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Revista Subjetividades

versão impressa ISSN 2359-0769versão On-line ISSN 2359-0777

Rev. Subj. vol.17 no.1 Fortaleza jan. 2017

http://dx.doi.org/10.5020/23590777.rs.v17i1.5148 

ESTUDO TEÓRICO

 

A violência e o seu real: Zizek e a psicanálise

 

Violence and its real: Zizek and psychoanalysis

 

La Violencia y su Real: Zizek y el Psicoanálisis

 

La violence et son réel: Zizek et la psychanalyse

 

 

Tiago Iwasawa Neves (Lattes)I; Andreza Silva dos Santos (Lattes)II; Inácio Antônio Silva de Mariz (Lattes)III

IProfessor Adjunto da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG)
IIUniversidade Federal de Campina Grande
IIIUniversidade Federal de Campina Grande

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Neste artigo, tomamos a violência como objeto de nossa discussão, mas nos propomos a apresentá-la para além de sua fenomenologia cotidiana. Nossa intenção consiste em lançar um olhar sobre a violência, ou seja, pretendemos problematizar o Real que irrompe através das fissuras na teia social, tomando como principal referência a leitura psicanalítica realizada por Slavoj Zizek. Sua tese sobre a violência denuncia o engodo subjetivista de entendê-la apenas como uma expressão do embate entre agentes sociais e questiona o seu sentido naquilo que nela há de mais Real, isto é, naquilo que se inscreve no cerne de sua condição traumática e que se instala nas exigências da linguagem enquanto modo de articulação em torno do vazio. Nesse contexto, o verdadeiro ato político surge como uma aposta, um apelo violento ao impossível de se realizar e um abalo nas fantasias naturalizadas que se proliferam nos laços que o sujeito estabelece com o outro.

Palavras-chave: violência; real; política; Zizek; psicanálise.


ABSTRACT

In this article, we take violence as the object of our discussion, but we propose to present it beyond its everyday phenomenology. Our intention is to take a look at violence, that is, we intend to problematize the Real that breaks through the fissures in the social web, taking as main reference the psychoanalytic reading performed by Slavoj Zizek. His thesis on violence denounces the subjectivist lure of understanding it only as an expression of the clash between social agents and questions its meaning in what is most real in it, that is, in what is inscribed at the heart of his traumatic condition and that is installed in the demands of language as a way of articulating around the void. In this context, the true political act appears as a bet, a violent appeal to the impossible to be realized and a shock in the naturalized fantasies that proliferate in the bonds that the subject establishes with the other.

Keywords: violence; real; policy; Zizek; psychoanalysis.


RESUMEN

En este trabajo tomamos la violencia como objeto de nuestra discusión, pero proponemos presentarla para más allá de su fenomenología cotidiana. Nuestra intención es echar una mirada sobre la violencia, es decir, pretendemos problematizar el Real que surge de las grietas en la tela social, tomando como principal referencia la lectura psicoanalítica realizada por Slavoj Zizek. Su tesis sobre la violencia denuncia el señuelo subjetivista de entenderla solo como una expresión del embate entre agentes sociales y cuestiona su sentido en aquello que en ella hay de más Real, es decir, en aquello que inscribe en el centro de su condición traumática y que se instala en las exigencias del lenguaje como modo de articulación al entorno del vacío. En este contexto, el verdadero acto político surge como una apuesta, un llamamiento violento al imposible de realizarse y un shock en las fantasías naturalizadas que se proliferan en los lazos que el sujeto establece con el otro.

Palabras claves: violencia; real; política; Zizek; psicoanálisis.


RÉSUMÉ

Dans cet article, nous prenons la violence comme objet de notre discussion, mais nous nous proposons à la présenter au-delà de sa phénoménologie quotidienne. Notre intention consiste à lancer un regard sur la violence, c'est-à-dire, nous prétendons discuter le réel qui éclate à travers les fissures dans la toile sociale, en prenant comme principale référence la lecture psychanalytique réalisée par Slavoj Zizek. Sa thèse sur la violence dénonce le leurre subjectiviste de seulement comprendre la violence comme une expression de l'affrontement entre les agents sociaux. de plus, sa thèse pose des questions sur son sens chez ce qu'il a de plus Réel, c'est-à-dire, chez celà qui s'inscrit au coeur de sa condition traumatique et qui s'installe dans les exigences du langage comme mode d'articulation autour du vide. Dans ce contexte, le vrai acte politique apparaît comme un pari, un appel violent à l'impossible de se réaliser et un cahot dans les fantaisies naturalisées qui se sont proliférés dans les liens lesquels le sujet établit avec l'autre.

Mots-clés: violence; réel; politique; Zizek; psychanalyse.


 

 

"O que é o assalto a um banco
comparado à fundação de um banco?"
(Bertolt Brecht, A ópera dos três vinténs, 1992, p. 103)

A provocante epígrafe do poeta, teatrólogo e dramaturgo alemão Bertolt Brecht nos permite elaborar uma questão que sintetiza o objetivo de nosso trabalho: qual o sentido de nossa experiência cotidiana de violência e insegurança comparada à violência que afeta o modo como nossas vidas são governadas, nossas esperanças contabilizadas e nossa segurança capitalizada? A violência em seu rastro cotidiano, alvo predileto do sensacionalismo travestido de jornalismo, essa violência que é problema de todos, que produz insegurança e demandas eleitoreiras, deixa na sombra outro tipo de violência. O roubo a banco tem um impacto maior na sociedade do que a fundação de um banco, apenas um; o roubo a banco mobiliza em nós o medo, a angústia de vivermos à mercê de bandos bem armados que poderiam enfrentar um batalhão com seu poder de fogo. Já a fundação de um banco, "ora essa!", que mal há nisso?

Abusando um pouco mais da ironia, podemos apontar o sistema financeiro como o mal radical de nossos dias e dizer que não há nada pior para a segurança da sociedade do que a fundação de um banco. Todos nós sabemos, por exemplo, que a política de austeridade (isto é, corte de gastos públicos, corte de políticas públicas, etc.), adotada pelos governos liberais, é efeito de um acordo entre o Estado e o capital financeiro, representado pelos grandes bancos e corporações do mercado de futuros, para salvar a economia. Essa aliança entre Estado e capital é de tal magnitude que não deixa à população dos países afetados por qualquer crise econômica outra alternativa que não a de se submeter a uma decisão política que não leva em conta as suas próprias vidas.

Tomemos o exemplo da última crise na Grécia: quando estourou a crise, o Primeiro Ministro grego afirmou a necessidade de haver um plebiscito popular sobre a direção da política econômica do país. Talvez, num grande golpe de inocência, o premier grego se esqueceu de que a decisão, sobre salvar ou não esse mesmo sistema econômico que levou o estado grego à falência, não estava nas mãos do povo grego. Não foi surpreendente a sua renúncia, em ato contínuo a essa declaração que sugeriu o plebiscito popular. Ora, como assim, consulta popular? A decisão sobre salvar os bancos e o sistema financeiro é política, mas não necessariamente uma decisão democrática. Se existe alguém ou alguma coisa que corre perigo de ser violentado e que, portanto, deve ser salvo pelas mãos fortes do Estado, só pode ser a economia, não os problemas sociais. Eis aí um tipo de violência que não ocupa as manchetes e que está ausente do reconhecimento do cidadão imerso em seus afazeres diários. Trata-se, em última instância, de uma violência com todo o contorno de maldade e afrontamento à democracia.

Outra história, também com tom moderado de ironia, pode nos ajudar um pouco mais a esclarecer nossa questão.

Há uma velha história acerca de um trabalhador suspeito de roubar no trabalho: todas as tardes, quando sai da fábrica, os vigilantes inspecionam cuidadosamente o carro de mão que ele empurra, mas nunca encontram seja o que for. Até que um dia se descobre a trama: o que o trabalhador rouba são carros de mão! (Zizek, 2009, p. 9)

É com essa anedota que Zizek propõe expor a tese central de seu livro Violência. Sem muito esforço, podemos prever seu jogo: os sinais evidentes da violência em nossos dias - atos de crime e terror, violência urbana, guerras, confrontos civis, medo e insegurança - nos impedem de pensar em seu Real, nas palavras de Zizek, o seu caráter objetivo e sistêmico. A preocupação de Zizek ao situar esse impasse no tratamento dado em geral ao termo violência é devido ao erro sempre iminente de situarmos violência subjetiva, objetiva e sistêmica em um mesmo patamar. O que é paradoxal, em sua opinião, é que a violência subjetiva sempre parece ser percebida numa espécie de "grau zero de não-violência (sic)", surgindo como uma espécie de perturbação do estado de coisas pacífico e normal.

Podemos perceber que é exatamente sob este semblante de um laço social pacífico e normal que podemos situar, inerentemente, a violência sistêmica do Capital. Os períodos de crise financeira, instabilidade política e revolta popular são encarados como momentos de exceção. Isso faz com que a democracia de representação partidária pareça ser, sem dúvida alguma, o melhor sistema político de todos, e a estrutura social do livre mercado fundamental para a liberdade e igualdade das pessoas. O aspecto ideológico desse discurso é a naturalização do modelo de governabilidade como sendo a única solução política para os nossos problemas.

Não há nada melhor do que o sistema capitalista para produzir a diferença de classes, necessária para a manutenção da democracia burguesa, por isso o traço político marcante de nossos dias é um esvaziamento do próprio campo da política, a saber, da possibilidade de confronto de posições, de debates que possam levar a uma real revolução social. Portanto, o laço social e a lógica que o sustenta, ou seja, o tipo de racionalidade que sustenta a forma de uma ordem social sem fissuras, é indelevelmente marcado por uma violência política que nada mais é do que o discurso cínico de que as coisas nunca estiveram tão bem, sendo o maior desafio político de nossos tempos consertar alguns erros que aparecem aqui e acolá: a violência, a corrupção, a miséria, a desigualdade social, etc. Erros, enfim, que não são produtos inevitáveis desta política econômica, mas sim restos que são elimináveis por uma batalha do Bem contra o Mal. O resultado dessa regressão ideológica é bem conhecido de todos: uma vigilância maior contra o perigo, que se traduz em aumento do policiamento, da repressão e da criminalização, o que justifica, em última instância, o uso da violência do Estado contra a população. Bem observado isso, não estaríamos enganados ao propor uma solução imaginária para o fenômeno da violência já que ela não é um mero destino de nossa evolução social?

Assim, Zizek nos propõe um recuo na análise feita sobre a violência, que é ao mesmo tempo indicativa e permissiva, pois indica que a redução da problemática da violência à violência subjetiva é, sem sombra de dúvidas, um obstáculo ao entendimento que podemos ter dela. "A alta potência do horror diante dos atos violentos e a empatia com as vítimas funcionam inexoravelmente como um engodo que nos impede de pensar" (Zizek, 2009, p. 11). Por outra via, esse recuo em relação ao suposto esgotamento do sentido de violência, o seu engodo subjetivista, nos permite pensar a problemática, isto é, passar da evidente violência exercida por agentes sociais, aparelhos de estado repressivos e disciplinadores e sujeitos malévolos, ao questionamento do verdadeiro real da violência. Bem, esse argumento é um primeiro preâmbulo.

Um segundo preâmbulo necessário diz respeito ao sentido do termo Real. Zizek serve-se do conceito lacaniano de Real de um modo bem particular. Ao contrário do furor que animou todo o século XX, a saber, aquilo que Alain Badiou (2007) nomeou de "paixão pelo Real" - um exercício violento de retirada das camadas enganadoras da realidade -, Zizek irá afirmar que o ele não está por trás de um semblante, escondido pela máscara da aparência, mas que ele aí está contido: o Real é o real das aparências, dos semblantes. É importante destacar que Badiou (2007), ao se referir ao século XX como aquele animado pela "paixão pelo Real", afirma que essa atitude pode ser identificada a partir de duas vias, a saber, a via destrutiva e a via subtrativa. Neste trabalho, privilegiamos a crítica da via destrutiva, pois ela

(...) Assentar-se-ia sobre a concepção de que um sujeito só poderia existir na ausência das formas instituídas. Tentando manter-se assim na pura disrupção, acabaria, em situações extremas (como no nazismo ou no período negro de Stalin), na burocratização do puro gozo. Nessa via, manter-se na disrupção seria garantir-se à guarda do conformismo, preservando-se em estado de gozo, única possibilidade para a existência de um sujeito. Para manter-se como sujeito, então, seria necessário institucionalizar o estado de destruição da forma, sustentado pela ilusão de um universal "por vir", só alcançável após uma destruição que finalmente lograsse levar ao extremo seus objetivos. Temos aqui, ainda, o ideal de um universal sem resto, dado de início. Estaríamos na lógica das identificações, em que o caminho para o Um da identificação universal seria trilhado pela destruição de todas as identificações particulares que se apresentassem pelo caminho. Um universal que se assenta sobre o particular, e que vê a singularidade como ameaça, procurando aniquilá-la de todas as formas. O singular aqui é visto como estranho, como aquilo que faz vacilar o predicado que define o universal. (França Neto, 2009, online)

O Real não é o que está para além do Simbólico. O Real em Lacan (1969-70/1992b) pode ser definido, resumidamente, como sendo o Simbólico enquanto impossível de se representar, de se totalizar, ou seja, de a verdade toda dizer. O Real não está além, ele não é o inatingível. É aquilo que, no simbolismo, não se simboliza. "A paixão pelo Real seria, pois, paixão estético-política pela ruptura, niilismo ativo apaixonado pela transgressão, pela radicalidade da violência como signo do aparecimento de uma nova ordem cujo programa positivo nunca foi exaustivamente tematizado" (Safatle, 2009, p. 186). Logo, o desejo de destruição da aparência, a paixão pelo Real, não nos conduz à raiz de compreensão da violência. Problematizar o Real da violência não é procurar por debaixo da poeira suas causas ocultas, uma vez que "a implacável busca do Real que há por trás das aparências é o estratagema definitivo para evitar o confronto com ele" (Zizek, 2009, p. 39). Isso significa que problematizar o Real da violência é não adiar ainda mais esse confronto da violência consigo mesma.

Dessa forma, este trabalho evita soluções do tipo: para a falta de segurança pública mais polícia nas ruas;, para o excesso do sentimento de impunidade, mais penitenciárias; para o indefinível senso de justiça que se aumente o peso da lei, etc. A proposta de Zizek e a nossa é a de que a violência não pode ser combatida do modo que vem sendo definida: como uma fratura da ordem, como a quebra de um pacto natural de pacificidade. É importante lembrarmos que não experimentamos a realidade como uma ordem estática sem fissuras nem como uma natureza morta sem perspectivas. Uma lição teórica valiosa da psicanálise é que a relação do sujeito com a realidade é sempre faltosa ou excessiva. E mais: o que estrutura o sujeito é a falta de orientação em como investir nos objetos do mundo.

Para lidar com a realidade, o sujeito só pode se sustentar em uma fantasia, o que produz, assim, o modo possível de falarmos de contato com a realidade. Isso significa que nosso contato com a realidade só é possível mediado pela fantasia. Assim, por trás da realidade não há nada, a realidade é ela mesma uma ficção, pois que seu Real, então, é sua própria precariedade. Por isso, Lacan (1966-67/1992a) irá lembrar aos psicanalistas que só interpretar os sintomas não conduz ao final de tratamento; isso só será possível com a travessia da fantasia. Difícil, então, imaginar que a violência seria o abalo de um cotidiano mais ou menos calmo, ou seja, que ela pudesse ser a principal mancha no quadro de uma vida social supostamente pacata. Abandonar a "paixão pelo Real" da violência pressupõe colocar em destaque outro modo de enxergar o fenômeno, a saber, não nos colocando no exercício infinito de preenchimento de suas causas ocultas, mas apontando que esse procedimento evita aquilo que ele pressupõe, denegando, por consequência, suas verdadeiras causas. Este trabalho, resumidamente, objetiva um abandono desse evitar e denegar.

O único modo de problematizarmos o termo violência atualmente é recusando o fascinante engodo de reduzirmos a sua significação ao exercício do que Zizek chama de "violência subjetiva", isto é, aquela que possui um agente claramente identificável e que se mostra em grande escala nos contornos de nosso laço social, praticada, neste contexto, por opressores e oprimidos: atos de crime e de terror, guerras civis e militares, conflitos diplomáticos, a pobreza e a miséria, etc. A violência subjetiva - a mais visível e, por essa mesma razão, a que se encontra sempre em primeiro plano quando as políticas de segurança pública são objeto de discussão no âmbito parlamentar e civil de toda e qualquer nação - é apenas a ponta do iceberg, uma vez que há ainda dois tipos de violência que essa primeira descarta: a violência sistêmica e a objetiva.

Resumidamente, já que a discussão desse ponto será desdobrada ao longo deste trabalho, a violência sistêmica é a consequência catastrófica do funcionamento inequívoco do nosso sistema econômico e político. É importante ressaltar que, tanto na violência objetiva quanto na violência sistêmica, é impossível localizar um sujeito e suas más intenções contra uma ordem moral, jurídica ou política. Há ainda a violência simbólica, que é aquela "encarnada" na linguagem, uma vez que "há uma forma ainda mais fundamental de violência que pertence à linguagem enquanto tal, à imposição a que a linguagem procede de um certo universo de sentido" (Zizek, 2009, p. 10).

Vemos aqui o desafio lançado à psicanálise para uma análise crítica dos fenômenos sociais e políticos. Para isso, buscamos articular neste artigo os conceitos zizekianos para analisarmos o fenômeno da violência buscando compreender suas causas, pensando especialmente nas expressões de violência atreladas à emergência do Real lacaniano. A localização da violência sistêmica e objetiva no pensamento de Zizek será a parte expositiva de nosso trabalho. Será a partir desses dois conceitos que teremos possibilidade de apontar o sentido da violência e o seu Real no pensamento do autor.

 

A Violência Sistêmica do Capital

É fato inconteste que as formas de violência atual impactam a sociedade com a palavra "medo". Segundo Zizek, uma das características mais marcantes de nosso sistema político é um estilo de governo que afirma deixar para trás os velhos combates ideológicos para se centrar na gestão e administração especializadas, resguardando, em função de um discurso biopolítico, a regulação da segurança e do bem-estar das vidas humanas. Isso significa que, com a despolitização e a suposta objetividade social, "a coordenação dos interesses como grau zero da política, a única maneira de introduzir paixão neste campo, de mobilizar ativamente as pessoas, é através do medo, um elemento constituinte fundamental da subjetividade de hoje" (Zizek, 2009, p. 43).

Um exemplo nítido da disseminação dessas políticas do medo foi a Guerra ao Terror empreendida pelo governo de George W. Bush nos Estados Unidos após 11 de Setembro de 2001, que teve como um de seus principais objetivos não conter a violência terrorista, mas sim fortalecer um governo calejado pela crise econômica. A violência social, ao mobilizar nas pessoas o medo, garante ao sistema político cumprir o papel eleitoreiro de soluções mágicas para o problema da segurança pública. Mas qual o conteúdo desses debates? No debate político-partidário atual, em que lugar escutamos que combate-se a violência com a ampliação da democratização do acesso ao ensino público de qualidade e com escolas munidas de projetos pedagógicos socialmente referenciados?

Segundo o filósofo francês Alain Badiou (2006), é necessário compreendermos que o nosso laço social contemporâneo é constituído pela experiência da "atonalidade do mundo"; referência que, no cenário político atual, podemos aproximar de Zizek (2010), pois uma das marcas mais fundamentais da subjetividade política de hoje é a "interpassividade", isto é, uma falsa atividade em que o Outro age pelo sujeito. Sendo assim, uma das formas contemporâneas de violência é o que podemos chamar de violência desprovida de sentido. O antissemitismo nazista, por exemplo, designou a "conspiração judaica" como um inimigo a combater. Em toda guerra, há um assentimento fundamental sobre o inimigo que deve ser combatido.

Um dos grandes perigos contemporâneos é que o discurso capitalista sustenta uma ideologia "sem mundo", privando o sujeito de qualquer possibilidade de orientação quanto ao seu objeto de consumo. O capitalismo é a primeira ordem socioeconômica que destotaliza as redes de significação subjetiva, não sendo, portanto, universal no nível do significado. Não existe uma visão de mundo capitalista global, uma civilização capitalista. Talvez a maior lição da globalização é precisamente que o capitalismo pode se adaptar a qualquer civilização: cristãos, hindus, budistas, etc, do Ocidente ao Oriente. Eis o sentido paradoxal do capitalismo chinês: o capitalismo é bem-sucedido mesmo na ausência de uma democracia de representação partidária. A garantia da livre circulação do capital, da manutenção da lógica de mercado e da denegação fetichista da lógica subjacente ao mercado de futuros, , exigências de governabilidade em um Estado que toma como referente principal a economia política, constituem elos imprescindíveis para os sistemas democráticos de nossos dias.

A realidade que a divisão de classes impõe por exemplo, e a tendência naturalizante em que se expressam as inconsistências do discurso capitalista, são estados de verdade que estigmatizam a violência. Segundo Mauro Iasi, é preciso:

Identificar como expressamos em nossa consciência social essas contradições, de que forma constituímos nossa relação com o Real através do encadeamento de significantes, valores, ideias, juízos que, ao conformar uma determinada visão de mundo, de certa maneira, constituem aquilo que chamamos de Real. (Iasi, 2014, p. 184)

Um exemplo contundente que nos ajuda a tornar inteligível a proposta de Badiou (2006) foram os atos de revolta e violência nos subúrbios de Londres em 2011 e em Paris no ano de 2005. Primeiramente, não podemos explicá-los usando apenas o argumento da pobreza, da miséria ou da falta de perspectivas sociais. Poderíamos muito bem salientar as condições objetivas desses atos: jovens pobres, moradores do subúrbio, no qual as raças se misturam, imigrantes, a priori, suspeitos e vigiados pela polícia, não só desempregados, mas inempregáveis. Assim, a causa da violência é localizada no nível de fenômeno, isto é, da maneira mais realista possível. O sujeito violento é aquele que rompe as coordenadas da vivência supostamente pacífica em sociedade. A violência é aquilo que rompe um estado normal e esperado de contingências. O que este diagnóstico deixa de lado é a dimensão sistêmica da violência, aquela que aponta para o Real em questão: amotinar-se é tomar uma posição subjetiva frente às condições objetiváveis elencadas. Ou o sistema capitalista não necessita desses atores sempre lhes apontando o dedo para que sirvam de exemplo? '- Vejam! A miséria, a imigração ilegal, o trabalho informal: é tudo isso que não queremos em nossa sociedade!' A regressão ideológica, ou a denegação fetichista, segundo Zizek, aqui sustentada é a seguinte: Sei muito bem que o capitalismo depende da diferença de classes, de estado permanente de desequilíbrio social, mas mesmo sim, prefiro acreditar que não, e supostamente me empenho em combater contradições estruturais desse sistema apostando cinicamente, cada vez mais, em seu fracasso. "A realidade não conta, o que conta é a situação do Capital" (Zizek, 2009, p. 20).

O triste fato da situação é que a violência praticada pelos jovens dos subúrbios ingleses e franceses não atingiram a burguesia rica londrina, tampouco o mercado especulativo parisiense, mas foram praticados nos mesmos bairros pobres no qual eles residiam. E aí está o caráter paradoxal: a violência foi direcionada contra eles mesmos. Assim, podemos retomar a noção badiouniana de mundo atonal na medida em que ela nos ajuda a localizar o que de fato está em jogo nos atos dos jovens.

Os protestos praticados não estavam articulados a nenhum tipo de demanda específica, não havia um mundo a se reivindicar, não existia qualquer elaboração subjetiva precisa para que as condições objetivas das vidas desses jovens fossem transformadas, foi apenas violência em si e para si, uma violência reativa, uma impotência mascarada de fúria, uma falsa atividade que implica ainda mais o sujeito em sua passividade frente à violência que é a sua vida. Logo, em seu sentido político, nesses atos violentos não havia uma mensagem a transmitir, mas um sintoma que merece ser interpretado. Seria um ato violento, um acting-out somente, sem ser, de fato, um ato político.

Podemos retomar a interpassividade em Zizek: na ânsia de agir, nos colocamos ainda mais passivos frente às exigências do Outro. "Isso nos leva à noção de falsa atividade: as pessoas não agem somente para mudar alguma coisa, elas podem também agir para impedir que alguma coisa aconteça, de modo que nada venha a mudar" (Zizek, 2010, p. 36). Não é difícil de imaginar que uma das consequências imediatas desses atos foi um aumento na intolerância contra negros, pobres e imigrantes. Um aumento do contingente policial nas áreas violentas e a maior criminalização da população pobre por exemplo. Uma ação que leva à um resultado ainda mais danoso que o estado anterior de coisas.

Presenciamos um exemplo claro dessa ação, no Brasil, com as manifestações de junho de 2013. Uma característica clara dessas manifestações foi a dificuldade em interpretar sua verdadeira demanda, o que abriu espaço para os atos dos denominados Black Blocs, que são atos de violência que objetivam destruir símbolos capitalistas, mas que não colocam em pauta a realidade sob a qual devemos pensar uma mudança. Não devemos esquecer que os resultados danosos não poupam o exemplo brasileiro: depois das manifestações de junho de 2013, um assunto que foi recorrente na pauta política do país foi a criminalização dos movimentos sociais, da população pobre e negra, e o ataque ao direito constitucional de greve dos trabalhadores.

Elaborou-se uma média para a violência, padronizada pelas condições de desigualdade social que justamente sustentam essas contradições. Em outras palavras, a violência é legitimada a partir de um ato brutal que é aceito por ter sido efetuado, preponderantemente, contra um sujeito excluído de uma ordem. O termo de Giorgio Agamben (2010), Homo Sacer, define muito bem a condição desse indivíduo: indivíduo para o qual qualquer qualidade de cidadão lhe foi suspensa. Esse sujeito é privado da humanidade completa por ser sustentado pelo desprezo e pela indiferença, ao mesmo tempo em que se torna uma ameaça por aquilo que pode representar fora da ordem política, já que ocupa esse lugar justamente pela expressão de uma política e uma ética próprias. Os Homo Sacer são violentos. Eles são as pessoas que descem o morro, os jovens da periferia assassinados pela polícia, são os corpos em sua vida nua, que podem ser mortos sem um julgamento legítimo dentro das próprias leis de nosso Estado de Direito.

 

A Violência Objetiva da Linguagem

Nas palavras de Badiou (2006) e Zizek (2009; 2011), as ações violentas que assistimos nos protestos mundo afora não conduziram a um verdadeiro ato político, mas à violência sem significação política que possa mobilizar uma verdadeira ação de transformação social. "Um discurso que não se articula por dizer alguma coisa é um discurso de vaidade" (Lacan, 1968-69/2008b, p. 42). Se entendermos por revolução um ato político que inaugura novas coordenadas sociais, ou seja, um novo modo de laço entre os sujeitos, e se é a revolução social que nos condiciona um modo de pensarmos a realidade, inclusive um mundo sem violência, então não é demais lembrar que o novo não surge desconsiderando o velho. Aí está, então, uma questão central para a temática da violência: se o que desejamos é um mundo novo, sem violência, devemos construir a mudança a partir do mundo que temos. E, nesse mundo que temos, a violência não é um fenômeno natural, mas um problema produzido pelo próprio mundo, inscrito nas coordenadas que sustentam nossa ideia de humanidade. A violência e aquilo que dá especificidade ao mundo que só pode ser humano estão intimamente relacionados. Essa é a pista de Zizek que nos leva à discussão da violência objetiva, ou seja, da violência da linguagem.

Na primavera de 2005, após a publicação de caricaturas do profeta Maomé em um pequeno jornal dinamarquês, as massas muçulmanas reagiram com enorme violência contra o Ocidente e um choque entre civilizações parecia iminente. Interessante é notar, nesse caso, que a reação violenta do povo muçulmano não foi contra as caricaturas propriamente ditas, mas uma reação à imagem ideológica do Ocidente, isto é, "que distorce a realidade ocidental não menos, embora o faça de forma diferente, do que a visão orientalista distorce o Oriente" (Zizek, 2009, p. 59). O que se torna alvo dessa reação violenta é

uma série de símbolos, imagens e atitudes, abrangendo o imperialismo, o materialismo ateu e o hedonismo ocidentais, a par do sofrimento dos palestinos, e foi a tudo isso que as caricaturas dinamarquesas foram associadas. (...) Nas caricaturas condensou-se toda uma torrente de humilhações e de frustrações. Esta condensação, devemos tê-lo presente, é um fato fundamental da linguagem, da construção e imposição de um certo campo simbólico (Zizek, 2009, p. 59).

A partir desse argumento, podemos apontar uma consequência importante: a ideia de que a linguagem seria o meio de conciliação de forças opostas - ou seja, uma tentativa de renovação do pacto pacífico que naturaliza e neutraliza as forças que regem nossa realidade social, sendo, portanto, uma atitude que se opõe radicalmente ao exercício de uma violência direta sem mediação simbólica - perde totalmente sua consistência, seu poder de orientação inequívoco sobre o modelo de enfrentamento da violência. Ao falar, o homem não é mais parte do reino animal dominado pelo instinto cego das necessidades. A ideologia a se combater aqui é a tese de que a entrada na linguagem determina a renúncia à violência. Por efeito, temos que a violência é uma perversão radical da humanidade. Mas, e se invertermos a lógica segundo nos convida Zizek: não seria uma das descobertas mais fundamentais de Freud a natureza perversa da sexualidade, ou seja, de que o problema de como se relacionar com o Outro é uma exigência de trabalho sem medida própria? Os ataques ao jornal satírico francês Charlie Hebdo, a islamofobia e a crítica à liberdade de expressão podem também ser inseridos nessa lógica de pensamento.

Podemos ainda inserir no contexto dessas questões a observação feita por Lacan, (1955-56/2008a) sobre um aforisma do pensamento de Heidegger. Se para este último a linguagem é a morada do Ser, para Lacan, a linguagem é casa de tortura do Ser. É a entrada no simbólico que faz com que o sujeito só tenha acesso à coisa morta pela palavra, uma violência exercida sobre um modo de gozo que precisa ser abandonado. Não é à toa que, portanto, o trauma psíquico em Freud, definido como uma defesa contra o encontro inominável com o Real, seja uma cena contingente, uma ficção produzida para marcar o encontro do sujeito com a fala, com a palavra.

Sejamos categóricos: não se trata, na anamnese psicanalítica, de realidade, mas de verdade, porque o efeito de uma fala plena é reordenar as contingências passadas dando-lhes o sentido das necessidades por vir, tais como constitui a escassa liberdade pela qual o sujeito as faz presentes (Lacan, 1953/1998, p. 257).

O Real da linguagem é o fato de que ela, em sua essência, não significa nada. Como diria Lacan, em alguns de seus principais escritos, não representa a si mesmo, mas representa um sujeito para outro significante. A significação como produzida, eis que serve, como engodo, para nos encobrir o que acontece com a essência da linguagem, na medida em que, por sua essência, propriamente, ela não significa nada. O que prova isso é que o dito, em sua função essencial, não é uma operação de significação (Lacan, 1968-69/2008b, p. 87).

Dessa forma, percebemos a existência de uma violência objetiva que inaugura a condição específica do sujeito humano: ser fundado por um laço, por um semblante de discurso que tem por função primordial, como apontou Freud em Totem e Tabu (1913/1969a) e em O mal-estar na civilização (1927/1969b), proteger o sujeito do encontro com o Real. O Real em relação ao campo da fala é a função da linguagem enquanto essencialmente sem sentido (Lacan, 1953/1998).

Não custa nada lembrar que o Real não é a dimensão oculta da humanidade, mas sua própria carne viva. O Real aqui em jogo não é tomarmos o semblante de laço social que nos sustenta nesse mundo como uma camada falsificadora da realidade, mas tomarmos essa mesma máscara como condição fundamental para que exista um pacto simbólico que supostamente nos assegura estarmos à devida distância de nossa violência mais particular, isto é, ora o pacto de renúncia ao gozo, ora o pacto de "vamos todos gozar". A violência, em sua extensão, é a imposição de uma falsa liberdade.

Conhecemos a situação comum da escolha forçada em que sou livre para escolher com a condição de fazer a escolha certa, de modo que a única coisa que me resta é o gesto vazio de fingir realizar livremente o que o conhecimento especializado me impôs. (Zizek, 2011, p. 61)

Daí a denegação fetichista desse real violento da linguagem: sabemos muito bem que vivenciamos a contemporaneidade de um modo provisório, sabemos que nossa natureza humana está o tempo todo sendo alterada pelo caráter contingente das novas descobertas biogenéticas e que a significação daquilo que somos é vacilante e histórica. Enfim, sabemos de tudo isso, mas, mesmo assim, acreditamos ser radicalmente livres. Nessa crença está nossa condenação: somos forçados a viver como se fôssemos livres.

 

Considerações Finais

Se, por um lado, evitar a "paixão pelo Real" requer um esforço para não tocar na ferida e revelar o trauma sempre aparente - a denegação fetichista em que nos protegemos -, por outro, só a aproximação da causa Real é capaz de desmistificar o espectro ideológico que conserva as aparências das nossas relações cotidianas. As limitações em pensar o Real da violência são impostas por um discurso social totalizante que situa o fenômeno enquanto uma fratura da realidade. Logo, o pensamento político não deveria confluir-se com os engodos da aparência, e sim expor o caráter obsceno que a mantém.

Admitir o caráter inerentemente político do sujeito, como nos propõe uma crítica social em psicanálise, é o ponto de partida para a deformação do conceito de sujeito político. É preciso pensá-lo a partir de um determinante que escapa às identificações sociais, representá-lo apenas pelo potencial transformador do seu próprio desejo, o qual funda "uma violência criadora que se transforma em ato revolucionário capaz de romper o ciclo de repetições e suspender a rede de diferenciais que dá forma ao nosso universo simbólico" (Safatle, 2009, p. 185, grifo nosso). É preciso, porém, não repetir o mesmo erro das experiências de ruptura política do século XX, isto é, transformar esse movimento em uma ação puramente destrutiva:

A astúcia dialética de Zizek lhe permite demonstrar como tal paixão pelo Real inverteu-se necessariamente em seu contrário anulando seu verdadeiro potencial corrosivo. O desejo de destruição da aparência, desejo animado pela crença na possibilidade do advento de uma nova experiência da ordem do Real, realizou-se como paixão pelo efeito espetacular de destruição. (Safatle, 2009 p. 186)

Logo, é dentro da lógica capitalista de uma política só - a política econômica a serviço do capital e contra o povo -, que urge a necessidade de uma política do Real, em que o caráter fantasmagórico de nossos ideais sociais seja localizado na própria ideologia dominante, ou seja, na expressão pura das contradições do capital, e não na presunção de um para além da realidade onde essas mesmas contradições possam se inscrever. Devemos começar nossa crítica ideológica da violência crendo na emergência de uma política que defina novas coordenadas e que não seja ponto de chegada, um ato político que não é regido por suas possíveis consequências.

Um ato com essas características é o que Zizek (2012) chamou de "verdadeira escolha livre", ou seja, uma escolha que não se dá meramente entre as inúmeras possibilidades que se localizam no interior de um conjunto prévio de coordenadas, mas antes, uma que implique o transtorno deste conjunto. Eem outras palavras, escolher mudar as coordenadas simbólicas que sustentam o laço social. O contrário dessa "verdadeira escolha livre" seria a famosa "escolha liberal pós-moderna multiculturalista": o sujeito é livre desde que faça a escolha certa, sem que sua escolha altere o quadro performativo onde ele exerce sua servidão a um significante mestre. É por esta razão que Zizek insiste que o ato analítico em Lacan é uma categoria essencialmente negativa: a intrusão de um novo significante mestre que não implica a estabilização de uma nova harmonia, mas antes a "potência criadora" que coloca em xeque continuamente o conjunto de coordenadas simbólicas que sustentam nosso senso de realidade, dando a aparência de estabilizar as relações humanas.

Em seu ensaio "Problemas no paraíso" (2013), Zizek ilustra esse problema se referindo às manifestações em países que até então pareciam viver um verão ensolarado com o capitalismo:

(...) a arte da política reside em insistir em uma determinada demanda que, embora completamente 'realista', perturba o cerne da ideologia hegemônica e implica uma mudança muito mais radical, ou seja, que embora definitivamente viável e legítima, é de fato impossível (...) um movimento político nasce de alguma ideia positiva em prol da qual ela se esforça, mas ao longo de seu próprio curso essa ideia passa por uma transformação profunda (não apenas uma acomodação tática, mas uma redefinição essencial), porque a ideia em si é comprometida no processo, (sobre) determinada em sua materialização. (Zizek, 2013, pp. 104-105)

A perturbação a que Zizek se refere é causada pela aproximação traumática do Real com a realidade. É necessário que o ato, em seu sentido político, represente a demanda por representação, por reconhecimento não dentro de um ordenamento jurídico-institucional previamente estabelecido, mas que ele produza as próprias condições de ser reconhecido a posteriori. Uma saída possível desse nó advém de um ato que deve ser apreendido pela sua expressão política dentro das contradições da ideologia capitalista, investido de uma força política intrusa e desmistificadora da ordem estabelecida, que apela ao impossível de realizar-se. Trata-se de um verdadeiro ato ético, um ato político, na visão de Alain Badiou, um ato que "força o impossível a existir (...) uma política real existe ali onde se diz que ela é impossível"(Badiou, 1999, p. 38).

Distante do propósito de compreender o fenômeno atual da violência, a mídia hegemônica e os governos em geral realizam uma operação ideológica de desqualificação política de ações "violentas" contra a ordem, perpetuando-as como uma violência desnecessária e excessiva, esvaziada de significação e, por consequência, inaceitável para a sociedade. Elegem o uso da violência como algo típico de ações "extrapolíticas". Porém, é preciso atribuir aos atos violentos posicionamentos políticos que não estão na ordem do dia para um sistema de pensamento dominante, mas que são capazes de recriar as coordenadas do sujeito político, produzindo ações que não podem ser representadas, por exemplo, pelos protestos pacíficos que se inserem na atual ordem democrática.

É nesse sentido que Zizek (2009) defende uma violência política que seja capaz de denunciar o aspecto sistêmico das forças e interesses econômicos que produzem a violência urbana. Essa é a tarefa de uma política do Real: aparentemente vazia de significação, ela compromete o estado dito natural das coisas. O que a justifica são os antagonismos manifestos pelas circunstâncias de um ato político, reconhecido como autêntico ou verdadeiro por apresentar-se investido apenas de uma ética pura, de um desejo de revolução social. Eis aí o desafio político: fazer como que esses atos tenham reconhecimento e representação na estrutura social.

Segundo Zizek (2009) e Safatle (2009), pensar uma política do Real a partir da psicanálise significa se afastar definitivamente da "Paixão pelo Real". No sentido que propusemos neste artigo, esse afastamento representa o abandono da tentativa de legitimar posicionamentos políticos que visam "fornecer uma teoria normativa da ação social e das práticas expressivas no interior de um Estado Justo" (Safatle, 2009, p. 181). Seguindo ainda as ideias de Safatle, podemos afirmar que a leitura psicanalítica dos fenômenos sociais proposta por Zizek evita a todo custo a adesão a uma regulação normalizadora da ação social transformadora. Esse posicionamento teórico, ético e político pode possibilitar uma aproximação maior da sociedade das fissuras do Real que colocam em xeque os parâmetros fundamentais da vida social, condição primordial para problematizar as contradições do discurso vigente, que fornecem uma visão míope, por exemplo, da violência nossa de cada dia.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Tiago Iwasawa Neves
Email: tiagoiwasawa@yahoo.com.br

Andreza Silva dos Santos
Email: andrezagiannini@hotmail.com

Inácio Antônio Silva de Mariz
Email: inaciomariz@hotmail.com

Recebido em: 27/04/2016
Revisado em: 19/12/2016
Aceito em: 17/02/2017

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