic field there is transmitted a know-how to deal with what is not known, what escapes to the subject. Thus, the proposal of dialogue between psychoanalysis and education does not come about through the restoration of authority by authoritarianism, which is very much a part of traditional education, but by the exercise of a function that seeks to preserve the self-hiatus to the impossible in the field of education.

Keywords: psychoanalysis; school; Contemporaneity.


RESUMEN

Buscamos en este trabajo investigar cómo la escuela está sufriendo los efectos de la contemporaneidad en lo que se refiere al declive de las figuras de autoridad. Esta investigación ocurrió por entrevistas semiestructuradas, realizadas con profesores que imparten en las series del la enseñanza fundamental I de una escuela del interior de Minas Gerais. Las principales cuestiones puestas por los profesores fueron las dificultades en tomar el papel de autoridad, el currículo escolar desfasado, la necesidad de un profesor apoyo/recuperador, la función pacificadora del diagnóstico del alumno "problema" y la participación de las familias en el proceso educativo. Al considerar tales cuestiones por la perspectiva psicoanalítica, el informe de profesores que se sienten desautorizados evidencia el no saber hacer ante el malestar de la actualidad, revelando la posición de aquel que no se inscribe y podrá no inscribirse ante la incompatibilidad de la autoridad. Sabemos que en el campo psicoanalítico se transmite un saber hacer a lo que no se sabe, a lo que huye al sujeto. De este modo, la propuesta de interlocución del psicoanálisis y de la educación no ocurre por medio de la restauración de la autoridad por el autoritarismo, muy común a la educación tradicional, sino por el ejercicio de una función que pretende preservar la hiancia propia al imposible del campo de la educación.

Palabras clave: psicoanálisis; escuela; contemporaneidad.


RÉSUMÉ

Dans cet article, nous examinons comment l'école subit les effets de la contemporanéité en ce qui concerne le déclin des figures d'autorité. Cette recherche s'est déroulée par entrevues semi-structurées, menées avec des professeurs qui enseignent chez l'école primaire, au état brésilien de Minas Gerais. Les principales questions identifiées par les professeurs ont été les difficultés à assumer le rôle d'autorité, les programmes scolaires obsolètes, la nécessité d'un professeur-soutien, la fonction apaisante du diagnostic de «l'élève-problème» et la participation des familles dans le processus éducatif. Lorsque nous considérons ces questions par la perspective psychanalytique, le rapport des professeurs qui se sentent impuissant preuve le ne pas savoir-faire devant la malaise de l'actualité, ce que révèle la position de quelqu'un qui ne s'inscrit pas et qui, pourra ne pas s'isncrire face à l'insconstistance de l'autorité. Nous savons que dans le domaine psychanalytique on transmet un savoir-faire face à ce qu'on ne sait pas, à ce que s'échappe au sujet. Ainsi, la proposition d'un dialogue de la psychanalyse et de l'éducation n'est pas faite au moyen de la restauration de l'autorité par l'autoritarisme, propre de l'éducation traditionnelle, mais par l'exercice d'une fonction que vise à préserver le hiatus propre de l'impossible dans le domaine de l'éducation.

Mots-clés: psychanalyse; école; contemporanéité.


 

 

Partimos de uma pesquisa cujo objetivo se dirigiu para articular as questões da clínica e da escola por meio da possibilidade de transmissão da psicanálise no campo escolar. Na atualidade, verificamos uma série de dificuldades nos processos de subjetivação dos sujeitos no âmbito escolar, o que nos levou a pensar em como a psicanálise pode contribuir para esse campo.

Quando falamos da interface entre psicanálise e educação, estamos às voltas com o encontro de dois discursos, que, de antemão, parecem pertencer a polos opostos: de um lado, o discurso educacional, operando por meio do ideal de normatização e padronização; e, de outro, o discurso psicanalítico, que sustenta a singularidade do sujeito e seus meios particulares de se haver com o seu desejo e com o Outro. No entanto, trabalhamos com a aposta da possibilidade de uma transmissão da psicanálise no campo escolar. Apostar nessa transmissibilidade não implica uma aderência ou substituição do discurso educacional; significa, antes, buscar operar a partir dos furos que esse discurso supõe, "perturbar a defesa" (Miller, 2003) e apontar a possibilidade de emergência do novo.

Sendo assim, o foco deste estudo foi revelar, mediante a noção de transmissão em psicanálise, a possibilidade dela promover uma interface com a educação e permitir ao campo escolar criar espaços para escutar as dificuldades nele presentes. Além do mais, por meio da escuta dos professores sobre o mal-estar relativo à sua prática e às dificuldades apresentadas pelas crianças, buscamos oferecer ao campo escolar uma contribuição para o ofício do professor. Ao possibilitar que o saber psicanalítico circule nesse meio, acreditamos que seja possível uma prática que leve em conta a particularidade do aluno e as demandas do professor frente às exigências do espaço escolar.

Para podermos investigar a possibilidade dessa interlocução, foram de fundamental contribuição as entrevistas realizadas com professoras de uma escola do interior de Minas Gerais, que lecionam nas séries do Ensino Fundamental I. As entrevistas foram realizadas nas dependências da escola, mas de maneira individual e confidencial, para que as professoras não se sentissem coagidas a se posicionarem a partir do institucionalmente prescrito. Foram entrevistadas dez professoras, que concordaram em participar da pesquisa de forma livre e esclarecida. Todas responderam, em uma entrevista aberta com duração aproximada de uma hora e meia, como percebiam sua atuação no meio escolar, como lidavam com essa prática e como resolviam as questões concernentes ao comportamento das crianças. Além do mais, foram interrogadas, ao final dessas entrevistas, sobre o que esperam como colaboração da psicanálise para sua prática. O que se revelou claramente no discurso dessas professoras foi a presença de um mal-estar frente a um não saber fazer com sua prática. Nesse sentido, a contemporaneidade traz novas questões no tocante a esse não saber.

 

Contemporaneidade e a Descrença Nas Figuras De Autoridade

Assistimos, na época atual, a um declínio dos grandes ideais e referenciais que serviam de balizas para o direcionamento do sujeito no laço social.A descrença nas figuras de autoridade tradicionalmente ocupadas por pais, professores e líderes se coloca como uma característica presente do contemporâneo.

No campo psicanalítico, há muitas discussões a respeito do declínio da função paterna na sociedade. As discussões referem-se à queda da instância interditora, representada pelo Nome-do-Pai, que asseguraria o estatuto do sujeito desejante, dando lugar a uma época marcada pela fluidez e pelo imperativo ao gozo. O Nome-do-Pai, significativo conceito da teoria lacaniana, está no alvo dessas discussões, que contestam o alcance de sua validade na contemporaneidade. Lustoza, Cardoso e Calazans (2014) apontam que há:

Um declínio no estatuto da autoridade hoje em dia, levando a uma queda dos grandes códigos de conduta que organizavam o mundo social. Como diz Zygmunt Bauman (2007), estamos na era da modernidade líquida, em que o sujeito é afetado por uma labilidade e uma fragilidade inéditas. Nesse mundo líquido, o pai tornou-se uma figura no mínimo desvalorizada, e suspeita-se que essa decadência acarrete um prejuízo à transmissão do Nome-do-Pai. (p. 558)

No primeiro ensino de Lacan, o Nome-do-Pai era justamente o operador que, a partir de sua ausência ou presença, demarcaria a diferenciação das estruturas. Já na chamada segunda clínica, assentadas as coordenadas da clínica borromiana, Lacan formaliza um movimento de pluralização do Nome-do-Pai, e a relação entre este e o sinthoma (Lacan, 1975/2007). No lugar do Nome-do-Pai, qualquer sinthoma poderia fazer a função de amarrar o real, o simbólico e o imaginário, possibilitando a sustentação da realidade psíquica. Esse movimento teórico de pluralização do Nome-do-Pai atesta para a modificação de seu lugar de exceção em relação à primeira clínica.Sem nos aprofundarmos muito no mérito dessa discussão, o que não podemos deixar de evidenciar são os impasses trazidos pelo contemporâneo marcado pelo declínio da função paterna no campo escolar.

A clínica psicanalítica não é alheia aos efeitos da contemporaneidade, haja vista as discussões acerca dos ditos "novos sintomas", como toxicomania, bulimia e anorexia. Assim como a clínica, o campo educacional também passa por ressonâncias diante da fragilidade dos ideais que antes orientavam nossa ação em sociedade. Acreditamos que a psicanálise tenha algo a dizer ao mal-estar característico de nossa época atual.

Os efeitos de uma época que incita a busca ao gozo desenfreado quando estamos às voltas com a esfera educacional é objeto de investigação e reflexão para os psicanalistas. Cohen (2004) questiona o que mudou no campo educacional a partir desses novos paradigmas do contemporâneo. Para essa autora, o espaço escolar é coagido a responder às demandas oriundas do que são chamados os três grandes Outros da educação - a família, a escola e o Estado capitalista - e localiza, no encontro com essas três instâncias, o engodo que pode levar ao fracasso escolar.

No que concerne à questão do sujeito, o discurso que fomenta a busca ao gozo desenfreado coloca em relevo um sujeito sem referências. Isso porque os referenciais representados pela tradição, que permitiam ao sujeito uma chave de leitura do mundo e forneciam-lhe uma orientação, claudicam. Como efeito, o sujeito, nesse momento, se encontra diante de várias bússolas que buscam orientar suas escolhas, sendo que nenhuma delas consegue provar sua primazia sobre as outras. Torna-se um sujeito desbussolado (Forbes, 2005). Rubim e Besset (2007) acentuam que "todos parecem concordar que não se fazem mais jovens/pais/professores como antigamente" (p. 40). No entanto, os autores destacam que, deixando de lado a dimensão saudosista apresentada nessa frase, o que se pode verificar são as situações dentro do espaço escolar que deixam claro que estamos em uma "época em que os indivíduos parecem estar à deriva" (Rubim & Besset, 2007, p.40).

Diante dessas considerações, uma questão se coloca: o que a fragilidade da figura de autoridade na atualidade impõe ao campo escolar? Lustoza et al. (2014) traz, como exemplo interessante, uma passagem do filme Entre os muros da escola, de Laurent Cantet, que ilustra adequadamente o nosso objeto de investigação - a escola no contemporâneo:

Assistimos ali, reproduzido de forma microscópica, um problema que afeta não apenas a escola, mas, em larga escala, toda a sociedade. O professor parece ser tratado o tempo inteiro por seus alunos como uma fraude, alguém que não tem a menor legitimidade para ocupar a posição que ocupa e cuja palavra não exerce mais qualquer eficácia. Os estudantes contestam qualquer pretensão à assimetria de lugares: todos são iguais, não há por que obedecer a algo que não se compreende, pois a obediência por pura transferência é recusada. O filme torna-se um diagnóstico dos nossos tempos na medida em que, ao retratar a dificuldade pessoal daquele professor específico, o diretor atinge uma verdade geral, pois, hoje, qualquer um que busque reivindicar para si o lugar da exceção é violentamente rejeitado como um blefador patético, que oculta sua impotência sob o disfarce da Lei. (Lustoza et al., 2014, p. 203)

A falência da autoridade, como relatada no exemplo do filme citado, leva-nos a colocar em relevo a tese de Miller (2005) do Outro que não existe, o Outro que não se apresenta mais sob a aparência de consistência, revelando sua incompletude. Essa tese descortina uma descrença generalizada na possibilidade de que um pequeno outro qualquer, como pais e professores, mereça ser inscrito no lugar do Outro (Lustoza et al., 2014). Essa passagem anterior parece revelar a posição em que se encontra o professor na atualidade. Diante dessas considerações, buscamos investigar, por meio de entrevistas, como isso poderia se revelar na fala das professoras. Mediada pelo saber psicanalítico, tal escuta nos foi esclarecedora e permitiu enriquecer a discussão sobre o tema.

 

O Encontro da Escola com o Contemporâneo: A fala Das Professoras

A partir de uma escuta pontual das professoras, pudemos verificar alguns efeitos do declínio da autoridade no campo educacional. Exporemos, a seguir, os furos, as vacilações e os significantes que se repetiram no discurso das professoras, tentando acentuar o que se destacou nesses relatos.

Em uma escuta inicial mais abrangente, a queixa era algo que se evidenciava. A impossibilidade de realização do trabalho em sala de aula, a falta de reconhecimento dele e a falta de suporte dentro e fora da escola foram pontos que revelaram um mal-estar referente a um não saber fazer com essa prática. O que ficou proeminente também é que a falência da autoridade do professor parece acentuar esse mal-estar, causando desafios cada vez maiores ao seu oficio e que, apesar das tentativas, terminam por ficar incompreendidos. Nessa perspectiva, os professores demandam constantemente apoio, um saber especializado que dê conta daquilo que escapa ao saber da educação.

Alguns aspectos fundamentais presentes nas demandas das professoras puderam ser identificados. Destacamos a queixa em relação à questão curricular, ao trabalho do professor apoio, à função apaziguadora que o diagnóstico psicológico/médico ocupa na relação com as dificuldades apresentadas pelas crianças, e, por fim, o espaço destinado à família na fala das professoras.

A Questão Curricular

Levando em consideração que o processo educativo é fortemente marcado pela interação dialógica entre as variáveis pedagógicas e sociais, faz-se necessário que sua análise também perpasse por esse contexto. Segundo Fernandes e Freitas (2008), há um forte discurso em defesa de uma escola democrática que humanize e assegure o direito à aprendizagem; uma escola que enxergue o estudante em seu desenvolvimento biopsicossocial e que contemple seus interesses, necessidades, potencialidades, conhecimentos e cultura.

Uma vez que a escola se constitui como um espaço educativo onde é ampliada a aprendizagem, é colocada em pauta a proposta de discussão sobre a concepção curricular. Torna-se fundamental, com esta discussão, proporcionarmos aos envolvidos no campo educacional questionamentos, com o intuito de buscar novas possibilidades de pensarmos esse currículo: Para que serve? A quem se destina? Como se constrói? Como se implementa?

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) prevê os fundamentos, a estrutura e a normatização do sistema educacional brasileiro com base nos princípios presentes na Constituição Federal. A primeira LDB foi criada em 1961, seguida por uma versão em 1971, que vigorou até a promulgação da mais recente, em 1996 (Cerqueira, Cerqueira, Souza, & Mendes, 2008). Em linhas gerais, de acordo com os referidos autores, a responsabilidade pela formação e sistematização do conhecimento se dá no âmbito educacional, sendo sujeita às determinações do poder público, conforme prevê a constituição nacional. Nesse sentido, cada redação jurídica referente à LDB atendeu a essa concepção, e assim se estabeleceu a reestruturação do sistema educacional ao longo do tempo.

O que nos interessa, sobremaneira, é como esse currículo é trabalhado nessas escolas, destacando-se o ensino fundamental, pois as entrevistas realizadas contemplaram apenas tal modalidade. Contudo, para que possamos compreender melhor seu funcionamento, é de suma importância que nos voltemos para as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN). Tais diretrizes são entendidas pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) como linhas gerais de ação e como proposições de caminhos abertos à tradução em diferentes programas de ensino. Nessa ótica, a Resolução nº 2/2001 da Câmara de Educação Básica apresenta as DCN como "o conjunto de definições doutrinárias sobre princípios, fundamentos e procedimentos na Educação Básica, (...) que orientarão as escolas brasileiras dos sistemas de ensino, na organização, na articulação, no desenvolvimento e na avaliação de suas propostas pedagógicas" (p. 1).

As diretrizes anteriores se distinguiam, na forma e no conteúdo, das propostas atuais. Tais mudanças revelam claramente a preocupação em abarcar diferentes aspectos da educação escolar e representam uma tentativa de contemplar os interesses de diferentes grupos, tarefa que muitas vezes não consegue se fazer efetiva (Bonamino & Martínez, 2002).

Em vista disso, alguns estudos acerca da questão curricular evidenciaram a existência de três modalidades de currículo. Iremos apresentá-las em consonância com alguns trechos de entrevistas realizadas com as professoras. Todavia, tais modalidades foram divididas com intuito didático, para que a compreensão da realidade da sala de aula se tornasse mais eficaz, sendo estas: currículo prescrito, currículo real e currículo oculto (Silva, 2003).

O currículo prescrito ou formal é aquele determinado pelo Ministério da Educação. É estruturado por diretrizes normativas prescritas institucionalmente e sua intenção é dar uma base nacional comum à educação. O artigo 26 da Lei nº 9.394/96, Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), regulamenta o currículo da seguinte maneira:

Os currículos do ensino fundamental e médio devem ter uma base nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e da clientela (Lei de Diretrizes e Bases da Educação, 1996).

Já o currículo real, como o próprio nome sugere, se trata do que realmente acontece dentro da sala de aula. Esse currículo refere-se à articulação entre o currículo formal e o planejamento da aula realizado pelo professor, tendo como resultado a realidade em sala. Tal realidade evidencia uma particularidade de cada escola no que tange ao saber fazer com o currículo (Moreira & Silva, 1994). Possui relevância, nesse contexto, colocarmos uma passagem de uma entrevista em que a professora expõe a lacuna existente entre o currículo formal e o real, evidenciando a dificuldade de articulá-los na prática.

Tem que ter muitas modificações na questão curricular, eu acho que a grade curricular é da década de 60, né?! Do século 18, né?! E os alunos já estão no século 21, então a gente pensa em analisar algumas mudanças que são necessárias. Na verdade, já estão sendo pensadas, mas as mudanças ainda não são, na realidade mesmo, ainda não são feitas... (Professora 1)

Mais do que a lacuna entre o currículo formal e o real, o que essa passagem também denota é um desconhecimento quanto à própria origem desse currículo, evidenciando ainda mais sua insuficiência.

E, por fim, o currículo oculto representa tudo o que os alunos aprendem diariamente em meio às várias práticas, atitudes, comportamentos e percepções que vigoram nos meios social e escolar. Portanto, esse termo é usado para denominar as diversas influências que afetam a aprendizagem dos alunos e o trabalho dos professores na particularidade de cada escola (Silva, 2003).

Segundo Moreira (2002), é na inter-relação entre os conteúdos curriculares e as relações sociais nas salas de aula que se situam as conexões existentes entre essas instituições e a sociedade como um todo. Todavia, educadores vêm expressando inquietações quanto ao conteúdo do ensino e seu despreparo para transmiti-lo, assim como foi relatado nas entrevistas realizadas, nas quais surgiram questões como: quais práticas educativas privilegiar nas escolas? O que deve ser complementado em sua formação?

Quando fiz pedagogia, a gente tinha especialização, então eu fiz supervisão e orientação vocacional, e a orientação tem muitas matérias da psicologia, a gente aprende a fazer anamnese, (...) a gente acaba tendo um jeitinho a mais, mas não é todo mundo que tem esse preparo, então assim... vai meio que na boa vontade da professora mesmo, né?! (Professora 2)

Eu acho que os professores não estão muito preparados para receber esse aluno novo, porque antes o aluno ficava sentadinho, bonitinho, prestando atenção na sua explicação (Professora 3).

Portanto, consoante essas entrevistas, notamos uma dificuldade das professoras em trabalhar as três dimensões que o currículo possui. Percebemos certa indagação acerca do real papel do professor na escola. Perante seus alunos, porém, o que pode estar causando tal desnorteamento?

Acreditamos que um dos motivos que explica essa questão é a dificuldade das escolas de romperem com os moldes do ensino tradicional. De acordo com Leão (1999), por mais que esse ensino tradicional tenha passado por inúmeras transformações ao longo de sua existência, paradoxalmente continua resistindo ao tempo embora venha sendo questionado, dia após dia, sobre sua adequação aos padrões exigidos pela atualidade.

Dessa maneira, ainda conforme Leão (1999), tal resistência se justifica, pois a escola tradicional diz de nossa própria história como sociedade em suas mais variadas ramificações (política, econômica, etc.). Portanto, o que se evidencia é certo não saber desse professor perante as modificações sociais, que refletem diretamente na questão curricular e na escola como um todo.

Destarte, o que se faz notório nas indagações sobre o currículo, presentes no discurso das professoras e na teoria pedagógica, é a consciência de que os currículos não são conteúdos prontos a serem passados aos alunos, e vão mais além, sendo uma construção e seleção de conhecimentos e práticas produzidas em contextos concretos e em dinâmicas sociais, políticas e culturais (Fernandes & Freitas, 2008).

Professor Apoio/Recuperador

Mostrou-se um tanto árdua a investigação acerca da questão do professor apoio, uma demanda tão recorrente nas entrevistas por nós realizadas. Iremos explanar mais detalhadamente o porquê de tal investigação ter sido um pouco confusa e laboriosa nos parágrafos que seguem.

Inicialmente, o professor apoio/recuperador, segundo o relato das professoras entrevistadas, se tratava de um professor que ficaria em uma sala separada, para onde os alunos com dificuldade de aprendizagem seriam encaminhados. Essas dificuldades poderiam abranger desde a deficiência intelectual à deficiência física neuromotora, bem como os transtornos globais do desenvolvimento e os transtornos funcionais específicos. Segue um fragmento das entrevistas, em que essa concepção do professor apoio/recuperador fica evidenciada:

Na minha opinião, eu acho que uma das coisas que ajuda, que funciona, é a professora recuperadora (... ) Eu acho que se essa criança tivesse essa oportunidade de sair da sala, num momento exclusivo só dela, com aquelas atividades direcionadas, teria mais facilidade, né?! Não estaria assim, no ambiente da sala com 20 alunos, você tendo que tirar um tempo pra poder alfabetizá-lo. Se tivesse alguém, fora da sala, com joguinhos, entendeu? Com atendimento ali, individual mesmo, eu acho que ajudaria (Professora 5).

Na sequência, temos também outro fragmento do relato sobre a importância do professor apoio/recuperador no processo de aprendizagem:

Tem criança que você trabalha de todas as maneiras possíveis, usa todos os métodos, todos os recursos possíveis, mas você sente que precisa de um acompanhamento... E a gente não tem... E enquanto isso o tempo tá passando e as crianças não vão aprendendo (Professora 8).

Após realizarmos uma pesquisa bibliográfica, bem como dialogarmos com as professoras e pesquisadores da área da educação, conseguimos compreender que a realidade desse professor apoio/recuperador não é bem a que nos foi transmitida.

Ao se fazer opção pela construção de um sistema educacional inclusivo, é iniciada, no Brasil, uma reconfiguração das modalidades de atendimento e serviço aos alunos com deficiência, entre as quais figura a sala de recursos. No texto das Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica (2001, p. 50), encontra-se o conceito desse serviço de apoio à inclusão, pelo qual deve ser desenvolvido o atendimento educacional especializado (AEE) na escola, envolvendo professores com diferentes funções:

Salas de Recursos: serviço de natureza pedagógica, conduzido por professor especializado, que suplementa (no caso dos superdotados) e complementa (para os demais alunos) o atendimento educacional realizado em classes comuns (...). Esse serviço realiza-se em escolas, em local dotado de equipamentos e recursos pedagógicos adequados às necessidades educacionais especiais dos alunos, podendo estender-se a alunos de escolas próximas, nas quais ainda não exista esse atendimento. Pode ser realizado individualmente ou em pequenos grupos, para alunos que apresentem necessidades educacionais especiais semelhantes, em horário diferente daquele em que frequentam a classe comum. (...).

No objetivo da inclusão, o direito à aprendizagem e o acesso a níveis mais elevados de educação fazem parte do que está posto como igualdade de direitos e de oportunidades educacionais para todos. Todavia, sobre a função e a importância da sala de recursos, Arnal & Mori, 2007, p. 3) alertam para o fato de que a sala de recursos só pode ser considerada instrumento de inclusão "(...) desde que consiga atender à diversidade, assegurando ao aluno a inclusão em situações de aprendizagem no ensino regular".

E é nessa sala de recurso que encontramos o professor apoio/recuperador relatado pelos nossos entrevistados. No entanto, o que nos parece claro é que há um equívoco no entendimento da função desse professor apoio/recuperador. A princípio, sua função é auxiliar as crianças com necessidades especiais, podendo, eventualmente, trabalhar com as crianças com dificuldades de aprendizagem. Logo, o professor apoio/recuperador é prerrogativa da educação inclusiva e como tal não deve ter sua participação como professor de qualquer demanda da escola. Isso justifica que, em algumas escolas não contempladas pelo programa de educação inclusiva, essa sala de recurso não se mantenha. Como fica explicitado nos relatos das entrevistas a seguir:

Ah, eu acho que é monitoria. Uma professora apoio eu acho que é o único jeito... (Professora?)

(...) porque a minha sala é muito agitada pra você trabalhar individual. Eu acho assim o que tá faltando mesmo é um professor apoio nas escolas, maior número de professor apoio... Porque, se ele ficasse um tempo, uma hora que seja por dia, a aula é quatro horas, umas duas aulas consecutivas com o professor apoio acho que ele desenvolveria muito mais? (Professora?)

Com essas passagens, fica evidente o equívoco citado em relação ao lugar do professor apoio/recuperador na escola regular. Portanto, fica perceptível que, perante o não saber fazer com esses alunos, o professor vem optando por tirá-los da sala de aula, o que gera segregação desses alunos. Essa segregação pode, inclusive, acarretar futuros preconceitos para com eles, pois são colocados na mesma sala dos alunos considerados deficientes ou recebem diagnósticos psicológicos para justificar seu "fracasso".

O Diagnóstico

Nas últimas décadas, houve profunda modificação nas formas de diagnosticar e tratar o sofrimento psíquico. Realizou-se uma ruptura entre a fundamentação e crítica filosófica e a psiquiatria em prol de uma cientificidade mais ou menos positivista (Dunker & Kyrillos Neto, 2011). Um dos momentos em que essa ruptura se tornou mais evidente foi na transição entre o Manual DSM II (1968) e o DSM III (1980). Enquanto o primeiro era embasado por teorias psicológicas, entre elas a psicanálise, o segundo rompeu com essa lógica diagnóstica ao intitular-se ateórico em prol de um caráter mais científico e, por isso, mais "fidedigno"(Dunker & Kyrillos Neto, 2011).

O DSM V (2014), desenvolvido pela Associação Psiquiátrica Americana (APA), é o mais atual resultado que vigora dessa nova forma diagnóstica de se tratar transtornos mentais. Esse manual se define como "uma classificação de transtornos mentais e critérios associados, elaborada para facilitar o estabelecimento de diagnósticos mais confiáveis desses transtornos" (p.43), o que se constituiria, tal como proposto por ele, como "a melhor descrição disponível de como os transtornos mentais se expressam e podem ser reconhecidos por clínicos treinados" (p.43). Porém, além de ferramenta clínica, o manual também autoriza sua utilização como um recurso didático na formação de estudantes e como referência para o trabalho de pesquisadores, proporcionando uma linguagem comum aos profissionais da área de saúde.

Essa forma de classificação e diagnóstico do sofrimento psíquico baseada no DSM teve, e ainda tem, fortes implicações no contexto escolar, em que as dificuldades do aluno passam a ser explicadas como um transtorno, algo que se distancia dos padrões da normalidade. Bautheney (2011, p. 109) nos aponta que, embora sejam empregadas diferentes expressões em relação ao insucesso escolar, todas remetem a um mesmo sentido: uma espécie de desordem, transtorno, patologia que supostamente acometeria um sujeito devido a fatores orgânicos, afetivos, sociais ou culturais, desviando-o da curva de comportamentos e respostas "normais" esperadas para uma determinada faixa etária ou grupo.

Esse modo de olhar o aluno em suas dificuldades pôde ser observado durante as entrevistas realizadas com as professoras. Verificamos uma apropriação do discurso classificatório; todavia, de forma leiga e ingênua dos termos diagnósticos. Entre suas falas, destacam-se uma em que a professora disse que o problema da aluna era "(...) uma questão de hiperativismo (sic)"(Professora 5, grifo nosso) e outra que apontou como uma contribuição da psicologia à escola "dar diagnósticos", já que "às vezes o aluno não tá aprendendo, não tá conseguindo. Ás vezes, porque ele tem alguma dificuldade, alguma coisa, tipo dislexia" (Professora 7, grifo nosso). Além disso, alguns alunos são vistos como "caso de psiquiatria", como no trecho: "tem um aluno que é caso de psiquiatria, né? (...) Ele ficou 15 dias internado no CAPS, sabe? Agora veio o CID 90, veio todo um laudo que ele tem problemas comportamentais acentuados" (Professora 2, grifo nosso).

Tal apropriação do discurso da psiquiatria descritivista e biologizante, presente no DSM e utilizado pelas professoras, demonstra uma banalização e vulgarização de seu uso, no qual não importa o nome correto do transtorno, desde que ele possa ser utilizado como explicação plausível para os insucessos escolares. Sobre essa questão, Bautheney (2011) nos esclarece que "parte da nomenclatura nosográfica utilizada nessas obras aparece incorporada ao discurso de alguns educadores para designar entraves vivenciados pelos alunos na escola, silenciando em categorias o que é considerado 'inadequado' no comportamento dos sujeitos" (p.9).

Frente a esses posicionamentos, é preciso deixarmos claras as consequências dessa banalização e utilização excessiva do DSM e de suas classificações. Assim como apontam Dunker e Kyrillos Neto (2011), mesmo não levando em consideração as subjetivações individuais e o aspecto social em sua forma diagnóstica, o DSM não deixa de possuir implicações filosóficas, éticas e epistemológicas. Elas apenas se tornaram invisíveis, escondidas por trás do discurso do reducionismo biológico, por isso a necessidade de refletir: "o que fazemos quando fazemos um diagnóstico?" (Sauvagnat, 2012, p. 16).

Na visão de Sauvagnat (2012, p. 19), "um sintoma objetivo é um sintoma para a sociedade", ou seja, a partir da classificação de um transtorno, o sujeito tem seu sofrimento reconhecido não só pelas outras pessoas, como pelo Estado (seu âmbito jurídico e de políticas públicas, principalmente) e também pela medicina. Esta, assim como aponta Pinto (2012), utilizará como principal forma de tratamento a prescrição de remédios, que, longe de objetivarem a cura, proporcionam somente certo conforto aos sujeitos, permitindo que eles continuem sua rotina sem grandes abalos gerados por seus sofrimentos. Ainda segundo Pinto (2012), tal medicina é baseada no empirismo, levando em consideração apenas aquilo que é observável. Nessa perspectiva, a fala do paciente não é passível de análise, já que se trata de uma interpretação dos fatos, e não dos fatos em si mesmos. Como consequência, assistimos a uma "supressão individual dos múltiplos discursos sobre o mal-estar, o sofrimento e o sintoma" (Dunker & Kyrillos Neto, 2011, p.613).

No contexto escolar, o diagnóstico constitui-se como mais uma tentativa de explicar as dificuldades escolares apresentadas pelas crianças. Bautheney (2011) aponta em sua tese de doutorado, intitulada Transtornos de aprendizagem: quando "ir mal na escola" torna-se um problema médico e/ou psicológico, que "nos sujeitos tidos como retardados escolares, ou atrasados pedagógicos, sua 'insistência' em não aprender reforça a ideia de que uma dificuldade escolar seria apenas responsabilidade sua" (p. 123).

Essa passagem nos faz refletir sobre o papel da escola, uma vez que a dificuldade parece se encontrar somente na criança. Desse modo, a escola se isentaria de uma reflexão acerca de seus métodos de ensino.

Por sua vez, a psicanálise acredita na inversão dessa lógica, interessando-se pelo sujeito e apostando na possibilidade de construção de um sentido acerca do seu sofrimento por meio da construção de "um espaço para este sujeito se apresentar como portador de um mal-estar que é único, com potencialidades que só podem ser conhecidas a partir de um trabalho de escuta" (Kyrillos Neto & Santos, 2014, p.77). Assim sendo, não se restringe à tentativa de suprimir o sintoma, mas permite a expressão de uma subjetividade, que só pode ser alcançada mediante uma prática do singular, do "caso a caso" (Pinto, 2012, p. 417).

Portanto, as diferentes dificuldades escolares que se apresentam aos educadores como da ordem do impossível evidenciam um não saber fazer frente a essa realidade. No entanto, acreditamos que o olhar da psicanálise para essa questão pode ser de grande contribuição, uma vez que busca dar voz ao sujeito para permitir que ele produza seu próprio discurso, retirando-o do discurso das inconsistências diagnósticas.

A Família

Assim como apontado anteriormente, a sociedade vem passando por um processo de declínio da autoridade, que pode ser observado nas relações entre pais e filhos, patrões e empregados, professores e alunos, entre outras. De acordo com Ceccarelli (2007, p. 91), os homens estão constantemente se reorganizando em prol de "referências simbólicas" para realizar a leitura do mundo. Não se trata de uma crise jamais vivenciada. Porém, ao percebermos ela acontecer no presente, sentimo-nos mais ameaçados, "atacados narcisicamente" (Ceccarelli, 2007, p. 91). Isso nos leva a pensar que a posição do professor frente ao não saber fazer dessa nova realidade o leva a recorrer a outras instâncias, tal como a família, para auxiliá-lo em seu oficio. Todavia, essa demanda à família não responde a essa expectativa, uma vez que essa insuficiência também afeta a família como autoridade para os filhos e como suporte ao processo escolar.

Nas entrevistas realizadas com as professoras, essa insuficiência fica evidente em suas falas, como aponta uma professora ao relatar o desespero de um pai que não consegue educar e a impotência da escola diante de tal situação:

As crianças que têm muita dificuldade a gente chama os pais, a gente vê que os pais têm mais problemas que os filhos, eles não conseguem educar. Teve um que veio aqui e falou que era pra gente bater no filho com vara de marmelo, porque ele não sabe mais o que ele faz com o filho. Se ele não sabe, o que a gente vai conseguir fazer? (Professor 1)

Outro relato de uma professora demonstra o reconhecimento de que é tarefa da escola ensinar. Entretanto, completa essa professora, sem que haja uma correspondência em casa, tal tarefa tenderia ao fracasso, "porque comigo é quatro horas, com a família é vinte, né?" Se eu não tiver apoio em casa, daquele pai que leva na fono, que leva não sei aonde, aí não tem jeito, não" (Professora 10). Portanto, há uma demanda aos pais para que participem ativamente do processo escolar não só diretamente, mas também proporcionando o que for preciso para que ele se efetive - professor particular, fonoaudiólogo, médico, etc.

Do mesmo modo, as falas das professoras apontam os novos arranjos familiares, que fazem parte da realidade atual: "É como eu estou te falando, a família não é estruturada. (...) São pessoas carentes, que têm um problema de alcoolismo, que têm problema de droga (...), então a mãe tem que sair pra trabalhar, porque o pai não sustenta a casa. Então, o filho fica jogado" (Professora 6). Isso traz consigo a crença de que o aluno é simplesmente um produto de suas relações familiares: "Mas se você for parar pra pensar, é o reflexo de casa, né? A maioria é o reflexo de casa" (Professora 3).

Dessa forma, a questão da família "desestruturada" aparece como um dos fatores determinantes nas dificuldades escolares dos alunos, o que nos leva a considerar, mais uma vez, que há nesse discurso uma tentativa de explicar o mal-estar localizando-o nas relações familiares. Mas, como nos lembra Ceccarelli (2007, p. 95), não existe uma maneira de organização familiar ideal, que garanta um desenvolvimento mais sadio ou mais patogênico, pois "qualquer modelo de família é tributário da ordem social que o produz", isto é, todo modelo familiar é construído histórica e socialmente, estando em constante modificação e gerando atualmente outras configurações.

Observamos, desse modo, uma tentativa de explicar as dificuldades escolares e um pedido de auxílio em direção às famílias, por isso a necessidade de falarmos em famílias nas escolas, mas buscando sustentar um não saber para além do que é cultural e social, e construindo, assim, um espaço que permita refletir como "cada criança, em uma sala de aula, traz uma experiência cultural familiar própria" (Outeiral, 2007, p.69).

Então, frente ao mal-estar e às dificuldades de se concretizar uma educação generalizante, acreditamos que a psicanálise poderia se constituir como uma forma de buscar esse singular. Nesse sentido, se considerarmos a dificuldade escolar a partir da ótica do sintoma, daquilo que "não funciona e se repete", a psicanálise nos apontaria uma alternativa, uma forma de reescrevê-lo através da expressão de cada subjetividade e de forma contingencial (Cohen, 2004).

Diante do que foi apresentado pelas professoras quanto ao mal-estar do seu ofício e ao não saber fazer frente a ele, passaremos agora às considerações da possibilidade da interlocução entre a psicanálise e a educação, destacando suas especificidades.

 

Psicanálise e o Saber não Todo

Ao considerarmos o particular do saber em psicanálise, precisamos ter em vista que este se constitui como um saber que não se sabe. Um saber inconsciente sobre o qual Lacan (1960/1998, p. 286) nos diz: "Outra coisa é aquilo do que se trata em Freud, que é bem um saber, mas um saber que não comporta o menor conhecimento". Temos, portanto, nessa perspectiva trazida por Lacan, um aspecto fundamental, que é a incompletude estrutural desse saber. Os conceitos psicanalíticos desde Freud não se estabelecem como conclusivos, mas como conceitos que permitem futuras reformulações e apropriações particulares a serem feitas pelo sujeito. A partir disso, o psicanalista, ao transmitir o saber, vai sempre sustentar uma posição de não saber sobre o sujeito. Assim, o que caracteriza uma peculiaridade na transmissão da psicanálise é a presença de "furos" em seu saber, o que se estabelece como diferença estrutural em relação a outras formas de conceber o conhecimento.

Por outro lado, temos o saber entendido a partir do ponto de vista da educação. Esse saber compreende uma forma particular de conhecimento. Quando falamos da relação da educação com o saber que a constitui, devemos considerar o que concerne ao particular da transmissão do conhecimento nesse campo. De acordo com Lajonquière (1997), em qualquer educação, o que encontramos como conteúdo é a difusão de parte de um grupo de saberes ou uma porção de conhecimentos que antes já foram sabidamente acumulados por outros. Entretanto, aquele que aprende não somente integra conhecimentos acerca dos possíveis temas a serem aprendidos, mas também "é marcado pelo apre(e)ndido" (Lajonquière, 1997, p. 30). Assim, mais do que um simples acúmulo de conteúdos aprendidos, toda educação, continua Lajonquière (1997), "pressupõe, também, a transmissão de certo saber existencial que não se reduz ao conhecimento" (p. 30, grifo do autor). Portanto, o saber da educação é aquele que permite ao aluno uma leitura do mundo para que assim seja possível entendê-lo e modificá-lo.

Para assegurar tal transmissão há uma tentativa por parte do campo da educação de ter um controle, tal como o conteúdo definido pelo currículo, na maneira como o conhecimento é ensinado. Sobre tal tentativa de controle, Mendonça Filho (2006, p. 74) explica que este tem como objetivo "fazer com que a mensagem emitida pelo professor possa ser recebida pelo aluno com a menor perda possível". Então, o saber, como é concebido pela educação, toma a forma de um conhecimento fechado, que deve ser apropriado pelo aluno em sua forma integral e com o mínimo de interferências na apreensão.

Ao pensarmos em um ensino de um saber fechado e objetivo, podemos aproximar o ensino da educação a uma difusão de conceitos fechados na cultura com o intuito de informar. Segundo Castro (2013, p. 143), esses conceitos circulam "transformando, assim, teorias, doutrinas, ensinamentos e produtos em forma de mensagem 'apropriada' à divulgação pública". Dessa forma, a mensagem é definida como o que é propagado pela difusão. É o que chega ao grande público devido à circulação ininterrupta da informação pelos meios de comunicação. Portanto, temos em vista que esse é o tipo de informação que circula de modo a ser apropriada objetivamente e em que não existe espaço para a implicação e construção particular do sujeito frente a esse saber.

A partir do referencial psicanalítico, percebemos que as angústias apresentadas pelas professoras dizem de um encontro com um mal-estar que circula no meio escolar. Esse mal-estar se apresenta como um efeito do encontro dessas profissionais com algo que escapa aos saberes tradicionalmente instituídos. Há um "não saber" nesse momento, ou seja, algo da ordem de um saber inconsciente que se apresenta na educação.

Frente a isso, podemos denotar que, no relato das entrevistadas, o que se apresenta como dificuldade das professoras é justamente o fato de não conseguirem se haver com esse impossível. Isso porque, como já nos diz Mendonça Filho (2006, p. 74), "a noção de inconsciente é ainda tomada como estranha ao campo da educação". Diante dessa estranheza, há um desamparo das professoras ao terem que trabalhar com esse real que permeia o seu campo. O que se apresenta como solução possível, portanto, para as professoras é utilizar variadas explicações que se mostram como tentativas de eliminar o mal-estar advindo desse real. Porém, o mal-estar permanece e confirma, assim, o não saber fazer frente a ele.

No campo psicanalítico, transmite-se um saber fazer frente ao que não se sabe, ao que escapa ao sujeito. De acordo com Rubin e Besset (2007, p. 52, grifo dos autores), "a psicanálise pode nos ser útil na tentativa de dar um tratamento possível a esse irredutível que se apresenta de forma maciça nas escolas, característica própria de nossa época" . Para a perspectiva psicanalítica, haverá a possibilidade de o sujeito inconsciente emergir em sua construção singular sempre quando há o embate com o real pertencente ao saber.

 

Considerações Finais

Os efeitos da lógica de nossa época, caracterizada pelo imperativo ao gozo e à descrença nas figuras de autoridade, são contundentes no campo da educação. A atualidade dessas questões referentes ao campo educacional apresenta impasses na dinâmica escolar e no oficio do professor.

O relato de professores que se sentem desautorizados e desnorteados evidenciam esse não saber fazer diante do mal-estar da modernidade. Do mesmo modo, a queixa que se destaca nos relatos das professoras nos revela a posição daquele que testemunha o esvaziamento da autoridade. Essa posição se revela ao relatarem o desamparo frente ao seu oficio e, ainda assim, de necessitarem de apoio recorrente, seja do aluno para ajudar o outro, da família como cooperação na aprendizagem, seja do diagnóstico para uma definição mais precisa de que há algo além do processo educacional. Além do mais, o sistema educacional, com seu currículo, nos parece ser um ponto que também não corresponde à realidade em sala de aula relatada pelas professoras, muitas vezes engessando e dificultando sua prática.

Portanto, este trabalho se caracteriza como uma tentativa de auxílio frente à solidão do fazer dessas professoras diante das demandas do contemporâneo. Nesse sentido, dirigimo-nos às constatações de Rubim e Besset (2007) a respeito da emergência do real na educação e da possibilidade da psicanálise em dar um tratamento possível a esse irredutível que se apresenta de forma maciça nas escolas.Conforme as autoras, a proposta de interlocução da psicanálise e da educação não se dá pela via da restauração da autoridade pelo autoritarismo, muito próprio à educação tradicional, mas pelo exercício de uma função que visa a preservar a hiância própria ao impossível no campo da educação.

 

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Endereço para correspondência:
Maria Gláucia Pires Calzavara
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Bianca Ferreira Rodrigues
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Recebido em: 01/12/2015
Revisado em: 25/05/2016
Aceito em: 02/08/2016

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