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Print version ISSN 2359-0769On-line version ISSN 2359-0777

Rev. Subj. vol.17 no.1 Fortaleza Jan. 2017

http://dx.doi.org/10.5020/23590777.rs.v17i1.4861 

ESTUDO TEÓRICO

 

Fundamentos metodológicos da pesquisa teórica em psicanálise

 

Methodological foundations of theoretical research in psychoanalysis

 

Fundamentos metodológicos de la investigación teórica en psicoanálisis

 

Fondements méthodologiques de la recherche théorique en psychanalyse

 

 

Valéria Maia Lameira (Lattes)I; Márcio Clayton da Silva Costa (Lattes)II; Simone de Miranda Rodrigues (Lattes)III

IProfessora do Programa de Mestrado em Psicologia da Universidade Federal do Maranhão
IIMestre em Psicologia pela Universidade Federal do Maranhão
IIIPsicóloga do Centro de Perícias Técnicas Para a Criança e ao Adolescente e Professora da Instituição de Ensino Superior Faculdade Pitágoras de São Luís

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Há um extenso debate em torno da pesquisa em psicanálise no âmbito dos programas de graduação e pós-graduação das universidades. Ensejado por essa discussão, este artigo se propõe a refletir sobre os fundamentos metodológicos da pesquisa teórica, relacionando-a com a premissa básica da psicanálise sobre a indissociabilidade entre pesquisa e prática clínica. Foram trabalhados conceitos fundamentais, como inconsciente, repetição e desejo, erguidos por Freud e lidos por Lacan, a fim de sustentar o método psicanalítico na pesquisa. As recomendações técnicas freudianas foram apresentadas como um caminho para a pesquisa teórica em psicanálise. O desejo é um aspecto crucial na constituição da práxis psicanalítica, no entanto, é desconcertante questionar o desejo do pesquisador na escolha de seu objeto de estudo. Para a ciência, ele deveria supostamente ser neutro ao desenrolar dos fatos. No campo da pesquisa psicanalítica, o pesquisador não tem como ser apagado de sua pesquisa, já que ele fala de determinado lugar e aparece implicado indissociavelmente ao material que pretende analisar. É essa interrogação sobre o desejo que faz da psicanálise um campo no qual o sujeito-pesquisador não tem como não ser contado. Se o sujeito é considerado pela ciência como incômodo fator de erro, a psicanálise vem reintroduzir a noção de sujeito em sua dimensão própria. Concluímos que a pesquisa não se encontra restrita à clínica, mas só pode se dar tendo a dimensão clínica em seu horizonte. Mesmo que em uma dada pesquisa não haja a referência explícita ao material clínico, ou ainda que o pesquisador em psicanálise não atue clinicamente, esse mesmo pesquisador possui sua própria experiência clínica e é parte de sua pesquisa. Toda pesquisa em psicanálise deve estar apoiada no conceito de inconsciente.

Palavras-chave: inconsciente; desejo; método; pesquisa; psicanálise.


ABSTRACT

There is an extensive debate about research in psychoanalysis within the undergraduate and postgraduate programs of universities. Based on this discussion, this article proposes to reflect on the methodological foundations of theoretical research, relating it to the basic premise of psychoanalysis on the indissociability between research and clinical practice. Fundamental concepts such as unconsciousness, repetition and desire were erected by Freud and read by Lacan in order to sustain the psychoanalytical method in research. The Freudian technical recommendations were presented as a way for theoretical research in psychoanalysis. Desire is a crucial aspect in the constitution of psychoanalytic praxis, however, it is embarrassing to question the desire of the researcher in the choice of his object of study. For science, it was supposed to be neutral in the unfolding of the facts. In the field of psychoanalytic research, the researcher cannot be erased from his research, since he speaks of a certain place and appears to be inextricably implicated in the material he intends to analyze. It is this question about the desire that makes psychoanalysis a field in which the subject-researcher cannot be counted. If the subject is considered by science as an annoying factor of error, psychoanalysis comes to reintroduce the notion of subject in its own dimension. We conclude that the research is not restricted to the clinic, but can only be given the clinical dimension in its horizon. Even if in a given research there is no explicit reference to the clinical material, or even if the researcher in psychoanalysis does not act clinically, this same researcher has his own clinical experience and is part of his research. All research in psychoanalysis must be based on the concept of unconscious.

Keywords: unconscious; desire; method; search; psychoanalysis.

 


RESUMEN

Hay un largo debate en vuelta de la investigación en psicoanálisis en el campo de los programas de grado y post-grado de las universidades. Motivado por esta discusión, este artículo propone reflexionar sobre los fundamentos metodológicos de la investigación teórica, relacionándola con la premisa básica del psicoanálisis sobre la inseparable investigación y práctica clínica. Fueron trabajados conceptos fundamentales, como inconsciente, repetición y deseo, levantado por Freud y leídos por Lacan, para sostener el método psicoanalítico en la investigación. Las recomendaciones técnicas freudianas fueron presentadas como un camino para la investigación teórica en psicoanálisis. El deseo es un aspecto crucial en la constitución de la praxis psicoanalítica, sin embargo, es desconcertante cuestionar el deseo del investigador en la elección de su objeto de estudio. Para la ciencia, él debería ser neutro al desenrollar de los hechos. En el campo de la investigación psicoanalítica, el investigador no tiene cómo borrarse de su investigación, ya que él habla de determinado lugar y aparece implicado inseparablemente al material que pretende analizar. Es esta interrogación sobre el deseo que hace del psicoanálisis un campo donde el sujeto-investigador no tiene cómo no ser contado. Si el sujeto es considerado por la ciencia como incómodo factor de error, el psicoanálisis viene a reintroducir la noción de sujeto en su propia dimensión. Concluimos que la investigación no se encuentra limitada a la clínica, pero solo puede ocurrir teniendo la dimensión clínica en su horizonte. Aunque en una determinada investigación no haya la referencia explícita al material clínico, o aún que el investigador en psicoanálisis no actue clínicamente, este mismo investigador posee su propia experiencia clínica y es parte de su investigación. Toda investigación en psicoanálisis debe estar apoyada en el concepto de inconsciente.

Palabras clave: inconsciente; deseo; método; investigación; psicoanálisis.


RÉSUMÉ

Il y a un grand débat sur la recherche en psychanalyse dans le contexte du premier cycle et deuxième cycle des universités. Á cause de ce débat, cet article se propose de réfléchir sur les fondements méthodologiques de la recherche théorique, en faisant du rapport avec le principe fondamental de la psychanalyse sur l'inséparabilité entre recherche et pratique clinique. Concepts fondamentaux ont été travaillés, comme l'inconscient, la répétition et le désir, érigés par Freud et lus par Lacan afin de soutenir la méthode psychanalytique. Les recommandations techniques de Freud ont été présentées comme un moyen de recherche théorique en psychanalyse. Le désir, c'est un aspect crucial dans la constitution de la praxis psychanalytique, néanmoins, c'est déconcertant d'interroger le désir du chercheur dans le choix de son objet d'étude. Pour la science, le chercheur devrait être neutre aux déroulement de faits. Dans le domaine de la recherche psychanalytique, il n'y a pas moyen du chercheur être supprimé de son recherche, car il parle d'un certain endroit et il semble impliqué inextricablement à la matière qu'il souhaite analyser. C'est cette question sur le désir qui fait la psychanalyse un terrain sur lequel le sujet-chercheur ne peut pas compter. Si le sujet est considéré par la science comme facteur d'erreur, la psychanalyse vient réintroduire la notion de sujet dans sa propre dimension. Nous concluons que la recherche ne se limite pas à la clinique, mais elle ne peut existe que par la dimension clinique en son horizon. Même si dans une recherche donnée, il n'y a pas de référence explicite au matériel clinique, même si le chercheur en psychanalyse ne travaille pas cliniquement, ce même chercheur a son propre expérience clinique et cela fait partie de son recherche. Toutes les recherches en psychanalyse doivent reposer sur le concept de l'inconscient.

Mots-clés: inconscient; désir; méthode; recherche; psychanalyse.


 

 

Ouvimos recorrentemente afirmações de que a psicanálise é uma prática clínica individual e elitista, cujo arcabouço conceitual se sustenta exclusivamente no material advindo da práxis exercida nos consultórios dos psicanalistas. Ainda que afirmemos de antemão discordar de tais assertivas em diversos aspectos, não pensamos ser completamente dispensável nos interrogar sobre algumas de suas implicações. Dentre essas, interessam-nos, para a elaboração deste artigo, as que concernem diretamente ao que pode ser chamado de pesquisa teórica em psicanálise, uma vez que passou a fazer parte dos currículos de vários cursos universitários de graduação e pós-graduação, pondo em evidência, no campo acadêmico, a discussão sobre as possibilidades de utilização do método psicanalítico em contextos não clínicos.

Nossa proposta com o presente artigo é propiciar, a partir da psicanálise, uma reflexão sobre os fundamentos metodológicos da pesquisa teórica. Em outras palavras, interrogamo-nos sobre quais são os alicerces que permitem estruturar e desenvolver uma pesquisa teórica que esteja em consonância com o modelo de pesquisa elaborado no campo psicanalítico. Visamos concretizar essa nossa reflexão por meio de uma pesquisa bibliográfica. Entendemos que, nesse modo de pesquisa, o pesquisador se propõe não apenas a reproduzir o material que encontrou sobre um dado assunto, mas a trabalhar a partir das contribuições dos autores de estudos concernentes ao tema proposto. Para tanto, vale-se dos registros disponíveis em livros e artigos, de maneira a alcançar conclusões que façam avançar os conceitos e o próprio entendimento sobre determinado assunto, Em nosso caso, os conceitos e entendimento que temos sobre a pesquisa psicanalítica no âmbito acadêmico.

Valemo-nos da indicação que fazem Lakatos e Marconi (2003) sobre a pesquisa bibliográfica não ser mera repetição do que já foi dito ou escrito sobre certo assunto, mas o exame de um tema sob novo enfoque ou abordagem. Essa é uma consideração importante, pois vai de encontro à ideia, por vezes presente no meio acadêmico, de que a pesquisa bibliográfica consiste apenas em reproduzir e sistematizar conteúdos previamente estabelecidos, sendo sua contribuição limitada a apresentar o estado da arte em que se encontram as pesquisas sobre um dado assunto.

A pesquisa teórica em psicanálise não pode ignorar o que a experiência psicanalítica já elaborou sobre o funcionamento próprio do aparelho psíquico. Aquele que pesquisa está igualmente submetido a esse funcionamento. Logo, o pesquisador não pode acreditar estar do lado de fora de sua pesquisa. Ao trazer para sua pesquisa o trabalho de outros autores, entra com algo de seu.

 

A Pesquisa em Psicanálise

Advertidos quanto ao preconceito que concebe a pesquisa bibliográfica como mera repetição, referimo-nos ao passo dado por Freud (1920/1996e) em sua formulação teórica quando afirma que o inconsciente situa o desejo em uma regência que está além do princípio de prazer, numa tendência à repetição.

Lacan (1969-70/1992) lê o conceito freudiano de gozo e observa que, no giro da repetição, o que há é uma perda de gozo, perda que impõe um algo a se recuperar e que ele chama, à luz da proposição de Marx sobre a mais-valia, mais-de-gozar. O mais-de-gozar é função da perda de gozo, perda a que o sujeito se encontra fadado por estar submetido às leis da linguagem.

Ao propor o inconsciente estruturado como linguagem, Lacan (1969-70/1992) mostra que o sujeito afetado pelo significante se torna um ser de linguagem, portanto, dividido. Dessa divisão subsiste um resto que é nomeado objeto pequeno a. No cerne do mais-de-gozar, encontra-se esse objeto pequeno a, e é ele que está em jogo na perda de gozo.

Lacan (1969-70/1992) afirma, referindo-se à função do objeto a, que o que lhe assinala nos textos de Freud é a repetição no falante. A repetição leva ao encontro com a falta, isto é, pela repetição é que é possível reconhecer a falta de objeto, marca do desejo do sujeito, um desejo que resulta da ação do significante sobre os homens e mulheres.

Se podemos dizer que a repetição nos encaminha ao encontro com a falta, temos já assinalada em nosso trabalho uma importante distinção entre repetir e meramente reproduzir. Repetir não é apenas reproduzir algo de modo igual. A repetição coloca em cena a possibilidade de uma retomada, de uma reconstrução.

Esse pequeno recorte de um conceito teórico já nos mostra como em psicanálise a repetição está colocada como uma estrutura, o que quer dizer uma combinação de letras que são inscritas de maneira singular, a cada vez, por cada um. Uma reescrita aparece como possibilidade própria da repetição.

Assim, sublinhamos que o interesse do psicanalista ao propor uma pesquisa teórica, ainda que dirigida à produção de um saber que conte na matemática de artigos científicos, possui como bússola o saber inconsciente; saber que, quando levado em conta, operado pela causa do desejo, permite àquele que se coloca como pesquisador um deslocamento de sua posição inicial à produção de um objeto parcial, um objeto de desejo.

Nesse sentido, destacamos uma distinção, à qual nem sempre se atenta, entre uma pesquisa "em psicanálise" e uma pesquisa "sobre psicanálise". A última pode se sustentar em construtos outros que não os psicanalíticos para refletir sobre dados, fenômenos ou conceitos concernentes ao campo psicanalítico. Por exemplo, pode ser proposta uma revisão sistemática sobre tudo que foi produzido no Brasil sobre o tema 'angústia de castração' nos últimos cinco anos. Essa pesquisa realizaria um levantamento bibliográfico e apresentaria o que foi encontrado, sendo um formato de pesquisa que, apenas por si mesmo, nada tem de psicanalítico.

O surgimento e a constituição do que pode ser chamado propriamente de pesquisa em psicanálise está fortemente associado ao processo de formação científica de seu fundador, processo no qual, não obstante, é possível identificar importantes momentos de ruptura. Se progressivamente Freud se afasta dos métodos em que se inicia como pesquisador - aqueles concernentes aos campos da zoologia, fisiologia e neurologia -, é necessário também reconhecer que foi apenas por referência a esses métodos, com os quais posteriormente rompe, que ele pôde construir o método de pesquisa psicanalítica em sua originalidade.

A história da pesquisa em psicanálise remonta às pesquisas realizadas por Freud sob a orientação de proeminentes personalidades que encarnavam em seu ensino os pontos essenciais do pensamento científico do final do século XIX e início do século XX. Nesse momento, Freud vai à Paris trabalhar com Charcot, cujo método clínico lhe causou forte impressão e marcou seus estudos seguintes. Charcot, ao considerar a histeria - que até então era votada ao descrédito pelo saber médico vigente - como uma entidade clínica própria, permitiu a Freud lançar um profícuo questionamento sobre o sintoma histérico, o qual, então, passa a ser concebido por Freud como um modo de representação de ideias que habitam o aparelho mental, mas sem alcançar a consciência, em razão de um trauma (Lo Bianco, 2003).

Chamamos atenção para a noção de trauma, conceito que nos leva a uma retomada da noção de repetição. O trauma implica um corte na cadeia associativa entre ideias e afetos, numa dinâmica de constituição de subjetividade que, mesmo não chegando à consciência, produz efeitos sobre ela. A partir daí, impõe-se uma inflexão no percurso de Freud já que se fazia imprescindível, a invenção de um modo de pesquisa próprio para a concepção do psiquismo que então surgia.

O traumatismo se apresenta no início da história da psicanálise como aquilo que, da ordem do inassimilável, é discernível na neurose traumática. Após algum tempo de labor conceitual e clínico, Freud (1920/1996e) pôde formular sua interrogação sobre a insistência do trauma em se fazer presente por meio dos sonhos, quando tal condição contradiz a concepção de aparelho psíquico então vigente na psicanálise, segundo a qual o princípio que dominava toda a vida psíquica era o chamado princípio de prazer. De acordo com esse princípio, o psiquismo funcionava sempre de modo a obter sensações prazerosas e afastar-se das fontes de desprazer.

A repetição aparece então como engrenagem do aparelho psíquico, que tem o trauma como fonte de um excesso de excitação. Devemos recordar que, valendo-se do princípio de constância, Freud (1920/1996e) assimila o prazer a uma redução da excitação, enquanto o desprazer é lido como um acúmulo de tensão. O trauma, no entanto, não pode ser tamponado pelo funcionamento homeostático do princípio de prazer. A repetição não está a serviço do princípio de prazer somente, pois na repetição algo resta do escoamento da excitação pelo qual o prazer se efetua.

Para além do princípio de prazer e do próprio princípio de realidade, o que Freud (1920/1996e) assinala é que o desprazer se impõe, de modo que a obtenção de uma felicidade plena e harmoniosa, comumente tomada como propósito e objetivo original da vida, encontra-se obstruída pela estruturação subjetiva do ser falante. Esse desprazer que se impõe demarca a impossibilidade de retorno à experiência de uma satisfação originária. Há uma tendência, na repetição, pela busca por retornar a uma satisfação primária, ao reencontro com a falta.

No esteio dessas formulações, a repetição também foi traduzida por Lacan (1964/2008) como um encontro com o real. Ele introduz essa noção em seu Seminário 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, ao destacar a diferença entre tiquê e autômaton, evidenciando que repetição não é reprodução, conforme já assinalamos. Nesse seminário, observamos a indicação de que o real está para além do retorno, da volta, da insistência dos signos comandados pelo princípio de prazer. O que está por trás do autômaton, o que escapole, é tiquê. É sob a forma do trauma que o real é apresentado na psicanálise; sob a forma do que é inassimilável no real. A repetição se conserva na insistência do trauma em se fazer lembrar, no encontro com o real como encontro faltoso.

No funcionamento inconsciente, a repetição, enquanto encontro com o real, demanda o novo ao tornar patente a falta de um objeto que pudesse propiciar satisfação completa, que viesse fazer frente à errância desejante do sujeito.

Pretendemos até aqui ter explicitado minimamente como um conceito fundamental da psicanálise - o de repetição - comparece na pesquisa que se propõe psicanalítica: mais do que formular conceitos, a pesquisa em psicanálise vale-se deles para sua realização.

O objeto da psicanálise é o inconsciente. Tratando-se de uma pesquisa em psicanálise, esse sempre é seu objeto central, não delimitado; um objeto sem consistência e que se desdobra. E é em relação a esse próprio desdobramento que se assenta o método de pesquisa que lhe é apropriado. De acordo com Lo Bianco (2003), "[...] o inconsciente se constitui, se faz presente no ato mesmo da escuta do analista, no momento mesmo da presença do analista junto a quem fala" (p. 119).

Freud (1912/1996a) considera que, em psicanálise, pesquisa e tratamento são coincidentes. A pesquisa em psicanálise, por suas peculiaridades, não pode ser dissociada da prática clínica. Por um lado, isso nos coloca frente a uma relação muito própria entre teoria e prática, já que não se reconhece uma dissociação entre as duas. Por outro, deixa-nos a seguinte questão: toda pesquisa psicanalítica está restrita à prática clínica? Por enquanto, ficamos com a questão em suspenso.

Encontramos em dois textos freudianos aquelas que consideramos as principais contribuições teóricas diretas de Freud à discussão sobre a pesquisa em psicanálise. Um deles é o texto sobre o narcisismo (Freud, 1914/1996c) e o outro é o texto que discute a noção de pulsão (Freud (1915/1996d).

Em Sobre o Narcisismo, Freud (1914/1996c) formula que a psicanálise, diferentemente de uma ciência especulativa, não conta inicialmente com definições irretocáveis e límpidas, mas apenas com ideias ainda imprecisas que serão desenvolvidas com o tempo ou mesmo descartadas, caso sejam encontradas outras mais apropriadas. Freud afirma que os conceitos psicanalíticos são depreendidos da observação e interpretação empírica. Em outros termos, a prática fornece o material de que se alimenta a teoria. O peso maior é dado ao fator empírico.

No texto sobre a pulsão e suas vicissitudes, Freud (1915/1996d) irá retomar e desenvolver a ideia exposta em Sobre o narcisismo. Aponta que o início de toda atividade científica consiste na descrição, agrupamento, classificação e correlação dos fenômenos. É dito por Freud que, mesmo na fase de descrição do fenômeno estudado, faz-se necessário impor ao material bruto algumas ideias, as quais são advindas da observação, mas não apenas dela. Essas ideias advindas da observação, bem como certamente da experiência, cogitações e outros estudos do pesquisador, irão se converter no arcabouço conceitual de uma disciplina.

Portanto, não apenas a prática alimenta a teoria, como Sobre o narcisismo poderia nos dar a entender, mas a elaboração teórica também dá sustentação à prática. De acordo com Lacan (1954-55/2010), é evidenciado na obra freudiana que só podemos avançar no campo empírico a partir do trabalho com os conceitos.

Freud (1915/1996d) chama a atenção para a inevitável imprecisão dos conceitos quando da estruturação de uma investigação científica, de forma que só posteriormente, no desenvolvimento dessa investigação, é que as proposições vão adquirindo contornos mais definidos. É por repetidas referências ao campo investigado que se torna possível alguma compreensão do material empírico, ao qual, de início, são aplicadas algumas ideias com as quais possam ser estabelecidas significativas relações.

Quando, a partir da psicanálise, alguém se propõe a formular uma pesquisa sobre dado conceito, dado fenômeno, o que se observa é a reconstrução desse mesmo caminho: os conceitos e ideias vão ganhando corpo com o próprio desenrolar da pesquisa, nesse continuum entre teoria e prática. Progressivamente e dialeticamente, o trabalho vai se tornando mais consistente, possibilitando uma maior coerência e solidez da pesquisa.

Do que nos foi possível apreender até aqui, destaca-se a afirmação do próprio Freud (1912/1996a; 1915/1996d) de uma espécie de constante e íntima vinculação na psicanálise entre a observação empírica e a reflexão teórica, entre a práxis e a elaboração conceitual, de forma que nem sempre é possível destacar um momento do outro, estando os dois inextrincavelmente articulados. Como nosso interesse neste trabalho está centrado na pesquisa teórica, em deixar mais claras as balizas que orientam a realização da pesquisa psicanalítica, apresentamos a seguir aquelas que acreditamos serem fundamentais.

 

O Trabalho com os Conceitos

Encontramos no Seminário 1: Os escritos técnicos de Freud uma comparação feita por Lacan (1953-54/2009) entre a conceitualização em psicanálise e a arte do bom cozinheiro, que sabe cortar o animal bem na junta, soltando a articulação com menor resistência. Por analogia, o instrumento que utilizamos é o conceito. Ao passo que o cozinheiro, em seu ofício, utiliza-se da faca, o psicanalista disseca com os conceitos.

A psicanálise, contudo, manifesta que esse nosso instrumento, o conceito, possui suas restrições. A elaboração conceitual só se dá marcada por uma evidente limitação, sendo, por isso, comparada por Lacan (1964/2008) ao cálculo infinitesimal.

O cálculo infinitesimal, segundo esclarece Carvalho e D'ottaviano (2006), é o cálculo que opera com os chamados infinitésimos. Sem levarmos em consideração os vieses conceituais mais aprofundados, os infinitésimos podem ser designados como a menor parte em que um continuum pode ser fracionado. O infinitésimo é um número menor que qualquer número real e é indefinidamente pequeno.

Com tal referência, Lacan nos indica que o conceito não apreende, não captura, uma realidade, mas tão somente pode se avizinhar dela. Os conceitos, de modo geral, têm implicados em sua realização um salto. É condição para o trabalho conceitual sempre levar em consideração um fosso entre o conceito e o que ele pretende designar, o que apenas tende a tornar-se mais evidente na psicanálise, na qual podemos encontrar explicitamente afirmado o caráter evanescente, inapreensível, do inconsciente, do qual só podemos falar de modo aproximativo.

Também em razão desse modo de conceber os conceitos, a pesquisa em psicanálise não é uma pesquisa linear, completa. Ela se faz por idas e recuos, tropeços, resistências e dúvidas. Mas nem por isso deveremos deixá-la na escuridão e não visar a uma maior limpidez e precisão em suas formulações. Freud (1923/1996f) destaca na obra intitulada "O Ego e o Id": "[...] a pesquisa psicanalítica não podia, tal como um sistema filosófico, produzir uma estrutura teórica completa e já pronta, mas teve de encontrar seu rumo passo a passo ao longo do caminho da compreensão das complexidades da mente [...]". (p. 48)

Não se parte, portanto, de um saber antecipado, fechado e constituído. Impõe-se o caráter de trabalho contínuo na pesquisa em psicanálise. Faz-se necessário um questionar-se constante sobre os fundamentos, inquirindo-se os pressupostos, interrogando-se a construção dos conceitos e sua articulação ao corpo teórico. É salutar que o pesquisador, ao defrontar-se com as elaborações anteriores, não as situe simplesmente como verdades estáticas e inquestionáveis, mas sim como conceitos submetidos a um funcionamento dialético, pelo qual se mantêm vivos e em constante movimento. Nessa perspectiva de trabalho, a pesquisa teórica assume um papel fundamental para o fazer analítico. Por conseguinte, é importante ressaltar, em consonância com o que é destacado por Lo Bianco (2003), que não é possível atribuir unicamente ao contato com a clínica toda a possibilidade de conceituação psicanalítica. Conforme desenvolvido pela autora:

Não se trata, pois, da observação pela observação, de esperar de uma sessão analítica "o que vier", de estar diante do analisante como um leigo estaria. É preciso que o mergulho na clínica seja acompanhado da elaboração, do trabalho analítico sobre as questões que sustentam o contato com o paciente. Só assim pode-se valer do que emerge na clínica. O que estamos considerando o trabalho do analista inclui o que vemos ser a preocupação de Freud com a busca de formulações teóricas mais claras e precisas (Lo Bianco, 2003, p. 120).

A psicanálise não se esgota na observação e interpretação empírica, por isso o material advindo da clínica não se configura como suficiente por si mesmo. Defrontamo-nos, então, com a importância do trabalho teórico na psicanálise. O empenho freudiano por maior clareza e precisão, acima asseverado por Lo Bianco (2003), no entanto, não deixa de ser problemático. Sob a própria pena de Freud (1926/1996g), encontramos um propósito mais modesto quando ele diz que, se não for possível ver as coisas de modo claro, ao menos poderemos ver claramente quais são as obscuridades. O fato é que a busca por clareza e precisão não pode nunca deixar de ter em perspectiva o que é dito por Freud (1915/1996d): "O avanço do conhecimento, contudo, não tolera qualquer rigidez, inclusive em se tratando de definições" (p. 123).

Então, ao levar em consideração o saber do inconsciente, não se deve partir, como já afirmamos, de um saber dado como sem furos. E mais: é preciso abrir mão de qualquer pretensão de chegar a esse saber conclusivo e irretocável. A pesquisa em psicanálise é tomada na perspectiva de uma abertura à revisão, já que é também pela contínua retomada dos conceitos, conforme nos ensina Lacan (1954-55/2010), pelo remanejamento e constante enriquecimento da conceitualização psicanalítica, que a prática pode avançar.

É instrutivo lermos como Freud formaliza as regras técnicas do trabalho analítico em seus escritos técnicos. Freud (1913/1996b), na realidade, utiliza o termo recomendação em vez de regra, dizendo não reivindicar para suas recomendações qualquer aceitação incondicional. Para ilustrar sua postura em relação ao método de trabalho, ele evoca o jogo de xadrez. No jogo de xadrez, apenas as jogadas iniciais e finais podem ser apresentadas de forma sistemática, havendo entre a jogada inicial e a jogada final uma infinidade de jogadas possíveis.

O que podemos perceber na leitura de Freud (1912/1996a) é que ele se propõe a fornecer balizas, pontos de referência, mas, ao mostrar seu modo de proceder, em nenhum momento diz que esse é o único possível. Pelo contrário, afirma ser plenamente possível que não seja o mais apropriado para todos.

Sobre esse aspecto, Lacan (1953-54/2009) nos indica que a liberdade com que Freud trata as recomendações técnicas, por si mesma, já é um ensinamento. Devemos interrogar-nos sobre a implicação dessa lição freudiana no que tange ao tema que estamos discutindo. A pesquisa em psicanálise é um campo aberto, não redutível a qualquer sistematização, conforme explicitado no texto freudiano:

A extraordinária diversidade das constelações psíquicas envolvidas, a plasticidade de todos os processos mentais e riqueza dos fatores determinantes opõem-se a qualquer mecanização da técnica; e ocasionam que um curso de ação que, via de regra, é justificado possa, às vezes, mostrar-se ineficaz, enquanto outro que habitualmente é errôneo possa, de vez em quando, conduzir ao fim desejado. Estas circunstâncias, contudo, não nos impedem de estabelecer para o médico um procedimento que, em média, é eficaz. (Freud, 1913/1996b, p. 139)

É importante, portanto, questionar-se sobre a técnica, sobre o método de trabalho empregado. O que não é viável é catalogar a técnica, pré-fabricar o método. Não podemos desconsiderar a singularidade do objeto pesquisado e do próprio pesquisador. Dessa consideração pela singularidade é que se constitui a original contribuição de cada pesquisa em psicanálise. A experiência analítica freudiana, de acordo com Lacan (1953-54/2009), "representa a singularidade levada a seu extremo" (p. 33). Dessa experiência analítica singular iniciada por Freud é que se depreende o método, muito embora, em virtude do caráter inaugural da análise, possa ser dito que Freud não estivesse aplicando um método.

 

A Pesquisa que Acha: Atenção Flutuante

Entendemos ser no sentido de acompanhar a radical subversão imposta pelo pensamento freudiano em relação a tudo que se concebia como pesquisa até então que Lacan faz questão de explicitar sua desconfiança para com esse termo, conforme lemos na seguinte citação:

Vão me dizer - de qualquer modo, a psicanálise é uma pesquisa. Muito bem, permitam-me enunciar, e mesmo me dirigindo aos poderes públicos para quem este termo pesquisa, há algum tempo, parece servir de senha para muitas coisas - o termo pesquisa, eu desconfio dele. Para mim, jamais me considerei um pesquisador. Como disse uma vez Picasso, para o maior escândalo das pessoas que o rodeavam - Eu não procuro, eu acho. Há, aliás, no campo da pesquisa dita científica, dois domínios que podemos perfeitamente reconhecer: aquele em que se procura, e aquele em que se acha. (Lacan, 1964/2008, p. 15)

Essa desconfiança de Lacan nos parece ser dirigida a toda uma série de pressuposições e regras de conduta que usualmente são correlacionadas à noção de pesquisa, as quais são seriamente abaladas pela obra freudiana na medida em que representa uma ruptura em relação a toda uma tradição de métodos de pesquisa estabelecidos e melhor adaptados ao saber universitário e às pretensões acadêmicas. Lacan desconfia da pesquisa que procura.

Pensamos encontrar na fala de Lacan (1964/2008), que toma de empréstimo as palavras de Picasso e as profere a propósito da pesquisa, a ressonância da regra técnica da atenção flutuante proposta por Freud (1912/1996a). O analista não procura, mas escuta com a atenção uniformemente suspensa o que lhe diz o analisante que se submete à associação livre, evitando pré-selecionar o material que submete à análise. Assim, pela escuta analítica é que se pode achar nesse discurso as marcas da presença do sujeito desejante, enquanto ele mesmo é efeito do funcionamento significante.

Não há na psicanálise um objeto que pode ser minuciosamente estudado, catalogado, cartografado antes do que seria propriamente uma intervenção, a prática clínica. É a partir do trabalho clínico que o objeto da psicanálise coloca-se em cena. O objeto não é procurado, é reencontrado.

Se considerarmos, como Lacan (1964/2008), que por trás da pesquisa que procura sempre está o já achado - o que só pode resultar em uma pesquisa complacente -, vemos na regra da atenção flutuante mais uma reafirmação de que o caminho para elaboração de uma pesquisa em psicanálise é inassimilável a uma receita estabelecida de antemão por um manual. A cada vez ela precisa ser forjada, atenta à singularidade de cada situação. Do contrário, apenas encontraremos o que já havia sido achado.

Não à toa, Coelho e Santos (2012), ao defenderem a possibilidade de pesquisa em psicanálise em situações não estritamente analíticas, recorrem a essa técnica pela qual Freud estabelece o que é a contrapartida do analista à regra da associação livre: a atenção flutuante. Os referidos autores consideram que toda pesquisa em psicanálise pressupõe que o pesquisador esteja submetido às exigências provenientes da prática clínica.

Coelho e Santos (2012) afirmam que o método de pesquisa em psicanálise, diferentemente do que possa parecer, não é marcado pela ausência completa de procedimentos. Na realidade, o método se sustenta sobre os pilares da fala e da escuta, da associação livre e da atenção flutuante. Recursos esses utilizados no manejo clínico psicanalítico.

De acordo ainda com os autores acima citados, mesmo no trabalho teórico, na pesquisa bibliográfica, deve-se seguir a recomendação de que o analista mantenha a sua atenção uniformemente suspensa, mantendo-se atento ao que possa aparecer. Tal recomendação condiz com o que encontramos em Lacan (1953-54/2009) quando afirma que comentar um texto é como fazer uma análise.

Conforme Lacan (1964/2008), é voltando, retornando, retomando o caminho que se discrimina a rede de significantes. Portanto, via de regra, a significação se dá por retroação. É depois que se coloca o ponto final que o que havia sido enunciado antes se recobre de sentido, o qual que é metonímico, evanescente. Daí a importância de não se antecipar, de manter-se atento, de mesmo evitar compreender muito e cedo demais, como sugere Lacan (1953-54/2009), sendo antes recomendável certa recusa de compreensão.

Freud (1912/1996a) já alegara que, muitas vezes, o que se escuta são coisas cujo significado só nos aparecerá posteriormente. A atenção flutuante evita as pré-seleções pelas quais provavelmente só se encontrará aquilo que já se sabia. Não se recomenda, inclusive, que um caso em análise seja a priori destinado ao estudo científico, pois as pressuposições do cientista deixariam sua marca nos resultados obtidos. Freud considera que os melhores resultados são obtidos em estudos de casos que já se passaram, pois a ausência de expectativas sobre seu desenrolar resultam em uma disposição mais aberta às reviravoltas com que o analista pode se deparar no tratamento.

No trabalho teórico, julgamos poder reconhecer a observância à técnica da atenção flutuante no caráter de perpétua revisão dos conceitos psicanalíticos. O pesquisador em psicanálise não adota uma postura dogmática pela qual sua atenção seria completamente direcionada apenas aos fatos e ideias que confirmassem o que já se encontra estabelecido em seu cânone. Assim, ao esforçar-se por não engessar a teoria, o pesquisador adota uma atitude correlata à suspensão uniforme da atenção, por meio da qual pode defrontar-se com um desenvolvimento conceitual não totalizante.

A conceitualização que se pretende total, que não consegue reconhecer os furos em seu próprio discurso, só pode constituir-se ao preço de um apagamento do sujeito e do seu desejo, proposta incompatível com o que se denomina psicanálise.

 

O Desejo do Pesquisador e o Lugar do Sujeito na Pesquisa

Conforme apresentado, Freud é obrigado, ao propor o inconsciente como objeto de estudo, a conceber uma noção de pesquisa completamente díspar de tudo que havia sido proposto até então. Tendo em vista que é por seus efeitos no discurso que o inconsciente pode ser atualizado, vamos ao encontro do que é sustentado por Lo Bianco (2003) quando diz que, para Freud, trata-se de desenvolver uma forma de lidar com um objeto que só pode ser apreendido de viés, na prática analítica, ou seja, que se dá a ouvir em análise e sob a condição transferencial. O modo privilegiado pelo qual as manifestações do inconsciente são acessíveis em um trabalho psicanalítico implica de maneira direta na já reiterada indissociabilidade entre a teoria e prática.

Lacan (1964/2008), ao introduzir seu Seminário 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, afirma que o que pode especificar uma ciência é ter um objeto, mesmo que esse objeto possa mudar no decorrer da história, como no caso da física. Referindo-se ao debate sobre a cientificidade da psicanálise, ressalta o fato de que o objeto em psicanálise coloca a questão do desejo como inegligenciável. Também nesse aspecto vemos que a prática psicanalítica distingue-se de todas as outras práticas científicas.

O desejo é um aspecto crucial na constituição da práxis psicanalítica. É usualmente desconcertante, no entanto, questionar o desejo do pesquisador na escolha de seu objeto de estudo. Ele deveria supostamente ser neutro, indiferente ao desenrolar dos fatos. Não se questiona um cientista sobre seu desejo de cientista. Por que será que o cientista não deve colocar a si mesmo em causa em sua produção científica?

Essa é uma questão que permite um longo desenvolvimento, neste momento, entretanto, não desviaremos de nosso propósito, mas ao menos citaremos um caminho: o aparelho de quatro patas, com quatro posições, que pode servir para definir quatro discursos radicais, conforme apresentado por Lacan (1969-70/1992) em seu Seminário 17: O avesso da psicanálise. À luz dessa elaboração teórica, fazemos alusão a um dos caminhos possíveis à pesquisa psicanalítica, que é tratar seus dados a partir da articulação de dois desses discursos: o discurso do analista e o discurso tomado pela ciência moderna, o discurso universitário. Terreno árido, mas premente por colocar em questão os fundamentos epistemológicos e metodológicos desses dois campos.

Esta discussão é travada num terreno movediço - já que o funcionamento do discurso do analista é marcado pela singularidade de ter no lugar de agente o objeto causa de desejo, ao passo que, no campo da pesquisa científica, o que agencia seu discurso é a pretensão de ter estabelecido de saída um saber dos conceitos teóricos. Ao visar confirmar suas hipóteses várias vezes, o que a ciência intenta realizar é a produção de um saber que independe do desejo de qualquer sujeito.

O desejo do analista é o que permite a ele funcionar como representante representação do objeto nomeado, por Lacan, causa de desejo. Assim, o desejo do analista posto em ato consiste em submeter seu desejo de saber ao saber inconsciente, o que quer dizer considerar um real, um inabordável, como fio condutor de toda experiência subjetiva. Não é possível a produção de um saber sem falhas, sem lacunas, sem desejo e sem sujeito. Em termos estruturais, trata-se de conceder um lugar ao sujeito dividido, tal como evidenciado por Lacan (1969-70/1992) no cerne da experiência freudiana.

Por saber que não se encontra à parte de sua pesquisa, é quecabe ao pesquisador o permanente questionamento crítico de seu procedimento. Se a psicanálise, por meio da experiência clínica, já nos revelou que o inconsciente é acessível pelo discurso constituído por significantes dispostos em um mundo de linguagem, mundo simbólico que permite o laço transferencial com um analista que escuta o falante, precisamos reconhecer, em conformidade com o que é asseverado por Lo Bianco (2003), que o analista e o analisante, tanto quanto o material inconsciente que emerge na análise, constituem-se também como objetos da pesquisa em psicanálise. Dessa maneira, inclui-se o próprio pesquisador como um sujeito que conta na pesquisa. A descoberta da psicanálise se deu dessa forma, como nos mostrou Freud ao nos relatar suas experiências, lapsos, sonhos e dúvidas na construção da sua teoria.

Lacan (1953-54/2009) diz que, para Freud, estava dado, desde o início, que a psicanálise só faria algum progresso caso ele se analisasse. Isto é, no campo da pesquisa psicanalítica, como afirma Lo Bianco (2003), o pesquisador não tem como ser apagado de sua pesquisa. A neutralidade então é indesejável e mesmo impossível, pois o pesquisador fala de determinado lugar e aparece implicado indissociavelmente ao material que pretende analisar. O desejo do analista, tanto quanto o do analisante, está em questão nesse estilo de pesquisa. É essa interrogação sobre o desejo que faz da psicanálise um campo no qual o sujeito não tem como não ser contado.

O que importa na pesquisa que se pretende psicanalítica é preservar o modo próprio de proceder em psicanálise. De modo mais explícito, podemos dizer que não se almeja o apagamento do sujeito e de seu desejo em prol de uma neutralidade supostamente adequada à apreensão de uma realidade objetiva. Cabe àquele que pretende realizar uma discussão teórica em psicanálise preservar o estilo de pesquisa inaugurado por Freud, estilo de pesquisa de extremo rigor, que avança no domínio daquilo que Lacan (1953-54/2009) enunciou ser o que interessa à psicanálise, a saber, o que diz de uma verdade velada, semi-dita, verdade do sujeito. O domínio da pesquisa em psicanálise é o da verdade do sujeito. Essa verdade do sujeito está intimamente ligada ao desejo.

Concordamos com Marques (1997) ao afirmar que a verdade em psicanálise manifesta-se no que é chamado por Lacan de formações do inconsciente: lapsos, atos falhos, sonhos, chistes; ou seja, a verdade não se apresenta como resultado de um raciocínio, já que as formações do inconsciente não resultam de uma intenção do eu, escapam ao seu controle e às suas pretensões. A verdade de que se trata na pesquisa em psicanálise é uma verdade singular, distinta dos que almejam os conhecimentos científico e filosófico.

Portanto, não pensamos que a pesquisa encontra-se restrita à clínica, mas é necessário dizer que a pesquisa só pode se dar tendo a dimensão clínica em seu horizonte. Se contarmos que não há psicanálise sem psicanalista e que, pela própria estrutura, que é de linguagem, o psicanalista também está sujeito às produções inconscientes, talvez possamos afirmar o que realmente nos interessa: dizer que com o amor transferencial transformado em transferência de trabalho talvez haja uma possibilidade de se chegar a um conceito livre de preconceitos. Lacan (1964/2003) sustenta que a psicanálise só pode ser transmitida de um sujeito para outro por meio de uma transferência de trabalho. Podemos entender, então, que é essa transferência de trabalho que possibilita uma pesquisa teórica propriamente psicanalítica.

Hashimoto e Tavares (2013) registraram algumas reflexões sobre particularidades da pesquisa teórica psicanalítica. Dentre as condições e possibilidades de suas experiências de trabalho de pesquisa em psicanálise, destacaram a implicação do pesquisador frente a um determinado objeto de estudo, apontando a transferência estabelecida nesse tipo de pesquisa, ponto em comum com o que defendemos neste artigo. Os autores afirmam:

O pesquisador estabelece uma relação transferencial com o próprio conteúdo investigado na medida em que essas leituras o tocam de determinada forma para além da racionalidade empregada na própria leitura de um texto em particular. No momento em que lemos, estudamos e nos esforçamos para compreender qualquer que seja articulação teórica, não só a nossa racionalidade está ativa como também os processos inconscientes [...]. (Hashimoto & Tavares, 2013, p. 172)

De acordo com os autores, os processos inconscientes são despertados pela estranheza do campo investigado, isto é, a própria teoria. Tais estudiosos atrelam esse estranhamento ao lugar da experiência clínica que atravessa o trabalho teórico, seja como analista, seja como analisante.

Mesmo que em uma dada pesquisa não haja a referência explícita ao material clínico, ou ainda que o pesquisador em psicanálise não atue clinicamente, esse mesmo pesquisador - que já sabemos, é parte de sua pesquisa - conta com sua experiência no campo da psicanálise e, mesmo que minimamente, com a experiência de sua própria análise. Isto é, toda pesquisa em psicanálise tem, de forma mais evidente ou nem tanto, uma base clínica.

Afinal, toda construção psicanalítica parte da experiência da escuta do sujeito. Ao passo que o sujeito é considerado pela ciência como um incômodo fator de erro, a psicanálise vem reintroduzir a noção de sujeito em sua dimensão própria.

 

Conclusão

Diante do trabalho realizado, consideramos que a pesquisa teórica tem um papel premente para a psicanálise. Cabe destacar, no entanto, que o trabalho teórico na perspectiva psicanalítica não se confunde com o trabalho teórico de outros métodos de pesquisa estabelecidos no meio acadêmico.

Se a pesquisa teórica em psicanálise só pode avançar, assim como todo trabalho teórico, remetendo-se a elaborações prévias, vemos que na psicanálise elabora-se uma noção de repetição que se distingue da mera reprodução e que contempla a possibilidade de uma escrita singular a cada vez.

A relação entre teoria e prática é tomada por um viés bem particular. Não se tratam de dois momentos distintos, mas intimamente imbricados. Dizer que pesquisa e tratamento coincidem, formulação que dá lugar central para a clínica, não implica que o psicanalista esteja dispensado de inquirir e trabalhar com os conceitos. Se por um lado podemos dizer que a prática só pode avançar com o trabalho conceitual, por outro, vemos que a práxis continuamente esburaca esse saber teórico que só pode ser tomado na perspectiva de uma contínua abertura à revisão.

A íntima relação entre teoria e prática é tal que podemos reconhecer, por meio do percurso conceitual realizado, a importância da atenção flutuante, recurso de manejo clínico, para o trabalho com os textos durante a realização da pesquisa teórica.

Ao promover o saber inconsciente em seu modo de trabalho, a psicanálise propõe um estilo de pesquisa que não oblitera o desejo do pesquisador, que se distingue do método científico comum por situar-se na contramão de um discurso que visa o apagamento do sujeito.

Ao acompanharmos Freud, concluímos esse artigo afirmando a possibilidade de uma pesquisa em psicanálise quando o objeto em questão é o objeto causa de desejo. Essa é nossa referência: a teoria psicanalítica que, em si mesma, dita os caminhos metodológicos que deve seguir. De Freud, tem-se as "recomendações"; de Lacan, o caminho do "inconceito". Isso quer dizer que, para manter a psicanálise, é preciso trabalho árduo, formação com implicação e fôlego para extrair de seus conceitos ferramentas que sirvam ao sujeito suposto, representado entre dois significantes.

Nessa perspectiva, podemos dizer que há uma subversão da noção de sujeito na psicanálise, que se diferencia do sujeito como tradicionalmente concebido pelo pensamento moderno, pois há diferenças estruturais em relação à concepção de sujeito presentificada pelo discurso científico.

A psicanálise se instaura a partir da falta radical e originária de um objeto de completude, falta essa que estimula a pulsão ao encontro com um objeto de desejo num outro campo, o campo da linguagem, no qual significantes pululam, e é a partir disso que a ordem simbólica se estrutura e se abre para a impossibilidade de dar conta da totalidade do objeto de estudo.

 

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Endereço para correspondência:
Valéria Maia Lameira
Email: valerialameira@hotmail.com

Márcio Clayton da Silva Costa
Email: mcsc08@yahoo.com.br

Simone de Miranda Rodrigues
Email: simonerm30@yahoo.com.br

Recebido em: 16/02/2016
Revisado em: 17/12/2016
Aceito em: 06/02/2017

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