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versión impresa ISSN 2359-0769versión On-line ISSN 2359-0777

Rev. Subj. vol.17 no.3 Fortaleza sept./dic. 2017

http://dx.doi.org/10.5020/23590777.rs.v17i3.5571 

DOSSIÊ: ADOLESCENCIA EM PSICANÁLISE

 

A carência de fronteiras na adolescência da atualidade: o adolescente em pane?1

 

The lack of borders in the adolescence today: the adolescent in breakdown?

 

La carencia de fronteras en la adolescencia de la actualidad: el adolescente en pánico?

 

La Carence De Frontières Dans L'adolescence De L'actualité : L'adolescent En Panne?

 

 

Veridiana Alves de Sousa Ferreira Costa (Lattes)I; Maria de Fátima Vilar de Melo (Lattes)II

IUniversidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE). Psicóloga. Doutora em Psicologia Clínica pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). Professora do Departamento de Educação da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE/DEd)
IIPsicóloga. Professora Pesquisadora do curso de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo busca discutir, a partir da Aufhebung freudiana e da perspectiva psicanalítica lacaniana, notadamente a de Rassial, as fronteiras na contemporaneidade, cujo cenário aponta para uma nova ordem que contribui para a carência do simbólico, trazendo transformações no laço social e, consequentemente, repercussões no sujeito. Em vez de afirmar a Lei, essa nova ordem convoca a negá-la ou apagá-la ao buscar derrubar limites e fronteiras. Pensando a adolescência como uma situação de fronteira, em que a dialética de se submeter ou ultrapassar e, até mesmo, negar a Lei constitui uma questão central, discutimos tais efeitos no adolescente que vive o processo de revalidação do Nome-do-Pai, significante do interdito que institui fronteiras. Essa condição o deixa vulnerável a se envolver em infrações. Ao encontrar um Outro que se constitui como lugar de endereçamento que sustenta o interdito e lhe possibilita se defrontar com limites e fronteiras, o adolescente reconhece a Lei, mesmo que, em algum momento, possa transgredi-la, uma vez que a transgressão é inerente à adolescência. Por outro lado, a ausência de um Outro que se coloque nesse lugar e viabilize a afirmação da Lei cria obstáculos ao processo de revalidação do Nome-do-Pai. Certas mudanças no laço social atual têm dificultado esse processo e, assim, fomentado o envolvimento do adolescente com a infração. A vulnerabilidade social provoca a vulnerabilidade psíquica e, em resposta, alguns adolescentes da atualidade parecem se ver perdidos, errantes, em pane, diante das dificuldades que encontram ao longo do processo de validação. Uma pane de referência à Lei tem efetivamente contribuído para o aumento do número de adolescentes que ultrapassam a transgressão e tornam-se infratores (delinquentes), por vezes, violentos ou, até mesmo, muito violentos.

Palavras-chave: fronteira; adolescência; laço social; transgressão; infração.


ABSTRACT

The present article aims at discussing, in the light of the freudian Aufhebung and in the lacanian perspective of adolescence, mainly that of Rassial, the notion of borders today, whose scenery points toward a new order that contributes to the lack of the symbolic, thus causing transformations in the social bond, which bear an impact on the subject. Instead of stating the Law, this new order invites one to deny it or erase it by trying to bring down limits and borders. Taking adolescence as a border situation, where the dialectics of submitting or going beyond or even denying the Law is a central issue, this article discusses such effects on the adolescent, who experiences the process of revalidation of the Name-of-the-Father, signifier of the interdiction that establishes borders. This condition leaves the adolescent vulnerable to get involved with infraction. Finding an Other that is constituted as a place addressing that supports the interdict and allows you to face with limits and boundaries, the adolescent recognizes the Law, even if, at some time can transgress it, since the transgression is inherent in adolescence. However, by not to finding one Other to occupy this position, thus allowing for the statement of the Law, an obstacle to the revalidation of the Name-of-the-Father is built. Changes in today's social bond have rendered it difficult to revalidate the Name-of-the-Father and, in a way, have fostered the involvement of the adolescent with infraction. Social vulnerability bears an impact on psychic vulnerability and, in response to this context, some adolescents today seem to see themselves as if lost, wandering, or in a breakdown when facing the difficulties of validation. A reference to the breakdown Law has effectively contributed to the increase in the number of adolescents who go beyond transgression and become offenders (delinquents), sometimes violent, even very violent.

Keywords: border; adolescence; social bond; transgression; infraction.


RESUMEN

Este artículo tiene como objeto discutir, desde la reflexión Aufhebung freudiana y la perspectiva psicanálitica lacaniana y la de Rassial, las fronteras en la contemporaneidad, cuyo escenario apunta a un nuevo orden que contribuye para la carencia de lo simbólico, los cambios en los enlaces sociales y, consecuentemente, repercusiones en el sujeto. En lugar de afirmar la Ley, ese nuevo orden llama a negarlo o borrarlo al tratar de tumbar límites y fronteras. Al considerar la adolescencia una situación de frontera, donde la dialéctica de someterse o transponer e incluso negar la Ley constituye una cuestión eje, discutimos los efectos en el adolescente que vive el proceso de revalidación del Nombre del Padre, del interdicho que instituye fronteras. Esa condición lo deja vulnerable al envolverse en infracciones. Al encontrar el otro que se convierta en un sitio que sostiene el interdicho y lo posibilita afrontarse con límites y fronteras, el adolescente reconoce la Ley, aunque, en algún momento, pueda transgredirla, ya que es inherente a la adolescencia. Por otro lado, la ausencia del otro que se ponga en el lugar y posibilite la afirmación de la Ley crea dificultades en el proceso de revalidación del Nombre del Padre. Ciertos cambios en el enlace social actual siguen dificultando ese proceso y, todavía, promoviendo el envolvimiento del adolescente en los delitos. La vulnerabilidad social provoca vulnerabilidad psíquica y, en respuesta a eso, algunos adolescentes de la actualidad parecen verse perdidos, errantes, en pánico, ante las dificultades que uno encuentra a lo largo del proceso de validación. Una avería de referencia a la Ley que tiene efectivamente contribuido con el aumento del número de adolescentes que exceden la transgresión y se convierten en infractores, por veces, violentos o muy violentos.

Palabras clave: frontera; adolescencia; enlace social; transgresión; infracción.


RÉSUMÉ

Cet article a pour but de discuter, à partir de l'Aufhebung freudienne et de la perspective lacanienne de l'adolescence, notamment celle de Rassial, les frontières dans l'actualité, dont le scénario révèle un nouvel ordre qui contribue à la carence du symbolique, des modifications du lien social et, par conséquence, du sujet. Au lieu d'affirmer la Loi, ce nouvel ordre invite à la nier ou à l'effacer au fur et à mesure qui cherche faire tomber des limites et des frontières. Partant de la compréhension de l'adolescence comme une situation de frontière, où la dialectique de se soumettre ou de dépasser la loi constitue une question centrale, nous discutons les effets de ce scénario sur l'adolescent qui vit le processus de revalidation du Nom-du-Père, signifiant de l'interdit qui institue des frontières. Cette condition le rend vulnérable à commettre des infractions. Il faut rencontrer un Autre qui constitue un lieu d'adressement qui soutient l'interdit et lui permet à se confronter à des limites et des frontières, l'adolescent reconnaît la loi, même si à certains moments, il peut la transgresser; puisque la transgression est un mécanisme inhérent à l'adolescence. En revanche, s'il ne rencontre pas un Autre qui occupe ce lieu et rend possible l'affirmation de la Loi, il aura de difficultés concernant le processus de revalidation du Nom-du-Père. Les changements du lien actuel social posent des difficultés à ce processus, et, ainsi, ont fomenté l'implication de l'adolescent par rapport à la l'infraction. La vulnérabilité sociale résonne sur la vulnérabilité psychique et, ainsi, quelques adolescentes sont perdus, errants, en panne, devant les difficultés de la validation du nom du père. Une panne de référence à la Loi qui a amené l'augmentation du nombre d'adolescents qui dépassent la transgression et deviennent des délinquants, parfois violents, voire, très violents.

Mots-clé: frontière; adolescence; lien social; transgression; infraction.


 

 

Na contemporaneidade, com a escalada do neoliberalismo, passamos de um capitalismo controlado pelo Estado a um capitalismo no lugar de Estado, cujos princípios situam o mercado no centro das ações humanas. Por conseguinte, produziu-se uma organização do mundo dominada por novas oligarquias, que adquiriram um poder de decisão ou de controle acima de todos os poderes legítimos, políticos e sociais, nos Estados nacionais. Esse sistema econômico não parece funcionar em prol da sociedade, mas contra (Chanchol, ١٩٩٦ citado em Carvalho & Melo, 2016). Um dos resultados desse sistema consiste na intensificação da cultura do consumo que, aliada às inovações científicas e tecnológicas, vêm implantando uma nova ordem, afetando de modo decisico o laço social.

Na ordem cultural anterior, éramos conduzidos a afirmar a Lei, que, ao estabelecer o interdito, dá lugar à falta. No sentido inverso, vive-se em um mundo onde ganha cada vez mais força uma versão do capitalismo sustentada por uma política neoliberal que vive da sociedade do consumo, que busca derrubar limites e apagar fronteiras para tornar o capital universal. Promove a ilusão de que tudo é possível, prometendo preencher a falta com a oferta de produtos, com objetos de consumo, como podemos atestar através da análise da publicidade. O espaço para a espera, o intervalo entre os estímulos advindos da pulsão e sua satisfação impossível, é escamoteado em nome da imediatez do gozo (Costa, 2005; Dufour, 2008; Frej, 2003; Lebrun, 2004; Melman, 2003) entre outros. Essa nova ordem parece contribuir decisivamente para que o simbólico fique rarefeito, para a derrocada do pacto social e, por conseguinte, para a transformação do laço social, prejudicando o trabalho de subjetivação, que implica lidar com a falta, com a castração (Lebrun, 2009, 2010). Alimentados por esse combustível, os indivíduos veem sua relação com o inconsciente se pautar em um "novo mandamento", como diz Dufour (2008): Libertarás tuas pulsões e buscarás um gozo sem limites! Uma persistência na busca do gozo, pautado num tipo de discurso capitalista, que "oferece e banaliza esta dimensão perversamente orientada como padrão possível dos encontros e do intercâmbio entre os sujeitos" (Levy, 2014, p. 675). Um discurso que

faz promoção da falta e da divisão subjetiva para depois tirar vantagem da situação. Este discurso é inteiramente baseado numa exploração feroz do desejo, cativando-nos com a perspectiva de um gozo mítico e sempre renovado. Portanto, os objetos de consumo representam alguns prazeres possíveis, potenciais (Levy, 2014, p. 675).

Essa mensagem subliminar da economia mercantil atual, liderada pelo imperativo e império da satisfação "plena" e imediata, que não encontra fronteiras a ultrapassar, não se dá sem efeitos aos sujeitos. De modo especial, não se dá sem consequências aos adolescentes, potencialmente antenados aos apelos sociais. Então atestamos, na atualidade, "ecos na economia psíquica das modificações surgidas na economia mercantil com a extensão do liberalismo" (Dufour, 2008, p. 258).

Não obstante, vale assinalar que essa convocação atual, mesmo prevalecendo, não apaga as convocações que vão na direção inversa. Lembramos que o não e o sim sempre convivem, e a natureza da Lei é dialética, de modo que a submissão à Lei e o desejo de negá-la são partes do mesmo processo. Mas perguntamos: se a falta promove o desejo, o que acontece com o sujeito quando há a ilusão de que o objeto está sempre lá para satisfazê-lo? Se a perda do objeto instala um limite que mantém o desejo e a vitalidade do sujeito, o que esperar disso? Não podemos esquecer que Lei e desejo são constituídos da mesma substância: a interdição. Se vivemos em um mundo cuja ordem econômica convoca o sujeito a evitar, negar, contornar o interdito que cria limites e fronteiras, interrogamos os efeitos na relação do sujeito com a Lei. Interessam-nos, particularmente, os efeitos disso no processo de revalidação do Nome-do-Pai, vivenciado pelo adolescente e sua posição diante da Lei.

Consideramos a fragilidade do adolescente por se encontrar nesse processo e levamos em conta a necessidade de um suporte significante que lhe institua fronteiras. A partir disso, acompanhando as reflexões de Rassial (1997), pensamos que o adolescente da atualidade parece se ver parado, em pane diante das dificuldades de uma validação, preso não a "uma contradição entre duas leis morais (...) [mas] em pane de referência à Lei" [Acréscimos nossos] (Rassial, 1997, p. 39). Supomos que essa situação tenha relação com o crescimento da violência entre os adolescentes na atualidade.

Reportamo-nos a Endo (2014) ao afirmar que a violência surge no declínio da autoridade - que institui fronteiras -, relacionando a crise da autoridade do mundo contemporâneo ao declínio da tradição. Para ele,

A autoridade, em certo sentido, é a própria tradição delegada a um referente que tem, por sua vez, a tarefa de zelar por ela e salvaguardá-la. A autoridade se move dinamicamente numa conjuntura de representações, demandas e tarefas que lhe são dadas como atributos e pelas quais a autoridade deve zelar. Zelar aqui tem um único sentido: projetar no tempo.

Por obra da autoridade, aqueles aos quais a autoridade se refere devem reconhecer-se especularmente habitando o tempo e sendo habitados por ele. A autoridade se revela neles e eles devem revelar a autoridade. . . A autoridade, portanto, não pode exercer-se fora do tempo dos que estão ali para legitimá-la. (Endo, 2014, pp. 194-195)

Seguindo essa perspectiva, ele diz que a autoridade é a legítima herdeira de uma tradição, e que a crise da tradição é a crise da autoridade como meio de transmissão. Observando a atualidade, vemos um declínio da autoridade em vigor na tradição, de modo que modelos tradicionais e o lugar onde a autoridade podia ser exercida estão sendo questionados, dando vez a uma autoridade racional, sustentada em negociações. Os lugares eram bem delimitados, a diferença de gerações era respeitada. Hoje, o que se percebe é uma confusão de papéis de tal ordem que pais, educadores e representantes de autoridade em geral não sabem mais onde se situar, em virtude da nebulosidade de lugares que hoje se acentua, o que traz consequências na forma de os sujeitos lidarem com as regras, e aí tudo o que está em jogo, em termos de autoridade, corre o risco de fracassar.

Segundo Lebrun, (2008, 2009), esses são indícios de uma crise de legitimidade que constitui um indicador exemplar da mutação social vigente. Uma crise que saiu do âmbito do privado do recinto familiar e se estendeu ao conjunto do corpo social. Uma crise testemunhada pelo discurso da ciência, que subverte o discurso religioso e produz efeitos nos indivíduos e na coletividade. Tudo isso faz eco nos adolescentes, contribuindo, certamente, para o aumento da violência deles, nos dias de hoje, em diferentes espaços.

Uma violência que, segundo Lebrun (2002, citado em Carvalho & Melo, 2014), não concerne à violência própria ao conflito de gerações, mas a uma violência fora de conflito, uma violência que ele chamou de "suplementar": um tipo de violência que passa, necessariamente, pela carência do simbólico, pela negação ou apagamento da violência estrutural, que resulta da submissão ao interdito, humaniza-nos e, por conseguinte, à linguagem, mais especificamente à implantação do significante no corpo. Essa violência suplementar parece desfazer "os efeitos simbólicos produzidos pela violência estrutural, desfazendo os limites instituídos pela palavra, o vazio que ela comporta, dissolvendo a palavra" (Carvalho & Melo, 2014, p. 631). Assim, no lugar da palavra, emerge o ato violento, que parece se colocar como efeito dessa convocação a "viver sem fronteiras".

Assim, os adolescentes da atualidade se veem convocados a enfrentar um mundo em que os limites e as referências estão cada vez mais nebulosos, um mundo em que parecem faltar fronteiras necessárias ao trabalho psíquico, muitos deles ficando à deriva de seus impulsos e dos humores do Outro e dos outros, que não lhe fazem borda.

 

A questão dos limites e fronteiras da adolescência

Acompanhando alguns autores do campo psicanalítico, notadamente do campo lacaniano, como Rassial (1997), Gageira (2004), Emmanuelli (2008), Marty e Cardoso (2008), dentre outros, compreendemos a adolescência como um processo psíquico fundamental, que organiza o conjunto da vida do ser humano. Não a concebemos simplesmente como uma resultante da evolução da criança, um momento no percurso do desenvolvimento do sujeito humano, pois dizer que ela é um período de transição entre a infância e a idade adulta seria reduzir muito o seu alcance e a dimensão das questões com as quais o adolescente se depara (Aberastury, 1981). Trata-se de uma passagem em que a maturação pubertária constitui apenas o ponto de partida, que deverá desembocar em um trabalho psíquico necessário, a fim de ressignificar as experiências da infância.

Nessa passagem, que diz respeito à travessia da infância à idade adulta, ele se depara com uma série de exigências psicossociais: aspirações no âmbito dos ideais sociais; posições no espaço da família, do trabalho e na relação com seus pares; confronto com o real do sexo, etc. (Teixeira, 2014). Além disso, uma série de lutos espera por ele: perde um corpo infantil que se transforma em corpo adulto; precisa renunciar aos laços infantis com a imagem interiorizada dos pais e, efetivamente, separarsse deles; conquista a emancipação, mas com ela, uma série de perdas decorrentes da condição de ser criança, etc. (Aberastury, 1981; Gageira, 2004). Tudo isso põe em jogo uma problemática de perdas e renúncias, que se movimentam nos planos narcísico e objetal, transformando sua relação consigo mesmo, com seus parceiros e com as autoridades. Todas as transformações imprimem no adolescente a organização de uma nova posição, devendo ele responder com os meios de que dispõe. Trata-se de um período de crise, de mudanças, no qual um trabalho psíquico entra em jogo: o confronto do adolescente com a elaboração do seu próprio desejo (Emmanuelli, 2008; Marty & Cardoso, 2008). Em virtude disso, o sujeito vive um processo de mutação subjetiva, cujo trabalho supõe a castração, a aceitação da perda do gozo para participar da vida coletiva e ir ao encontro do outro (Lerude, 2009).

Por tudo isso, o adolescente está sempre confrontado a uma pane, ou um risco de pane, como acentua Rassial (1997), porque ele deve realizar uma série de operações fundadoras, precisando realizar uma operação simbólica que constitui sua condição e que ocorre em uma temporalidade outra, que não obedece à faixa etária. Assim, sua característica principal é não ser cronologicamente datada, e sua durabilidade dependerá do tempo próprio a cada sujeito para realizar a operação subjetiva que lhe corresponde.

Ao comentar sobre a passagem adolescente, Rassial (1999) coloca que sua especificidade, tal como o imigrante, é "não ser nem uma coisa, nem outra", nem completamente criança, nem completamente adulto. Essa condição de "entre-lugares" do adolescente, que o distancia da criança que fora e do adulto que será, deixa-o numa encruzilhada: ao mesmo tempo, entre dois estatutos e em lugar nenhum. Tal condição configura-se como um celeiro aberto para novas possibilidades, em que todas as modificações que sofre precisam encontrar um espaço de reorganização. Por tudo isso, ele vive uma luta constante pelo reconhecimento, para sair dessa condição de imigrante que ainda não encontrou lugar e, assim, poder definir sua identidade (Rassial, 1999).

Dentre as operações fundadoras que o adolescente precisa realizar, destacamos, seguindo a proposição de Rassial (1997, 2000), a validação da metáfora paterna - que permite ao sujeito criar modos de lidar com a Lei que interdita, cria limites e institui fronteiras. "O adolescente irá testar a eficácia do Nome-do-Pai, além da metáfora paterna, para colocar ordem na língua que habita e que está habitado" (Rassial, 1997, p. 40). Em virtude disso, ele deve operar

uma validação da operação infantil de inscrição ou de forclusão do Nome-do-Pai. A impossibilidade dessa efetuação pelo motivo de não-lugar da primeira inscrição entregá-lo-á ao risco, ao apelo dessa função. . . As dificuldades normais dessa validação vão indicar-se em toda uma série de patologias transitórias que, como tais, não assinam nada da estrutura, mas assinalam o processo adolescente (Rassial, 1997, p. 40).

Trata-se, pois, de um processo em que a inscrição do Nome-do-Pai, metáfora do interdito que nos torna sujeitos do desejo, vai ser colocada em cheque. Questionar e transgredir, ou tentar transgredir, a Lei consiste em um lado desse processo. Eis por que a relação do adolescente com a Lei é tão marcada pela ambivalência. Essa condição deixa o adolescente bastante vulnerável a transgressões, que são consideradas próprias à operação que ele vive, como também ao envolvimento com o mundo da infração, o que acentua a importância dele encontrar fronteiras, um lugar de endereçamento em que ele possa se defrontar com limites e fronteiras, um lugar que sustente esse interdito. Dito de outro modo, precisa encontrar um Outro que faça valer a Lei.

Para falar o que tomamos como fronteira, recorremos à leitura do texto freudiano feita por Frej a partir de sua tese de doutorado, defendida em 2003. Ela indica a fronteira como algo que, ao mesmo tempo em que delineia os espaços, cria os lugares próprios ao processo de humanização, e aqui destacamos o interdito.

Essa afirmação é justificada através de um termo que encontrou Frej (2003) ao longo de toda obra de Freud. Esse termo que confirma a natureza dialética do desenvolvimento da teoria e da clínica do autor em questão. Trata-se do substantivo e do verbo alemães Aufhebung e aufheben, que podem ser traduzidos, segundo Pe. Paulo Menezes, pelos termos suprassunção e suprassumir2 (Frej, 2003).

Estes termos Aufhebung e aufheben, significam, ao mesmo tempo, negar, conservar e ultrapassar, levando a autora a afirmar que eles permitem a apreensão do movimento que ocorre no psiquismo, concernente à circulação da energia e sua passagem pelo organismo, considerado desde o momento em que prevalece o inorgânico que será suprassumido, desdobrando-se em órgão, organismo e corpo, situados numa sociedade e numa cultura, inscrevendo, assim, o aparelho psíquico, este último constituído de lugares e fronteiras não nitidamente delimitadas.

A autora explica que o substantivo e o verbo em questão têm a possibilidade de operar a negação. Negação não se confunde com anulação, pois não incide sobre a totalidade do que é negado. Em outras palavras, a negação tem por efeito a conservação enquanto tal daquilo que é negado e, no mesmo ato, produz a sua transformação em outro que não ele mesmo. Essa perspectiva elucida o que diz Freud (2006): "domínio da mente o elemento primitivo se mostra tão comumente preservado, ao lado da versão transformada que dele surgiu"(p.77).

Se partirmos desse princípio de que os lugares pelo quais passamos, mesmo os mais primitivos, continuam a existir e podem tomar, em um determinado momento, a prevalência, a condição de "entre-lugares" acentua ainda mais a situação fronteiriça na qual o adolescente se encontra, realçando a necessidade de uma referência para conseguir realizar a operação subjetiva, dentre elas a referência à Lei, que institui fronteiras.

Ao considerar a noção de Aufhebung e a natureza dialética da Lei, supomos que os adolescentes de hoje, não tendo como referência um mundo que faça prevalecer a renúncia e a afirmação da Lei, ficam mais vulneráveis nessa reafirmação do interdito, sem saber ao certo como responder a tudo isso, expostos a uma trajetória (auto)destrutiva, violenta. Diante disso, o que seria a transgressão própria da adolescência, ultrapassa os limites e segue o caminho da infração.

Recorremos à distinção entre transgressão e perversão feita Sousa (2014). Para ele, a transgressão implica a referência a uma fronteira, sendo a interdição o que nos permite fazer isso, enquanto a perversão nega o que faz diferença. Ele ressalta: "poderíamos até dizer que a transgressão nos salva de nos vermos capturados em uma instrumentalização do objeto que fica ali congelado" (Sousa, 2014, p. 788).

Depreendemos daí que só há transgressão quando se tem limites estabelecidos e, consequentemente, fronteiras. Portanto, a inscrição do interdito existe. Nesse sentido, a transgressão é algo próprio à operação adolescente que, em virtude da revalidação do Nome-do-Pai, coloca em cheque o interdito, mas, nesse caso, para afirmá-lo. Algumas vezes, esse colocar em questão pode até parecer uma posição perversa, chegar até a violência, mas nem sempre a transgressão caracteriza uma perversão (Sousa, 2014). Em algumas situações, a transgressão, e até mesmo a infração, pode se colocar na direção de um apelo ao Outro, de um pedido de socorro, como ocorre no acting out.

Supomos essa transgressão também como um pedido de continência, de delimitação de fronteira, uma busca pela Lei, mesmo transgredindo, testemunhando que o interdito está em questão, não é negado. Em outros casos, o interdito é questionado, fazendo-nos pensar a posição perversa que ignora a Lei, desmente a castração. Destacamos, assim, que a infração não necessariamente tem o sentido de perversão ou de que estamos diante de uma estrutura perversa. É possível que, em alguns casos, essa seja a tônica da infração. Todavia, nem sempre ela assume esse sentido, podendo ter implícito ao ato infracional um pedido de ajuda, algo mais próximo de um acting out.

Se estendermos a reflexão feita por Sousa (2014) ao distinguir a transgressão da perversão para pensarmos a questão da infração na adolescência, pensamos que a infração pode ser lida como algo que revela uma dificuldade, ou uma pane, como diria Rassial (1997), na revalidação do Nome-do-Pai, fazendo o adolescente ultrapassar essa transgressão que é própria à adolescência e alcançar o caminho da infração. Supomos que isso que o faz ultrapassar está relacionado ao não encontro com Outro que assuma sua inconsistência e se sustente no lugar de endereçamento, como Outro barrado, com faltas. A maneira como esse Outro se coloca para o adolescente vai ter efeitos no processo de revalidação do Nome-do-Pai e, assim, na posição dele diante da Lei. É o que nos mostram os adolescentes Neilson e Diane3.

Para Neilson, adolescente infrator, o não encontro com Outro capaz de se sustentar na posição de diferença, de transmissão da Lei de fronteira, criou obstáculos à revalidação do Nome-do-Pai, que ficou em questão para ele, deixando-o mais vulnerável a sair da transgressão e alcançar a infração. Nesse caso, a fala amalgamada da mãe e do filho parece apontar para uma espécie de pacto existente entre os dois: ambos concebem a medida aplicada a Neilson pela infração cometida como uma injustiça e tentam eximi-lo de sua responsabilidade nos atos:

Eu primeira queda! Primeira queda! Nunca tinha caído em cadeia nenhuma. Já tinha feito muita coisa, mas nunca tinha, nunca os policiais tinham me abordado fazendo isso e aquilo. A polícia também poderia ver meu lado, mas aí bota a pessoa aqui dentro pra ficar trancado, sem ver a rua! É osso, viu? Eu pensava que a juíza ia me liberar! Eu acho que ela não foi com a minha cara não.

A pessoa não errou? Não fez uma besteira? Se for preso, o certo é pagar pelo crime que cometeu,? Pra eles, é assim, né? Tem que aceitar! Querendo ou não querendo, chorando ou não chorando, a gente, de todo jeito, vai ter que passar. Aí tem que pagar. (Neilson).

Fulano vai preso, rouba, vai pra o CASEM, vai pra o juiz e o juiz solta! Neilson nem matou ninguém! Só por causa de uma moto, se misturou com o menino pra roubar e até hoje tá lá dentro. Ela [a juíza] deu uma pena muito rude ao meu filho. A pena que ele pegou não foi justa não! [Acréscimos nossos] (Angélica - Mãe de Neilson).

Seu pai, por outro lado, parece não conseguir se impor e colocar-se na sua função. Assim como a mãe, apresenta-se muito hesitante em relação às suas implicações nos atos infracionais do filho, ora se defendendo, ora negando, ora tirando de si a responsabilidade pelo que ocorreu com Neilson e, também, desresponsabilizando-o ou tentando fazer com que ele não pague na proporção de seu ato.

Se soubesse que isso ia demorar tanto assim! Aqui, no trabalho, eu tenho um conhecido meu que ele é delegado, eu teria falado com ele. Mas eu, muito revoltado, como eu tô dizendo a senhora - que eu não gosto de safadeza - eu deixei, fiquei na minha quietinho. Eu não fui com raiva, porque sempre eu aconselhei. Quando falei com o delegado já era tarde, a sentença já tinha saído. Se eu tivesse corrido logo em cima . . . (Natan Roberto - Pai).

Embora destacando que a infração não necessariamente implica uma posição perversa do sujeito, as falas de Neilson e de seus pais nos levaram a pensar que a função de sua infração parece estar no sentido do desmentido da Lei.

Já a posição e o discurso de Diane, adolescente não infratora, refletem seu reconhecimento à Lei. Em alguns momentos, é possível identificar a contestação ao Outro, às figuras de autoridade, à Lei. Contudo, essa contestação pode ser compreendida como própria à operação adolescente.

A minha mãe eu respeito, mas meu pai . . . [pausa] Ele é muito chato! Quer que a gente viva o tempo das antiga. [rindo] Ele reclama muito quando o meu namorado está lá em casa. Diz que a minha casa é um puteiro, que minha mãe está me prostituindo, que eu estou fazendo safadeza. Ele fala da gente na rua. Aí se ele falar uma coisa eu rebato, se for mentira eu rebato, se for verdade eu fico calada. Ele não respeita a gente. E por isso ele não tem autoridade, mas com a minha mãe, não![Acréscimos nossos] (Diane).

Apesar da contestação ao Outro, não há indícios de que Diane esteja ultrapassando as fronteiras daquilo que é próprio à operação adolescente: a transgressão e a errância (Douville, 2008; Rassial (1997). Afinal, como diz Alberti (2010), neste trânsito entre alienação e separação do Outro, todo adolescente é transgressor e, parafraseando Sousa (2014), há transgressão que salva.

Segundo Diane, se um dia acontecesse de ela cometer alguma infração, sua mãe a ajudaria a resolver as coisas: " ir na delegacia, explicar como foi. Se tivesse de ficar presa, ficasse. Mas também ela ajudaria. Meu pai não! Ele não queria mais saber da gente, ficaria totalmente contra mim" (Diane). E a mãe confirma essa posição:

Se isso acontecesse, eu ia procurar alguém que me ajudasse a tirar ela da vida errada. Eu ia tentar tirar ela dessa vida conversando com ela, aconselhando, dando carinho, explicando que o que ela está fazendo é errado. Só não pode é deixar pra lá e botar pra fora de casa, como muitos fazem, que eu acho que isso aí agrava mais (Ana Julia - mãe).

As posições de Diane e de sua mãe diante da infração sugerem um reconhecimento de que há algo que extrapola fronteiras e que há um preço a ser pago por isso, apontando para a implicação do sujeito e a responsabilização pelos seus atos, diferentemente dos pais de Neilson, que se colocam numa posição de desculpabilizar o filho e minimizar as consequências de seus atos. Há um lugar de alteridade aí reconhecido, há uma Lei que se reconhece e à qual elas se submetem, isto é, há algo que dá suporte a Diane e que faz com que ela não se envolva com a infração, mesmo vivendo num meio cujas condições são favorecedoras para isso. Nesse sentido, ela acredita que o que fez com que ela escapasse desse caminho foi a educação que recebeu de sua mãe.

Minha família é quase todinha desandada, mas na minha casa, ninguém é! Eu acho que, na minha casa, minha mãe ajudou a gente a se salvar, porque minha mãe é carinhosa comigo e com a minha irmã. A gente não briga muito, não tem com o que se revoltar dentro de casa, aí eu acho que, dentro da minha casa, o que salvou a gente foi a minha mãe (Diane).

Dada a situação de vulnerabilidade que ela vive, ela acha que a mãe a salva porque ela é carinhosa com as filhas. Apesar disso, não se coloca no lugar de complacência e de simetria. Ela se mantém nesse lugar vertical tão necessário para se inscrever a autoridade, como destacam Nazar (2008) e Lebrun (2004, 2008, 2009). É uma mãe doce, mas que pode apresentar-se com dureza e firmeza quando necessário, conforme ela mesma nos dirá em seguida: "minha mãe não permitia, não"!(Diane).

O que as falas de Diane e sua mãe nos indicam é que elas parecem encontrar alguém a quem se endereçar, alguém que lhe dá o limite e faz fronteira, sustentando o lugar do Outro, articulando a Lei, o que possibilita que a revalidação do Nome-do-Pai caminhe no sentido do sucesso, mesmo em meio a condições de vida adversas.

Para além das histórias individuais de Neilson e Diane, esses adolescentes nos apontam que algumas mudanças no laço social atual têm dificultado a revalidação do Nome-do-Pai e, em certo sentido, fomentado o envolvimento do adolescente com a infração. Embora as condições sociais não produzam a infração, ao ofertar, ilusoriamente, a dimensão de um gozo absoluto, oferecem as condições para que o adolescente enverede por esse caminho de infração, deixando-o mais vulnerável na perspectiva de uma não validação do Nome-do-Pai. O que as análises sugerem é que tudo isso faz eco e tem como um dos efeitos o aumento da violência entre os adolescentes na atualidade. Além disso, a vulnerabilidade social se articula à vulnerabilidade psíquica e essa, sim, pode ser decisiva para que ele entre nesse caminho.

Têm uns ainda que entram nessa vida por safadeza, porque quer ser o que não é, quer pagar de gatão. Eu estou falando do que eu vejo lá dentro. Tem muitas pessoas lá dentro que não têm necessidade de viver nessa vida, mas quer ser importante, porque vai ficar famoso, aí lá na favela todo mundo vai falar dele, essas coisas! (Diane).

O que leva os adolescentes a entrarem nessa vida é o dinheiro, a ambição! É querendo ter mais. Pra ser sincero, eu preciso não, viu, dessas coisas de roubar. Tenho comida, casa, roupa lavada a hora que eu quero. Preciso não! Mas a pessoa quer ter sempre mais, né? (Neilson).

Tem muito adolescente, que eu já vi mesmo, muitas conversas assim, de adolescente um com o outro. "Ah, não quer dinheiro? Fica esperando por pai é abestalhado? Oxe! Menino! Tás bestando?! Vender droga dá dinheiro! O pai de nós e a mãe de nós, nós pede dinheiro, ele não quer dar, então... Nós vendendo isso aqui, além de dar ao dono, ainda tem o de nós no bolso" (Angélica - mãe de Neilson).

Sentir-se importante, ficar famoso, ostentar, ter mais, ter dinheiro, aspectos muito valorizados pela cultura contemporânea, que, como destaca Levy (2014), vende a falsa promessa de que é possível não ter faltas para tirar vantagem disso, seduzindo os sujeitos com o engodo de um gozo absoluto, convocando-os ao consumo, à busca pelo acúmulo de capital, deixando-os prisioneiros da exigência de riqueza predominante no discurso capitalista, que cria a ilusão de completude à medida que promete, enganosamente, que tudo pode ser preenchido com a compra de produtos. Convocados a derrubar limites e fronteiras, alguns adolescentes atuais respondem aos apelos da cultura, numa posição de captura aos discursos produzidos no laço social, que faz eco neles e coloca obstáculos à revalidação do Nome-do-Pai, deixando-os psiquicamente mais vulneráveis à infração (Lebrun, 2010; Levy, 2014; Marty, 2006; Nazar, 2008).

 

À guisa de conclusão

Neste artigo, buscamos discutir a respeito dos limites e fronteiras na contemporaneidade e como elas se apresentam para os adolescentes de hoje. Pensamos a fronteira a partir da noção da Aufhebung freudiana, entendendo-a como algo que delineia espaços e institui lugares próprios à humanização.

Partindo da dialética própria ao movimento da Aufhebung, pensamos que a relação do sujeito com a Lei também é dialética, de modo que, ao mesmo tempo que quer afirmá-la, quer ultrapassá-la. Transportando essa questão para o cenário contemporâneo, vemos crescer uma convocação a evitar, negar, contornar o interdito que institui limites e fronteiras. Uma ordem socioeconômica que parece contribuir para o declínio do registro simbólico, afetando o laço social e produzindo efeitos na relação do sujeito com a falta, com a castração, com a Lei.

Pensando ser a adolescência uma situação de fronteira, onde a dialética de se submeter ou ultrapassar e, até mesmo, negar a Lei constitui questão central, dada a necessidade de revalidar a metáfora paterna, interrogamos as fronteiras que se apresentam para o adolescente na atualidade e quais as condições de suporte oferecidas pela cultura para que o adolescente possa realizar a operação de reafirmar o interdito, especialmente considerando, como alerta Lebrun (2004), que a função de articulação da Lei para o sujeito precisa ser ratificada pelo social, ou seja, que "o social venha homologar o que é sustentado no seio do recinto privado" (p. 42). Algumas mudanças no laço social atual parecem dificultar a revalidação do Nome-do-Pai e, em certo sentido, apresentam-se como fomentadoras do envolvimento do adolescente com a infração.

Em virtude dessa operação de revalidação do Nome-do-Pai, a adolescência tem algo próprio: a tentativa de ultrapasar a Lei, expressa através da transgressão, como um movimento natural à operação que lhe é própria. Entretanto, não podemos menosprezar a vulnerabilidade do adolescente que, nesse processo, pode extrapolar esses limites e tomar o caminho da infração, muitas vezes tentando apagar fronteiras, negar a Lei.

A leitura que fizemos do cenário atual, apoiada em autores do campo psicanalítico, em especial do campo lacaniano, que pensam questões sociais, tais como Melman (2003), Lebrun (2004, 2008, 2009), além de autores, como Dufour (2008), destaca a influência dos efeitos do neoliberalismo nessa nova ordem que coopera de modo determinante para essa convocação a derrubar limites, apagar fronteiras e negar a Lei. Embora seja próprio ao adolescente o conflito com a Lei pela operação que ele vive, o conflito dos adolescentes atuais parece ser de outra natureza, correspondente à mutação social a que assistimos.

Considerando sua fragilidade por se encontrar num momento de validação da inscrição do Nome-do-Pai, e a necessidade de um suporte para onde se endereçar e representar esse significante, alguns adolescentes nos dias de hoje se veem diante de muitas dificuldades nesse processo de validação, em pane, como diz Rassial (1997). Dificuldades que parecem estar acentuadas em virtude do contexto no qual os jovens estão inseridos, atraindo-os a uma permanência na operação adolescente que dificulta a validação da inscrição primeira.

Embora a infração adolescente seja fomentada pelas características do mundo contemporâneo, particularmente pelo encontro com a carência do simbólico, conforme têm apontado alguns estudos a partir de Lacan (Dufour, 2008; Lebrun, 2004, 2008, 2010), essas características não são a causa ou o fator determinante para que o adolescente se transforme em autor de atos infracionais. Acompanhando Teixeira (2014), consideramos os adolescentes autores de atos infracionais como sujeitos em situação de vulnerabilidade social e psíquica. Nesse sentido, alguns deles se encontram em situação de maior vulnerabilidade psíquica, especialmente os que não encontram um lugar de endereçamento ao Outro capaz de lhe inscrever limites e instituir fronteiras.

À guisa de conclusão, assinalamos que, embora tenhamos escolhido pensar a partir da Aufhebunge da perspectiva lacaniana da adolescência, notadamente a de Rassial, a questão dos limites e fronteiras no cenário atual, e uma possível particularidade entre a transgressão própria à adolescência - como parece ser o caso de adolescentes não infratores - e a infração por meio da violência - comum entre os ditos adolescentes infratores -, pensamos ser esse apenas um caminho aberto para ampliar a reflexão sobre essa possível distinção.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Veridiana Alves de Sousa Ferreira Costa
Email: veridianacosta@hotmail.com

Maria de Fátima Vilar de Melo
Email: mfvmelo@uol.com.br

Recebido em: 14/08/2016
Revisado em: 28/10/2017
Aceito em: 28/11/2017

 

 

1 Embora a palavra pane seja usada, em português, para se referir a objetos, estamos usando-a de acordo com a tradução do livro de Rassial (1997): "A passagem adolescente".
2 Dentre as traduções possíveis dos termos Aufhebung e aufheben, a autora considerou esta proposta de Pe. Paulo Menezes como sendo a mais pertinente para tratar destas questões, uma vez que não há nenhuma palavra que seja exatamente coincidente com o termo Aufhebung no Brasil.
3 Nomes fictícios de adolescentes participantes de uma pesquisa com adolescentes infratores e não infartores. A referida pesquisa atendeu a todas as prerrogativas éticas, tendo sido submetida ao Comitê de Ética e aprovada através do Parecer nº 172.347, de 13 de dezembro de 2012. CAAE: 08873212.3.0000.5206

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