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Revista Subjetividades

versão impressa ISSN 2359-0769versão On-line ISSN 2359-0777

Rev. Subj. vol.17 no.1 Fortaleza jan. 2017

http://dx.doi.org/10.5020/23590777.rs.v17i1.5139 

RELATOS DE EXPERIÊNCIAS

 

A angústia como pathos fundamental: uma questão freudiana

 

Anguish as fundamental pathos: a freudian matter

 

La angustia como pathos fundamental: una cuestión freudiana

 

L'angoisse comme pathos fondamental: une question freudienne

 

 

Thais Klein De Angelis (Lattes)I; Regina Herzog de Oliveira (Lattes)II

IDoutoranda do Programa de Pós- Graduação em Teoria Psicanalítica- UFRJ e do Instituto de Medicina Social da UERJ, bolsista CAPES. Professora Auxiliar do Centro Universitário Augusto Motta (UNISUAM)
IIProfessora associada do Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Partindo da experiência clínica no âmbito de pesquisas em psicanálise, o artigo versa sobre o conceito de angústia na trama freudiana. Observa-se que, em uma parcela significativa dos sujeitos atendidos, a angústia se apresenta como um afeto impossibilitado de representação e que tem como destino, dentre outros, o corpo e/ou atos compulsivos não mediados pelo pensamento. Para uma maior aproximação da dinâmica psíquica desses sujeitos, procura-se discutir uma dimensão mais primitiva desse afeto, que distancia-se da noção de angústia sinal, na obra de Freud. Como subsídio, será abordada a concepção de angústia de Heidegger, circunscrita como um afeto que se distingue do temor por sua ausência de objeto e função. Deste modo, discute-se a angústia como pathos fundamental, diferente da ansiedade e da angústia de castração.

Palavras-chave: angústia; contemporaneidade; psicanálise; ansiedade; filosofia.


ABSTRACT

Starting from the clinical experience in psychoanalysis research, this article deals with the concept of anguish in the Freudian plot. It is observed that, in a significant portion of the subjects attended, the anguish presents itself as an impossible affection of representation and that has as destination, among others, the body and / or compulsive acts not mediated by the thought. For a closer approximation of the psychic dynamics of these subjects, we try to discuss a more primitive dimension of this affection, which distances itself from the notion of signal anguish, in Freud's work. As a subsidy, Heidegger's conception of anguish will be approached, circumscribed as an affection that is distinguished from fear by its absence of object and function. In this way, the anguish is discussed as fundamental pathos, different from the anxiety and the anguish of castration.

Keywords: anguish; contemporaneity; psychoanalysis; anxiety; philosophy.


RESUMEN

Partiendo de la experiencia clínica en el ámbito de investigaciones en psicoanálisis, el artículo trata sobre el concepto de angustia en la trama freudiana. Se observa que, en una parte significativa de los sujetos atendidos, la angustia se presenta como un afecto imposibilitado de representación y que tiene como destino, entre otros, el cuerpo y/o actos compulsivos no mediados por el pensamiento. Para un mayor acercamiento de la dinámica psíquica de estos sujetos, se busca discutir una dimensión más primitiva de ese afecto, que se aparta de la noción de angustia señal, en la obra de Freud. Como subvención, será tratada la concepción de angustia de Heidegger, circunscrita como un afecto que se diferencia del temor por ausencia de objeto y función. De este modo, se discute la angustia como pathos fundamental, diferente de la ansiedad y de la angustia de castración.

Palabras clave: angustia; contemporaneidad; psicoanálisis; ansiedades; filosofía.


RÉSUMÉ

En partant de l'expérience clinique dans le domaine de la recherche en psychanalyse, l'article traite de la notion d'anxiété dans la trame freudienne . On observe que, dans une partie importante des sujets assistés, l'angoisse se présente comme une affection impossoble de representer et qui a comme destination, entre autres, le corps et/ou des actes compulsifs non véhiculées par la pensée. Pour une plus grande approche de la dynamique psychique de ces sujets, on cherche à discuter une dimension plus primitive de cette affection, qui s'éloigne de la notion d'angoisse comme signe, dans l'oeuvre de Freud. Comme moyen d'étude, la conception d'angoisse de Heidegger sera abordée, circonscrite comme une affection qui se distingue de la peur pour sa manque d'objet et de fonction. De cette façon,on discute l'angoisse comme pathos fondamental, différemment de l'anxiété et de l'angoisse de castration.

Mots-clés: angoisse; contemporanéité; psychanalyse; anxiété; philosophie.


 

 

A angústia é um objeto central da metapsicologia freudiana. A discussão em torno dessa noção está presente desde os escritos pré-psicanalíticos, mantendo-se como um conceito de extrema importância ao longo da obra de Freud. Destacam-se nos textos freudianos duas concepções de angústia: uma elaborada no contexto da primeira tópica, e outra que surge na tentativa de tratar desse objeto levando em consideração as modificações conceituais trazidas pelas noções de narcisismo, pulsão de morte e da configuração do aparelho psíquico em termos de ego, id e superego.

No primeiro momento, privilegia-se o aspecto intensivo dessa noção, que passa a ser entendida como resultado de uma energia flutuante decorrente do recalque. Na segunda formulação, concebe-se maior importância à função do ego e seus mecanismos de defesa, que ganham uma dimensão fundamental, em que o recalque não é mais o motor da angústia, mas sua consequência, constituindo-se como um mecanismo de defesa frente a esse afeto.

A angústia passa a ser privilegiada em sua dimensão de angústia de castração, de motor para o recalque secundário. Concebida como uma das manifestações da angústia sinal, esse afeto se liga, na segunda teoria, a uma função e a um objeto: a castração. A angústia sinal consiste em uma pequena "dose" que surge como prevenção contra uma experiência de invasão originária, que repete na ontogênese a filogênese e tem lugar no trauma do nascimento.

Muito embora a concepção de angústia ligada à castração tenha prevalecido nos estudos e discussões em psicanálise, a clínica contemporânea nos obriga a pensar em outras dimensões desse afeto. Tais observações partem de atendimentos clínicos realizados no âmbito de pesquisas em psicanálise no contexto institucional. A especificidade da angústia observada na dinâmica psíquica desses pacientes diz respeito à impossibilidade de atenuação relacionada à função da angústia sinal.

Observa-se que, nesses casos, a angústia é sentida como algo avassalador e, impossibilitada de ligação com a representação, acaba tendo o corpo como um destino frequente. Diante desse quadro, esse afeto não se apresenta como algo funcional, de modo que, para compreendê-lo, faz-se necessário um distanciamento da noção de angústia entendida como angústia sinal, indo na direção de uma dimensão mais arcaica, que precede o registro da representação, isto é, precede o recalque.

A relação da angústia com o recalque é reformulada por Freud no segundo momento de teorização sobre esse afeto. Ao ser entendida como motor do recalque secundário e não mais como consequência deste, é concebida como anterior, o que possibilita a indagação de uma dimensão mais originária e independente desse mecanismo de defesa. De acordo com Herzog (1994a), Freud não abandona o aspecto intensivo presente na primeira teorização sobre a angústia, abrindo espaço para pensar outra dimensão, mais arcaica do que a angústia de castração, podendo ser caracterizada como angústia de desejo, a qual se inscreve em uma antiga preocupação de Freud, expressa desde o Projeto para uma psicologia científica (Freud, 1950/1977b): trata-se da questão de como se opera a transformação da quantidade (intensidade) para a qualidade (representação), problemática relacionada à própria constituição do aparelho psíquico (Herzog, 1994b).

O objetivo desta exposição é investigar, a partir de questionamentos provenientes da experiência clínica, as diferentes dimensões da concepção de angústia na teoria freudiana. Para tal, buscam-se subsídios no pensamento de Heidegger, que concede particular importância a essa noção, elevando-a a um estatuto central para o conceito de Dasein (ser-aí). Para Heidegger (1927/1988), a angústia é indispensável na elaboração de uma filosofia que visa compreender o estatuto do homem, distanciando-se da tradição metafísica ocidental instaurada pelo platonismo. Nesse sentido, a experiência de angústia é fundamental para revelar a condição de abertura do ser e é incompatível com qualquer aspecto funcional.

Não se pretende um aprofundamento maior no pensamento heideggeriano e em suas vicissitudes para a psicanálise e para a filosofia. Evocar Heidegger serve de inspiração e instigação para discutirmos de maneira mais rigorosa a questão da angústia em Freud tendo em vista as indagações levantadas pela clínica contemporânea. Esta discussão, portanto, tem o objetivo de trazer as concepções sobre a angústia na trama freudiana e, em seguida, servir-se do pensamento de Heidegger sobre a angústia, a fim de problematizar essa noção como sinônimo de angústia de castração e dar relevo a uma dimensão mais originária desse afeto: a angústia de desejo.

 

A angústia na teoria freudiana

A primeira teoria da angústia foi estruturada principalmente entre os anos de 1894 e 1900, sendo marcada por um viés econômico com ênfase na relação com uma psicopatologia particular: a neurose de angústia. Enquanto a neurastenia está ligada a um fenômeno sexual de desvio, a neurose de angústia está referida a um mecanismo de caráter mais quantitativo (Laplanche, 1980/1998). Portanto, a neurose de angústia é caracterizada por uma série de sintomas que dizem respeito a um excesso, um acúmulo de excitação que não pode ser suportado. Um dos sintomas que Freud (1950/1977b) associa a essa afecção é o de expectativa ansiosa, trata-se de uma espécie de quantum de angústia flutuante que pode fixar-se em qualquer objeto. Outro tipo de sintoma que aparece como pano de fundo dessa expectativa ansiosa é formado pelos acessos de angústia. Alguns são descritos como desprovidos de conteúdo representativo imediato, outros estão relacionados a uma sensação somática.

O que é comum a todas essas descrições é a ideia de angústia como uma energia flutuante que pode se fixar em representações, sejam psíquicas, sejam somáticas, destacando seu aspecto econômico. A energia encontra-se flutuante devido a uma inadequação entre a excitação no nível somático e sua elaboração no psíquico. Não se trata de uma falta de descarga, mas de uma dificuldade de elaboração psíquica da excitação. Diante desse quadro, Freud (1950/1977b) busca discutir os mecanismos através dos quais a energia se torna energia livre.

A energia sexual que origina a angústia pode ter sido não elaborada, isto é, ter tido a via de elaboração psíquica recusada ou ser uma energia desligada. Nesse último caso, a ligação com as suas representações psíquicas foram desfeitas, levando a sua liberação e descarga em forma de angústia. Esta seria, portanto, um produto do recalque. Logo, esse afeto é desvencilhado da neurose de angústia e passa a ser atrelado ao mecanismo de recalque. Seu papel fundamental na formação de sintomas, mais bem discutida no âmbito da segunda teoria, começa a ser delineado.

As exigências que impulsionaram uma revisão do conceito de angústia provêm, de acordo com Herzog (1994a), da discussão trazida por Freud no texto Sobre o narcisismo: uma introdução (Freud (1914/1974a), sobre a questão do ego. Neste, o eu é discutido como uma instância que não está presente desde o início, sendo forjado a partir do narcisismo dos pais. O ego passa a ser passível de investimento libidinal e torna-se reservatório da energia psíquica. Essa instância ganha, portanto, certa autonomia, a qual será importante para compreender a sua ligação com a angústia na segunda teoria. A partir daí, a conferência XXV, intitulada Angst (A ansiedade) (Freud (1917/1976a), retoma o conceito de angústia e serve como uma ponte: apesar de ainda ligada ao aspecto econômico, já se refere a uma nova formulação. Somente em Inibições, sintomas e ansiedade (Freud, 1926/1976e) Freud consolida certas mudanças com a sua concepção de angústia.

Utilizando-se do modelo da neurose obsessiva, na qual o medo de castração é motor do recalque, Freud (1926/1976e)inverte a asserção da primeira teoria: o recalque agora é tido como consequência da angústia de castração. As duas teorias da angústia parecem, portanto, carregar uma contradição de base: na primeira, o recalque é o motor e, na segunda, funciona como um mecanismo de defesa frente a ela. O ego é a instância responsável pelos mecanismos de defesa, tornando-se central no segundo momento de teorização. De acordo com Laplanche, "o ego é indicado não só como lugar da angústia, mas como podendo repetir a angústia por sua própria conta, pelo menos como sinal" (Laplanche, 1980/1998, p. 43).

Diante disso, pode-se notar que o interesse de Freud em relação à angústia, na segunda teoria, deixa de ser a sua origem e passa a ser a sua função. O nascimento torna-se o paradigma desse afeto e o protótipo dos efeitos de um perigo real que vem se repetindo na filogênese. A função que Freud circunscreve para a angústia é a de impedir que esse trauma se repita em toda a sua intensidade; logo, de caráter defensivo. Sua função de sinal está inscrita neste sentido: esse afeto é ativado como prevenção contra uma experiência de invasão pulsional traumática que se remete à filogênese. Quando esse sinal falha, Freud (1926/1976e) destaca a dimensão de angústia automática, de ordem traumática e marcada por uma invasão pulsional. Apesar da enumeração de cinco tipos de angústia - a angústia do nascimento, a angústia da perda do objeto amado, a angústia da perda do amor do objeto, a angústia da perda do amor do superego e a angústia de castração -, a última é a privilegiada.

Para teorizar sobre a angústia de castração, Freud se utiliza de dois casos clínicos: o pequeno Hans (Freud, 1909/1977a) e o homem dos lobos (Freud, 1918/1976b); ambos relacionados a uma fobia. Esses casos ilustram a ideia de que a fobia é uma formação substituta ao medo de castração (Freud, 1926/1976e). Nesse sentido, além da fobia, outro mecanismo de defesa mais eficaz é colocado em ação frente à angústia sinal gerada pelo medo de castração: o recalque secundário. A angústia aparece como propulsora de uma inibição que se refere a um objeto específico, o medo de ser castrado pelo pai. Seu objetivo é desencadear o processo que inibe as pulsões e faz frente ao medo de castração. A dimensão de sinal está ligada à função de defesa egóica, tendo como consequência a formação do sintoma, uma reação substitutiva. Na esteira do pensamento de Figueiredo (1999), a metáfora da vacina é bastante útil nesse contexto: injeta-se uma pequena dose do agente nocivo com o objetivo de acionar as defesas do organismo, preparando-o para um possível ataque futuro.

Observa-se que, tanto concebida como sinal de prevenção de um trauma filogenético quanto na sua relação direta com o medo de castração, essa noção ganha um aspecto funcional que, conforme salienta Figueiredo, remete a um pensamento de "matriz funcionalista e organicista" (Figueiredo, 1991, p. 39). Essa matriz de pensamento tinha como carro chefe a biologia científica do século XIX e estendeu suas raízes até os dias de hoje. Os conceitos de adaptação, função e evolução são marcas dessa matriz teórica que concebe o homem através de um ideal de desenvolvimento, em que o humano é privilegiado em sua dimensão corporal, entendida como uma espécie de máquina que trabalha em função da homeostase, quer dizer, com o objetivo de instaurar o equilíbrio.

O pensamento de Freud se inscreve em parte na tradição dessa matriz funcionalista, mas sua originalidade consiste em conseguir, em certos momentos da teoria, se desvencilhar dela, fundando um pensamento original. Herzog (2000) remete essa dupla polaridade do pensamento freudiano à influência de ideias distintas que povoam o final do século XIX, dentre as quais está o projeto Iluminista, que se propõe a traduzir em termos científicos os dados da realidade natural, social e psíquica. O Romantismo, que busca dar conta do conflito, da intensidade, do contraditório, por outro lado, também constitui o pano de fundo ideacional no qual Freud estava inserido. Consideramos que a noção de angústia mostra essa faceta particularmente interessante da trama freudiana, e permite observarmos a potência da obra de Freud que, embora marcada pelo funcionalismo, não se reduz a ele.

 

Heidegger e a experiência da angústia

Heidegger (1927/1989) descreve a experiência de angústia como algo que permite revelar o sentido de uma concepção de homem que pretende se afastar da tradição metafísica ocidental fundada pelo platonismo, na qual o homem é entendido como um ser racional a partir de certos conceitos remetidos à transcendência. Essa tradição, segundo Heidegger (1927/1989), esqueceu-se do ser ao se apoiar em conceitos metafísicos e, em consequência disso, terminou estabelecendo uma investigação ôntica (relativa ao ente). De acordo com Granel (1991), a concepção heideggeriana de homem se define principalmente pela recusa de objetivação. Heidegger (1927/1988) busca, através de uma ontologia (relativa ao ser) e uma hermenêutica, retomar a questão do sentido do ser-aí. Questão que, conforme ressalta Marcondes (2010), outrora teve lugar na filosofia no contexto dos pré-socráticos.

Neste sentido, para Heidegger (1927/1989), o homem seria o único ente que pode se interrogar sobre o Dasein (ser-aí). Dito de outro modo, o homem é um ente assinalado pela ex-istência, o que abre espaço para a apreensão do desvelamento do sentido do ser-aí. A noção de alêtheia, utilizada por Heidegger, indica que a verdade deve ser entendida enquanto desvelamento, substituindo uma verdade da adequação e da afirmação (Nancy, 1991). Todo ente está presente no ser, vindo à luz como desvelamento, manifestação; mas o único ente que pode se interrogar sobre este é o homem. Heidegger (1927/1988), no entanto, frisa que essa ex-sistência é, na maior parte das vezes, existência inautêntica, ou seja, no dia a dia, o homem é regido por uma lógica impessoal que busca impedir a experiência de desvelamento do ser-aí. Como resultado, Figueiredo (1999) adverte que, quando o habitual e o familiar imperam no cotidiano, expulsando o imprevisível, o homem se aliena nas ocupações e preocupações (Figueiredo, 1999). Na cotidianidade, o Dasein sente-se em casa, seguro, esquecendo-se de sua condição de abertura.

É a experiência de angústia que introduz a estranheza e afasta a familiaridade com que o Dasein se reveste no cotidiano, reconduzindo-o a si mesmo, isto é, ao fato originário de que ele é ser-no-mundo. Através da experiência de angústia, a condição primordial de ser-no-mundo é desvelada. Entra-se em contato com a radical contingência e finitude da existência humana. A angústia é, portanto, uma disposição afetiva fundamental que possibilita ao Dasein ser liberado de uma dimensão metafísica e conduzido ao seu modo de ser originário. Nesse sentido, afirma Werle (2003), ela é o traço constitutivo da existência do Dasein, no qual reside a totalidade do ser da existência do homem. Longe de ter causa, função ou objeto, a experiência da angústia nos arranca as causas e os motivos, devolvendo-nos à condição primordial de abertura, de vir-a-ser. A angústia (Angst),portanto, é uma disposição afetiva original da existência, embora na maior parte do tempo criemos estratégias para nos protegermos dela. Essa experiência é concebida sem relação com qualquer objeto e sem nenhuma função. A angústia é caracterizada pelo nada, distinguindo-se do temor.

A noção de temor (Furcht) é discutida por Heidegger em Ser e Tempo (Heidegger, 1927/1989) em contraponto à noção de angústia (Angst). O temor possui uma função e surge como um afeto que visa nos alertar, nos desviar de um objeto que tememos. Tem, portanto, um objeto específico sendo direcionado a um ente determinado da nossa existência, ao passo que o objeto a que a angústia se dirige é indeterminado. A esse respeito, Figueiredo (1999) mostra que a função do temor, assim como do pavor, do terror e da ansiedade, é a de surgir como um impulso que se dirige rumo a um aprisionamento em um ente, ou seja, na direção contrária da experiência de angústia que se dá no sentido da abertura do ser.

Conceber a angústia como um afeto referido a uma função, ou a um objeto específico, apaga a especificidade desse conceito, confundindo-o com o temor, a ansiedade e o medo. Nesse sentido, Heidegger (1927/1988), ao conceber a angústia como um afeto fundamental e incompatível com uma função, exige que algumas questões sejam colocadas à segunda teorização de Freud que, por sua vez, privilegia a dimensão de angústia de castração e sua função como sinal. Remeter a angústia à angústia de castração não seria remetê-la a um ente em continuação com a tradição metafísica ocidental? Não estaríamos aproximando a angústia da noção de medo e ansiedade e perdendo a especificidade desse conceito?

Nessa perspectiva, tanto na dimensão de angústia sinal quanto na sua manifestação em forma de angústia de castração, afastamo-nos de seu caráter fundamental, esquecendo-nos de sua especificidade ao tornar indistintas as fronteiras com outras noções. Cabe frisar que não é nosso objetivo estabelecer uma comparação entre a noção de angústia de Heidegger e de Freud. Trata-se tão somente de problematizar em Freud as dimensões de angústia que estariam calcadas na tradição do pensamento metafísico ocidental para uma definição mais acurada deste afeto. A crítica de Heidegger serve de subsídio para esse propósito, de tal sorte que nos permite visitar a obra freudiana buscando certas linhas de fuga que se desvencilham da tradição funcionalista. A angústia é um conceito particularmente interessante para se observar a riqueza de sua obra, visto que traz em seu bojo outras dimensões, abrindo espaço para pensar a angústia em sua dimensão de pathos fundamental, como veremos no próximo item.

 

A angústia de desejo

O conceito de ego é central na segunda teoria sobre a angústia. Essa instância passa a ser considerada sede e produtora desse afeto. A importância dada ao ego no segundo momento de teorização é, de acordo com Herzog (1994a), condizente com a sua preocupação com relação à constituição do aparelho psíquico, deixando em segundo plano a discussão em torno de seu funcionamento. Essa preocupação está presente na obra de Freud desde o Projeto para uma psicologia científica (Freud, 1950/1977c), e se expressa principalmente por uma questão: como se opera a transformação da quantidade (intensidade) para a qualidade (representação)? Segundo Bezerra Jr. (2013), embora a aspiração do Projeto para uma psicologia científica (Freud, 1950/1977c) seja apresentar uma concepção de aparato psíquico com características positivistas, realistas e mecanicistas, o texto acaba por se aproximar de um modelo que busca a articulação das dimensões da força e do sentido. O aparato psíquico se constitui nessa direção, no encontro com a dimensão do sentido articulado com as excitações externas (Q) e internas (Qn).

Em relação às últimas, denominadas por Freud de Not des Lebens (exigências da vida) (Freud, 1950/1977c, p. 397), o ser humano nasce desamparado e não pode realizar uma fuga, ou dar um destino a essa excitação por seus próprios meios. Pelo princípio de inércia, as excitações tenderiam a ser totalmente dissipadas, contudo não restaria energia para fazer frente a novas excitações. Além disso, o ato de reflexo, que visa à descarga e que pode ser utilizado para excitações exógenas, não é capaz de eliminar a fonte de desprazer. Diante dessa situação de desamparo fundamental, faz-se necessária uma "ação específica" (Freud, 1950/1977c, p. 422), isto é, algo deve ocorrer no ambiente para que o processo de soma de excitações e o desprazer diante dessa seja interrompido. O meio ambiente corresponde a outro que interpreta essa descarga motora como uma demanda e assim insere a dimensão do sentido. Frente à ação do outro, estabelece-se uma vivência de satisfação, um traço no psíquico que será revivido a cada vez que as exigências da vida acossarem o sujeito. Estas continuam a invadir o psíquico enquanto o sujeito estiver vivo, afinal, trata-se de "exigências de vida" (Freud, 1950/1977c, p. 397). A tentativa de reviver essa experiência de satisfação primária é sempre em vão e o psíquico continua se refazendo a cada vez que é invadido por excitações. A organização psíquica caracteriza-se por ser um processo inacabado remetido à constância da pressão exercida pela pulsão.

Herzog (1994b) chama a atenção para a incompletude desse processo de busca de sentido, de tentativa de decodificação pela inserção num código que constitui a formação do aparato psíquico. Há sempre uma sobra, um resto que vai ser "desejo de sentido" (Herzog, 1994b, p. 50). Ainda na esteira do pensamento da autora, é possível depreender daí uma dimensão fundamental da angústia conforme veremos adiante. Em Inibições, sintomas e ansiedade (1926/1976e), Freud faz uma distinção entre pavor, angústia e medo. O pavor decorre de um grande afluxo de excitação para o qual não se está preparado. Entendemos que o pavor seria da ordem dessa primeira excitação que invade o infans, contra a qual não se pode forjar um destino sozinho. Essa noção parece estar em continuidade com a ideia de angústia real, preconizada por Freud no traumatismo do nascimento. A noção de angústia que indicaremos como mais fundamental, no entanto, se dá em um segundo momento em que se insere a dimensão do sentido. Na distinção dos termos feita por Freud (1926/1976e), a especificidade da angústia consiste na ausência de objeto. Herzog (1994b) ressalta que a inexistência de objeto está referida ao fato de que também não se pode conceber a existência de um sujeito. A angústia seria fundamental na constituição deste. A ausência de objeto deve ser entendida também como uma ausência das dicotomias fora/dentro e interno/externo. Nesse sentido, depreende-se que a instância egóica, que não pode existir desde o início (Freud, 1923/1976c), não está constituída enquanto organização e, logo, não pode ser considerada a sede e produtora da angústia. Destaca-se então uma dimensão de angústia que surge concomitantemente à constituição do aparelho psíquico, logo, do ego.

As noções de ego-realidade inicial, ego- prazer e ego-realidade definitivo trabalhadas por Freud em 1915 (Freud, 1915/1974b) e 1925 (Freud, 1925/1976d) ajudam a articular a formação do aparelho psíquico com esse afeto. O ego-realidade inicial vive passivamente uma invasão, não necessariamente de um perigo externo, mas de uma intensidade pulsional e vai repetir essa experiência como ego-prazer, mas dessa vez, trata-se de uma vivência ativa. Portanto, para que o sujeito advenha é necessário que haja certa atividade e certa passividade. Aqui o binômio passividade/atividade se refere ao modo de afetar e ser afetado.

Nestes termos, Herzog (1994b) afirma que de uma forma ativa o investimento desejante afeta e, de uma forma passiva, é afetado por um grande afluxo de excitação. A esse binômio, a autora adiciona ainda uma terceira forma de afetação, a reflexiva: afetar-se (Herzog, 1994a). Essa atividade reflexiva designa o advento do sujeito já submetido à ação psíquica, indicada por Freud no Projeto para uma psicologia científica (Freud, 1950/1977c, p. 422). Na impossibilidade de fazer frente às excitações internas em conjunto com a ação psíquica desejante do outro se constitui externo e interno: instaura-se a clivagem do aparelho psíquico (os registros da representação consciente e inconsciente) e a constituição de um fora irrepresentável. Portanto, depreende-se daí uma relação assimétrica: ao mesmo tempo em que há um investimento desejante, há um despreparo para decodificar o que vem do outro.

Desse modo, em um estágio precoce o outro remete para um enigma. Esse enigma, por sua vez, não está localizado no âmbito do externo, embora venha a ser conhecido a partir do contato com o outro, mas também não está no ambiente interno, já que não se trata de algo inato, mas advém no encontro com um agenciador. A angústia surge em decorrência desse processo. Não podemos dizer que ela é algo correlativo a uma excitação interna que afeta diretamente o infans, pois isso, como vimos, seria da ordem do pavor. Mas a angústia aqui surge do encontro de uma reivindicação libidinal excessiva no ego-real inicial com o grande afluxo de excitação vindo do outro. Essa excitação, por sua vez, retorna ao corpo, de modo que podemos dizer que passa a se auto afetar-se por esse corpo estranho (Herzog, 1994b, p. 52). A mudança da passividade para a atividade e o retorno sobre o corpo, passando de uma experiência de ser afetado para auto afetar-se, são mecanismos que caracterizam o recalque originário, o qual é condição de possibilidade para o advento do sujeito do inconsciente, iniciando um movimento de busca. Diante desse quadro, o recalque originário não pode ser entendido como mecanismo de defesa, mas como o que instaura certas operações. Logo, o recalque originário mantém um sentido estruturante e deve ser entendido como correlato das primeiras inscrições decorrentes da situação de confronto numa relação assimétrica.

A especificidade do conceito de angústia como o que não tem função ou objeto, porque não passa da expressão de uma experiência afetiva de desamparo, impede que se possa falar de defesa contra a angústia. Para que haja defesa é necessário haver uma forma de organização. A angústia surge, portanto, desse confronto que também instaura uma busca. Herzog (1994b) salienta a dimensão de busca de sentido dessa angústia primordial, denominada pela autora de angústia de desejo (Herzog, 1994b, p. 51). Ela advirá do resto da operação do recalque primário, algo que vai ser desejo de sentido indicando outra dimensão do desejo que não é remetida à falta (Herzog, 2001).

O recalque originário não é realizado como uma defesa contra a angústia, mas se trata da condição de possibilidade de surgimento deste afeto. Essa formulação nos remete diretamente às ideias concebidas na primeira teoria da angústia, mas, dessa vez, circunscritas ao âmbito do recalque originário. Sem dúvida, a segunda teoria surgiu da necessidade de responder às questões trazidas pela segunda tópica (Freud, 1923/1976c); todavia esse segundo momento de teorização não descartou o aspecto econômico da primeira teoria, que continuou se mostrando de extrema importância, haja visto as dificuldades que a clínica apresenta, principalmente na atualidade. A angústia, portanto, passa a ser considerada como efeito de uma situação de confronto fundamental para a constituição do sujeito. Este estado afetivo vai ensejar uma busca de sentido, inerente à própria constituição do aparato psíquico, que nunca está completa. O aparato psíquico, em certa dimensão, continua se refazendo impulsionado por essa busca de sentido. O ego é uma instância que surge para fazer frente ao que sobra dessa busca, sendo somente a partir daí que se pode pensar em certos mecanismos de defesa diante da angústia. Logo, a angústia sinal e sua principal manifestação, a angústia de castração, surgem em um segundo momento, caracterizando uma dimensão mais elaborada desse afeto. Na esteira do pensamento de Heidegger, por que não chamá-las de ansiedade? Nessa medida, podemos conceber a angústia como pathos fundamental, já que está diretamente ligada à constituição do aparato psíquico. Essa dimensão da angústia pode ser aproximada da noção de angústia automática, que Freud postula em 1926 e que se refere a uma grande quantidade de excitação psíquica que chega ao aparelho psíquico, invadindo-o. Contudo, Como ressaltado acima, contudo, a noção de angústia de desejo não é exclusivamente intensiva, pois se dá no encontro com o enigma do outro. Além desse aspecto, a angústia de desejo instaura uma busca de sentido, inerente à condição humana e que, embora, por vezes, possa parecer estanque, está inevitavelmente marcada por uma incompletude fundamental. O próprio aparelho psíquico é algo que se constitui em consonância com a angústia e funda essa busca. A própria constituição do eu se configura como uma resposta frente a ela, um mecanismo de defesa na tentativa de estancá-la. Não somente o nosso eu, mas também a ansiedade frente a certos objetos, entra em cena à procura de motivos, razões e, parafraseando Heidegger, de entes que visam aprisionar nossa condição de abertura fundamental, revelada pela experiência de angústia.

 

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Endereço para correspondência:
Thais Klein De Angelis
Email: thaiskda@gmail.com

Regina Herzog de Oliveira
Email: rherzog@globo.com

Recebido em: 08/11/2016
Revisado em: 28/02/2017
Aceito em: 20/04/2017

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