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Revista Subjetividades

Print version ISSN 2359-0769On-line version ISSN 2359-0777

Rev. Subj. vol.17 no.2 Fortaleza May/Aug. 2017

http://dx.doi.org/10.5020/23590777.rs.v17i2.5201 

ESTUDO TEÓRICO

 

Psicanálise, "arte literal"? Objeto e letra sob um ponto de vista psicanalítico

 

Psychoanalysis, "literal art"? Object and letter from a psychoanalytic point of view

 

PSicoanálisis, ¿"arte literal"? Objeto y letra bajo una mirada psicoanalítica

 

Psychanalyse, «l'art littérale»? objet et lettre sous un point de vue psychanalytique

 

 

Gustavo Henrique Dionisio (Lattes)

Professor assistente Doutor do Departamento de Psicologia Clínica da Universidade Estadual Paulista (FCL-UNESP), em nível de Graduação e Pós-Graduação (mestrado e doutorado), e vice-supervisor do Centro de Pesquisa e Psicologia Aplicada Betti Katzenstein da mesma universidade

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Partindo do trabalho do psicanalista Serge Leclaire, visamos discutir neste ensaio o conceito de letra cunhado no interior do pensamento psicanalítico, passando lateralmente por Jacques Lacan para, em seguida, articulá-lo a uma problemática do campo das artes pela via da reflexão estética e da recepção da obra de arte. Assim, procuraremos hipotetizar a existência de uma "arte literal", visando demonstrar em que medida os artistas chegam a verdades psicanalíticas "sem depender" do corpus teórico da primeira. Friccionando a reflexão de Leclaire com certas obras de arte "literais", propomos uma espécie de torção na relação estabelecida anteriormente por Lacan entre a dimensão da letra e o lugar do objeto a na teoria psicanalítica.

Palavras-chave: letra; objeto; sujeito; falo; arte contemporânea.


ABSTRACT

Starting from the work of the psychoanalyst Serge Leclaire, we intend to discuss in this essay the concept of letter coined within psychoanalytic thought passing laterally by Jacques Lacan and then articulating it to a problematic of the field of arts by the way of aesthetic reflection and reception of the work of art. Thus, we try to hypothesize the existence of a "literal art", in order to demonstrate to what extent artists reach psychoanalytic truths "without depending" on the theoretical corpus of the first. By rubbing Leclaire's reflection with certain "literal" works of art, we propose a kind of twist in Lacan's earlier relation between the dimension of the letter and the place of the object a in psychoanalytic theory.

Keywords: letter; object; subject; falus; contemporary art.


RESUMEN

Utilizando el trabajo del psicoanalista Serge Leclaire, discutiremos en este ensayo el concepto de letra acuñado en el interior del pensamiento psicoanalítico, pasando lateralmente por Jacques Lacan para, luego, articularlo a una problemática del campo de las artes por medio de la reflexión estética y de la recepción de la obra de arte. Así, buscaremos hipotetizar la existencia de un "arte literal", con la intensión de demostrar en qué medida los artistas llegan a verdades psicoanalíticas "sin depender" del corpus teórico de la primera. Frotando la reflexión de Leclaire con ciertas obras de arte "literales", proponemos una especie de torsión en la relación establecida anteriormente por Lacan entre la dimensión de la letra y el lugar del objeto a en la teoría psicoanalítica.

Palabras clave: letra; objeto; sujeto; falo; arte contemporánea.


RÉSUMÉ

En prennant le travail du psychanalyste Serge Leclaire, on cherche à discuter dans cet essai, le concept de lettre inventée dans l'interieur de la pensé psychanalytique, en passant latéralement par Jacques Lacan, pour l'articuler à un problème dans les champs des arts par le biais de la réflexion esthétique et de la réception de le œuvre d'art. Ainsi, on cherche à faire des hypothèses de l'existence d'un «art littéral», en visant à démontrer dans laquelle mesure les artistes arrivent à des vérités psychanalytiques «sans dépendre» de la corpus théorique de la première. En frottant la pensée de Leclaire avec certaines oeuvres d'art «littérales», on propose une espèce de torsion dans la relation établie précédemment par Lacan entre la dimension de la lettre et la place de l'objet chez la théorie psychanalytique.

Mots-clés: lettre; objet; sujet; phallus ;art contemporain.


 

 

Psicanálise da letra

A problemática da letra sempre soou como enigmática o suficiente para ser pensada nos interstícios que se alocam no caminho que vai da Psicanálise à Arte; no que diz respeito àquela, a primeira grande provocação que me surgiu veio da leitura de Psicanalisar, livro com o qual Serge Leclaire (2007) desenvolveu (não sem considerável maestria, é preciso sublinhar) sua concepção própria, embora lateralmente na esteira de Lacan de letra, e que chama muito a atenção do leitor em função de certa "arrogância" do título: afinal, como poderia um livreto de pouco mais de cem páginas se imbuir da tarefa de sintetizar tão condensadamente o que seria este nosso árduo trabalho que é, como diz a capa, psicanalisar? É óbvio que Leclaire não conseguiria esgotar o assunto, e nem é o caso de pensar - o que também é evidente - que teria pretendido tamanho absurdo; não obstante, ao (re)lê-lo, senti-me obrigado a reconhecer o quanto esse autor pôde ensinar, em seu brevíssimo ensaio, acerca de alguns dos rudimentos mais valiosos da clínica, fornecendo ferramentas de escuta inteligentes o bastante para aqueles que desejam adentrar em nosso perímetro de pensamento.

No que tange à história da arte - mas sem deixar de deslocar a questão da letra de seu objeto "mais direto", por assim dizer, que seria a literatura -, surgiu-me a inquietação de problematizar a pertinência dessa letra no universo particular das artes visuais, justamente para deslocar o eixo costumeiro das reflexões sobre o assunto; de outro modo, tratar-se-ia de questionar a maior ou menor relevância em se pensar aí com a referida categoria, letra, ainda que sem a necessidade da palavra, ou seja, da letra na ausência de uma escrita propriamente dita; em outras palavras, ainda, a ideia se resumiria a pensar em como fazê-lo apoiando-se apenas em uma imagem, ou mesmo em uma escrita "não-gráfica", por assim dizer.

É preciso partir da premissa de que o objeto em causa exige uma pergunta a ser colocada logo de antemão: até que ponto seria possível defender uma arte literal? Ora, existiria mesmo, concretamente falando, uma arte que pode ser chamada de literal? Ademais, e no exato reverso da medalha, não seria igualmente possível atacar o problema pelo lado oposto, isto é: afinal, toda e qualquer arte não seria, em si mesma, literal? Não custa apontar que deve-se entender a coisa ela mesma com este termo literal ou, melhor ainda, tomar a coisa "ao pé da letra" (expressão que, diabolicamente, é uma metáfora...).

Se a letra, como definiu Lacan, tem como função primordial a de ser suporte material para o significante - mais exatamente, ele concebe a letra como "suporte material que o discurso concreto toma emprestado à linguagem" (1998, p. 498) -, e se o significante, por sua vez, é justamente sustentado por imagens (imagem "acústica" e imagem-conceito, tal como o psicanalista depreendera de Saussure, ao inverter sua lógica), não me parece muito errado apostar algumas fichas em uma dimensão imagética dessa letra, sobretudo tendo em vista uma variedade de sentidos que determinados artistas nos podem "dar a pensar" sobre ela, como veremos adiante.

A pertinência de retomar o estudo de Leclaire se deve também à pequena metapsicologia que o autor criou a respeito do texto subjetivante, que é já uma primeira de suas leituras, o qual conduziria à singularidade da constituição psíquica (humana1). Com efeito, é precisamente como uma escrita que o psicanalista define os processos de subjetivação que "resistiriam", mesmo que de modo subjacente, no interior do aparelho psíquico. Em tempos de uma produção analítica muito fragmentada como os nossos, vale de bom grado revisitar o ensaio, já que essa modesta metapsicologia implica uma estrutura bem montada na qual residem "três termos mais um", a saber: a) a letra, que exerce a "função literal" e à qual aludirei na sequência; b) o sujeito, que se expressa como "função de comutação alternante", quer dizer, do sujeito sendo a máquina que faz sístole e diástole a partir dos encadeamentos da pulsão; c) o objeto, que, ao contrário do sujeito, é uma função de constância invariável, portanto estável; e por fim d) φ, o falo, que, para o autor, deve ser caracterizado como letra da falta da letra ou ainda como significante da falta de significante - ou seja, falta de um jeito ou de outro.

Não obstante essa organização, ainda não seria o caso de perguntar em quê, mais exatamente, consistiria o interesse por tal articulação? A meu ver, ela não seria outra senão para falar precisamente do sujeito, que, para os fins deste ensaio, entendo que possa ocupar a mesma "posição" que a do espectador de arte contemporânea. Trata-se, no circuito atual, de uma função-espectador portanto, e que se atualizaria nesse sujeito em seu encontro com o objeto (de arte).

Em texto relativamente recente, Artur Danto forneceu algumas pistas para vislumbrarmos algo dessa ordem. Comentando sobre a Bienal de 1993, realizada em Whitney, o crítico percebeu a ineficácia dos velhos modos de apresentação das obras diante de um contexto já bastante modificado, cuja produção ele vem chamar, sem pudores, de "vanguarda do presente". Para ele, a intenção já se perdera no próprio formato da exposição, feita mais para dar a ver "pinturas ou peças de escultura" e, por conseguinte, ineficaz no que tangia à sua necessidade original, que era "modificar o modo de ser do espectador". A "palavra 'espectador' [viewer], ela mesma carece de mudança", escrevera Danto na ocasião. Para o autor, a "experiência da visão é ao mesmo tempo muito exterior e excessivamente... visual" (Danto, 1996, p. 16). O filósofo acusava a pretensão de limpeza da visão ("objetividade") sobre a arte para, então, contraofertar uma proposta baseada no encounterer, que, no lugar do vazio vidente, determinaria uma posição rigorosamente subjetiva àquele que se depara com a obra de arte. Assim, arte, letra e sujeito encontrariam na posição do encounterer seu lugar privilegiado para triangular. A propósito, o conceito encounterer deve se ater a três traduções pelo menos: a de "deparar-se", a de "encontro", e a de "embate" ou enfrentamento.

No campo analítico, uma definição defendida por Nancy e Lacoue-Labarthe pode ser empregada nessa mesma toada. Em O título da letra, esses autores pregam claramente que designa, de maneira direta, "a estrutura da linguagem na medida em que o sujeito nela está implicado", (1997, p. 35). Logo, se a letra implica o sujeito, é justamente porque o sujeito pode ser literalizado, definido pela letra. Uma vez que o sujeito é puramente um efeito, como apontara Lacan, "consequência de uma escrita espaço-temporal" que "se dá só depois", tal efeito de sujeito não é, senão, justamente "convocado pela letra" (Rivera, 2013, p. 100).

Nossa reflexão exigiria, portanto, seguindo nessa linha de raciocínio, começar pelo corpo erógeno "habitado" por esse sujeito, visto que somente o corpo é suporte para possibilitar qualquer satisfação de desejo e é sabido, ao menos freudianamente falando, que a satisfação depende quase que exclusivamente de um acesso específico à realidade psíquica, cuja matéria é muitas vezes alucinada. É nesta que um determinado resto mnêmico vem a se instalar junto a uma dada experiência que, por seu caráter diferencial de prazer e/ou de dor - observemos a noção "leclaireana" de letra se antecipando -, tornaram-se por esse motivo sobreinvestidos; a isso se soma a presença de um objeto-fenômeno, que, por sua vez, serviria de "órbita" para a pulsão, satisfazendo-a ainda que parcialmente.

De modo mais preciso, é aí que se imprime o caráter indiciário do prazer. A rigor, o prazer poderia ser entendido como a diferença entre um ponto maior e um ponto menor de tensão sexual, conforme sugeriu Leclaire; ou, de forma ainda mais concisa, tratar-se-ia de um indicador de diferença de prazer, a síncope de uma diferença que traça marcas inscritoras sensíveis, e é exatamente porque é diferença que o prazer ou a dor se tornam, nesse sentido, perceptíveis ao sujeito (Leclaire, 2007, p. 57).

 

Letra da Psicanálise

Para que tal lógica opere, é preciso, então, que "alguma coisa apareça como uma fenda sensível (...), que um intervalo, uma diferença, um nada seja aberto para poder oferecer por um instante um reflexo vazio do absoluto do gozo, um tempo de anulação da tensão, ou melhor, de desaparecimento dos termos que sustentam o intervalo da diferença" (Leclaire, 2007, p. 58). Em razão disso, o vestígio da satisfação persiste como um apelo ao devir de novas experiências, que, paradoxalmente, reeditam de um modo ou de outro aquela satisfação primária, originária.

Nessa perspectiva, Melman lança luz, de maneira propícia, para o fato de que a letra inscreveria a origem da linguagem, mas não deixa de lembrar que a marca de um instante que inscreve "algo onde antes nada havia" só se irradia para, em seguida, desaparecer, e isso "em razão da fisiologia da linguagem" (2004, p. 15). "Antes, a letra assinala a materialidade da língua", acrescente-se com Rivera, "o ponto em que a linguagem 'toma corpo'" (2013, p. 101). O que mais importa, porém, e o próprio Melman o reconhece, é que essa marca produz ou ativa um retorno impossível em circuito, à qual o inconsciente se dirige para sempre desencontrar.

Dessa forma, a teoria nos indica que essa mecânica funciona a partir da abertura de um ponto de prazer sexual no corpo, isto é, da inscrição de uma letra de prazer que determinará o alfabeto inconsciente da satisfação. Leclaire ilustra a situação com rara beleza ao figurabilizar o intervalo de gozo que se estabelece entre a "polpa do dedo da mãe e a covinha da bochecha do bebê", um átimo desse vislumbre quando um dedo é capaz de abrir uma cratera de gozo com todo o seu brilho de prazer.

Ao nosso ver, valeria dar um lugar de honra para essa passagem na história das ideias psicanalíticas:

O processo da erogeneização se presta, curiosamente, a uma descrição mais rigorosa, se considerarmos os tempos que se encadeiam para chegar à "abertura" ou "inscrição" de uma zona erógena em algum ponto da pele. Sem dúvida, podemos considerar que a superfície da pele, como um limite que representa o equivalente inverso da borda de um orifício, tem a "necessidade" da carícia de uma outra pele; mas, não é esse aspecto que nos interessa acentuar aqui. Imaginemos antes a doçura do dedo de uma mãe a brincar "inocentemente", como nos instantes do amor, com aquela covinha original do lado do pescoço e o rosto do bebê a se iluminar com um sorriso. Podemos dizer que o dedo, com sua carícia amorosa, vem imprimir nessa cova uma marca, abrir uma cratera de gozo, inscrever uma letra que parece fixar a intangível instantaneidade da iluminação. No oco da covinha abre-se uma zona erógena, fixa-se um intervalo que nada poderá apagar, mas sobre o qual se realizará de maneira eletiva o jogo do prazer, sempre que um objeto qualquer venha reavivar nesse lugar o brilho do sorriso que a letra fixou. (Leclaire, 2007, p. 60)

Não obstante, nunca se deve esquecer que o dedo é, de saída, uma zona erógena "em si" e já contida na textualidade libidinal da mãe, de modo a ocupar a função de porta-letra inscritora de desejo. Com efeito, é "pela letra que o desejo consegue ser lido e ser reconhecido" (Quilichini, 2004, p. 9). É nessa mesma condição que isso que inscreve. O desejo se forja no rastro de um gesto dialeticamente desejante, operacionalizando-se como alguma coisa que "força" a instalação de uma diferença perceptível que, de sua parte, letrifica o processamento da subjetivação.

Indo um pouco além, a letra pode ser entendida como limite e acesso concomitantes ao gozo, dado que abre a possibilidade de gozar na justa medida em que é pura diferença de prazer inscrita no limiar do corpo erogeneizado. daí sua relação com o φ, pois é precisamente no lugar dessa letra que entrará, como substituto necessário ou como tentativa de obturação, o nosso tão esperado objeto. Logo, o objeto é formalmente necessário, embora um tanto contingente na realidade, porque permite o fenômeno do prazer ou da satisfação. Em outras palavras, ele torna o gozo possível ao proporcionar uma "medida" minimamente concreta - "um corpo", quem sabe - mas certamente uma experiência ou ainda uma matéria que funciona de suporte para ele.

Nessa medida, e um tanto surpreendentemente, não seria o objeto que falta e, com a sua ausência já cavilhada, sulcada na aparelhagem, inaugura, por conseguinte, o desejo. Se nos mantivermos rigorosamente nessa leitura, é preciso concordar que o desejo já fora inaugurado pela letra (embora deva ser evidente que isso se dá apenas na condição em que se tenha havido objetalidade no dedo inscritor, como antes apontamos). Apreende-se, nesse sentido, a relação direta e irredutível que existe entre a letra e o objeto, ainda que seus tempos não estejam em sincronia, mas em clara diacronia. Além disso, contanto que sua relação seja irredutível, dialética até, não exclui certa temporalidade que situa um antes do outro.

Tomadas as devidas proporções, essa conclusão permitiria repensar a função ou a posição do objeto a na teoria de Lacan, uma vez que já não seria mais o objeto o que teria sido perdido no "tempo zero" da subjetivação, mas sim a letra, que só futuramente será substituída por um objeto indiferente ou até mesmo estranho a ela. Essa lógica obriga-nos, então, a pensar que a letra "vem antes" do objeto. Sendo o ponto originário da diferença, ela perfaz o substrato primário que sustenta a sua própria secundarização, a qual será enfim operada pelo objeto, mas "só depois" (Nachträglich).

Assim sendo, a letra funcionaria de acordo com a mecânica do bloco mágico, metáfora freudiana que melhor figuraria o aparelho psíquico: a letra é, de fato, uma marca que se inscreve no subsolo, deixando rastros indeléveis de sua passagem sob a superfície do papel. Essa superfície, por sua vez, logo perderá a marca da passagem da letra - que não deixa de estar ali, porém abaixo do visível - e será finalmente ocupada pelo objeto quando a letra bate em retirada. É claro que, ao tomar o tempo em sua lógica, essas operações talvez não possam ser separadas tão esquematicamente. Desejamos apontar, contudo, se bem entendemos a proposta de Leclaire, que nessa outra abordagem a letra é originária e já está lá, assim como o estádio oral vem antes do anal, que, por sua vez, é anterior ao genital, e assim por diante.

Autores como Quilichini sugerem, por exemplo, que a "letra não é mais apenas aquela que dá a verdade do desejo ou do prazer, mas aquela que vai dar a verdade do objeto causa do desejo e do gozo que o acompanha", tese que parece se aproximar bastante do que estamos tentando propor até o momento. Logo em seguida, a autora acrescenta, entretanto, que sua "função [da letra] é, então, aqui, vir representar o real, representar esse objeto a que o significante deixa de representar" (2004, p. 10). Nesse sentido, como representante do objeto a, a letra forçaria a criação de um furo no simbólico. Rivera, por exemplo, parece concordar com tais argumentos. Ao analisar - com bastante desenvoltura, aliás - um trabalho do artista Gary Hill, a autora sugere que a "letra faz entrever o impossível mundo do espelho revirado - o que podemos chamar de avesso do imaginário". Trocando em miúdos, isso se chama Real.

Contudo, nossa proposta atual é, junto com Leclaire, torcer a consagrada fórmula, partindo da ideia de que o objeto a é quem representaria a letra, e não o contrário. Em outras palavras, o objeto é quem se forjaria como resposta à "letrificação". Ainda que ambos (letra e objeto) sejam "de fato" imateriais, a letra residiria em um espaço equidistante entre real e simbólico e, em razão disso, na mesma ordem da negatividade que confere materialidade à pulsão. Nessa perspectiva, seria preciso admitir, então, que o objeto a já teria dado seu "pequeno passo" para dentro do Outro, diferentemente da letra, que se posiciona como um elemento obstinadamente resistente. A Grosso modo, o objeto estaria para o simbólico assim como letra está para o real. Em certa medida, a hipótese se resume em estabelecer que o objeto a teceria uma relação com a letra tal como o aparelho se forja em face à violência da pulsão, e aqui leia-se: como defesa ou "como borda cujo objeto se desprendeu pela introdução na linguagem" (Dubois, 2004, p. 85).

Enquanto a letra fixa uma impressão de gozo, o objeto tende a ocultá-la, ou até mesmo apagá-la, por meio de uma satisfação, de tal modo que é a letra a responsável por gerar a insatisfação que, bem ou mal, virá a motorizar o sujeito em sua busca pelos objetos. Este último se caracteriza por ser diferença extrínseca, fazendo ligação no vetor dentro-fora. A função objetal é, desse modo, pura presença, é encontro (com as coisas-fenômeno que ocupam o lugar vazio do objeto).

A letra, pelo contrário, opera enquanto diferença intrínseca, já que fora inscrita de fora para dentro. Ora, se a função objetal inclina o sujeito à necessidade da presença, a função literal pulsa no aparelho como pura falta, ou seja, é um nada onde o objeto pode vir a se instalar. Em termos mais precisos, a letra se caracterizaria por ser ausência, enquanto o objeto, pela presença. Conquanto a primeira se encontre mais próxima do irrepresentável (Bergès & Balbo, 2004, p. 57), o segundo não faz outra coisa senão representar, tal como se dá com o significante, haja vista que foi a letra quem instaurou o furo ao qual o significante sempre vem a responder. A única exceção, sugerem Bergès e Balbo, se refere ao lapso, que performatiza a letra enquanto representável (2004, p. 58).

Afinal, se as coisas podem mais ou menos encarnar o objeto a - um argumento a mais em favor da inversão que se está propondo -, então a letra se inauguraria, novamente em termos lógicos, em um momento anterior ao do objeto(seja a, seja o objeto pulsional), já que, num caso ou noutro, interessa sobretudo sua posição outra em relação ao sujeito, o que implica o cavilhamento de um lugar vazio que exige ser ocupado, isto é, a operação por meio da qual se expressa a tendência de ligação da aparelhagem. Não é demais lembrar, nesse ínterim, que a instância é da letra, e não do significante, conforme propôs o próprio Lacan. Em resumo, se o objeto a é o objeto-causa de desejo, tal como ele sustentou, a torção aqui almejada exige colocar no lugar do objeto a letra, o que obriga a reler a fórmula da seguinte maneira: letra-causa-de-desejo.

Pommier (2004), por exemplo, propõe algo muito adequado:

A violência da pulsão presente nos sons acaba dividida pelo sentido, logo que um som se define por outro som: isso quer dizer que o objeto pulsional sonoro se lamina numa letra que vai tomar seu sentido graças a outra letra no momento de formação de uma palavra. O objeto sonoro perde seu valor de objeto pulsional para se tornar uma letra unida a outra letra (...) O diferencial dos objetos pulsionais tornado letras engole a música. (p. 124)

O autor procurou debater essa problemática da letra com o objeto a partir de um argumento que, embora se diferencie do que pretendo defender aqui - uma vez que para ele o objeto se transforma em letra -, aproxima-se da minha reflexão em um aspecto crucial: de acordo com Pommier, é preciso "conceber a maleabilidade do que acontece no momento da literalização do objeto pulsional vocal" (é a esse objeto em particular que está se referindo), a ponto de considerar que ele seria, enfim, "pulverizado sob a forma de letra a título da formação do significante" (Pommier, 2004, p. 124, grifos meus).

De nossa parte, como acreditamos já termos deixado razoavelmente claro, estamos tentando circunscrever um aquém do significante, já que a reflexão encaminharia equivaler, como consequência direta, significante e objeto, em que o significante surge ali justamente para obturar uma falta originária, isto é, Real, e que antes teria sido inaugurada em sua fricção com o som, assim como a música viria antes do logos, como indica Didier-Weill (2005). Pommier conclui que cada "uma das pequenas letras é um corpo pulsional tornado inofensivo pela colocação lateral em tensão de um diferencial", de modo que o som isolado se referiria ao objeto, ou melhor, é o próprio objeto. Dessa forma, o "som ligado ao som transforma esses sons em letras, que, concatenadas em significante, evocam a significação fálica". Ele mesmo acrescenta, entretanto, que "cada letra recalca seu próprio valor de objeto pulsional assim que se une a uma outra letra" (2004, pp. 124-125). Como entender esse paradoxo? É preciso pensar, antes de prosseguir, que a voz à qual Pommier alude não compreende necessária, ou diretamente, a instalação propriamente dita daquela marca silenciosa advinda da polpa do dedo que encontra a bochecha do bebê, que, só depois, como assinalado de início, devolverá seu "ahhhhhhh" como prova da inscrição da letra. Daí a oposição entre as nossas leituras: onde Pommier acredita ver a letra, escutamos, por nossa vez, o objeto.

Ainda conforme esta linha de raciocínio, é a letra também, enquanto diferença intrínseca, que se aloja primordialmente no sujeito, o qual se detém à pulsação do furo. O objeto, uma vez que é diferença extrínseca, estará sempre fora dele, porque necessariamente separado de seu corpo de sujeito desejante. É por essa razão que a letra seria, apesar dos pesares, o determinante originário no traçado do desejo, e não o objeto.

Como recomendam Nancy e Lacoue-Labarthe (1997), a expressão "instância da letra" (Lacan), há pouco aludida e à qual se deve recorrer em qualquer discussão sobre o tema, pode ser lida mais precisamente como insistência da letra, ou como autoridade da letra sobretudo, , pelo menos a nossa ver, numa interpretação cujo cerne vem sublinhar seu poder de decisão. É nessa acepção, portanto, que a letra ao mesmo tempo predominaria (no) e determinaria o inconsciente.

 

Para Conluir

É preciso dizer, após este percurso, que a clínica psicanalítica não consistiria em outra coisa senão numa rigorosa prática da letra, ou, quem sabe, ainda numa "arte literal" na exata medida em que "nenhuma letra pode ser abstraída do movimento libidinal do corpo que a produz como marca e máscara" (Leclaire, 2007, p. 79). Em termos mais precisos, pode-se enfim resumir que essa letra apresenta2 a realidade do traço inscritor do desejo que, por sua vez, representa o limite do corpo, onde a primeira veio determinar a economia do prazer entre esse mesmo corpo e seu objeto correspondente. Com efeito, a letra se traduz pela natureza contraditória de ser uma "materialidade abstrata", uma vez que é, tal qual o gozo, matéria sem substância, de onde se retira seu valor formal. Ora, a letra é suporte material do significante na condição de não ser substancial, mas sim um topos dentro da organização psíquica. Em suma, da aparelhagem propriamente dita. Não é preciso ir mais longe com isso: a existência da linguagem ela mesma nos dá a ver o que é a letra por efeito de posterioridade (Nachträglichkeit), com assinalou Melman (2004, p. 38). Daí retira-se, enfim, a potência que o psicanalista tem para escutar.

Em última análise, caso assentrmos que a letra seria a materialidade abstrata e, ao mesmo tempo, possível do significante, ela se aproximaria imprecisamente de um "significante imaginário" (adiantei, no início de meu argumento, que em algum momento se exigiria um apoio na imagem), que cavaria o traço simbólico da inscrição no real do corpo - embora seja essa uma fórmula com a qual ainda não estamos satisfeitos, como procuramos expor até esse momento. O processo se resumiria a uma "inscrição no livro do corpo como letra do alfabeto do desejo", pois, além do mais, "é pela letra que o desejo consegue ser lido e ser reconhecido" (Quilichini, 2004, p. 9). Como vimos, essa inscrição depende em absoluto do sensível, isto é, de uma marca diferencial produzida por uma escansão no contínuo da experiência corporal. Em outras palavras, a letra é justamente o índice de uma diferença que se instalou por seu caráter específico de prazer ou dor no decorrer da história libidinal de um determinado sujeito.

Isso dito, cabe levantar a última pergunta que evidentemente não será respondida: Até que ponto seria possível pensar que esta diferença aí produzida teria a mesma materialidade, o mesmo estofo, por assim dizer, de uma experiência que poderíamos chamar de estética? De outro modo, a inscrição da letra - que é marca sensível no corpo do sujeito, triangulando por fim com o objeto e o φ - não seria ela mesma uma experiência estética? Não haveria aí uma possibilidade de estabelecermos uma relação direta, ou ainda melhor, uma relação literal entre as coisas do universo erógeno e as coisas do prazer com a arte?

Eis o principal motivo que justifica a vontade de pensar uma poética3 que chamaríamos de literal, já que, assim consideramos, ela produz um movimento de regrediência que vai do objeto à letra, tal como a teoria me permitiu devanear. Apostamos, portanto, na hipótese de que pode haver aí - em certo circuito de arte contemporânea ao menos - uma espécie de convergência diacrônica entre a letra e o objeto. Por exemplo: Thierry De Duve (1989), crítico e filósofo de arte atuante no presente, almejou construir, debruçando-se sobre Duchamp, formula uma teoria geral sobre a constituição da obra que, além de me auxiliar na conjectura que antepõe a letra ao objeto, poderia servir também àquela reflexão estética que se interessa pela passagem do período moderno ao contemporâneo da arte, tendo em vista os quatro termos, de acordo com De Duve, componentes da situação: 1) autor, 2) público, 3) instituição, e, sobretudo, 4) a pintura ou o objeto. Muito oportunamente, como se pode notar, sua breve esquematização autoriza a derradeira questão a ser colocada neste ensaio: O que nos resta a pensar quando o objeto de arte é, ele mesmo, literal?

Na ordem, um balão que guarda o ar - fiato, ou seja, o sopro - insuflado pelo artista (Figura 1); fezes enlatadas (a atenção deve ser voltada novamente ao título do quadro) em um recipiente pensado como mercadoria (Figura 2), isto é, não sem um design e propaganda próprios; um crucifixo imerso em urina - piss - e outras substâncias menos importantes (Figura 3); por fim, composto junto a uma borboleta e um feixe de aspargos, vê-se uma "natureza morta com um espelho" (título literal desse quadro de Joel Peter-Witkin - Figura 4), e que apresenta um pé decepado atravessado por pregos. Aqui, trata-se, com efeito, de um pé real e, portanto, realmente morto. Não seria o caso de pensar que tais imagens se apresentam como uma renovada subversão do paradigma representativo, de modo a acrescentar um aporte crítico pela trilha aberta com a modernidade de Duchamp, Malévitch e Magritte? Afinal, o que mais caberia aos artistas fazer após Ceci n'est pas une pipe (La trahison des images), Quadrado branco sobre fundo branco e A Fonte? Ao se revelarem tãoliterais -hipótese que tomamos de empréstimo com Leclaire -, é como se essas obras nos dessem a ver um lampejo do "desejo quase liberto da fascinação do objeto" (Leclaire, 2007, p. 41).

 

 

 

 

 

 

 

 

Como se pode notar, sendo arte, as imagens são o que são. "What you see is what you see" foi a maneira como Frank Stella tentou imortalizar uma definição para o olhar diante de certas obras de arte contemporâneas. Sopro, urina, fezes e pedaços de corpo humano é o que de fato se vê aí, e basta, pois falar mais sobre essas imagens seria, nessa perspectiva, contradizer seu propósito original, que, como esperamos ter conseguido transmitir até então, é o de nos provocar justamente ao serem "literais". Afinal, explicar a piada, como Freud bem o sabia, embora muito nos interesse na qualidade de analistas, aniquila, por outro lado, toda a sua graça.

Desse modo concluímos, um tanto claudicantemente, com Lacan, embora tentando escová-lo a contrapelo e, com isso, assumindo alguns riscos, pois não nos parece mais adequado, diante dessas imagens, pensar que os artistas teriam procurado elevar o objeto à dignidade da Coisa, tal como o psicanalista quis definir a sublimação em seu seminário sobre a Ética da psicanálise (2008, p. 137), mas, do contrário, "rebaixá-lo", ou mesmo "regredí-lo", à condição de letra.

O que leva à derradeira questão, embora proposta já no título, mas que se torna possível apenas transcorridas as inversões ensaiadas até o momento: Seria também a própria Psicanálise, ao menos num momento ou noutro, uma espécie de "arte literal"?

 

REFERÊNCIAS

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Endereço para correspondência:
Gustavo Henrique Dionisio
Email: gustavohdionisio@gmail.com

Recebido em: 17/09/2015
Revisado em: 20/11/2016
Aceito em: 10/01/2017

 

 

1 Embora ele talvez não consiga atingir seu objetivo, trata-se de um chiste: dar ambiguidade à constituição psíquica colocando um humana entre parênteses pretende lançar um problema acerca do que viria a ser uma constituição psíquica alienígena. Uma vez que os contatos de terceiro grau de fato acontecessem, será que conseguiríamos "sacar" algum saber sobre o alienígena, tendo em vista que toda a nossa referência - nosso regime de representação, em boa medida - não é outro senão... humano?
2 Agradeço esta indicação de "deslocar" representação para apresentação a Pereira (2014), que defendeu tese procurando aprofundar o assunto.
3 Foi o "estético" italiano Pareyson (1997) quem sugeriu a diferenciação muito produtiva entre estética e poética. Aplicada ao contexto do ensaio, não seria correto dizer "estética literal", pois a literalidade desses trabalhos não implica necessariamente uma filosofia sobre eles. Trata-se, mais especificamente falando, de uma poética literal, isto é, um "programa" de arte que exige a ocorrência de certas escolhas formais em detrimento de outras. Chamo Pareyson de "estético" por uma indicação provinda dele mesmo: "esteta", para ele, é o artista.

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