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Revista Subjetividades

Print version ISSN 2359-0769On-line version ISSN 2359-0777

Rev. Subj. vol.17 no.3 Fortaleza Sept./Dec. 2017

http://dx.doi.org/10.5020/23590777.rs.v17i3.5515 

DOSSIÊ: ADOLESCENCIA EM PSICANÁLISE

 

Adolescentes autores de atos infracionais e o sentimento de culpa

 

Teenagers who commit acts of misconduct and guilt

 

Adolescentes autores de actos infractores y el sentimiento de culpa

 

Les adolescents qui commettent des actes d'inconduite et de culpabilité

 

 

Juliana Marcondes Pedrosa Souza (Lattes)I; Jacqueline Oliveira Moreira (Lattes)II

IPós- doutoranda em Psicologia pela Universidade Federal de São João del Rei
IIProfessora Adjunta III da PUC Minas, Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Puc Minas

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O texto trabalha o sentimento de culpa na obra freudiana e a proposta de responsabilidade em Lacan para compreender questões que se apresentam ao adolescente em cumprimento de medida socioeducativa quanto ao seu envolvimento com a criminalidade e transgressão da lei. Perguntamos se a possibilidade de se preocupar com outro pode ser inscrita na forma de uma responsabilização subjetiva ou na forma de um sentimento de culpa em relação ao outro. No acompanhamento desses adolescentes, a importância de se pensar o ato como sintoma nos revela a forma singular como o sujeito adolescente responde ao outro social. Sugerimos o trabalho do analista como recurso de ampliação da palavra do adolescente e, ao mesmo tempo, ampliação dos horizontes políticos-culturais e acesso ao circuito capital. Assim, o seu percurso no cumprimento da medida implicará em um novo projeto de vida, o qual convoca a sociedade para um novo posicionamento.

Palavras-chave: medida socioeducativa; psicanálise; culpa; responsabilização subjetiva; adolescência.


ABSTRACT

The text works the feeling of guilt in the Freudian work and the proposal of responsibility in Lacan to understand issues that present themselves to the adolescent in fulfillment of socio-educational measure regarding their involvement with the crime and transgression of the law. We ask whether the possibility of worrying about another can be inscribed in the form of a subjective responsibility or in the form of a sense of guilt towards the other. In the follow-up of these adolescents, the importance of thinking the act as a symptom reveals to us the singular form that the adolescent subject responds to the other social. We suggest the work of the analyst as a resource for the expansion of the adolescent's word and at the same time broadening political-cultural horizons and access to the capital circuit. Thus, the course in the fulfillment of the measure will implicate the adolescent in a new life project and summons the society to a new positioning.

Keywords: socio-educational measures; psychoanalysis; guilt; subjective responsibilization; adolescence


RESUMEN

El texto trabaja el sentimiento de culpa en la obra freudiana y la propuesta de responsabilidad en Lacan para comprender cuestiones que se presentan al adolescente en cumplimiento de medida socioeducativa en cuanto a su implicación con la criminalidad y transgresión de la ley. Se pregunta si la posibilidad de preocuparse por otro, puede ser inscrita en la forma de una responsabilización subjetiva o en la forma de un sentimiento de culpa en relación al otro. En el acompañamiento de estos adolescentes, la importancia de pensar el acto como síntoma, nos revela la forma singular que el sujeto adolescente responde al otro social. Sugerimos el trabajo del analista como recurso de ampliación de la palabra del adolescente y al mismo tiempo la ampliación de los horizontes políticos-culturales y el acceso al circuito capital. Así, el recorrido en el cumplimiento de la medida implicará al adolescente en un nuevo proyecto de vida y convoca a la sociedad para un nuevo posicionamiento.

Palabras clave: medida socioeducativa; psicoanálisis; culpa; responsabilización subjetiva; adolescencia


RÉSUMÉ

Le texte traite avec le sentiment de culpabilité dans l'œuvre de Freud et la proposition de la responsabilité en Lacan pour comprendre les questions qui sont présentés aux adolescents dans le respect des mesures socio-éducatives en ce qui concerne la participation au crime et dans la transgréssion de la loi. Nous avons demandé si la possibilité de vous soucier de l'autre, peut être saisi sous la forme de responsabilité subjectif ou sous la forme d'un sentiment de culpabilité sur l'autre. Lors du suivi de ces adolescents, l'importance de considérer l'acte comme un symptôme, révèle la forme singulière que le sujet adolescent répond à l'autre sociale. Nous suggérons le travail de l'analyste comme une possibilité d'expansion du mot adolescent et en même temps élargir les horizons politiques et culturels et l'accès au circuit du capital. Ainsi, la route pour se conformer à la mesure impliquera l'adolescent dans un nouveau projet de vie et a appelé la société à une nouvelle position.

Mots-clés: interventions sócio-éducatives; psychanalyse; culpabilité; responsabilisation subjetivité; adolescence.


 

 

As reflexões sobre criminologia na teoria freudiana se localizam no tema da articulação entre sentimento inconsciente de culpa e ato criminoso. Segundo Salum (2007), Freud, ao trabalhar questões decorrentes da relação do sujeito com a lei, destaca o sentimento de culpa nos crimes ditos edípicos. No texto "Criminosos em consequência de um sentimento de culpa", Freud (1916/1980c) nos diz que há crimes em que o ato criminoso faz borda ao sujeito já culpado. Esses são os criminosos por sentimento de culpa, ou seja, que atuam em nome de uma culpa que antecede seu ato e procuram na punição uma maneira de dar tratamento a essa culpa.

Partindo desse pressuposto temos o entendimento de Barra (2007), que reforça a hipótese da existência de crimes edípicos, ou seja, crimes que se apresentam como um endereçamento que visa à punição como forma de alívio de uma culpa inconsciente. Nesse caso, o sentimento de culpa é anterior ao crime, o qual oferece um objeto para culpa preexistente, e a punição formata a culpa até então disforme.

Todavia, Salum (2007) afirma que nem todos os crimes são movidos pelo sentimento de culpa inconsciente: "Há aqueles em que o sentimento de culpa está ausente, como no crime cujo autor não apresenta qualquer inibição moral" (Barra, 2007, p. 78). Dessa forma, o entendimento freudiano, que busca compreender os sujeitos que cometem crimes em nome de uma culpa inconsciente, não se faz suficiente quando pensamos nos adolescentes que cometem atos infracionais (Salum, 2007).

Ao escutarmos esses adolescentes envolvidos na criminalidade localizamos em sua história de vida sucessivas atuações. De acordo com Garcia (2003), a chamada culpa neurótica não é tão percebida entre os adolescentes que estão vivendo no curto-circuito da infração. Apesar de conseguirem falar sobre seu ato, muitas vezes não se implicam nele, ou seja, "sua responsabilidade como sujeito por vezes só é assumida após a realização do delito" (Garcia, 2003, p. 327), quando o cumprimento da medida socioeducativa tem o alcance de uma responsabilização subjetiva. As infrações, nesse sentido, são entendidas como um sintoma social, "ecoam como uma queixa frente à norma da qual o sujeito se sente excluído" (Garcia, 2011, p.175).

Já Carneiro (2001), em suas pesquisas sobre violência e adolescência, revela que as categorias violência e culpa, se apresentam como "um conteúdo predominante na pesquisa". A autora nos afirma que em todos os discursos recortados, em todas as categorias ordenadoras de sua pesquisa, há uma "referência à culpa que fica velada entre os adolescentes" (Carneiro, 2001, p. 550), e complementa sua perspectiva com as seguintes considerações:

Os fragmentos denotam uma espécie de reivindicação inconsciente de uma posição perdida, o que chama atenção se nos lembramos do mito do assassinato do pai da horda primitiva . . . A reivindicação da culpa como uma categoria central para o sujeito e sua relação com a sociedade serve de um indicativo de que essa não é apenas uma leitura de quem faz uma análise das relações sociais na academia. Ela aparece como uma condição de sobrevivência ou como uma forma de preservar uma posição subjetiva vital para o adolescente em sociedade. (Carneiro, 2001, p. 550)

Como tentativa de compreensão dessa necessidade da reivindicação da culpa, Carneiro (2001) toma de empréstimo um argumento de Ambertín (2007), que articula vergonha e culpa como formas de contenção do ato. Para os autores, vivemos em uma sociedade com um acentuado déficit de vergonha por parte dos sujeitos, confirmando nossa hipótese de que o sentimento de culpa pode ser um operador psíquico para o processo de responsabilização subjetiva e nova inscrição na realidade social.

Concordamos que algumas ações criminosas não apresentam essa configuração de culpa edípica, porém é arbitrário abandonarmos a categoria de culpa em função dessas novas configurações sintomáticas e novas formas de atuação. Embora o edipinismo não seja mais orientador para compreensão dos crimes (Salum, 2007; Garcia, 2011), é possível compreender a culpa em sua vertente socializante, ou seja, enquanto promotora do laço social. Retomar a categoria de culpa associada à alteridade aponta para a possibilidade de trabalhar com o adolescente e sua responsabilidade diante do ato infracional cometido.

Inspirados nos crimes que fogem à ideia dos crimes edípicos, ou por sentimento de culpa inconsciente, gostaríamos de trabalhar a possibilidade de se pensar o sentimento de culpa como um operador capaz de promover um resgate do laço desse adolescente com a vida. Cabe lembrar que, nos crimes edípicos, o sentimento de culpa é ponto de partida que, no seu excesso, transborda em ato criminoso e, por fim, encontra a punição como contenção. Diversamente, propõe-se pensar que na medida socioeducativa, pós-ato infracional, o encontro com o analista possibilitaria ao adolescente interpelar seu ato e estabelecer uma conexão com uma modalidade de culpa inconsciente e socializante no modelo de "Totem e tabu".

Embora marcado por um discurso institucional da garantia de direitos, o cumprimento da medida socioeducativa deve romper com a tendência de retomar a concepção de culpa pela vida da moralidade, na tentativa de sensibilizar o adolescente das consequências de seus atos e de suas necessidades. O trabalho deve implicar no resgate da singularidade que é condição ao processo de responsabilização no âmbito subjetivo. Ofertar um espaço de escuta ao adolescente para que, pela via da palavra, possa reescrever a construção da culpa em sua vida, diz do posicionamento ético do psicanalista nesses espaços. Resgatar o laço do sujeito com o outro social implica acompanhar o adolescente na elaboração de seu Plano Individual de Atendimento (Brasil, 2012) apontando intervenções que o permita circular socialmente.

 

Do Cumprimento da Medida Socieducativa à Responsabilização do Adolescente

No âmbito jurídico, cumpre uma medida socioeducativa o adolescente que, após os trâmites legais, tem reconhecida sua autoria em relação a algum ato infracional. A medida socioeducativa prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) (Brasil, 1990/2001) é legalmente a resposta jurídica à transgressão da lei social, que tem suas diretrizes destacadas no Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE), sustentando eixos a serem trabalhados na execução da medida. Esses eixos que indicarão, posteriormente, a conclusão da medida de cada adolescente, sendo indicativos de uma responsabilização jurídica (Brasil, 2012).

Ao pensarmos na vertente da culpa no âmbito jurídico, temos a culpa referenciada ao erro, e a pena ou sanção como a busca da reparação se resumindo à responsabilidade jurídica. Compreender o sentimento de culpa e sua possível ação no processo de responsabilização subjetiva nos casos de adolescentes autores de ato infracional que cumprem medidas socioeducativas é uma possibilidade de fazer existir o sujeito para além do sujeito jurídico. A ideia é propor um trabalho com o sujeito que aparece nas entrelinhas do ato; um sujeito passível de ser responsabilizado, ou seja, de construir, no cumprimento de sua medida socioeducativa, uma resposta singular que se instaure via culpa, ou via capacidade de se preocupar, e possibilite a criação de novos laços com a vida.

Nesse tempo de cumprimento da medida socioeducativa, a oferta de escuta orientada pela Psicanálise tem por objetivo contribuir no processo de construção de um saber sobre o ato infracional desses adolescentes. Ao apostarmos em uma escuta que não é sem efeitos, propomos uma compreensão maior da medida como intervenção que visa dar tratamento ao ato infracional cometido via palavra e possibilitar uma mudança subjetiva (Souza, 2009). Pode-se dizer que, a partir da contribuição da Psicanálise, faz-se imprescindível considerar o sujeito do inconsciente, a dimensão singular do ato infrator, para que os laços sociais possam ser reestabelecidos por esses adolescentes, cada qual a seu modo e tempo.

Para compreensão da dimensão de responsabilidade no âmbito subjetivo, partiremos do entendimento, na obra freudiana, das duas acepções para a ideia de sentimento de culpa, considerando especificamente "Totem e Tabu" (Freud, 1913/1980a) e "Mal-Estar na Civilização" (Freud, 1930/1980d): a culpa vinculada a um conteúdo negativo, que oprime e mortifica o sujeito; e a culpa associada ao parricídio, que promove o laço social.

Por um lado, podemos falar da culpa opressora, por exemplo, na ideia de Freud (1916/1980b) dos crimes edípicos, ou seja, aqueles motivados por um sentimento de culpa inconsciente que buscava uma formatação para esse difuso sentimento, ou do sentimento de culpa associada à neurose obsessiva frente à possibilidade da realização de um desejo proibido.

Por outro lado, Freud nos lembra de que o sentimento de culpa se apresenta na articulação entre o individual e o social, fundamentando o convívio entre os indivíduos, pois marca sua relação com a lei e com o outro social. Não obstante a ideia de culpa como elemento importante na promoção e manutenção do laço social, hoje, encontra-se diluída, em uma sociedade marcada pelo apagamento da dimensão alteritária, o que nos faz reportar à colocação de Freud (1930/1980d) da existência imprescindível das leis para que as pulsões individuais sejam contidas em nome da civilização.

Podemos perguntar como o sentimento de culpa, enquanto aquele que sustenta o laço do sujeito com o outro, pode se apresentar como forma de intervenção junto ao adolescente que transgrediu a lei. A nossa aposta é de que, a partir do encontro com o analista no cumprimento de uma medida socioeducativa, seja possível uma leitura do sofrimento que inclua a responsabilidade do sujeito resgatando a sua capacidade de se preocupar com o outro e consigo mesmo.

Sendo assim, retomamos a leitura da de Lacan (1998) sobre a responsabilidade: "por nossa condição de sujeito, somos sempre responsáveis" (Lacan, 1998, p. 873). Podemos dizer de um sujeito sempre responsável por seus atos, pelo seu modo de gozo e por seu sintoma como resposta ao seu mal-estar. Nesse sentido, o termo "assentimento subjetivo", como aponta Barros (2011), faz referência à responsabilidade daquele que comete um crime. O autor fundamenta sua reflexão na articulação operada por Lacan (1998) entre crime, lei e castigo, bem como na leitura do conceito de sentimento inconsciente de culpa freudiana. A relação entre crime e lei é, para o referido autor, universal, e a transgressão da lei apresenta como consequência o castigo ou sanção. Em virtude dessa relação entre crime e lei, o castigo, apesar de ser de caráter universal, é variável, já que sua definição está diretamente relacionada aos costumes e a noção de homem de cada sociedade.

Ao retomarmos o conceito de assentimento subjetivo proposto por Barros (2011), entendemos que se dá via castigo. O Estado, por meio da responsabilização jurídica imposta ao sujeito pela obrigatoriedade em cumprir uma pena ou sanção, legitima a relação entre crime, lei e castigo. Contudo, para que seja possível que esse sujeito se responsabilize subjetivamente, é necessário assentir-se com sua pena ou sanção e, a partir dela, questionar-se sobre a transgressão. Assim, para que o castigo possa produzir um efeito de sujeito e no sujeito, é preciso que haja assentimento subjetivo, o qual, segundo Barros (2011), resgata o sentimento inconsciente de culpa, viabilizando a responsabilidade subjetiva. É importante lembrar que é pela via da responsabilidade subjetiva que se faz possível a construção de saídas diferentes da infração aos adolescentes em cumprimento de medida socieducativa.

O assentimento subjetivo, portanto, resgata a dimensão subjetiva do ato e a singularidade do sujeito em oposição às respostas normativas do Estado pautadas em contribuições da criminologia. Destarte, o assentimento de cada sujeito ao castigo/sanção determinado abre a possibilidade de construção de saídas únicas, implicando uma responsabilização subjetiva como possibilidade de mudança de posição na vida.

Em face dessas colocações, compreendemos que o ECA define castigo/sanção a partir da aplicabilidade das medidas socioeducativas que, mesmo não tendo proposta exclusivamente punitiva, impõem responsabilidade jurídica ao adolescente que comete ato infracional por serem a resposta do Estado à infração da lei. Contudo, se a medida socioeducativa possibilita um efeito de mudança de vida ao adolescente que a cumpre, estamos diante de um sujeito que poderá encontrar condições de responder subjetivamente pelo seu ato.

A responsabilidade jurídica, quando opera em espaços onde é possível o trabalho com a escuta, pode ser um meio de convocar o sujeito a assentir com sua sanção. Assim, no trabalho com adolescentes que cumprem medida socioeducativa, a escuta desses sujeitos possibilitaria que localizassem na sua história de vida os motivos que os levaram a romper com a lei social via infração. Isso permite uma retomada da proposta de Barros (2011), já que o assentimento à medida socioeducativa é o que possibilita o trabalho com a responsabilidade subjetiva. Em face desse ponto compreendido por Gellis e Hamud (2011) como universal da culpa, apostamos em um trabalho no qual, por meio da responsabilização jurídica, consiga-se implicar o adolescente em sua história de vida.

Decerto, a culpa individual está relacionada à culpa coletiva, aquela que se encontra no fundamento do laço social e é produto da condição de dependência primária do ser humano e de sua vivência grupal. Todavia, Em "O mal-estar na civilização", Freud (1930/1980d) mais uma vez, lança luz em sua elaboração teórica sobre a culpa ao relacioná-la ao desamparo primordial, conceito que aparece pela primeira vez em "Projeto para uma Psicologia Científica" (Freud, 1916/1980b) e revela a dependência originária entre este conceito e a ideia de culpa. Conforme o raciocínio de Freud (1930/1980d), em geral, uma pessoa se sente culpada quando faz algo que acredita ser mau. Contudo, como sabemos não existir uma capacidade inata para distinguir o bem e o mal, a origem do sentimento de culpa está, segundo Freud, no desamparo primordial, sendo então os conceitos de "bom" e "mau" relacionados à perda do amor, que nos faz sentir sozinhos e desamparados.

A percepção da alteridade se reinscreve, trazendo o sentimento de culpa por se ter desejado agredir o outro, não só na sua dimensão de pessoa, mas também em suas dimensões narcísica e objetal. Sinto-me culpado por desejar agredir aquele que no enlaçamento suporta comigo o desamparo. . . . Para Freud a energia original que circula entre os sujeitos é a agressividade; por isso o laço social é garantido através da culpa, ou seja, da agressividade modificada a partir do encontro com a verdade do desamparo, que aponta para o outro como fim em si, e não como meio. Sem o encontro e o reconhecimento da alteridade, o eu sucumbiria no desamparo. (Moreira, 2004, p. 6)

Considerando que o sujeito para a psicanálise é atravessado por um desamparo estrutural que anuncia a importância fundamental da sua inscrição na relação com o outro, cabe ao analista, no cumprimento da medida, auxiliar o adolescente no enfrentamento de seu desamparo. O enlace singular na oferta, dada pelos encaminhamentos orientados pelos eixos do SINASE (Brasil, 2012), implica tanto na resposta jurídica quanto na subjetiva quando "responsabilizar-se é ser capaz de responder, é trazer para si a função da resposta por determinada situação ou ato" (Elia, 2004, p. 1).

 

Sentimento de Culpa na Teoria Freudiana: Laço Social

Freud (1930/1980d) anuncia que o sujeito paga uma fatura alta para ingressar e permanecer na cultura. Para o autor, a entrada na cultura, ou seja, o processo civilizatório, exige de cada sujeito algum sacrifício ou a renúncia das pulsões que apontam o reconhecimento de sua incompletude, e o sentimento de culpa aparece "como uma espécie de mal-estar, uma insatisfação, para a qual as pessoas buscam outras motivações" (Freud, 1930/1980d, p. 99). Essa ideia do mal-estar produziu uma rápida associação entre sentimento de culpa e desprazer, ou até com o que vai além do princípio de prazer, vinculando culpa a pecado e erro. Segundo Gaspar (2007), o sentimento de culpa é resultado da renúncia à satisfação pulsional e, portanto, promotor do mal-estar.

Freud define o mal-estar como sendo essencialmente sensação de culpa e o caracteriza como o maior entrave ao projeto civilizatório. O que se delineia sob a análise freudiana do mal-estar é o impasse do sujeito - sua impossível adequação ao ideal de universalidade que lhe é imposto pelo Outro. O sentimento de culpa é sempre entendido por Freud como decorrente da renúncia à satisfação pulsional. (Gaspar, 2007, pp.47)

Sem desconsiderar essa modalidade de culpa, parece-nos urgente explicitar a ideia freudiana que apresenta o sentimento de culpa como fundante da cultura e estruturante para o sujeito. A primeira concepção aparece de forma explícita no mito freudiano da horda primeva, e a segunda, relativa à culpa como estruturadora do sujeito, reatualizando o mito da horda, faz sua presença na experiência edípica.

Em "Totem e Tabu", Freud (1913/1980a) discute a questão da origem da lei descrevendo as comunidades regidas pelo sistema totêmico, ou seja, por uma forma de organização que, segundo o autor, desenvolveu-se a partir da horda primeva, na qual o personagem principal é um pai tirano e violento, que tem o direito de ter todas as mulheres, expulsando seus filhos da horda à medida que eles crescem. Os irmãos, expulsos da horda pelo pai, se reúnem e retornam para matá-lo e devorá-lo, colocando um fim à horda patriarcal. Devorando o pai, os filhos acreditam realizar uma identificação com ele através da qual cada um deles acabaria adquirindo uma parte de sua força.

A refeição totêmica, que é talvez o mais antigo festival da humanidade, seria, assim, uma repetição e uma comemoração desse ato memorável e criminoso, que foi o começo de tantas coisas: da organização social, das restrições morais e da religião. (Freud, 1913/1980a, p. 189)

Os irmãos odiavam o pai-chefe da horda na medida em que este representava um obstáculo aos seus anseios de poder e desejos sexuais. Esse pai era, contudo, amado e admirado em virtude do que sua figura representava.

Após a morte do pai, os irmãos perceberam a rivalidade que os cercava e que poderia levar a uma luta de todos contra todos, pois nenhum possuía a força necessária para assumir o lugar de chefe da horda. Reconhecendo, então, a culpa pelo assassinato do pai, e diante da possibilidade da iminência de uma luta, os irmãos decidiram renunciar à onipotência, mitificando o chefe da horda, o pai, como totem. A partir daí, temos representada a fundação dos grupos sociais como um sistema que regula as relações sociais. O laço social se origina, portanto, do parricídio como um crime primordial, que funda a lei entre os homens, marcando a passagem da horda para a cultura.

Cabe destacar que, com a morte do pai primevo, os irmãos culpados introjetam a lei, que passa a regular as relações entre seus membros, fundando a organização social. Segundo Rocha (2012), como revés desse ato memorável, deu-se os sentimentos de culpa e de remorso que acometeram os irmãos a partir de então. O pai, agora morto, era mais forte do que enquanto vivo. Foi, portanto, na esteira da culpa, que os irmãos fizeram do pai um mito na medida em que ele se transformou em totem (Rocha, 2012, p. 119). Podemos acrescentar que o totem criado se transformaria em um novo ordenador do grupo.

Encontramos no texto freudiano a afirmação de que o sentimento de culpa proveniente do parricídio do mito da horda está na base da moralidade, pois "os começos da religião, da moral, da sociedade e da arte convergem para o complexo de Édipo" (Freud, 1913/1980a, p. 158). Segundo Moreira (2004), "o banquete proporciona a introjeção da lei paterna através da incorporação canibalesca. O sentimento de culpa proveniente do ato será a base da moralidade, da nova organização social e da religião" (p. 222).

Não podemos deixar de mencionar que a morte do pai despótico inaugura um novo campo de relações alteritárias. O pai da horda inviabilizava o campo de reconhecimento entre os sujeitos; já sua morte descortina uma nova modalidade de relação intersubjetiva. De acordo com Moreira,

o pai violento não interroga o outro sobre sua responsabilidade, não dirige nenhuma pergunta que possibilite o reconhecimento do outro enquanto uma alteridade. A questão da responsabilidade se refere à capacidade de dar respostas, e esta depende necessariamente da colocação de perguntas. A possibilidade da relação alteritária nasce com a morte do pai totêmico, pois a partir desse momento os irmãos perguntaram uns aos outros sobre sua responsabilidade. A irmandade representa o primeiro indício da possibilidade de reconhecimento da alteridade. (Moreira, 2004, p. 223)

Encontramos argumentos para sustentar nossa hipótese de uma dupla acepção do sentimento de culpa no texto "Totem e Tabu" (1913/1980a), mas também no texto "O mal-estar na civilização" (1930/1980d), no qual se afirma que a energia original que circula entre os seres é a agressividade. Assim, para garantir o laço social, será preciso introjetar a agressividade que aparecerá na forma de sentimento de culpa. Acreditamos que o encontro com a verdade do desamparo revela a importância do outro e, assim, o sujeito acaba por sentir-se culpado por ter desejado o mal. Essa ideia se sustenta na afirmação freudiana que define uma ação má como aquela que põe em risco o amor e anuncia a possibilidade da solidão, ou seja, a queda no desamparo, isto é, "mau é tudo aquilo que, com a perda do amor, nos faz sentir ameaçados. Por medo dessa perda deve-se evitá-lo" (Freud, 1930/1980d, p. 148).

Tem-se, assim, na teoria freudiana, uma culpa vinculada ao desamparo e ao interdito sexual e que traz consigo a percepção do outro em sua dimensão alteritária e, portanto, apresenta-se como promotora e mantenedora do laço social.

Assim, em "O mal-estar na civilização", Freud (1930/1980d) questiona se o sentimento de culpa já existia antes do assassinato do pai primevo.

Mas, se o sentimento humano de culpa remonta à morte do pai primevo, trata-se, afinal de contas, de um caso de "remorso". Por ventura não devemos supor que [nessa época] uma consciência e um sentimento de culpa, como pressupomos, já existiam antes daquele feito? Se não existiam, de onde proveio o remorso? (Freud, 1930/1980d, p. 135)

A conclusão do autor é a de que esse remorso era consequência da ambivalência primordial dos sentimentos dos filhos para com o pai. Ao mesmo tempo que o odiavam, os filhos também o amavam. Uma vez que o ódio foi satisfeito via parricídio, o amor passou ao primeiro plano no remorso dos filhos pelo ato destrutivo.

Para Freud (1913/1980a), por meio da relação com o totem, então substituto do pai, os irmãos tentavam apaziguar o sentimento de culpa, buscando certa reconciliação com o progenitor. Nesse sentido, o sistema totêmico foi um pacto com o pai, no qual este lhes prometia indulgência, proteção e cuidado, enquanto os irmãos prometiam o não assassinato, ou seja, não repetir o ato causador da morte do pai real. Em uma articulação do social com o psíquico, o Freud afirma, então, o parricídio como a culpa humana original e filogenética que é revivida ontogeneticamente, podendo-se aqui inferir que a culpa humana é inexpiável, inadiável e, principalmente, é condição para transformar o indivíduo em sujeito social. É importante notar que, se o remorso pelo parricídio fundamenta a lei e permite a formação da cultura, é o sentimento de culpa socializante o operador do laço social, ou seja, o dispositivo mantenedor da civilização.

Nesse aspecto, a reflexão sobre o sentimento de culpa no processo de responsabilização subjetiva desses adolescentes é importante para a compreensão da relação do sujeito adolescente com seus pares e com o outro social. Como se posicionam de forma desconectada do outro, apresentando sequentes atuações, temos caracterizado o que Miller (2005) chama de clínica dos atos em detrimento de uma clínica do retorno do recalcado. Nessa clínica, o trabalho com a responsabilização subjetiva visa considerar a culpa um operador social, que resgata a vertente alteritária da relação do sujeito com o outro, e não busca imputar culpa ao adolescente pela vertente do remorso, resgatando o caráter moral da responsabilização.

Ao visarmos à responsabilização subjetiva, buscamos a construção de outras possibilidades para o excesso pulsional do sujeito que não as atuações, ou seja, saídas que considerem o laço social.

Encontramos subsídios para essa hipótese na obra de Winnicott, que não só trabalha o sentimento de culpa em uma dimensão positiva, como também diz de um desenvolvimento dessa culpa como parte do desenvolvimento saudável do indivíduo.

Nesse sentido, acredita-se que as contribuições de Winnicott (1958/1983) nos ajudam a melhor compreender a culpa socializante. Segundo ele, o sentimento de culpa, "mesmo quando inconsciente e aparentemente irracional, implica um certo grau de crescimento emocional, normalidade do ego, e esperança" (Winnicott, 1958/1983, p. 23). Para esse psicanalista, a culpa é uma ansiedade específica causada pelo conflito entre amor e ódio, e revela o grau de amadurecimento do ego diante da possibilidade de este reter imagens de bons objetos e, simultaneamente, a ideia de destruição deles.

O autor denomina como "preocupação" a culpa em sua acepção positiva. Segundo ele, "a preocupação implica maior integração e crescimento e se relaciona de modo positivo com o senso de responsabilidade do indivíduo, especialmente no que concerne aos relacionamentos em que entram os impulsos instintivos" (Winnicott, 1958/1983, p. 70).

Este mesmo autor lembra as reflexões freudianas sobre os crimes edípicos, ou seja, os crimes que se apresentam como um endereçamento que visa a uma punição como forma de alívio de uma culpa inconsciente. Neste caso, o sentimento de culpa é anterior ao crime, o ato criminoso oferece um objeto para a culpa já existente, e a punição formata a culpa disforme. Mas e os crimes sem culpa?

 

Ausência do Sentimento de Culpa?

Winnicott afirma que "o estudo do sentimento de culpa implica para o analista o estudo do crescimento emocional do indivíduo" (Winnicott, 1958/1983, p. 19). Em seu estudo sobre o sentimento de culpa no texto freudiano, ele revela que Freud privilegiou o tema da triangulação edípica e, portanto, o conflito do menino entre o amor e o ódio ao pai, produzindo o sentimento de culpa. Winnicott (1958/1983) considera que a construção do conceito de superego significou um grande avanço na reflexão sobre o sentimento de culpa, mas anuncia também os avanços da teoria kleiniana para a compreensão do problema da culpa com o tema da "posição depressiva".

Gradativamente, à medida que a criança descobre que a mãe sobrevive e aceita seu gesto restitutivo, torna-se capaz de aceitar responsabilidade pela fantasia total do impulso instintivo global que era impiedoso previamente. A crueldade cede lugar à piedade, e a despreocupação à preocupação. Em análise poderia se dizer: "não dou a mínima" dá lugar ao sentimento de culpa. (Winnicott, 1958/1983, p. 26)

A possibilidade de diferenciação entre fantasia e realidade cria espaço para a criança se responsabilizar pelos seus instintos. Nessa perspectiva, podemos perguntar: os jovens envolvidos com a criminalidade violenta não apresentam a possibilidade de se responsabilizar por seus impulsos do Id? Winnicott (1958/1983), articulando o tema da culpa com comportamentos antissociais, apresenta duas manifestações desse tipo de comportamento: os comportamentos antissociais que têm sua origem na culpa, e os episódios antissociais que aparecem quando a capacidade do sentimento de culpa foi perdida. O autor acrescenta:

Quando a confiança neste ciclo benigno e na expectativa da oportunidade [de reparação] se estabelece, o sentimento de culpa relacionado com os impulsos do Id sofre nova modificação; precisamos então de um termo mais positivo, tal como "preocupação". O lactente está agora se tornando capaz de ficar preocupado, de assumir responsabilidade por seus próprios impulsos instintivos e as funções que dele fazem parte. (Winnicott, 1958/1983, p. 73)

De acordo com Winnicott, pode-se afirmar, portanto, a existência de uma relação estreita entre a culpa em sua dimensão positiva, referida pelo autor como preocupação, e a capacidade de responsabilizar-se. Desse modo, acreditamos que a capacidade de se preocupar pode constituir a base psíquica a partir da qual se podem assentar as sanções oriundas do campo do Direito, pois Winnicott (1958/1983) nos lembra de que essa capacidade indica o fato do sujeito se importar, se envolver e sentir tanto quanto reconhecer o outro, responsabilizado-se por suas ações e consequências delas no mundo.

 

Caso Paulo: A Capacidade de se Preocupar

Paulo é um adolescente de 16 anos em cumprimento de medida socioeducativa restritiva de liberdade por cometimento de ato infracional análogo ao crime de tráfico de drogas. No início do cumprimento de sua medida, o menino relatou sentir angústia por "estar preso", o que contribuiu para o fato de o adolescente, nos atendimentos com a psicóloga, tentar compreender sua história de vida.

Assim, durante o acompanhamento de sua medida socioeducativa, relaciona seu envolvimento com a criminalidade ao fato de, na adolescência, ter "desgarrado da família". Relata que, por um motivo que não sabe dizer qual é, começou a fazer uso de cigarro com os colegas de seu bairro. Diz que gostou da experiência e, a partir "do cigarro, eu conheci a maconha, da maconha eu parei no pó, do pó eu fui pro loló". O adolescente associa o uso da droga ao envolvimento com o tráfico e diz que fez esta escolha porque "no tráfico o dinheiro vem muito fácil".

Lembra que, para comprar droga, era preciso ter dinheiro e, com aproximadamente 11 anos, o tráfico passa a ser uma opção e uma solução, já que, além do dinheiro e da droga, com o tráfico as pessoas passam a lhe dar valor. "O dinheiro vem fácil, e, assim, aquela coisa de você ficar pegando revólver, pondo o revólver na cintura, e saindo e trocando tiro é bom demais".

Nota-se que a entrada na criminalidade para Paulo foi atravessada pelo tráfico, consumo de drogas, pela questão do dinheiro e pela influência de pessoas próximas. Embora essas justificativas sustentem o discurso do adolescente, acrescenta-se a isso o fato de o menino demonstrar que tinha conhecimento de que estava fazendo algo errado, proibido e, mesmo assim, optou por fazê-lo.

Para Paulo, o dinheiro que ganhava no tráfico significava ter acesso a carros, mulheres, moto e roupas caras, conquistas que o adolescente diz só ter alcançado por ter se tornado um "menino rebelde". Ao falar sobre sua rebeldia, Paulo se refere ao fato de saber que traficar é algo fora da lei, proibido. Dessa forma, compreende os motivos pelos quais se encontra privado de sua liberdade. Contudo, ao falar sobre o que sente ao atuar "fora da lei", diz ser uma experiência de muita adrenalina: "uma adrenalina muito legal porque tipo assim é você trocar tiro com os polícia, é aqueles trem todo assim . . .".

Ao falar dessa adrenalina, Paulo logo faz referência ao fato de estar restrito de sua liberdade. Por outras vezes o adolescente relata ter sido apreendido em função de estar envolvido com a criminalidade, mas, segundo ele, por motivo de sorte, era geralmente liberado, tendo chegado a receber como sanção uma medida em meio aberto.

As várias chances que reconhece ter tido não foram, segundo ele, suficientes para fazê-lo repensar seu envolvimento com a criminalidade: "ah... eu tive muitas chances. Fui preso dezoito vezes. Dezoito vezes. E eu fui indo embora... O que eu tenho pra dizer é que tem que parar e pensar, porque depois que 'tá aqui dentro é sofrer."

O afastamento do adolescente da criminalidade pelo cumprimento de uma medida restritiva de liberdade rearranja a relação entre ele e sua família, fazendo com que o menino inicie um trabalho de reflexão sobre sua situação. Nos atendimentos, a questão do dinheiro, que era para o adolescente o ponto de maior ganho no tráfico, dá lugar às perdas que presenciou, como a morte de alguns companheiros e ao fato de estar privado de sua liberdade.

Mas o maior sofrimento de Paulo foi perceber que a vida do crime, que ele acreditava ser boa, pois tinha amigos e diversão, era tão vazia quanto a que levava antes. Relata que ficou muito decepcionado com o fato de ninguém se preocupar com sua "prisão", a não ser seus familiares: "quando você tá no crime, você tem amigo, depois que você 'tá dentro da cadeia, seu amigo é sua mãe, seu pai, seus irmãos; sua família que tá aqui te ajudando."

Foi a presença de sua mãe e irmão nas visitas e a preocupação demonstrada por ela que fazeram com que Paulo passasse se sentir incomodado com os atos infracionais cometidos, vindo a demonstrar uma vontade de mudar de vida para compensar todo o sofrimento que causou às pessoas que o amam. A medida socioeducativa é um convite à construção de novas possibilidades de laços que se fazem diante do enfrentamento do sofrimento. Paulo aponta para o início de uma reflexão sobre o lugar comum: "não fazer com o outro aquilo que você não gostaria que fizessem com você". Esse questionamento leva o adolescente a se haver com as consequências de suas escolhas e enfrentar o sofrimento de sua história de vida para, então, responsabilizar-se pelos seus atos. A capacidade de se preocupar pressupõe uma reflexão sobre a relação de Paulo com outro para além de uma implicação moral sobre suas escolhas.

O analista, ao convidar o adolescente a falar do que o incomoda, mesmo que orientado pelo universal da Lei, possibilita a construção de um sentido outro ao que era dito e valia como justificativa para Paulo. A partir daí, tem-se um efeito de saber que permitiu ao adolescente, em um determinado tempo de sua vida, se apropriar da sua história e se abrir para novas possibilidades.

 

Considerações Finais

Toda essa discussão demonstrou que a palavra "culpa" pode ser entendida enquanto um vocábulo que carrega consigo diversos significados. Para o Direito, a culpa está diretamente associada a uma ação de desobediência a uma norma que, possivelmente, produziu efeitos danosos. A Psicanálise, por sua vez, como foi possível ver no fragmento de caso apresentado, entende a culpa enquanto um afeto cujo representante ideativo pode encontrar-se recalcado. Segundo Ambertín (2004), como o adolescente é um sujeito do ato que se apresenta por sua causalidade psíquica e pelo movimento de suas pulsões, é o convite a falar sobre sua história de vida que abre espaço para a subjetivação da culpa em uma implicação com as consequências do seu ato na vida do outro e na sua.

Especificamente na obra freudiana, podemos encontrar duas acepções do sentimento de culpa: a culpa denominada civilizatória, vinculada ao desamparo e ao interdito sexual, que se apresenta como promotora e mantenedora do laço social; e a culpa associada à pulsão de morte, que paralisa e mortifica o sujeito. Entendemos que o sentimento de culpa civilizatória aponta para o reconhecimento alteritário e, portanto, viabiliza a responsabilização subjetiva.

 

Os Adolescentes Envolvidos na Criminalidade

Dessa forma, como os adolescentes autores de ato infracional são vistos como um problema social, é dever do Estado promover através das medidas socieducativas intervenções que possibilitem a ressignificação do seu ato e, principalmente, a mudança de posição na sua relação com o outro social.

Esse percurso é essencial para que a responsabilização subjetiva ocorra. Entretanto, a escuta analítica não pretende a disciplinação dos sujeitos, muito menos a pedagogização de suas intervenções, que fortalecem a relação de poder entre aquele que executa a medida e o adolescente que a cumpre. Sabemos com Soler, (2006) que a psicanálise não se interessa pelo corpo civilizado, dócil, que obedece ao discurso da lei, mas sim pelo sintoma que é sempre singular e aponta a pulsão que não foi docilizada e, portanto, põe à prova a relação do sujeito com social.

É nesse sentido que a psicanálise reconhece o sujeito do inconsciente e busca possibilitar a compreensão do adolescente sobre seus efeitos na sua vida para, então, implicá-lo na relação com a lei. Freud (1930/1980d) já dizia que o mal-estar na cultura é um destino e que precisamos pensar formas de tratamento para que o sujeito construa saídas singulares orientadas pelas regras sociais.

 

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Endereço para correspondência:
Juliana Marcondes Pedrosa Souza
Email: juliana.marcondes@yahoo.com.br

Jacqueline Oliveira Moreira
Email: jackdrawin@yahoo.com.br

Recebido em: 03/08/2016
Revisado em: 07/08/2017
Aceito em: 22/12/2017

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