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Revista Subjetividades

versão impressa ISSN 2359-0769versão On-line ISSN 2359-0777

Rev. Subj. vol.17 no.2 Fortaleza maio/ago. 2017

http://dx.doi.org/10.5020/23590777.rs.v17i2.5134 

ESTUDO TEÓRICO

 

Clube da luta1 e a sociedade do espetáculo

 

Fight club and the society of spectacle

 

El club de la lucha y la sociedad del espectáculo

 

Fight club et la société du spectacle

 

 

Carina Assmann (Lattes)I; Mário Francis Petry Londero (Lattes)II

IGraduada em Psicologia pela Univates
IIMestre e Doutorando em Psicologia Social e Institucional pela UFRGS

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo busca discutir os processos de subjetivação na contemporaneidade, atravessados pela lógica capitalista de consumo e descarte, a partir da discursividade enunciada pelo filme Clube da Luta. Da mesma forma, procura-se pensar qual é o papel da clínica diante do cenário contemporâneo, que autores como Joel Birman e Maria Rita Kehl chamam de sociedade do espetáculo e cultura da imagem. Junto à película, à luz da análise de discurso foucaultiana, pinçam-se algumas falas dos personagens principais para analisar o que dizem sobre as relações do sujeito para com o mundo contemporâneo e o que a clínica, enquanto ética de escuta, tem a problematizar. A partir da análise de discurso e de sua costura com alguns conceitos advindos da psicanálise e da filosofia da diferença, se percorrerá uma discussão sobre o filme anunciado; a sociedade capitalística contemporânea e o sujeito que emerge neste contexto; e a posição da clínica neste cenário.

Palavras-chave: Clube da luta; análise de discurso; processos de subjetivação; sociedade do espetáculo; clínica.


ABSTRACT

This article discusses the subjectivity processes in contemporary times, crossed by the capitalist logic of consumption and disposal, from the discourse articulated by movie "Fight Club". The same way, aims thinking what the role of the clinic before this contemporary scenario is, which authors such as Joel Birman and Maria Rita Kehl, call the society of the spectacle and image culture. Along the film, in the light of Foucault's Discourse Analysis, tweezers some of the main characters lines to analyze them in what they say about the relationship of the subject to the contemporary world and what the clinic, while ethical listening has to question. From the analysis of discourse and its seam with some concepts arising from psychoanalysis and philosophy of difference, a discussion will be made about:the announced film; the contemporary capitalist society and the subject that emerges in this context; and the clinic's position on this scenario.

Keywords: Fight club; discourse analysis; subjectivity processes; society of the spectacle, clinic.


RESUMEN

Este artículo busca discutir los procesos de subjetivación en la contemporaneidad, atravesados por la lógica capitalista de consumo y desecho, a partir de la discursividad enunciada por la película "El Club de la Lucha". Deigual forma se busca pensar cuál esel papel de la clínica ante este escenario contemporáneo, que autores como Joel BirmanyMaria Rita Kehl denominan "sociedad del espectáculo" y "cultura de la imagen". A la luz del Análisis de Discurso foucaultiano son seleccionados algunos parlamentos de los personajes principales, para analizarlos en cuanto a lo que dicen sobre las relaciones del sujeto con el mundo contemporáneo y en cuanto a lo que la clínica, como ética de escucha, puede aportar para problematizarlas. A partir del análisis del discurso, hilvanándolo con algunos conceptos provenientes del psicoanálisisy de la filosofía de la diferencia, se desarrollará una discusión sobre la película anunciada, la sociedad capitalista contemporánea yel sujeto que emerge en este contexto, y la posición de la clínica frente a este escenario.

Palabras clave: El club de la lucha; análisis del discurso; procesos de subjetivación; sociedad del espectáculo, clínica.


RÉSUMÉ

Cet article propose la discussion des processus de subjectivité dans le contemporain, traversé par la logique capitaliste de la consommation et de l'élimination, a partir du discours énoncé par le film «Fight Club». Dans ce même sens, il est envisagé penser quel est le rôle de la clinique avant ce scénario contemporain, que auteurs tels que Joel Birman et Maria Rita Kehlappellent la société du spectacle et de la culture de l'image. À la lumière de l'analyse de discours foucaultienne, des paroles sont pincées des principaux personnages et analysées dans ce qu'elles disent à propos des relations entre le sujet et le monde contemporain et ce que la clinique, comme éthique d' écoute, peut y problématiser. De l'analyse du discours et de sa couture avec certains concepts venus de la psychanalyse et la philosophie de la différence, il est construit un itinéraire de discussion qui comporte le fim annoncé, la société capitaliste contemporaine et le sujet qui émerge dans ce contexte, et la position de la clinique dans ce scénario.

Mots-clés: Fight club; analyse de discours; processus de subjectivation; société du spectacle, clinique.


 

 

A insônia anuncia o início

"Eu me sinto vazio e ainda assim farto" (Caetano Veloso, 2012)

Jack, protagonista do filme Clube da Luta, é um jovem trabalhador com razoável sucesso em sua carreira profissional. Ele é capturado pelo desejo de consumir imagens, incitado a consumir mercadorias concretas ou abstratas para manter-se com a sensação de completude, nem que seja por alguns segundos. Ao longo da trama, sente-se sempre incompleto, esvaziado de sentidos e cansado por dessa busca incessante de aliviar suas angústias frente à vida por meio do consumo. Já não dorme nem fica acordado, então insone, durante um voo de trabalho, questiona-se sobre o viver:

Você acorda no aeroporto de São Francisco, Los Angeles. Acorda em O'Hare, no aeroporto de Baltimore, Washington, Pacífico, Montanhas Rochosas, Central. Perde uma hora, ganha outra. Essa é sua vida, que se desfaz a cada minuto. Você acorda no Air HarborInternational e logo depois está em outro lugar, e se você acorda em horas diferentes, em lugares diferentes, será que pode acordar sendo outra pessoa? Aonde quer que eu vá, vivo uma vida descartável. Amostras únicas de açúcar e creme - descartável. A comida aquecida no micro-ondas do avião. Xampu dois em um. Amostras de pasta de dente. Minissabonetes... As pessoas que eu conheço em cada voo são amigos descartáveis. Entre a decolagem e a aterrissagem, passamos um tempo juntos. Isso é tudo que temos...

O personagem demonstra o quanto está farto de sua vida descartável, em que o contato com as pessoas é baseado em relações líquidas. Nada é feito para durar, para ser sólido; um mundo de incertezas em que cada um vive por si (Bauman, 2007). Além das relações descartáveis, nomeadas por Jack, o que também lhe causa sofrimento são as formas de vida produzidas para os indivíduos na atualidade. Deve-se sempre ser espetaculoso, congelado em um modo de vida que recusa qualquer fracasso. A glória é o único status possível em uma sociedade do espetáculo (Birman, 2009), não à toa o recurso do Photoshop é tão usado nos dias de hoje.

Estamos o tempo todo, criando uma cultura da cosmética e da banalidade para estarmos incluídos e com a sensação de brilho (Ribeiro, 2002). Debord (1967/1997) comenta isso ao indicar que a relação social no mundo pós-industrial é mediada pelas imagens, e é isso que tem valor de consumo e que indica o sucesso de um indivíduo ou o seu fracasso. Jack se incomoda com essas formas de vida reluzentes, sente-se asfixiado com o descarte de si mesmo, que vai lhe mutilando sem ofertar sentidos. No ápice de seu sofrimento, com o qual não sabia mais se estava acordado ou dormindo, em uma tentativa de fuga, ou, por que não, de resistência, funda o Clube da Luta, espaço que aqui leremos como uma forma de problematizar as discursividades dessa sociedade do espetáculo e de consumo.

O filme parece violento superficialmente, mas, com um olhar mais aguçado, podemos explorar suas fortes cenas em uma avalanche de ideias para pensar o contemporâneo. As cenas de violência do filme justificam a demência do homem (Maia, 2004), ser frágil mergulhado no vazio da vida rotineira, perdido a tal ponto que necessita da dor física para despertar. O Clube da Luta, fundado por Jack, tem um sentido metafórico, não para produzir violência, mas para indicar a condição desesperadora do sujeito que descobre que sua vida é um grande nada.

Nossa leitura do filme, que está a se iniciar para analisarmos o contexto social e o que a clínica pode diante deste território político que é a vida, entende que o Clube da Luta nos faz pensar o sentido do viver no contemporâneo capitalista, o qual impele à compra desenfreada de imagens, em oposição à vontade de liberdade que resiste ao anestesiamento do corpo, que pouco sente a dor dos encontros e dos fracassos. Essa tensão angustiante e psicológica por que passa o personagem principal da película, com cenas sempre pesadas, escuras e com um ar de abandono, ronda o cenário contemporâneo e inspira questões sobre as quais desenvolvemos o texto aqui apresentado: O que esse mundo descartável, como chama Jack, produz em termos de subjetivação e modos de relação no mundo contemporâneo? Como uma clínica esquizo-psicanalítica, no que tange à ética de escuta do inconsciente, pode ser sendo pensada nesse contexto capitalístico?

A partir das questões acima apontadas, este artigo tem a intenção de problematizar o modo como o sujeito se responsabiliza em relação à sua angústia perante um social que parece ter perdido seus parâmetros normativos a partir da aceleração que o sistema capitalista produziu nas relações sociais atuais. Um modo de operar a vida que indica pouca paciência para os processos de maturação do sujeito junto ao seu angustiar-se, caminhada que leva a um negar a todo instante as forças de alteridade do mundo que impelem ao ato criativo (Sousa, 2008). O mundo sem limites, propagandeado por empresas de telefonia, enuncia muito bem a imagem que se tenta vender a cada indivíduo, isto é, a possibilidade de não necessitar mais passar pela angústia da relação com o outro, aquele que sempre irá diferir o mínimo possível e impor certo limite. Junto à análise do filme e do que ele nos indica em termos de processos de subjetivação na atualidade, desejamos pensar a clínica e o que ela pode inferir enquanto resistência desse modus operandi cerceador no que tange à possibilidade de existências singulares. Por incrível e paradoxal que pareça, o mundo sem limites e de imagens de consumo infinitas limita o aparecimento de vidas singulares.

 

Método

A metodologia deste artigo baseou-se na análise das cenas do filme, no intuito de contextualizá-las no mundo contemporâneo e de refletir sobre o que essa obra cinematográfica implica à clínica em certa postura de resistência, tomando como ponto de partida a angústia frente às maneiras que o sujeito encontra para delinear sua vida, problematizando também o cenário atual em suas políticas de subjetivação.

Utilizamos a análise de discurso foucaultiana para dar consistência a essa operação de análise das falas do filme, que, de alguma forma, indicam pistas de onde os processos de subjetivação estão a se delinear no meio social da atualidade. A análise de discurso foi utilizada para apontar e problematizar a discursividade contemporânea que transpassa a película, na intensidade apresentada, sobretudo nos diálogos entre Jack e seu companheiro Tyler, forjado a partir de seu sofrimento. Foucault (1969/1995) ressalta que é preciso considerar a realidade material do discurso, seja ela pronunciada, seja escrita. O discurso não é praticado por alguém que realiza um ato de fala, mas por um sujeito que utiliza determinado enunciado atravessado por suas ocupações em um lugar institucional e social. Ao analisar um discurso, não estamos diante da manifestação de um sujeito unitário fechado em si mesmo pelo comntrário, deparamo- nos com um lugar de dispersão e descontinuidade aberta, que constitui o social com discursividades fragmentadas e de combinações diversas. "Ele é ao mesmo tempo falante e falado, porque através dele outros ditos se dizem" (Foucault, 1969/1995, p. 75). Esses fragmentos discursivos e suas combinações diversas nos dizem de certos modos de conceber e mesmo de transitar pelo mundo, sua política e seus modos de subjetivação. Nesse sentido, o filme nos parece um rico material a ser analisado para a compreensão do mundo contemporâneo em sua lógica capital de consumo de imagens.

Junto à análise de discurso, alguns conceitos, tais como sociedade do espetáculo, biopoder, multidão e biopotência, servirão como norte para a discussão. Esses conceitos nos ajudarão a contornar a complexidade discursiva de nossa época, esse emaranhado de forças que interagem e produzem subjetivação. Seguimos o texto à luz da análise de discurso, costurando-a aos conceitos acima apontados para pensarmos sobre o filme anunciado; a sociedade capitalística contemporânea e o sujeito que emerge neste contexto; e a posição da clínica esquizo-psicanalítica diante desse cenário.

 

Interfaces reflexivas entre o clube da luta e o mundo contemporâneo

Anestesiamento e fracasso: o que isso diz da sociedade do espetáculo?

As exigências da atualidade estão voltadas à conquista de uma vida "brilhante" (Debord, 1967/1997; Birman, 2009), na qual o olhar admirável do outro sobre o sujeito é o ponto-chave para se desfrutar do sucesso e alcançar o brilho social. É necessário um cuidado excessivo com o próprio eu, em uma convocação performática a todo o momento. Birman, 2009) chama esse marco social de cultura da imagem: o sujeito vale pelo que parece ser, a partir das imagens que consome para apresentar-se na cena social a fim de garantir o espetáculo. Um exemplo disso são os famosos selfies, fotos de si mesmo expostas nas redes sociais, uma estetização do eu importante para polir o brilho e cultivar a admiração do outro através das curtidas virtuais.

Há aí uma tentativa de manipulação do outro, espécie de sedução que serve para que o mesmo esteja sempre em uma posição de admiração. O efeito dessa lógica é a perda da importância dos afetos e o grande interesse de capturar o outro como objeto de predação e gozo, em uma espécie de narcisismo primário, trabalhado por Freud (1914-1916/1996b) e revisitado por Birman, 2009) ao pensar a cultura do narcisismo através da imagem como a maneira pela qual se garante a glorificação. Precisamos de muitas curtidas nas redes sociais para vender uma boa imagem, de modo que postagens com fotos de si em seus melhores ângulos para mostrar a beleza, com muitos amigos e marcações de viagens afirmam o quanto se vive a vida intensamente e sem limites.

Birman (2009) aponta para uma cultura do espetáculo, na qual se vive para a exibição, para a exaltação do eu. O sujeito exige de si ser performático, confundindo o ser com o parecer a partir da pose de uma imagem. Essa performance é marcada pelo narcisismo primário, constituído na primeira infância, segundo Freud (1914-1916/1996b), como um elemento natural do desenvolvimento psicossexual. Contudo, tal narcisismo primário, pautando as relações cotidianas contemporâneas, torna-se algo questionável, para não dizer um sintoma social da atualidade: um eu que investe sobre si mesmo sem limites, que se transforma em uma majestade permanente, brilhante no palco da cena social. Essa performance nem sempre alcance o sucesso, pois, para almejar o brilho, é necessário um alto investimento em si, não como um trabalho de se conhecer, mas como uma produção incessante do aparecer, uma excessiva maquiagem.

Já Rolnik (1995) traduz o mundo contemporâneo como uma relação de hierarquias imaginárias que oprime todos os modos de existência singulares com as quais montam-se modelos identificatórios que servirão de referenciais universais para avaliar as figuras existentes. Essa trama é chamada pela autora de modelo ideal glamourizado (Rolnik, 1995).

Jack busca esse brilho, conceituado por Debord (1967/1997) e Birman (2009), e preocupa-se em seguir um modelo ideal glamourizado (Rolnik, 1995) a partir dos objetos que consome. Nas cenas do filme, Jack está sempre em busca de um novo móvel para sua casa, algo que faça de seu apartamento um ambiente diferenciado, mesmo que seja com móveis padronizados que são consumidos por ele logo após o lançamento no mercado. Consumir lhe garante um destaque, oportuniza a Jack momentos de glorificação, proporciona um estar no mundo.

Segundo Rolnik (2004), dar conta dessas exigências do social gera um cansaço incessante, pois ficamos à mercê dos processos capitalísticos de venda de imagens, os quais compramos para sentirmos que estamos em movimento e atualizados nas novidades do mercado, apesar de estarmos no mesmo lugar, em um vazio, dependentes dos objetos midiáticos ofertados, que são como âncoras para a angústia. Essa seria a saturação, o cansaço, a tentativa midiática de evitar lidar com o desamparo da vida, que, na verdade, só produz uma espécie de morte em vida pela falta de um movimento genuíno do sujeito frente aos desafios angustiantes que o mundo, na relação com o desejo, provoca.

Kehl (2004) chama esse cansaço de aperfeiçoamento da alienação, no qual os sujeitos não se apoiam sobre seus pensamentos, tampouco agem conforme seus desejos, "toda a experiência é mediada pelo espetáculo", uma "medidinha certa" para que o cidadão comum não fracasse. Para Domingues (2010), apontar o fracasso não é permitido, posto que seria um sinal de fraqueza que exclui a participação de certo modo de vida bem-sucedido. Contudo, o exercício de estar a par a todo instante da "medidinha certa" produz uma fadiga, acompanhada de uma ansiedade constante, fruto de uma aceleração vertiginosa por um imaginário de onipotência, por ideias de grande sucesso e competência (Domingues, 2010).

Nesse sentido, como podemos observar nos consultórios clínicos e nos serviços de saúde pública, a maioria dos indivíduos fracassa ao não dar conta dessas exigências marcadas pela glorificação do eu e pela estetização da existência, recorrendo ao uso de psicotrópicos para não se sentir fora desse social brilhante muitas vezes (Birman, 2009). Jack não fugiu à regra dos fracassos e tentou recorrer a medicações que o anestesiassem e o fizessem dormir. Como não obteve sucesso com tal recurso, após certo período de muita angústia, como a questionar essa regularização do social que impõe à população uma máscara sorridente 24 horas por dia, Jack começa a desejar sustentar um espaço em que o mal-estar seja encarado ao delirar Tyler.

A morte dos sentidos na sociedade do consumo desenfreado

É difícil problematizar o mal-estar contemporâneo. A mensagem de que se deve ter uma vida espetaculosa é aprisionante, pois parece que, se não seguirmos tal proposta estaremos fora do mundo. Estar no compasso capitalístico de consumo de imagens brilhantes é um desafio cansativo, mas ficar de fora, resistir, é um ato arriscado, de negação de si mesmo, pois nossa constituição está alicerçada nessa subjetivação. Como escrevera Debord (1967/1997), as relações sociais passam a ser mediadas pelas imagens e o seu consumo, constituindo subjetivamente a todos. Ao identificarmos esse cansaço em Jack, não assistimos apenas aos clamores do personagem, mas vemos a nós mesmos, nos identificamos, já que essa angústia frente ao vazio do consumo de imagens é a própria expressão da humanidade na atualidade. Como matar a si mesmo sem desistir da vida?

Esse cansaço de tentar consumir até preencher um vazio que nunca é saciado produz uma série de sofrimentos, denunciando certo fracasso em se manter brilhante a todo instante. Segundo Birman (2009), com a cultura da exaltação do eu, crescem gradativamente os psicodiagnósticos de depressão, síndrome do pânico e toxicomanias. Para o autor, não existe mais lugar na sociedade para os deprimidos e os panicados, pois ambos representam a impossibilidade de serem cidadãos no espetáculo. Os sujeitos com um perfil depressivo não se destacam no cumprimento das exigências de exibicionismo, voltam-se para dentro, queixam-se das lutas que teriam que entrar para dar conta das imagens sempre vitoriosas do espetáculo; já os panicados sofreriam certo curto-circuito de tanto tentarem forçar um suposto brilhantismo que não conseguem sustentar, e sucumbem.

Jack, apesar de buscar no consumo as formas de exibição, cansa em certo momento e não consegue mais representar esse lugar de sucesso, sempre no auge. Para lidar com seu sofrimento e fracasso, acaba por criar Tyler, seu lado que propõe denunciar o sistema. Um homem de vigor, que satiriza o modo como as relações de consumo ocorrem. Tyler é a criação de um ser com um perfil desafiador, subversivo, que propõe pensar nas resistências que Jack não conseguira movimentar sozinho em seu desalento insone, que o tornava um sonâmbulo preenchido por imagens sem sentido.

Quando Jack conhece Tyler, os dois fundam o Clube da Luta, uma sociedade secreta de homens que buscam olhar para a angústia através de uma forma inusitada: a luta clandestina. Essas lutas, praticadas até a exaustão, eram uma forma de se confrontar com as frustrações e as inquietações do mundo contemporâneo. O objetivo não era vencer a luta, mas administrar o peso emocional que assola o cotidiano das pessoas, uma descarga de sentimentos, inquietações e desacomodações via corpo. Segundo Hausen (2012), o filme denuncia as imagens que cegam os sujeitos, imagens essas da comunicação visual, que nos impedem de qualquer transformação subjetiva. As imagens saturadas produzem "inquietações, gasta-se a palavra, se produz mudez, cegueira, descrença em qualquer tipo de transformação" (Domingues, 2010, p. 17).

No cotidiano contemporâneo, tudo é vão, igual, reciclável, já dizia Jack. À luz das palavras desesperadas de Jack, podemos ver o quanto fica difícil a criação de sentidos em um mundo em constante aceleramento das imagens, que nos colocam em vertigem. O sujeito, imerso nessa aceleração da vida, tem pressa ao sentir, quer tudo ao mesmo tempo, em uma agitação que provoca mudanças constantes, sem possibilitar a formação de um chão, de um território existencial. O sujeito fica em suspensão, torna-se prisioneiro de supostas verdades vendidas a partir do poder midiático de consumo. Ele flutua entre fluxos de imagens sem nunca aterrizar em si mesmo. Em uma das cenas do filme, Tyler e Jack dialogam sobre as imposições da vida e sobre o quanto se sentem prisioneiros das supostas verdades e têm dificuldade de olhar para seus próprios desejos. Diz Tyler:

Meu pai não fez faculdade. Então era muito importante que eu fizesse. Daí eu me formei, liguei para meu pai e perguntei: e agora, pai? Ele disse: Arranje um trabalho. Agora, tenho 25 anos e perguntei ao meu pai: O que faço agora? E ele responde: Eu não sei, por que não se casa?

Os personagens mostram em cena o quanto são cobrados para buscar e manter uma vida regulada, estilos de vida vendidos pelo capital, uma venda de imagens que garante o brilhantismo sem que percebamos o quanto estamos sendo alienados a um mundo padronizado. A instituição capitalista dita pistas do que ter para aparecer e se destacar no social, e mesmo que discurse em favor de uma certa liberdade, acaba impedindo os sujeitos de se transformarem com singularidades não reguladas. O sujeito é livre, desde que consuma o que lhe é oferecido no circo publicitário de imagens-sonhos. Outra fala de Tyler, sobre sua indignação com o controle da vida por intermédio do social capitalístico, pode ser vista neste escrito:

Nós fomos criados pela televisão acreditando que, um dia, seríamos milionários, e deuses do cinema, e astros do rock. Mas não seremos, e lentamente estamos compreendendo esse fato. E nós estamos muito putos com isso.

O personagem apresenta-se como o porta-voz da frustração de Jack, verbaliza sua incomodação com as promessas de liberdade vendidas, que, na verdade, são desilusões de uma existência empobrecida. Kehl (2004) ressalta que não é um empobrecimento no âmbito material ao que o consumo tenta suprir, mas no âmbito das experiências. A experiência, peça fundamental para a maturação do sujeito em vida, que o impele a jogar no trânsito das relações que encontra junto ao mundo, fica paralisada, quase proibida pela não suportabilidade que representa, nos dias atuais, se deparar com o encontro com o outro em sua radical alteridade. Ao invés de viver a experiência em sua angústia de arriscar-se junto ao outro, de se deparar com o inacabado que é próprio de cada relação, o sujeito se vê convencido a consumir imagens prontas, definidas, padronizadas, que criam um apaziguamento sutil de identificação, o que instala no sujeito um lugar imóvel, um igual que não necessita confrontar-se com a diferença do outro.

Rolnik (2004) destaca em seus escritos que o capitalismo vem marcado como um avanço tecnológico, o que dificulta a produção de territórios existenciais pela constante produção de imagens-fluxos desterritorializantes. Em função disso, o sujeito na atualidade vive a partir de uma multiplicidade de culturas, ofertadas enquanto imagens a serem compradas de maneira massificada, produzindo um sentimento de desestabilização no que tange a uma possível referência. Desestabiliza-se o sujeito em seus territórios constituídos a partir de suas experiências para, logo em seguida, oferecerem-lhe imagens-fluxos que substituem os territórios caducos e despossuídos de sentidos pelo capital.

Barros e Passos (2004) comentam sobre a força do capitalismo em suas modulações contemporâneas, que produz uma desterritorialização dos sentidos de maneira integral. A alternativa ofertada pelo capitalismo se passa no consumo desenfreado de objetos, a fim de tapar a angústia do vazio implicado pela desterritorialização sem fim. Jack compra toda a mobília de seu apartamento com uma decoração já pré-planejada, montando um ambiente padronizado e estiloso, com o qual, ingênua e desesperadamente, sente prazer por aliviar seu vazio angustiante. Contudo, nesse frenesi de compras, Jack não segue suas vontades e, refém do desejo desse outro capitalístico, fica mortificado em vida, torna-se um zumbi consumista.

"Como muitos outros, eu me tornei um escravo do consumismo instintivo", comentava Jack ao perceber a intensidade de alienação do consumo sobre si mesmo. Deleuze e Guattari (1980/2007) apontam que o capitalismo é esquizofrenizante e desterritorializante por natureza, levando o sujeito ao sentimento de perdição, entre um território existencial que já caducou e outro que ainda não se produziu. Nesse buraco existencial que o sujeito fica imerso, só lhe resta partir para o consumo de imagens, criando uma referência e um suposto território apaziguante. Entretanto, essas imagens-fluxos (Barros & Passos, 2004) se esgotam de forma muito rápida, lançando o sujeito novamente na angústia de agarrar-se a algo novo. O sujeito está sempre desatualizado, pois as imagens em que se agarra logo são destruídas por outro fluxo de imagem que o assalta.

Jack é influenciado pela publicidade que vende sonhos, atitudes e valores. Mesmo não consumindo objetos alardeados pela publicidade como se fossem a "chave da felicidade, é consumida a imagem deles, o desejo de possuí-los, a identificação com o ideal de vida que supostamente representam" (Kehl, 2004, p. 54). Jack percebe que a vida já não é mais algo que se experimenta, mas que se consome. Ela só é sentida quando devorada.

Você compra móveis novos, e aí você pensa: É isso! Isso é tudo que eu preciso. Eu tinha tudo. Tinha um aparelho de som legal, uma coleção de roupas bem respeitável. Eu estava perto de me sentir completo.

É assim que diz Jack sobre seus princípios de vida, guiados pelo consumo, um ter algo para cobrir o vazio, uma forma de ser padronizada para habitar o mundo. É a derrocada das experiências para a ascensão das imagens de consumo. Para Arós e Vaisberg (2009), o consumo implica em uma sensação de existência, pois, no momento em que tomam posse da compra, os sujeitos percebem que estão vivos. Consumir não se limita a comprar, é uma sensação de pertencimento, uma adesão a um mundo.

Na mesma linha, Kehl (2004) aponta os "meios de comunicação como um aliado do consumo". Consumir não é apenas adquirir uma mercadoria, é muito mais que isso: é identificar-se com as imagens vendidas. A publicidade exerce um constante "apelo pelo gozo", que "apaga a dimensão do desejo", oferecendo uma inclusão no mundo do "espetáculo" (Kehl, 2004). Afinal, a experiência de angustiar-se até desvelar o que se deseja é a toda hora reduzida pela oferta de imagens que prometem o gozar apaziguador do consumo de um objeto. O gozo via consumo aniquila o desejo.

Parafraseando Hausen (2012), a cultura do consumo e da imagem deixa os sujeitos "apreendidos pela manipulação do imaginário social". Esse imaginário social, reproduzido pela mídia, busca satisfazer tanto a instituição capitalista quanto os interesses dos sujeitos que se permitem serem capturados pela cultura da imagem. A busca por esse modelo de bem-estar e felicidade propõe que os sujeitos invistam em soluções imediatas e ilusórias, que vendem a ideia de preencher o sentimento de vazio. Nessa relação do gozo com o consumo, do vazio e da descarga pulsional a qualquer custo, questiona-se de que maneira os modos de vida são capturados a serviço do capital, que produz formas de subjetividade e sociabilidade à luz do brilhantismo e do consumo. Assim, pode-se pensar que Jack só consegue problematizar essa produção subjetiva via Tyler, quando juntos revidam essa estagnação da criação desejante causada pelo social guiado pelo capitalismo: "Você não é o seu trabalho. Você não é o dinheiro que você tem no banco. Você não é o carro que dirige. Você é a merda do seu mundo".

Não alimentar sonhos de consumo é o que Tyler avisa aos participantes que chegam ao clube, aproximando-se do que Pelbart (2008) fala sobre criar estratégias de "resistências" e de "proteção" para as "singularidades" nascentes.

Biopoder/Biopotência

Deleuze (1992) traz em seus escritos o atravessamento da sociedade de controle na vida contemporânea, na qual nunca se termina nada, tudo está em um constante movimento modular. É o que Deleuze (1992) chama de "modulações auto-deformantes", uma vida com mudanças contínuas, uma inquietação, um não estar parado; a angustiante sensação de estar sempre em movimento para que se possa, paradoxalmente, alcançar o que é dito como necessário em relação a uma vida dita estável, equilibrada e segura. A sociedade de controle funciona através de "mecanismos de monitoramento", incidindo diretamente sobre corpos e mentes.

Os mecanismos da sociedade de controle são modulares, "interiorizados e reativados" pelos próprios sujeitos, sendo o que o autor chama de "estado de alienação autônoma" (Pelbart, 2003). "Somos um subproduto de uma obsessão por um estilo de vida", nos aponta Tyler, protestando contra um social que controla a vida, regulamentando a existência de maneira a pouco existirem brechas para singularidades. Segundo Pelbart (2008), o "poder pilota nossas vidas", mas não é um "poder repressivo", é "imanente, poder produtivo", ao contrário dos tempos do poder soberano que controlava o social a partir do aniquilamento da vida, estratégia negativa de poder.

Neste sentido, o poder, em suas mutações, objetiva não barrar a vida com punições, mas intensificá-la, otimizá-la a partir do que oferta enquanto modos regulamentados de existência. Hoje, o poder oferta ao invés de punir. É nesse ponto que surge a dificuldade em resistir, pois não somos mais punidos, ao contrário, somos estimulados. Nós mesmos nos encarregamos de administrar o controle e o desejo de se ver capturado nessa "dinâmica anônima" (Pelbart, 2008) do poder. Assim, os mecanismos de controle do que também é conhecido como biopoder, apontados acima, são capilares e estão nas entranhas de cada sujeito.

Ainda apoiados em Pelbart (2013), podemos pensar que o "poder contemporâneo" para além do seu "fazer viver explorador da vida". Enraizado na sociedade de controle, busca o fazer "sobreviver", não investindo mais na vida e na morte, mas na "administração de sobreviventes", em uma lógica de "sobrevida biológica" com a qual se reduz o homem à "dimensão diminuída a seu mínimo biológico", à sua "nudez", "vida sem forma, sem vida" - "sobrevida" ou morte em vida por não existir possibilidade de desejo (Pelbart, 2013, p. 25).

Contudo, no reverso desse controle sobre a vida, há um avesso se produzindo, segundo Pelbart (2013), o qual destaca que os sujeitos buscam "formas de resistências", revirando o "poder sobre a vida" para que se produza um "poder da vida", a "potência política" que revira as formas e reinventa enunciações - a biopotência. Para tanto, surge a necessidade de reinventar o sentido do "biopoder" e da "biopolítica", os quais originalmente, conforme a compreensão de Foucault (1975-1976/2010), incidiam como regulamentação sobre a população a partir de mecanismos disciplinares e biopolíticos. Essa reinvenção do "biopoder" e da "biopolítica" é nomeada como biopotência, ou mesmo como "multidão", que seria esse "corpo biopolítico coletivo em sua inteligência, afeto e desejo que resiste ao controle modulado" (Pelbart, 2008). A multidão disforme dilui as modulações que a tudo regulamenta.

Segundo Pelbart (2013), a "multidão é multiplicidade", gera novas fontes de valores que impedem as "modulações sociais de controlar e capitalizar os sujeitos". "A potência humana determina um deslocamento contínuo do desejo" (Negri, 2002, p. 26), que insiste em nomalizar o que se encontra regulamentado. A multidão seria o poder constituinte, a potência para a criação de laços afetivos e de afetação, um conjunto de singularidades que não se tornam homogêneas e não são reduzidas a uma unidade.

O clube fundado por Jack e Tyler pode ser considerado um movimento de multidão que problematiza as produções dessa vida docilizada, sobrevivente ao desviar das modulações, que permeia o cotidiano contemporâneo. É na tentativa de negar a vida regulamentada do social capitalista que os integrantes do Clube da Luta tentam emitir singularidades que destoem do status quo. É um movimento revolucionário que explode a história ao permitir aberturas, como bem define Negri (2002, p. 40), ao teorizar sobre o poder constituinte e sua multidão: "o poder constituinte manifesta-se como expansão revolucionária da capacidade humana de construir a história, como ato fundamental de inovação e, portanto, como procedimento absoluto".

É nesse sentido que pensamos o filme Clube da Luta, no qual o personagem principal busca formas para romper com a vida normalizada e controlada. O que propõe Jack com o Clube da Luta é uma forma de revide contra as modulações e produções de vida, contra a sobrevida. O clube conta com forças criativas, inteligência coletiva para lutar contra as formas de assujeitamento, isto é, de "submissão da subjetividade que prevalece" (Pelbart, 2013). Segundo Hausen (2012), Jack, juntamente com Tyler, pensa nas possibilidades de construir "territórios subjetivos" que comportem "resistências e desterritorializações" que denunciem a sobrevivência, arriscando suas vidas, machucando seus corpos para externar os sentimentos, em uma necessidade de não anestesiamento, de sentir no corpo a dor que o viver impõe. E, para dar conta disso, não se trata de domesticar, de recorrer a formas de vidas prontas, mas de afetar e ser afetado. Pelbart (2013, p. 31) acredita ser possível, embora desafiador, ter a força de "estar à altura da própria fraqueza", da própria dor, ao invés de "permanecer na fraqueza de cultivar apenas forças". Jack, em sua fragilidade, busca essas forças via Tyler, delira criativamente para resistir às formatações subjetivas que já não suporta.

Freud (1930/1996a) comenta que há maneiras de lidar com o sofrimento causado pela não felicidade que o sujeito se depara ao viver em civilização. Essas técnicas podem ser chamadas de delírios. Freud, (1930/1996a) destacou três formas: o "delírio individual", que seria a não aceitação da realidade com uma ferrenha recusa a ela; o "delírio coletivo", que diz de um delírio de massas, tomando como exemplo a religião; e o "delírio individual e/ou coletivo", que seria a não aceitação da realidade e a tentativa de inventar novos valores no seio da civilização, tensionando o que está posto ao criar alternativas para revolucioná-lo.

Com o último tipo de delírio, o sujeito busca no mundo a satisfação das pulsões como nos outros tipos; alivia, contudo, a pressão advinda da realidade em relação a suas pulsões a partir da criação de mundos que se possam, ao mesmo tempo, compartilhar e revirar as normativas do social. Nesse sentido, Jack faz uso desse delírio para dar conta de suas angústias, já que o personagem não aceita as formas de vida impostas e, como resistência a esse modo de operar no mundo, cria alternativas existenciais ao fundar o Clube da Luta, inclusive ao criar/delirar Tyler Durden.

À luz do que indica Jack e o próprio Freud, todos nós que vivemos no mundo, de alguma forma, podemos incutir no social um desvio "inventivo-delirante". O desafio ético de defesa de vidas singulares no cotidiano é não ceder aos apelos de uma cultura acachapante. Como forma de resistência, é necessário ocupar espaços no mundo com práticas singularizantes. É fundamental legitimar possibilidades que não tenham a pretensão de verdades únicas, mas que sirvam como apoio de resistência. Nesse sentido, já anunciando o nosso pensar final, como podemos visualizar a clínica enquanto escuta éticopolítica de invenção de mundos inspirados pelo Clube da Luta? A clínica, já docilizada pelos mecanismos de controle, não teria nada a nos dizer sobre o contexto em que aplica sua escuta?

 

Clínica e Clube da Luta: uma combinação explosiva?

O sofrimento psíquico, na atualidade, é causado por uma busca de identidade e por um "culto de si mesmo", uma busca desesperada em vencer o vazio desterritorializador da sociedade de consumo, muitas vezes com o auxílio dos fármacos e outras formas de anestesiamentos que são as próprias imagens-fluxos já apontadas: tome tal medicação que ficará mais disposto! Nesse anestesiamento da vida, contudo, pouco espaço sobra para se refletir sobre o porquê das angústias humanas e suas possíveis infelicidades (Roudinesco, 2000). A angústia é tamponada pelo gozo do consumo, aniquilando a possibilidade de ascender ao desejo. A liberdade do sujeito é condicionada ao direcionamento do consumo, e não mais atrelada à sua produção desejante.

A sociedade prega a emancipação, destaca a igualdade de todos perante as leis, oferta vidas consumíveis, as quais todos têm a possibilidade de sonhar. Em meio a isso, cada um reivindica sua individualidade, recusando-se a se identificar com as imagens da universalidade, mesmo que seja cooptado por elas, sem perceber, a partir do consumo. Desse modo, a era da individualidade passa também a ser a era da subjetividade (Roudinesco, 2000) ensimesmada, achatada em um igual que beira ao insuportável.

É justamente essa falsa ideia de liberdade que faz com que Jack movimente sua vida "esvaziada", nomeada pelo próprio personagem de vida de descarte, escrava junto aos objetos que consome e que lhe normatizam no viver capitalista. Pelbart (2013) fala de um modo de existência chamado de "vida nua", uma vida não humana, uma vida esvaziada, controlada pelo biopoder em suas regulamentações. Essa é a redução da vida à sobrevida, capaz de produzir apenas sobreviventes que não desejam e apenas agradecem por estarem vivos, independentemente do que lhes aconteça. Já não têm mais a esperança de seus desejos, somente marcham de acordo com as ordens recebidas. Marcham cabisbaixos, com ombros caídos, resignados em seus sentimentos.

O biopoder, após Foucault (1975-1976/2010), não tem a intenção de domar ou eliminar o corpo apenas quando não dócil, mas tenta mantê-lo em uma zona intermediária entre a vida e a morte. "Pois não é mais vida, não é mais morte, é a produção de uma sobrevida modulável e virtualmente infinita que constitui a prestação decisiva do biopoder do nosso tempo" (Pelbart, 2013, p. 26). Essa sobrevida modulada e virtualmente infinita é gerada e manipulada, segundo Kehl (2004), pelo espetáculo, que abarca toda a superfície da vida. É um controle sobre a vida que dita formas de ser e de agir para alcançar uma glorificação, sem abrir espaço para repensar-se, refazer-se e recriar-se.

No início do filme, Jack sente-se angustiado ao perceber que sua vida é um grande nada e que pouco sente diante das inúmeras compras realizadas em sites para se manter atualizado. Dessa forma, ele busca um atendimento médico com o objetivo de aliviar seus sintomas com as medicações prescritas pelo profissional, demonstrando o quanto é necessário estancar a dor para seguir dando conta das exigências do social e de si mesmo.

Segundo Roudinesco, as intervenções medicamentosas revolucionaram as representações do psiquismo, controlando e "fabricando um novo homem", sendo este um ser polido e sem humor, "esgotado pela evitação das paixões e envergonhado por não ser o ideal que lhe é proposto" (2000, p. 21). "No lugar das paixões, a calmaria, no lugar do desejo, sua ausência, no lugar do sujeito, o nada" (Roudinesco, 2000, p. 41). Um triste destino que Jack parece não mais suportar.

Nas primeiras cenas do filme, é clara a fragilidade de Jack frente ao seu cansaço. Ele busca em grupos de autoajuda com doentes terminais a escuta dos seus desejos, que, até então, não eram pensados. vO que Jack precisava era de um espaço para olhar suas paixões e se jogar em um lugar distante da calmaria, com menos controles químicos que anestesiassem seus sofrimentos e mais abertura para a escuta de si mesmo e de seus fracassos.

O uso dos psicofármacos de maneira banal tende a abolir no sujeito não apenas o desejo de liberdade, mas também a forma de enfrentamento dele para com a vida. A linguagem e a expressão dos sofrimentos passam a ser fonte de uma angústia inesgotável, de uma vergonha por se sentir fraco perante um social que exige o sucesso e o brilhantismo. O homem não quer se envergonhar de si mesmo, não quer fraquejar (Roudinesco, 2000), pois mostrar a fraqueza não condiz com o viver no contemporâneo. A existência deve ser indolor.

Nesse contexto, em que se almeja uma existência indolor, prolongada ao máximo com os prazeres controlados, Jack percebe que morte e vida designam não fatos objetivos, mas posições existenciais subjetivas. Nesse sentido, ele cria uma forma de resistência a essa vida nua, resiste, posiciona-se existencialmente entre vida e morte na tentativa de incutir sobre si e sobre o mundo marcas deformantes do regulamentado.

Resistir a essa vida nua é considerado por Zanella e Furtado (2012) como uma postura ética, estética e política, que faz dos acontecimentos da vida espaços múltiplos, produzindo novas formas de habitar o mundo e repensar a vida. Resistir objetiva criar rupturas, deslizes de sentido ao questionar eticamente os modos de operar a vida, para que, a partir desse buraco proporcionado pela questão, possa inventar esteticamente novas existências para percorrer a vida, em uma política que tensiona reproduções e controles sobre o viver.

Ao que parece, a clínica esquizo-psicanalítica, ao se posicionar de maneira éticopolítica frente ao social, possibilita um espaço de escuta desses fracassos, das paixões e dos sofrimentos que estão em processo de anestesiamento na sociedade, que exige um não pensar e oferece apenas o consumir como indicativo de bem-estar. A clínica abre espaço para o tempo da angústia. Em sua escuta, acolhe o sujeito, oferecendo-lhe uma pausa nos atos impensáveis que só dão conta de um gozar incessante. Ela, artesanalmente, propicia o ensaio para o desejar do sujeito. É uma parteira de singularidades que resiste aos mecanismos regulamentadores da vida.

Jack representa o homem contemporâneo, um sujeito exausto de ser controlado, possuidor de um corpo mortificado na banalidade cotidiana. Com o clube, o personagem procura resistir a esses modos acachapantes que o social proporciona, propõe um repensar a vida e uma produção de novas formas de habitar o mundo, contestando a mutilação biopolítica, o entorpecimento e, acima de tudo, a docilização imposta.

Pelbart (2013) utiliza o conceito de niilismo para pensar o controle da existência, justamente o que Jack e o Clube da Luta contestam: a vida operada enquanto sugadora das forças produtivas de cada sujeito. O autor destaca o processo avesso desse niilismo, no qual se refere que, no esgotamento que o sujeito na atualidade vive, surge uma vontade de nada, que possibilita estratégias inventivas para reagir ao que o regulamenta e ao que deseja aprisionar sua vontade.

Segundo Pelbart (2013), para alcançar a força potente do avesso, é preciso chegar ao limite, pois, embora essa força sempre esteja lá, é visível e sentida apenas quando se chega ao extremo, à vontade de não desejar nada e, por isso, de questionar o que está posto, o que advém no instante de total niilismo em relação à vida que se leva. Estar no avesso é manifestar um campo de forças complexo, múltiplo. Não se trata de reverter ou ultrapassar os impasses, mas de "revirar", percorrer outra face, o que não está posto. É sair de dentro do poder constituído do capitalismo para ser encharcado pelo poder constituinte, pelo que está fora do alcance do controle, isto é, a multidão. Essa capacidade de virar do avesso é um estado de encontrar os contragolpes, as contrapotências para sacudir o consenso empoeirado. É como o estrangeiro, que, de fora, visualiza e questiona o cotidiano de um lugar ensimesmado que está a visitar.

O cansaço do sujeito contemporâneo, manifestado por Jack, é representado como uma crise, com a qual nada mais parece possível; é o estado de niilismo citado por Pelbart (2013). O autor alega que essa crise é potente, ocupa um lugar privilegiado, pois coloca globalmente em xeque a própria vida, a partir de uma ruptura da continuidade ou da identidade do sujeito. É o sujeito em seu encontro com a vontade de nada que anuncia a possibilidade de criação, invenção de singularidades nascentes.

É nesses momentos críticos que se vai a fundo, oportunizando uma percepção de si mesmo. Segundo Pelbart (2013), a crise pode ser entendida como um esforço de reconstrução. Uma reação catastrófica, que se manifesta no homem como angústia, e que não seria o fim, mas a condição para um novo começo. A angústia, aqui citada como crise, pode ser expressa em um delírio que transforma a civilização, como já comentado no mal-estar freudiano, em um ato dito louco que tenta anunciar uma diferença. Nesse sentido, Jack, em seu modo torto, delira ao criar Tyler e o clube.

A loucura (e seus possíveis delírios), vivenciada por Jack, pode ser pensada como um acontecimento, a criação de uma nova existência. O Clube da Luta produziu uma nova subjetividade, novas formas de ver e habitar o mundo. O viver deixa de ser "intolerável" para se tornar "pensável, desejável, visível" (Pelbart, 2013).

Sousa (2008) relata em seus escritos que é possível fazer uso da imaginação para criar uma nova realidade, sendo essa possibilidade de imaginação uma criação ativa. Criar é "sonhar para frente" (Sousa, 2008, p. 51). O ato de criar está bastante relacionado à clínica, mas a questão é: Como relacionar o capitalismo contemporâneo, o exercício da clínica e a produção de subjetividade?

Segundo Pelbart (2008), para trabalhar com esses conceitos, é preciso discutir o plano da clínica na sua inseparabilidade da filosofia, da arte, da ciência e da política, justamente porque é a partir daí que podemos estar de frente com os modos de produção e de subjetivação atuais. Desse modo, definir a clínica em sua relação com os processos de produção de subjetividade implica, necessariamente, a possibilidade de arriscar-se em uma experiência de crítica e de análise das formas instituídas, de estar repensando o que nos compromete politicamente enquanto clínicos. Somos clínicos para anestesiar um pouco mais a angústia dos sobreviventes, para que continuem marchando sob o comando do capitalismo do biopoder, ou a clínica serve justamente para alimentarmos a esperança de que a vida vale a pena ser experimentada no que ela tem de mais frágil e imperfeita, quando longe das imagens pré-moldadas que se vendem?

As experimentações clínicas compõem brechas instituintes nos mecanismos instituídos. Nesse sentido, a clínica se passa enquanto uma prática que resiste ao sistema anestesiador da vida, já que pode contribuir para resistir às produções sociais que impedem de criar, que "burocratizam a vida" (Sousa, 2008). Jack cria novas formas de ressignificar a vida. O personagem faz um delírio que sustenta sua angústia, capaz de denunciar tudo aquilo que estava lhe enrijecendo, deixando-lhe morto em plena vida. Ao criar Tyler, Jack está inventando movimentos para sua vida, ele aprende a morrer para viver, a criar para se ultrapassar. Ao perceber-se morto mesmo sobrevivendo, Jack tenta lutar a favor de outro viver.

Para Pelbart (2008), a intervenção clínica é essa desestabilização da realidade dada, a qual permite o aparecimento do plano das forças de produção de que a realidade se constituiu e se constituirá. O autor considera a experiência clínica como a devolução do sujeito ao plano da subjetivação e da produção, que é plano intensivo do coletivo. Nesse caso, o coletivo diz respeito à multidão, uma composição potencialmente ilimitada de seres tomados na proliferação das forças. Jack e o clube utilizam dessa força da multidão para criar territórios existenciais e repensar as maneiras como habitam o mundo.

Assim, podemos pensar a experiência clínica como uma resistência, pois a vida é marcada por uma complexidade, por um só tempo no contemporâneo. "Um ponto de incidência dos mecanismos do biopoder e um ponto de resistência biopolítica" (Pelbart, 2008, p. 171). Se o capitalismo é caracterizado como uma forma de assujeitamento da vida, é preciso, então, apostar nas formas de resistência experimentadas nos processos de subjetivação.

É na criação (afeto estético) e na resistência (afeto político) que se configura uma nova existência, uma nova ética de si, do mundo e das relações (Rolnik, 2004). O agenciamento entre a criação e a resistência proporciona a continuidade da vida, a sua expansão enquanto ética de existência. Jack e Tyler buscavam a expansão da vida, sendo que o propósito não era eliminar totalmente a angústia sentida pelas exigências do social, e sim achar recursos para afirmar o viver no que ele tem de sofrimento e, ao mesmo tempo, de belo. Uma vida sem vergonhas.

Segundo Giacomel Régis e Fonseca (2004), a prática clínica está relacionada a uma escuta que passa pela invenção de como lidar com o cansaço, com as vergonhas, com os sofrimentos, com a dor do desamparo, sendo a última considerada a potência da vida, a chave política da resistência, de deixar-se marcar pelos outros, pelo tempo, e de suportar a angústia que proporciona novas criações. "A vida é tão forte que se ampara no próprio desamparo" (Lispector, 1969/1998, p. 143). Parece-nos ter sido esse o recado deixado por Jack e Tyler no Clube da Luta.

 

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Endereço para correspondência:
Carina Assmann
Endereço: Rua Juscelino Kubitcheck, nº 75, Centro
Cruzeiro do Sul/RS.
Email: carina.assmann.psi@gmail.com

Mário Francis Petry Londero
Rua Ernesto Dornelles, nº 142, Jardim Carvalho
Porto Alegre/RS.
Email: francislonder@hotmail.com

Recebido em: 05/04/2016
Revisado em: 09/12/2016
Aceito em: 20/02/2017

 

 

1 Filme dirigido por David Fincher, EUA, 1999. Baseado no romance de Chuck Palahniuk, de 1996.

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