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Revista Subjetividades

versão impressa ISSN 2359-0769versão On-line ISSN 2359-0777

Rev. Subj. vol.16 no.3 Fortaleza dez. 2016

http://dx.doi.org/10.5020/23590777.16.3.121-132 

RELATOS DE EXPERIÊNCIA

 

Relato de experiência da aproximação do CREPOP-RS ao meio acadêmico: formação em psicologia e políticas públicas

 

Experience report on the approximation of CREPOP-RS to the academic environment: training in psychology and public policy

 

Relato de experiencia de la aproximación del CREPOP-RS al entorno académico: formación en psicología y políticas públicas

 

Rapport d'expérience de l'approximation du centre de réference technique en psychologie et politiques publiques de l'état brésilien rio grande do sul (CREPOP-RS) au milieu académique: formation en psychologie et politiques publiques

 

 

Samantha Torres (Lattes)I; Daniel Dall'Igna Ecker (Lattes)II

IPsicóloga do Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas da cidade de Viamão/RS. Membro do colegiado gestor do CRR-Rede Multicêntrica/UFRGS
IIDoutorando do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Mestre em Psicologia Social e Institucional pelo PPGPSI da UFRGS

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este relato de experiência discute o desenvolvimento de um projeto-piloto de aproximação do Centro de Referência Técnica em Psicologia e Políticas Públicas (CREPOP), do Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul (CRP/RS), ao meio acadêmico. A aproximação objetivou fomentar a discussão sobre a formação em psicologia e as políticas públicas junto a estudantes e professores de graduação de duas universidades do estado do Rio Grande do Sul. O projeto foi executado em duas etapas: encontro com os estudantes inseridos em estágios e discussão sobre a temática seguida da sistematização dos dados obtidos; debate dos dados sistematizados com os professores que compõem o corpo docente do curso de psicologia de cada instituição. A partir dos resultados foi possível organizar os relatos dos estudantes nas seguintes categorias: 1) Presença da temática na formação; 2) Espaços de prática profissional; 3) Formação crítica; 4) Interdisciplinaridade; 5) Qualificação do corpo docente; 6) Atuação política; 7) Protagonismo estudantil. Por fim, avaliamos o projeto-piloto como um espaço potente de reflexão sobre a interface entre a formação em psicologia e as políticas públicas.

Palavras-chave: CREPOP; formação do psicólogo; políticas públicas; relato de experiência.


ABSTRACT

This experience report discusses the development of a pilot project for the approximation of the Centro de Referência Técnica em Psicologia e Políticas Públicas/Center for Technical Reference in Psychology and Public Policy (CREPOP), from the Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul/Regional Council of Psychology of Rio Grande do Sul (CRP / RS), to the academic environment. The aim of this study was to foster a discussion about training in psychology and public policies among undergraduate students and professors from two universities in the state of Rio Grande do Sul. The project was carried out in two stages: a meeting with internship students and a discussion about the thematic followed by the systematization of the obtained data; discussion of systematized data with the professors who make up the faculty of the psychology course of each institution. From the results it was possible to organize the students' reports in the following categories: 1) Presence of the theme in training; 2) Spaces of professional practice; 3) Critical training; 4) Interdisciplinarity; 5) Qualification of teaching staff; 6) Political action; 7) Student protagonism. Finally, we evaluated the pilot project as a powerful space for reflection on the interface between training in psychology and public policy.

Keywords: CREPOP; psychologist training; public policy; experience report.


RESUMEN

Este relato de experiencia discute el desarrollo de un proyecto-piloto de aproximación del Centro de Referencia Técnica en Psicología y Políticas Públicas (CREPOP), del 'Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul' (CRP/RS), al entorno académico. La aproximación tuvo el objetivo de estimular la discusión sobre la formación en psicología y las políticas públicas junto a Estudiantes y profesores del grado de dos universidades del Estado del Rio Grande do Sul. El proyecto fue ejecutado en dos etapas: encuentro con estudiantes en pasantías y discusión sobre la temática seguida de la sistematización de los datos obtenidos; debate de los datos sistematizados con los profesores que componen el cuerpo docente del curso de psicología de cada institución. Con los resultados fue posible organizar los relatos de los estudiantes en las siguientes categorías: 1) Presencia de la temática en la formación; 2) Espacios de práctica profesional; 3) Formación crítica; 4) Interdisciplinaridad; 5) Cualificación del cuerpo docente; 6) Actuación política; 7) Protagonismo estudiantil. Por fin, evaluamos el proyecto-piloto como un potente espacio de reflexión sobre la interface entre la formación en psicología y las políticas públicas.

Palabras clave: CREPOP; formación del psicólogo; políticas públicas; relato de experiencia.


RÉSUMÉ

Ce rapport d'expérience discute le développement d'un projet-pilote d'approximation entre le Centre de Référence Technique en Psychologie et Politiques Publiques, le Conseil régional de Psychologie de l'état brésilien Rio Grande do Sul, et le milieu académique. L'approximation a eu l'objectif d'encourager le débat sur la formation en psychologie et les politiques publiques chez les élèves et les enseignants du premier cycle de deux universités dans l'état Rio Grande do Sul. Le projet a été réalisé en deux étapes: rencontre avec les étudiants stagiaires et débat sur le thème, suivi par la systématisation des données obtenues; discussion des données organisées avec les enseignants qui composent la faculté du cours de psychologie de chaque institution. D'après les résultats, il a été possible d'organiser les rapports d'étudiants dans les catégories suivantes: 1) Présence thématique dans la formation; 2) Espaces de pratique professionnelle; 3) Formation critique; 4) Interdisciplinarité; 5) Qualification du corps enseignant; 6) Action politique; 7) Le rôle central de l'étudiant. Enfin, nous avons évalué le projet-pilote comme un espace puissant de réflexion sur l'interface entre la formation en psychologie et les politiques publiques.

Mots-clés: CREPOP; formation du psychologue; politiques publiques; études de cas.


 

 

Este relato de experiência discute o desenvolvimento de um projeto-piloto de aproximação do Centro de Referência Técnica em Psicologia e Políticas Públicas (CREPOP), do Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul (CRP/RS), ao meio acadêmico. A aproximação objetivou fomentar a discussão sobre a formação do estudante de psicologia para atuar nas políticas públicas. Para isso, foram realizados encontros e discussões entre a equipe do CREPOP do CRP/RS junto a estudantes e professores de graduação de duas universidades privadas do Rio Grande do Sul (RS).

O Centro de Referência Técnica em Psicologia e Políticas Públicas - CREPOP - se constituiu em 2006, a partir da necessidade de aproximar o Conselho Federal de Psicologia (CFP) da atuação da categoria no contexto das políticas públicas. O CREPOP tornou-se um órgão operacional que atua no âmbito nacional e regional, sistematizando e difundindo a produção de conhecimentos, através da realização de pesquisas quantitativas e qualitativas. Esse órgão tem se operacionalizado como uma importante via para formulação de referências técnicas de atuação dos psicólogos na esfera pública, assim como tem expandido a contribuição profissional da psicologia para a sociedade brasileira (Reis & Guareschi, 2010).

Através de pesquisas, o CREPOP busca fomentar maior participação das psicólogas(os) em áreas emergentes da profissão, assim como promover espaços de troca e discussão entre os setores da sociedade em que a psicologia é convocada a participar (Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul, 2013). Implicado com ações que sustentem o compromisso ético e social da profissão, as atividades do CREPOP com os profissionais têm evidenciado uma lacuna no que se refere à formação em psicologia voltada para a área das políticas públicas. Nos debates realizados sobre as referências técnicas, é muito frequente a presença de relatos que questionam se a formação tem ajudado a produzir profissionais capazes de atuar na esfera pública. Esses questionamentos fizeram com que emergisse a criação do projeto-piloto, que será apresentado neste texto.

Sobre uma formação voltada aos serviços públicos, pesquisadores têm discutido sobre os avanços desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, que reestruturou a produção de cidadania no país. A partir deles foi possível produzir, na área de saber da psicologia, uma prática profissional implicada com as desigualdades sociais e a garantia de Direitos Sociais. No entanto, devido a uma intensa hegemonia da clínica privada e de referenciais teóricos importados nos processos de formação, a prática profissional ainda carece de uma leitura sobre o social que leve em consideração especificidades da realidade brasileira (Yamamoto & Oliveira, 2010).

Visando contribuir com esse debate, neste relato de experiência, discutimos sobre a execução de um projeto-piloto que objetivou, através da inserção da equipe do CREPOP/RS, fomentar a discussão sobre a formação em psicologia e as políticas públicas junto a estudantes e professores de graduação de duas universidades do Estado do Rio Grande do Sul. Na escrita do relato, apresentaremos, inicialmente, aspectos relacionados ao projeto de aproximação do CRP/RS junto ao meio acadêmico, apontando elementos desta ação dentro das atividades do CREPOP alinhado ao contexto da formação em psicologia. Abordaremos, conjuntamente, questões teóricas e estudos que buscam aprofundar a discussão sobre o tema da formação em psicologia para a atuação de profissionais na área das políticas públicas. Em seguida, apresentaremos as questões metodológicas do projeto para, por fim, relatar e discutir os dados obtidos.

 

O Projeto do CREPOP no Contexto da Formação em Psicologia

Além da realização das pesquisas que dão origem às referências técnicas para atuação das(os) psicólogas(os) em diferentes políticas públicas, dentro das ações do CREPOP no Rio Grande do Sul também são realizadas palestras, rodas de conversa, oficinas e outras ações que objetivam aproximar o Conselho Regional de Psicologia do RS aos profissionais em atuação. Essas ações buscam promover discussões que tenham como preocupação os efeitos éticos e políticos das práticas da categoria, nas diferentes políticas públicas (de educação, assistência, saúde, habitação, alimentação, dentre outras).

Uma dessas ações, intitulada de Conversando sobre a psicologia e o SUAS, tem acontecido desde 2010, objetivando discutir temáticas de interesse dos profissionais, tendo como foco de problematização a atuação da psicologia nas políticas que integram a rede do Sistema Único da Assistência Social (SUAS). Nessa atividade, que ocorre mensalmente e de forma sistemática, assim como em outras ações do CREPOP, as discussões sempre acabavam evidenciando as lacunas presentes na graduação em psicologia no que se refere à capacitação dos profissionais para atuarem nas políticas públicas (Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul, 2013).

Na Resolução CNS n° 350 de 2005, o Conselho Nacional de Saúde (CNS) considerou 14 cursos que compõem a área da saúde, dentre eles, a psicologia. Os cursos de psicologia, além de terem de contemplar as orientações das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs), formuladas pelo Ministério da Educação (MEC), deveriam incluir, na elaboração de seus projetos político-pedagógicos, orientações embasadas pela proposta de saúde integral presente nas políticas do Sistema Único de Saúde (SUS). Com isso, o ensino deveria ser pensado por disciplinas formativas que contemplassem a produção de profissionais para atuarem dentro da lógica da universalidade, equidade, comprometimento da sociedade no planejamento, gestão e avaliação das ações em saúde (Resolução CNS n° 350, 2005).

Entretanto, em estudo de 2010 sobre a formação em psicologia, nota-se que ainda prevalece nas disciplinas dos cursos de graduação conteúdos científicos dentro de uma lógica individual e racionalista, que pensa o sujeito de forma isolada de seu contexto e realiza seu entendimento a partir de diagnósticos classificatórios. Esses tipos de práticas científicas, por produzirem conhecimentos que visam explicar de forma generalizada o funcionamento humano, têm como efeito um distanciamento da noção de entendimento integral e universal propostos nas diretrizes do SUS, por reduzirem a complexidade dos seres humanos a categorias simplistas (Guareschi et al., 2010).

De acordo com autoras da psicologia social, o descompasso apresentado entre as demandas sociais e a formação em psicologia denuncia uma problemática da construção do conhecimento psicológico, no que se refere ao modo como ele se estruturou como disciplina ao longo do processo histórico (Scarparo & Guareschi, 2007). Nesse contexto, se enfatiza a necessidade de que os processos educacionais de formação superior, integrados às suas propostas teóricas, tenham sempre como ponto de partida discussões sobre os compromissos éticos presentes nas racionalidades que os sustentam já que, historicamente, a psicologia já contribuiu com práticas autoritárias e discriminatórias pelos saberes que produziu (Scarparo, Torres, & Ecker, 2014).

Reis e Guareschi (2010) questionam sobre o modo como algumas produções de conhecimento na área da psicologia ainda se pautam por lógicas de dicotomização da realidade e pela busca de uma neutralidade científica. Nisso, distancia-se da possibilidade de intersecção entre psicologia e política, visto que os discursos ainda se reproduzem a partir de perspectivas cientificistas hegemônicas, de cunho essencialista, nos quais a atribuição do status de verdade ao que se produz ainda é impregnado por paradigmas positivistas, calcados em binarismos. Assim, oposições entre sujeito e objeto, indivíduo e coletivo, interior e exterior, possuidoras de uma natureza intrínseca e naturalizante, distanciaria a psicologia do compromisso político, já que colocaria como estagnadas e imutáveis as realidades em análise.

Benevides (2005) alerta para o efeito despolitizador de uma psicologia que se ocupa de sujeitos abstratos, alienados do contexto social e cujas descrições são tomadas a priori. Dessa forma, o desafio que se coloca na contemporaneidade seria de reposicionar essas categorias dentro de uma complexidade social, reconhecendo as práticas psicológicas enquanto ações políticas e refletindo sobre como essas incidem na vida dos sujeitos. Seria preciso, no campo da formação, refletir sobre as práticas da psicologia em relação aos sujeitos que produz, entendendo suas subjetividades sempre situadas em determinados tempos, lugares, espaços, locais de onde eles falam e dos quais são falados (Dimenstein, 2001).

Partindo dessas reflexões, vimos a importância de aproximação entre o Sistema Conselhos e os cursos de graduação para que a formação em psicologia para as políticas públicas possa ser colocada em discussão. O projeto do CREPOP, intitulado "Formação em psicologia e políticas públicas: uma aproximação do CREPOP do CRP/RS com o meio acadêmico", visou fomentar junto aos estudantes e professores dos principais cursos de psicologia do Estado reflexões sobre sua formação profissional para a atuação em políticas públicas. Essa é uma iniciativa em consonância com as diretrizes do Sistema Conselhos de Psicologia (CFP) e se constitui como uma tentativa inicial de aproximar as instituições de ensino dos espaços de protagonismo profissional e de controle social.

 

Processos Metodológicos do Projeto-piloto

Para a realização do projeto, inicialmente identificamos todos os cursos de psicologia existentes no Estado do Rio Grande do Sul a partir da página na internet do Ministério da Educação, no sistema E-MEC. Dentre as faculdades, institutos e universidades, foram encontrados um total de 42 instituições de educação superior em psicologia (Ministério da Educação e Cultura, 2011). Em seguida, entramos em contato com todas as coordenações dos cursos, tanto de instituições públicas quanto privadas, apresentando a proposta da atividade, seu processo metodológico e relatamos sobre nosso intuito em estabelecer vínculos entre a instituição do CRP/RS, e seu setor do CREPOP, junto aos cursos de formação da área. Quase todos os cursos deram retorno positivo, afirmando a possibilidade de parceria, mas avaliamos ser necessária, primeiramente, a execução de algumas ações piloto para avaliarmos nossa própria proposta. Para o projeto-piloto aqui relatado, foi realizada a atividade em duas universidades privadas.

O projeto foi pensado para ser executado em dois momentos. De início, realizamos um encontro com os estudantes que estão no fim do curso e já se encontram inseridos em espaços de estágio. Cada turma tinha 30 alunos e, em média, 10 deles faziam estágio na área das políticas públicas. O encontro se iniciou com a apresentação do Sistema Conselhos e do CREPOP buscando, desde o primeiro momento, a familiarização dos estudantes com as estratégias do CFP, enquanto ferramenta do controle social. Em seguida descrevemos a proposta da atividade apresentando o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e, para os alunos de acordo, distribuímos um questionário semiestruturado com questões disparadoras para a discussão. A proposta era de que o questionário servisse para estimular o processo de reflexão sobre a formação para, em seguida, o tema ser debatido no grupo.

As sete questões presentes no questionário tinham como ideia central a seguinte proposta de reflexão: "Indique as dificuldades/desafios e as potencialidades relacionadas às políticas públicas e à formação dentro do espaço da graduação". O questionário foi elaborado pela equipe do CREPOP, levando em consideração as discussões encontradas na literatura sobre a formação em psicologia e políticas públicas. Mediante o registro dos encontros, através da gravação de voz das discussões e questionários, elaboramos um material que sistematiza os pontos trazidos.

A organização dos dados não seguiu uma metodologia específica e resultou na formulação de uma tabela (Tabela 1). Nela foram sistematizadas, de acordo com a proposta do questionário, as potencialidades e os desafios reconhecidos pelos alunos no que se refere a uma formação voltada para capacitar o profissional para trabalhar em políticas públicas. Depois de realizada a sistematização, partimos para o segundo momento do projeto, no qual marcamos um encontro com todos os professores do curso de psicologia disponíveis que compõem o corpo docente das instituições em questão e apresentamos a sistematização dos dados de acordo com o relato dos alunos. Semelhante à proposta do questionário inicial, essa sistematização visou estimular a reflexão e servir de disparadora para a discussão no grupo de professores. Trabalhamos com dois grupos de professores com, em média, 20 em cada grupo, sendo eles de diferentes áreas de ensino do curso. Para análise dos dados, contrapomos os resultados a discussões encontradas na literatura como apresentaremos a seguir.

 

Resultados e Discussões

A partir do levantamento de informações realizado junto aos estudantes de psicologia elaboramos a Tabela 1. Ela consiste de um agrupamento, em categorias, das respostas obtidas nos questionários semiestruturados junto às discussões ocorridas nas rodas de conversa com os estudantes. A reunião do material de forma compilada sistematizou os dados levantados e, através desses, serviu de guia para a devolução aos professores. Assim, a Tabela evidencia, de forma resumida, os resultados obtidos no encontro com os estudantes. Os dados foram organizados e diagramados dentro de duas grandes categorias: potencialidades e desafios presentes na formação atual em psicologia.

Dentro delas foi possível identificar seis subtítulos que nos foram remetidos como potentes para a organização do material coletado. Entende-se que os mesmos não estão fragmentados uns dos outros, mas se atravessam e se complementam. A Tabela 1 apresenta os dados da percepção dos estudantes sobre a formação em psicologia em consonância ao campo das políticas públicas:

Dentro desses seis subtítulos apresentados na Tabela 1, contemplados através das categorias de potencialidades e desafios da formação, discutiremos em seguida, junto a estudos e produções teóricas sobre o tema, cada um dos pontos apresentados.

Presença da Temática na Formação

Os estudantes reconhecem as universidades participantes da ação junto ao CREPOP como vanguardistas em trabalhar a temática das políticas públicas dentro da área da psicologia, especialmente por terem iniciado a abertura de espaços de inserção dos alunos nos programas e políticas públicas. Junto a isso, os alunos afirmam que se inserir na área dos serviços públicos faz emergir muitas demandas, principalmente por esses espaços propiciarem o trabalho com questões sociais que envolvem se deparar com muitas violações dos direitos humanos previstos pela Constituição.

Machado et al., (2007) identificam que muitas das limitações encontradas no processo de implementação das políticas do Sistema Único de Saúde ocorreram devido ao fato de que, ao renovarmos as ações em saúde, necessitaríamos de novas práticas. A nova proposta de produção de saúde dentro dos princípios de universalidade, integralidade, equidade, descentralização e participação social, apenas seriam possíveis se houvesse a reinvenção de aspectos formativos dos profissionais de saúde.

Tem-se como entendimento de que a abordagem generalista oferecida pelos cursos de graduação contemplaria o treinamento de profissionais habilitados científica e metodologicamente para atuar em diferentes áreas, sem a delimitação de capacidades específicas. Nesse sentido, os estudantes contatados apontam que a forma generalista com que os conteúdos são apresentados oportuniza, durante a formação, conhecer e analisar as políticas públicas de forma ampliada e trabalhar a partir de grandes questões presentes no sistema público. Junto a isso, as grades curriculares em transformação são vistas como potencialidades em longo prazo, no sentido de abranger e ampliar os espaços de produção de conhecimento sobre a psicologia inserida nos serviços públicos.

Para os estudantes que participaram do projeto junto ao CREPOP, a formação em psicologia atual tem como um dos desafios superar a ênfase que ainda permanece nos currículos junto às práticas clínicas tradicionais. Eles propõem que sejam disponibilizadas disciplinas sobre políticas públicas desde o início da graduação, fomentando o interesse desde os primeiros semestres, mesmo antes dos estágios básicos. Concomitantemente, sugerem que a temática das políticas públicas esteja integrada às demais disciplinas do currículo, apontando vínculos com as teorias da clínica, das práticas de pesquisa, da compreensão de grupos, da psicologia institucional, entre outros.

Nas discussões do projeto-piloto, os estudantes sugerem que a formação deveria contemplar a atuação do psicólogo para além do SUS, ampliando e aprofundando o debate e a produção de conhecimentos em interface com as demais políticas e temáticas sociais. Dentro dessa proposta, eles referiram temas que abarcam as políticas públicas, mas são superficialmente abordados na formação, são eles: educação, cultura e lazer, assistência social para além dos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) e dos Centros de Referência Especializados de Assistência Social (CREAS), políticas voltadas para grupos sociais como os idosos, as crianças, os adolescentes, a população em situação de rua, mulheres, usuários de álcool e outras drogas, práticas de Redução de Danos, diversidade sexual, diversidade étnica, cultura indígena, entre outros.

Além disso, os alunos se posicionaram firmemente junto à proposta de que a formação contemple, não apenas estudos sobre a atuação do psicólogo nas políticas públicas, mas apresente, também, as diretrizes, legislações e estatutos que dizem respeito às práticas de governo, assim como sobre os processos de gestão dos programas e ações, pensando a intersecção entre a categoria profissional, a gestão do município, do estado e da federação. A lógica dessa necessidade, de acordo com os estudantes, é de que a formação contemple uma visão mais sistêmica das políticas públicas, ampliando assim, o conhecimento da rede pública, das práticas e dos programas que vêm sendo desenvolvidos, assim como evidencie as singularidades de atuação em cada contexto.

Scarcelli e Junqueira (2011) discutem que a criação das políticas públicas e a construção dos serviços de saúde do SUS acontecem atravessadas por diversos interesses que mobilizam "governantes, partidos políticos, empresários, movimentos sociais, estudantes, intelectuais, entidades filantrópicas, conselhos profissionais, associações de classes, sindicatos, etc." (p. 344). Entender os interesses e atravessamentos é essencial para contextualizar o modo como se estrutura e se organiza uma política, compreendendo então, seus objetivos e ações. Como estão constituídas as secretarias do estado? Como se dá a criação de políticas públicas? Como é a relação entre as instâncias governamentais? Como se dá a contratação de profissionais? Como se formam os serviços públicos?

Entender como se legitimam as políticas públicas, como se sustentam suas estruturas e quais os direitos e deveres dos que as compõem, são essenciais para a formação dos profissionais. A apreensão do contexto legislativo e sua prática facilitará a compreensão das relações que estão postas na equipe e dos interesses que mobilizam os sujeitos envolvidos, auxiliando, assim, o modo como o profissional se posicionará frente às demandas e proporá intervenções. A necessidade de ensino desses elementos se aproxima do relato dos estudantes, que apontam ser mais um dos desafios para a formação a maneira como eles são convocados no espaço acadêmico a se posicionar sobre os temas, articular sobre as particularidades que compõem as políticas públicas, implicando-se enquanto futuro profissional de forma mais consciente e politizada.

Espaços de Prática Profissional

Os estudantes reconhecem que as universidades em questão oferecem uma ampla oferta de espaços para a participação dos alunos em cursos, projetos de pesquisa, projetos de extensão e realização de estágios em diversos serviços das políticas públicas, especialmente no campo do SUS e do SUAS. De acordo com os relatos, essas possibilidades propiciariam aos alunos espaços de autonomia, visto que os estudantes poderiam se aproximar de acordo com seus interesses e qualificarem-se nas áreas de identificação.

Dimenstein (2001) aponta que a universidade instrui o aluno de psicologia a partir de um modelo teórico-técnico amparado por uma "ideologia individualista" (p.104) oriunda, principalmente, das classes médias urbanas. Nela, há um enfoque que prioriza o indivíduo e seus supostos aspectos intrapsíquicos tomados como modelos naturalizados de interior subjetivo. Nessa lógica, a psicologia passa a ser considerada como uma disciplina marcada por teorias essencialistas e universalistas que passam a pensar que as pessoas e noções de, por exemplo, saúde, doença, corpo, vida, morte, cuidado e afeto são iguais em qualquer lugar e momento histórico (Spink, 2003).

Se pensarmos que a formação ainda está pautada por uma 'cultura profissional' amparada na produção de conhecimentos especialmente pensados para as classes sociais mais favorecidas economicamente (Dimenstein, 2001), surge o desafio: como incitar os estudantes a se aproximarem do campo das políticas públicas, intervindo dentro de uma noção de saúde integral, se os conceitos teóricos apresentados na graduação predominam legitimando um determinado modo elitizado e descontextualizado de se produzir saúde?

Além disso, no âmbito da formação, Botomé (1996) acredita que há uma adesão dos estudantes de forma acrítica e dogmatizada às teorias, técnicas, rituais e modelos profissionais que são apresentados ao longo da graduação. Nesse processo de subjetivação dos alunos, se padroniza o comportamento e as respostas dos estudantes frente às demandas do cotidiano profissional, que resultam em uma ausência da responsabilidade social e pessoal desse aluno com o contexto de intervenção. Assim, mais um desafio se coloca frente à formação em psicologia.

Os estudantes sugerem, como destacado nas rodas de conversa, que, para modificar essa atual conjuntura, seria importante que a universidade fomentasse a inserção deles nos espaços de prática e de debates sobre a psicologia e políticas públicas desde o início da graduação, no sentido de despertar para o contato desde cedo. Que o processo de formação, aqui entendido como produtor de subjetividades, fortaleça e capacite os alunos para o trabalho em rede, pensando a prática cotidiana dentro dos serviços e entendendo as políticas públicas como campos de produção de cuidado e de afirmação de uma determinada forma de exercer a profissão. Para isso, a interlocução com profissionais que atuem diretamente na área é apontada pelos alunos como essencial para o reconhecimento e contato com os locais de atuação, assim como, estratégia de expansão do olhar para o que são as políticas públicas e como se dão suas práticas.

Formação Crítica

No âmbito da formação de profissionais com a capacidade de crítica, os estudantes relataram que o curso oportuniza a aprendizagem teórica para atuar e refletir sobre a prática profissional nas políticas públicas. Assim, as possibilidades de atuação em diversas áreas dos serviços e programas governamentais, incluindo os espaços oportunizados pela universidade em projeto de pesquisa, extensão e cursos, facilitam o desenvolvimento da análise crítica sobre as ações das(os) psicólogas(os) nessa área.

Entendemos a noção de crítica como a capacidade dos sujeitos de desnaturalizarem quaisquer explicações essencialistas ou que venham a determinar universalidades às ações humanas. A possibilidade de crítica é referida como a ação de colocar em questão os elementos apresentados, contextualizando suas origens humanamente produzidas dentro de espaços históricos e socialmente possíveis (Bock, 1997). Pelo viés da crítica, a cultura profissional e as produções em torno dela passam a serem pensadas como elementos atravessados por interesses locais e específicos, vinculados às noções do mercado econômico, dos arranjos políticos e das práticas ideológicas presentes em seu entorno.

Nisso, surge o desafio dos profissionais em formação serem capacitados para colocarem em questão a própria cultura profissional na qual eles estão imersos e que, em muitas disciplinas, são instruídos a reproduzir. No relato dos estudantes no projeto-piloto foi expresso que a formação deve fomentar o debate em sala de aula e em outros espaços acadêmicos de forma sistemática, sobre as práticas, serviços, projetos e esteriotipias da psicologia, colocando em questão suas origens e contextos de formulação.

A universidade deve se oferecer como espaço no qual os alunos possam se posicionar criticamente sobre os temas, especialmente colocando em questão as propostas das diferentes psicologias que se quer construir. Os estudantes sugerem que sejam implicados alunos e professores no processo de constituição dos futuros profissionais, entendendo o papel ético e político que ambos exercem ao se oferecerem como ferramentas de construção de realidades e produção de sujeitos.

Interdisciplinaridade

A integração de diferentes disciplinas foi apontada pelos alunos como uma potencialidade que se apresenta através da realização das semanas integradas entre os cursos da saúde, o que já caminharia no sentido de ampliar os espaços de compartilhamento dos saberes. Nesse percurso, surge o desafio da psicologia se inserir no trabalho em equipe, integrando-se, de acordo com a sugestão dos estudantes, em espaços de visibilidade entre as áreas de atuação e na formulação de disciplinas compartilhadas, oficinas e eventos com o objetivo de propiciar a aprendizagem de práticas e diálogos interdisciplinares.

A psicologia, de forma geral, caracterizada como a profissão que se pauta na fala, na escuta, na comunicação e nas relações, se apresenta, no discurso dos alunos, como importante ferramenta de fomento de espaços emancipatórios e integrativos entre diferentes áreas de saber. Assim, capacitada para pensar as relações humanas, a profissão teria importante contribuição no âmbito da interdisciplinaridade, pensando a articulação entre diferentes saberes e facilitando o modo como eles se comunicam e se produzem, enquanto complemento uns dos outros nos espaços de ensino.

O desafio é que, por muito tempo, as ações da psicologia no campo da saúde pública vieram fragmentadas, tendo apenas a inserção desse profissional na área da saúde mental. Nela se produziu dicotomias em que se psicologizava questões humanas, enfatizando uma subjetividade descontextualizada, afastando-se de uma noção de coletivo. Ao entrar no âmbito público, em que o trabalho se sustenta em uma lógica da integração entre diferentes saberes, surge a provocação para que o profissional transponha essa psicologia pautada em um viés individualizante (Scarcelli & Junqueira, 2011).

Além disso, dentro da noção do trabalho em rede, proposto pelas políticas atuais, apontamos para a importância de que a formação pense na produção de uma saúde integral, não apenas vinculando-se a outras disciplinas, mas reconhecendo os espaços públicos de circulação social como os locais em que efetivamente acontecem os encontros cotidianos entre aqueles que circulam nessas redes. Assim, as ruas e os locais públicos deixam de ser entendidos como ambientes potencialmente perigosos e passam a ser legitimados como locais de produção, locais de encontros, em que o estranhamento do diferente faz as singularidades emergirem e possibilita novas formas de criação e comunicação.

A rede intersetorial, visibilizada através da presença dos diferentes serviços representados pela saúde, cultura, educação, assistência social, entre outros, apontam para a necessidade de uma formação que incentive o profissional a circular pela cidade, fomentando e conhecendo as potencialidades da comunidade. Outras questões para a formação em psicologia emergem: O psicólogo está capacitado para circular pela cidade e reconhecer os serviços disponíveis na rede? Possui ferramentas de facilitação para o acionamento dos serviços? De que forma ele é instrumentalizado para intervir na integração entre os serviços da rede intersetorial? Como a produção da saúde é pensada nesses espaços de encontro entre os atores sociais?

Qualificação do Corpo Docente

De acordo com o material coletado, os estudantes tiveram a possibilidade de expressar o reconhecimento da qualidade de formação dos professores. Citaram profissionais implicados no campo das políticas públicas e com vasta experiência nessa área. Apesar dessa potencialidade ter sido identificada, relatam haver poucos professores que ensinam sobre a inserção da psicologia nas políticas públicas, como, por exemplo, temos uma das universidades contatadas, que apresentou um corpo docente de 36 (trinta e seis) professores, onde apenas 6 (seis) abordam esse tema.

Segundo discussão entre os alunos, permanece como predominante no ensino professores que obtiveram sua formação pautada por conhecimentos tradicionais da área, incluindo nessa formação o estudo de teóricos que embasam suas discussões em contextos do início do século passado, especialmente de países da Europa e América do Norte. Assim, muitos dos elementos trazidos nas aulas e estudados nos textos, foram produzidos em outras épocas tendo como base teórica elementos que, na contemporaneidade, se transformaram e se produzem em outras configurações. Junto a isso, os aspectos específicos do Brasil, das políticas que orientam as ações do nosso governo e, especialmente, das características da população, suas culturas e organizações, tornam-se, na visão dos alunos, distantes dos modos de leitura propostos no espaço acadêmico.

Por exemplo, temos em nosso país um importante marco histórico que foi a elaboração da Constituição Federal de 1988, que surge no contexto brasileiro com o intuito, principalmente, de acabar com os resquícios do período autoritário da ditadura militar (Couto & Arantes, 2006). Assim, desde então, direitos, como acesso à saúde, educação e trabalho, são deveres do estado, e não apenas os gestores, mas também a própria sociedade e os profissionais nela envolvidos devem ser sujeitos implicados na produção de modos de vida democráticos e igualitários. Dessa forma, através da reflexão dos alunos, propomos uma formação do corpo docente que tenha um caráter politizado, não negligenciando a noção de cidadania, direitos humanos, Constituição Federal e legislações complementares, enquanto vias de acesso e garantia de direitos.

Atuação Política e Protagonismo Estudantil

Nesse último aspecto, os estudantes entendem que, no campo da formação, o protagonismo estudantil é exercido, principalmente, na realização das semanas acadêmicas, que possibilitam a participação do estudante na elaboração e execução das atividades. Junto a isso, as disciplinas em que o estudante escolhe o tema a ser trabalhado foram exemplificadas como espaços de autonomia, em que a possibilidade de deliberar sobre a temática permitiria maior flexibilidade das ações de atuação política. No campo das práticas fora da universidade, foram colocados os estágios de vivências interdisciplinares como, por exemplo, o VER-SUS (Vivências e Estágios na Realidade do Sistema Único de Saúde) e o EIV (Estágio Interdisciplinar de Vivência) como oportunidades possíveis para fomentar a atuação política e o protagonismo estudantil.

Simões, Rocha, Oliveira, e Lara (2009) apontam sobre o modo como a época de 1960 foi pautada por toda uma geração de estudantes que investiam na produção de uma cultura política da expressão, especialmente através da música, do teatro, da literatura, via passeatas e manifestações. Dentro de um contexto de revolução social, marcado pelo período de luta contra a ditatura, foram registrados diversos movimentos estudantis aliados aos espaços acadêmicos de formação superior, os quais se mobilizavam articuladamente contra o regime militar.

Nessa lógica, os estudantes sugerem, como desafio para a formação, que sejam estimulados debates sobre temáticas atuais que envolvam a incompatibilidade de opiniões, como em torno da internação compulsória, do ato médico, da relação entre a psicologia e o judiciário, dos projetos de lei que se referem à categoria, entre outros, problematizando essas questões a partir da promoção de direitos e do compromisso ético e político da profissão. Concomitantemente, relatam achar relevante que seja visibilizado os processos históricos em torno dos movimentos sociais na construção das políticas públicas e, principalmente, que sejam fomentadas participações dos estudantes junto a esses movimentos e espaços de militância, entendendo, por exemplo, o diretório acadêmico enquanto espaço de politização do estudante.

Devolução dos Resultados ao Corpo Docente das Universidades

A devolução do material descrito anteriormente foi realizada junto aos professores das universidades após o encontro com os estudantes. O material foi sistematizado em categorias, organizado semelhantemente a Tabela 1 e usado como dispositivo de discussão sobre os pontos levantados e outros assuntos que emergiram ao longo das discussões. Não faremos uma longa explanação de questões teóricas da discussão, visto que as temáticas já foram aprofundadas anteriormente.

No que se refere ao encontro com os professores, de forma geral, eles relatam reconhecer a presença da temática das políticas públicas na formação e visualizam os espaços oferecidos para os estágios, projetos de pesquisa, de extensão, eventos, cursos e inserção junto aos programas do governo. Ao mesmo tempo, evidenciam ter conhecimento sobre a realidade que se apresenta no corpo docente, na qual o número de professores capacitados para trabalhar com as políticas públicas e com os temas que as transversalizam é reduzido. Junto a isso, reconhecem que suas formações, que, em alguns casos, são datadas de 20 (vinte) anos atrás, não contemplavam as discussões que hoje se apresentam.

A interdisciplinaridade foi abordada como um desafio atual, especialmente quando se fala de disciplinas integradas a outros cursos de graduação. O desafio se apresenta principalmente pelo caráter de especialidades que hoje a universidade está calcada, apoiando-se sobre a divisão de cursos de acordo com as profissões que se legitimaram ao longo do processo histórico, afirmando-se enquanto ciência de forma individualizada. Assim, falar em integração, faz colocar em pauta toda uma organização estrutural em que o ensino superior atual está embasado. Hüning e Guareschi (2005) alertam sobre os riscos de se pensar o conhecimento psicológico em termos de especialidades, principalmente porque o ser humano é algo não fragmentado, não compartimentalizável, não sendo possível refletir sobre seus processos de saúde fragmentando-o em campos de saber como usualmente se pensam os currículos de graduação (psicologia escolar, do trabalho, organizacional, cognitiva, etc.).

Nessa direção, ao longo das discussões, foram emergindo propostas e possibilidades de criação de outros modos de configuração da formação atual as quais também potencializariam a aproximação entre o CREPOP e o meio acadêmico. Os professores, por exemplo, sugerem que sejam pensadas capacitações para o corpo docente em temáticas presentes nas práticas das políticas públicas, assim como atividades que abordem sua transversalização nas disciplinas de diferentes áreas da psicologia. Propuseram organizar conjuntamente ações que viriam a estimular os estudantes no protagonismo estudantil, dando especial ênfase para as discussões que têm pautado a profissão na atualidade e as ações políticas as quais ela tem sido convocada a participar, como em audiências públicas e movimentos sociais.

 

Considerações Finais

A avaliação do processo de implementação e desenvolvimento do projeto-piloto de aproximação do Centro de Referência Técnica em Psicologia e Políticas Públicas do CRP/RS com o meio acadêmico, foi entendido como uma possibilidade potente de fomentar a discussão nos espaços de ensino sobre a formação do estudante de psicologia para atuar junto às esferas governamentais.

No percurso do projeto, destacamos a estreita relação entre os relatos que chegam ao CRP/RS dos profissionais que trabalham no contexto das políticas públicas e os debates apresentados por estudos teóricos de pesquisadores que tratam sobre o tema, e a proximidade no que tange à fragilidade da formação e sua implicação direta numa prática pouco apropriada e sem preparo para atuar na área das políticas públicas. Essa lacuna, conforme discutida no texto, é entendida como consequência de todo um processo histórico de afastamento da psicologia de um fazer político, desde sua produção de conhecimento elitizada e descontextualizada da realidade brasileira, até a forma como ela é divulgada no meio social e como é apreendida de modo dogmatizado nos espaços acadêmicos.

Hüning e Guareschi (2005) problematizam a segmentarização do conhecimento em especialidades ou especialismos, abordando a forma como os currículos estão distribuídos atualmente, propiciando a cristalização das teorias devido à pouca permeabilidade entre saberes e a dicotomização entre teoria e prática, sujeito e contexto, que a academia acaba por legitimar. Nessa lógica, o projeto-piloto permitiu produzir espaços de desnaturalização dos segmentos em que estão colocadas as atuais disciplinas dos cursos de psicologia, colocando em questionamento as lógicas descontextualizadas e os tradicionalismos, por vezes arcaicos, pautados sob determinados modos enrijecidos de se produzir saúde que ainda orientam a formação.

Salientamos aqui o caráter inicial desse projeto-piloto, que ainda será levado a outras instituições de ensino, assim como afirmamos a necessidade de ampliação do debate sobre a interface entre psicologia e políticas públicas para além de uma ação apenas do Conselho Regional de Psicologia. Diante da crescente formação de profissionais, percebida através do aumento de instituições de ensino superior nos últimos anos, se torna iminente a necessidade de mudanças nos cursos de graduação para que seus projetos político-pedagógicos possam dar conta do novo perfil de profissional, garanta direitos e potencialize processos democráticos e igualitários, requisitado desde a década de 1990, após a formulação da Constituição Federal de 1988.

Há necessidade de aprimoramento da visão holístico-ecológica, tanto na produção do conhecimento quanto na prestação de serviços, resgatando a participação dos contextos de vida no entendimento dos sujeitos. Além disso, buscam-se profissionais capazes de reconhecer as limitações de seu campo de saber e/ou identificar suas necessidades de ampliação dos referenciais teóricos para, em conjunto com as equipes de trabalho, construir repertórios ampliados de ação e compreensão dos processos de saúde e adoecimento das populações que lhes concerne (Guareschi, Reis, Ecker, & Machry, 2014).

A integração do currículo, buscando pontos de intersecção e discussão conjunta a partir de diferentes áreas de produção de conhecimento, pode contribuir para o rompimento da lógica descontínua entre saberes e das disputas de poder entre disciplinas. Assim, ao invés de tentarmos adaptar e 'deformar' a realidade para pensarmos nossos referenciais teóricos, propomos que seja feita uma transformação de nossas teorias a partir da inserção nas práticas. A recorrente negação da interface entre psicologia/política e psicologia/gestão pública, parte do não reconhecimento do potente lugar de transformação social que toda prática profissional está implicada no momento em que se propõe a intervir em algo.

O projeto-piloto, enquanto ação do CREPOP/RS, inserido no Sistema Conselhos, segue as diretrizes que buscam superar uma postura histórica de descompromisso social da psicologia e da dificuldade em assumir uma postura crítica, voltada para a produção de novos modos de prática profissional. Busca-se superar os tradicionais modelos psi de cuidado, que extrapolem a lógica da clínica privada, que individualiza os sujeitos e esvazia os sentidos coletivos, buscando fortalecer os espaços de troca que potencializem a atuação dos psicólogos no campo das políticas públicas.

Entendemos que o projeto apresenta limitações, visto que as transformações entorno da formação não cabem diretamente ao órgão do Conselho. Em nossa avaliação, apesar de ser possível os CRPs fomentarem discussões através de projetos como esse, seria necessário uma articulação que envolvesse desde as políticas de gestão do ensino superior até os diferentes atores que produzem o saber psicológico, para que a formação seja transversalizada pelo debate sobre as políticas públicas.

Pensamos que essa temática atravessa todos os espaços de atuação, inclusive nas clínicas privadas e de atendimento individual, já que essas se situam em um contexto social mais amplo, onde o reconhecimento do lugar político do fazer psicológico também precisa se afirmar. Buscar formas de reflexão sobre as potencialidades e desafios que os cursos apresentam para a formação de profissionais que atuem na área das políticas públicas é uma necessidade que emerge para que as instituições de ensino e seus currículos possam ser pensados.

 

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Endereço para correspondência:
Samantha Torres
Email: torres.samantha@gmail.com

Daniel Dall'Igna Ecker
Email: daniel.ecker@hotmail.com

Recebido em: 24/10/2015
Revisado em: 23/08/2016
Aceito em: 27/09/2016

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