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Revista Subjetividades

Print version ISSN 2359-0769On-line version ISSN 2359-0777

Rev. Subj. vol.18 no.1 Fortaleza Jan./Apr. 2018

http://dx.doi.org/10.5020/23590777.rs.v18i1.5682 

ESTUDO TEÓRICO

 

Viver sem o objeto

 

Living without the Object

 

Vivir sin el Objeto

 

Vivre sans l'Objet

 

 

Giovanna Amanda Presa (Lattes)I; Maria Virgínia Filomena Cremasco (Lattes)II

IMestre em Psicologia Clínica pela Universidade Federal do Paraná
IIProfessora no Departamento e Mestrado em Psicologia da UFPR, Chefe da Unidade de Programas e Projetos da Pró Reitoria de Extensão e Cultura da UFPR, Diretora do Laboratório de Psicopatologia Fundamental da UFPR (CNPq)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo tem como objetivo realizar uma leitura clínica psicanalítica do filme "Viver sem endereço" (2014), de Paul Bettany, para investigar o tema da impossível perda do objeto de investimento nos casos-limite. Para isto, retrataremos a história da personagem Hannah, que, assim como outros moradores de rua, vive cercada de perigos e incertezas, típico das situações traumáticas de desamparo. O filme é carregado de cenas que servem de suporte para estabelecer um elo com a faceta dessubjetivante que o trauma pode assumir na configuração psíquica de alguns sujeitos. Optou-se por evidenciar que, no cerne dessa problemática, encontra-se a importância das funções exercidas pelos objetos primários, que, dependendo da qualidade de suas respostas, terão uma ação direta em relação às vivências traumáticas. A partir da análise do filme em interlocução com a psicanálise, pensamos na hipótese de que Hannah traz marcas traumáticas que não puderam ser integradas em seu psiquismo, aumentando a sua passividade em relação ao objeto de consumo pulsional personificado, inicialmente, na droga e depois em seu namorado.

Palavras-chave: trauma; casos-limite; psicanálise; objeto.


ABSTRACT

This article aims to perform a psychoanalytic clinical reading of Paul Bettany's film "Living Without Address" (2014) to investigate the issue of the impossible loss of the investment object in borderline cases. For this, we will portray the story of the Hannah character, who, like other homeless people, lives surrounded by dangers and uncertainties, typical of the traumatic situations of helplessness. The film loaded with scenes that serve as support to establish a link with the deletion of subjectivity facet the trauma can assume in the psychic configuration of some subjects. It was decided to highlight that at the heart of this problem is the importance of the functions performed by the primary objects, which, depending on the quality of their responses, will have a direct action in relation to the traumatic experiences. From the analysis of the film in interlocution with psychoanalysis, we think of the hypothesis that Hannah brings traumatic marks that could not be integrated into her psyche, increasing her passivity in relation to the object of instinctual consumption personified, initially, in the drug and then in your boyfriend.

Keywords: trauma, limit cases, psychoanalysis, object.


RESUMEN

El presente artículo tiene el objetivo de realizar una lectura clínica psicoanalítica de la película "Vivir sin dirección" (2014), de Paul Bettany, para investigar el tema de la imposible perdida del objeto de inversión en los casos-límite. Para eso, describiremos la historia del personaje Hannah, que como otros callejeros, vive rodeada de peligros e incertidumbres, típico de las situaciones traumáticas de desamparo. La película es cargada de escenas que sirven de soporte para establecer un eslabón con la faceta 'desubjetivante' que el trauma puede tomar en la configuración psíquica de algunos sujetos. Se decidió por evidenciar que, en el núcleo de esa problemática, se encuentra la importancia de las funciones ejercidas por los objetos primarios, que, según la calidad de sus respuestas, tendrán una acción directa en relación a las experiencias traumáticas. A partir del análisis de la película en interlocución con el psicoanálisis, pensamos en la hipótesis de que Hannah trae huellas traumáticas que no pudieron ser integradas en su psiquismo, aumentando su pasividad en relación al objeto de consumo pulsional personificado, inicialmente en la droga y después en su novio.

Palabras clave: trauma; casos-límite; psicoanálisis; objeto.


RÉSUMÉ

Cet article fait une lecture clinique psychanalytique du film «Vivre sans adresse» (2014) de Paul Bettany. Le but est rechercher sur le thème de la perte impossible de l'objet d'investissement dans les cas limites. Pour cela, on raconte l'histoire du personnage Hannah, qui, comme d'autres personnes en situation d'itinérance, vit au milieu de dangers et d'incertitudes typiques des situations traumatiques de la solitude. Le film a beaucoup de scènes qui soutiennent l'établissement d'un lien avec la facette désubjective lequel le traumatisme peut devenir chez la configuration psychique de certains sujets. On a choisi de mettre en évidence que, au cœur de cette problématique, on trouve de l'importance des fonctions exercées par les objets primaires. Cela veut dire que, selon la qualité de leurs réponses, ils peuvent avoir une action directe dans les expériences traumatisantes. Dans ce travail on est parti d'une analyse du film en dialogue avec la psychanalyse. Ainsi, on a eu l'hypothèse que Hannah apporte des marques traumatiques qui n'ont pas pu être intégrés chez son psychisme, ce qui a augmenté sa passivité par rapport l'objet de consommation pulsionnel personnifiée. Initialement, sur la drogue, puis avec son copain.

Mots-clés: traumatisme; cas limites; psychanalyse; objet.


 

 

O filme "Viver sem endereço", lançado em 2014 pelo diretor Paul Bettany, retrata a história dramática de dois moradores de rua que se conhecem e se apaixonam, passando a enfrentar juntos os perigos e as incertezas que os cercam.

No início do filme, somos capturados por cenas que pouco nos informam sobre a identidade dos personagens, Hannah e Tahir, exceto que ambos sofrem e que a causa precipitante desse sofrimento não pode ser remontada em uma narrativa implicada, dotada de sentido, causando-nos a impressão de que eles próprios não podem desfrutar no plano subjetivo a história de suas vidas, dando ensejo a uma hipertrofia do presente que não inclui a historicisação do sofrimento. À medida que aumenta o envolvimento do casal, descortinam-se simultaneamente os aspectos de suas biografias que ficaram ocultos por uma existência esvaziada, vivida radicalmente em estados de retraimento e isolamento, como se, de alguma maneira, essa experiência fosse aplicada à suspensão de si e do mundo enquanto um lugar localizável no tempo e no espaço para a construção de ideais, desejos e transformações.

É possível, então, que a partir desse encontro dos protagonistas, no qual a ênfase recaiu basicamente no cuidado um do outro e na sustentação mútua de acolhimento, surgisse um espaço de intimidade necessário para que a capacidade dos sujeitos de se reaverem com suas partes desconexas fosse mobilizada. O valor dessa solução está justamente no seu efeito restaurador, que restitui a possibilidade de amarem, inclusive, a eles mesmos.

É assim que ficamos conhecendo a história de Hannah, uma jovem mulher rica que, após o falecimento inesperado de seu marido, abandona seu filho e sua família, defendendo-se de suas perdas por meio do uso alienante de drogas, que funcionam como um amortecedor para suas angústias. O outro personagem, que faz seu par romântico, Tahir, é um nigeriano, também viúvo, que perdeu sua mulher e seu filho em meio a um episódio violento na cidade de Lagos, onde vivia. Depois dessa tragédia, ele decide se juntar ao grupo terrorista Boko Haram e se torna um assassino de pessoas inocentes, motivado por sua raiva e por sua vontade de vingança. O filme não aborda de que maneira Tahir se muda para a América e passa a ser um morador das ruas de Nova Iorque, mas o fato é que esse movimento reflete também sua mudança interior, uma transformação que se evidencia no arrependimento que sente pelos crimes que cometeu e sua vontade de dar outro rumo a sua vida. Assim, fica evidente que, mais do que a falta de uma casa para morar, os personagens também dividem a falta de uma experiência de intimidade com um doloroso passado, de muitas perdas e lutos.

Considerando essa breve introdução sobre a história do filme, pretendemos compreender, a partir do viés psicanalítico, de que maneira a personagem Hannah se defende das marcas traumáticas não integradas em seu psiquismo, dirigindo o nosso olhar para o papel fundamental que o objeto de investimento ocupa na sua dinâmica psíquica, objeto esse personificado, inicialmente, na droga e depois em Tahir. Objetivou-se destacar tais aspectos produzindo uma espécie de gancho entre a narrativa do filme e as contribuições psicanalíticas dedicadas às subjetividades marcadas pela dimensão do traumático. Para tanto, nossa interlocução entre cinema e psicanálise será fundamentada nos escritos freudianos e em alguns de seus representantes no cenário contemporâneo da psicanálise. Iniciaremos nosso percurso nos dedicando à investigação do trauma, centralizando a sua face dessubjetivante, que resiste às inscrições psíquicas e que coloca em xeque a sua representatividade. Em seguida, vamos desenvolver o conceito que se liga à tentativa psíquica de dar conta dessas marcas traumáticas - a clivagem, pois, ao que nos parece, é o recurso possível que Hannah dispõe para se defender e poder vir a se retirar dessas experiências que lhe são excessivamente dolorosas. Por fim, vamos nos aproximar da noção de objeto enquanto função, que, no caso a ser analisado, desempenha justamente a tarefa de ser um objeto a ser consumido pela força da pulsão. Admitimos a importância de se trabalhar com esses eixos teóricos visto que, segundo nossa hipótese, o caso de Hannah pode ser apresentado como um caso-limite, que tem que ver com um modo particular de ser e estar no mundo, cuja ênfase recai no próprio modo de construção do elemento fundante do aparelho psíquico, isto é, o limite.

 

Considerações Teórico-Clínicas

O Trauma como uma Inundação Pulsional

Em 1920, com a introdução do conceito de pulsão de morte, Freud (1920/2006d) demonstrou a existência de forças operando no psiquismo que não estão subordinadas ao princípio do prazer e funcionam segundo outra lógica que não aquela na qual "o que é prazer para um sistema é desprazeroso para o outro". Essa constatação fez com que o autor reconhecesse que o princípio do prazer depende de uma ação anterior para poder entrar em ação, que consiste em dominar as excitações que transbordam no psiquismo de forma abrupta e em estado livre. Quando isso não acontece, o aparelho psíquico fica a mercê dos efeitos traumáticos e dessubjetivantes desse excesso pulsional, desvelando a marca dessa força violenta que obriga a uma repetição numa espécie de eterno retorno do mesmo.

Essa repetição constrange o modelo de repetição indicado por Freud (1914/2006a) em Recordar, Repetir e Elaborar. Não se trata, dessa vez, de uma atividade que traz à tona o conteúdo recalcado, em que o sujeito repete em ato, na relação transferencial, um material de sua vida sexual infantil sem que essa experiência possa ser percebida como algo pertencente ao seu passado; mas, sim, de uma ação repetitiva que aponta para algo que tem autonomia em relação ao princípio do prazer e que está além de uma repetição constituída a partir de traços mnêmicos, articulados em uma cadeia de representações. O que está em jogo é, simplesmente, a revelação da pulsão em sua forma desligada, que impulsiona o psiquismo, sob a forma de uma compulsão à repetição, a presentificar as marcas que não foram devidamente processadas no momento de sua irrupção. Em outras palavras, a tarefa fundamental de dominar e ligar as intensidades que perturbam a economia do psiquismo fracassa, fazendo com que o psiquismo continue operando a partir de uma temporalidade que precede à entrada do princípio de prazer e que se relaciona a um estado de passividade pulsional. Referimo-nos, pois, à vulnerabilidade e à sensação de desamparo evocada diante da experiência traumática para a qual o sujeito fora exposto sem estar devidamente preparado, como se diante do inesperado ele se transportasse para uma condição de letargia ante as impressões sensíveis e os afetos despertados (Freud, 1920/2006d, 1926[1925]/2006g).

É nesse contexto que diversas configurações clínicas passaram a ser pensadas, nas quais os sofrimentos são de outra ordem, pois ultrapassam as modulações do eixo prazerdesprazer e se aproximam dessa noção de trauma que acabamos de descrever: como aquilo que responde por um desarranjo na economia psíquica do sujeito, furtando-lhe o seu acesso ao simbólico.

A capacidade do psiquismo de tolerar até certo limite um quantum de desprazer pressupõe que as duas forças pulsionais - pulsões de vida e pulsões de morte - possam estar intrincadas. É nesse sentido que Freud (1924/2006e) desenvolve a ideia de um masoquismo erógeno primário, que diz respeito a uma dimensão essencialmente humana que nos permite suportar em alguma medida a dor e o desprazer em geral. Segundo o autor, o masoquismo testemunha a união pulsional visto que, a partir de sua influência, o princípio do prazer pode entrar em cena acolhendo e colocando sob o seu domínio uma dose variável, mas inevitável, de desprazer.

Nesse sentido, Rosenberg (2003, p. 80) faz uma importante consideração a respeito dos percursos de intrincações-desintrincações pulsionais na vida de um indivíduo. Segundo o autor, a depender das condições particulares desse binômio, o funcionamento do princípio do prazer também mudará. É o que observamos, por exemplo, nas reivindicações e nos destinos pulsionais de Hannah. Quando a personagem recebe a notícia de que seu marido está morto, ela é imediatamente golpeada por um excesso de tensão pulsional, que torna o princípio regulador de prazer inoperante, fazendo com que se desenvolva o afeto de angústia como via privilegiada de escoamento dessa irrupção energética no psiquismo.

Nesse ponto, vale lembrar que Freud (1926[1925]/2006g) fez questão de distinguir uma angústia sinal de uma angústia automática, sendo a primeira uma reação adequada e útil ao psiquismo, pois sinaliza, antecipadamente, uma situação potencialmente perigosa e temida, favorecendo o preparo do psiquismo, enquanto a segunda é uma reação automática decorrente de uma alta taxa de excitação em estado livre que o sujeito não esperava ter de catexizar. Note-se que o fator "susto" é determinante na instauração de uma situação traumática, pois é justamente nesse cenário de desproteção psíquica que o sujeito é pungido com um excesso pulsional que está além de suas possibilidades de contenção (Freud, 1926[1925]/2006g). Com efeito, a angústia emerge nesse momento de super excitação, aproximando o vivido de um desprazer puro do qual se pretende apagar, reduzindo-o a nada. Do ponto de vista metapsicológico freudiano, estamos falando de um funcionamento regulado pelo princípio Nirvana, isto é, a lei de funcionamento da pulsão de morte que precede a entrada do princípio de prazer e que busca, a todo custo, a conservação de um estado mítico de total inexcitabilidade orgânica.

Nossa hipótese é de que, diante dessa situação traumática, Hannah é lançada ao descompasso de suas pulsões, que se desintrincaram ao não encontrarem mais o objeto que outrora sustentava seus investimentos. Essa fratura faz com que a protagonista viva um tipo particular de submissão, que se dá justamente com relação às pulsões destrutivas, isto é, desligadas. Mais precisamente, queremos apontar para a falha na tarefa da libido de tornar inofensiva a pulsão de morte que, em última instância, seria capaz de produzir um núcleo masoquista primário sobre o qual se tornaria suportável o estado de desamparo ao qual ela foi lançada por ocasião do transtorno pulsional associado à perda de seu marido. Nesse sentido, a atividade de ligamento, realizada pela função sexual que, em si mesma, é criativa e formadora de laços, não trabalhou de modo a garantir a criação de novos investimentos significativos. Assim, Hannah se tornou alvo dos ataques e dos afetos insuportáveis típicos da pulsão de morte.

São várias as cenas que nos permitem vislumbrar que Hannah possui poucos recursos internos que podem ser acionados para preservá-la da ação violenta das pulsões destrutivas que não foram contidas e amalgamadas com as pulsões sexuais. Optamos por eleger a cena em que a personagem tenta se jogar de uma ponte em um ato de desespero para tirar a própria vida, mas é impedida por Tahir.

Podemos reconhecer nesse tipo de expressão atuada da pulsão uma passagem ao ato, termo esse que vem sendo utilizado pela psicanálise contemporânea para fazer menção à expulsão pelo ato do próprio sujeito, que age no sentido de "suspender ou reiniciar do zero sua estrutura" (Dunker, 2017, p. 167). Por isso, mesmo a passagem ao ato traz consigo seu efeito característico de perda da capacidade de simbolização e de extração de sentido. Ora, o que se passa nessa situação é, justamente, a suspensão de qualquer contato mínimo com a realidade interna e externa do sujeito. No caso de Hannah, no momento da passagem ao ato, temos de fato uma situação de demissão psíquica, na qual a personagem se equivale à um resto, a um corpo dessubjetivado e nada mais; sendo, por isso mesmo, descartável.

Fazendo uso dessa vinheta com a finalidade de uma análise clínica, procuramos demonstrar que o traumatismo que Hannah vive com a morte de seu marido engendra no seu psiquismo marcas de uma violência psíquica que não puderam ser acolhidas e integradas em sua história de vida. Essas marcas traumáticas passaram então a engendrar duas distintas, porém não excludentes, modalidades de ação: a passagem ao ato, que acabamos de descrever, e o acting out, que seria um ato impulsivo em que o sujeito visa sair de uma situação de impasse que reflete, mais precisamente, aspectos de sua fantasia que ele não quer ou não pode admitir para si.

Diferentemente da passagem ao ato, no acting out há uma mensagem e um destinatário. Há um apelo, sobretudo, para o deciframento daquilo que o sujeito faz sem estar implicado de forma direta. Desse modo, "o acting out é um tipo de ação que reflete a demissão ou o esgotamento da palavra como atividade de rememoração e mediação social. Quando não conseguimos mais lembrar, repetimos, em ato, o que não conseguimos admitir como parte de nós mesmos" (Dunker, 2017, p. 166). Voltemos ao caso de Hannah, em que podemos colher a função desse ato e de como ele se mostra. Na cena, a personagem tem uma discussão com seu namorado e aspectos de suas vidas, até então ocultos, são revelados, como a existência de seu filho e a participação de Tahir no grupo terrorista Boko Haram, responsável por violentos ataques a bases militares e pela morte de mulheres, crianças e soldados, que, assim como o seu marido, foram vítimas desse tipo de violência. Enfurecida, ela emudece. No lugar de palavras, vem uma descarga pulsional através de um grito, seguida de um ato motor. Hannah exterioriza sua raiva agredindo seu parceiro com um objeto que fere seu rosto e, em seguida, apela para a droga injetando heroína em seu corpo, interrompendo com o período de abstinência do qual lançou mão para se "limpar" das drogas.

Tem-se aí um acting out que pode ser lido da seguinte maneira: primeiramente, há uma exteriorização da raiva para com o objeto (Tahir). Ele, em alguma medida, poupa Hannah da destrutividade dirigida para si por meio de uma atitude sádica, que mantém o objeto em sua dinâmica pulsional, como um interlocutor de seus investimentos tanto amorosos quanto destrutivos. No entanto, o que se percebe é que Hannah, nesse ato impulsivo desesperado, não dá conta de silenciar esses elementos insuportáveis que ela coloca para fora de si, então, ela vai além. Hannah, além de destruir o objeto, também se destrói, o que evidencia, assim, a dimensão de uma autopunição que compõe o solo da pulsão de morte, bem como a independência das pulsões desligadas que colocam em questão a circularidade e o bom equilíbrio do aparelho psíquico (Cardoso, 2010a, p. 53).

É como se Hannah, ao tentar se livrar compulsivamente daquilo que escapa ao seu entendimento e assimilação, fosse movida por um funcionamento que lida, prioritariamente, contra os efeitos do traumático, isto é, desse excesso pulsional que não pôde ser engajado simbolicamente e traduzido em elementos constitutivos de sua subjetividade.

Essa violência, primeiro dirigida ao outro e depois autoinfligida, tem a função de marcar que existe algo que resta a ser dito e que foi suspendido pelo ator motor. Essa demonstração do acting out aparece na cena em que Hannah injeta a droga em seu corpo na frente de Tahir, utilizando-a como um instrumento de demonstração disso que está oculto. Esse ato envolve, portanto, a suspensão do pensamento e de um trabalho psíquico, além de um justo apelo ao olhar do outro para fazer existir uma interpretação.

É assim que a personagem parece aspirar ao nada, ao nível zero de excitação, em que não há nada a encontrar senão a indiferença e a eliminação de todas as falhas e diferenças. Há, portanto, um movimento de resolver um impasse simbólico que não é posto em palavras. As lentes cinematográficas conseguem capturar bem esse estado de vazio e de comoção psíquica da personagem: seu semblante muda, seu corpo vai se enfraquecendo e ela, por fim, fica recolhida na cama, sem expressar alegria ou tristeza, raiva ou dor. Está imóvel, subtraída de si mesma e retirada e indiferente à realidade que a cerca.

A Clivagem Pós-traumática como um Mecanismo de Sobrevivência Psíquica

O conceito de clivagem aparece em alguns textos freudianos, ora como um mecanismo estruturante, que diferencia as instâncias psíquicas e as formações inconscientes, ora como uma reação defensiva, acionada diante de uma experiência traumática que precisa ser retirada do espaço psíquico do sujeito em sofrimento. Os principais textos que versam o tema são: Fetichismo (Freud, 1927/2006h), A Divisão do Ego no Processo de Defesa (Freud, 1940[1938]/2006j) e Esboço de Psicanálise (Freud, 1938/2006i), embora ao longo de sua obra seja possível identificar lampejos desse conceito psicanalítico, como em A Negativa (Freud, 1925/2006f). Para a finalidade do presente artigo, utilizaremos as lentes do trauma para o entendimento do mecanismo de clivagem, ou cisão, pois pretendemos circunscrevê-lo como uma defesa privilegiada de sobrevivência psíquica e de preservação egóica que está presente no funcionamento psíquico de Hannah.

Por essa via de reflexão, reconhecemos que a clivagem é um mecanismo que, à custa do ego, opera uma divisão entre partes representadas e integradas no psiquismo e partes não integradas, fora do registro das representações, e inalcançáveis, portanto, ao primado do princípio de prazer. Essa fratura egóica engendra dois núcleos identificatórios distintos que não se comunicam entre si e tampouco se influenciam, subvertendo assim a possibilidade de uma unidade egóica.

No entanto, Freud (1940[1938]/2006j) alerta que, apesar dos esforços do ego para se defender de uma exigência pulsional, ou de um fragmento da realidade externa, esse sucesso nunca é completo e irrestrito. Isto quer dizer que, ao mesmo tempo em que esse recurso extremo e bastante primitivo mantém os elementos cindidos distantes do psiquismo, há também a constante ameaça de que o clivado possa retornar, de modo que cabe ao ego as mais variadas tentativas de evitar que isso aconteça. Destarte, conclui-se que a clivagem, embora faça desaparecer subjetivamente da consciência a experiência traumática, não é suficiente para apagá-la do inconsciente ou, dito em outras palavras, de extirpar as percepções e as sensações oriundas do trauma. Como prova disso, verifica-se a tendência dessas marcas traumáticas de serem reinvestidas através do fenômeno da compulsão à repetição (Roussillon, 2012, pp. 281-282).

A partir do exposto, chegamos à hipótese de que Hannah traz consigo marcas traumáticas que não puderam ser integradas em seu psiquismo, permanecendo clivadas e produzindo uma série de respostas que visam manter o divórcio entre a percepção traumática da realidade - a morte de seu marido - e a possibilidade de continuar satisfazendo suas exigências pulsionais mediante o uso alienante do objeto investido. No caso analisado, essa aliança patológica que se estabelece com o objeto de consumo pulsional se dá, primeiramente, com a droga e em seguida com a figura do namorado Tahir. Entendemos que, em ambos os casos, o objeto é usado para apaziguar as intensidades pulsionais que excedem os recursos psíquicos de Hannah, disparando, assim, o acionamento das ações de clivagem.

Retomando a narrativa do filme, encontramos uma cena bastante emblemática em que fica evidente como a perda vivida por Hannah é um divisor de águas para a sua vida psíquica subjetiva. No drama, a protagonista está segurando um papelão com a frase: "Eu era alguém". Nota-se que há uma sutura na subjetividade da personagem, que a divide em: uma parte que antecede a perda e outra que sucede ao luto, sendo essa última marcada por uma falta de reconhecimento de si mesma. Assim, instala-se mais uma vez um paradoxo: é Hannah quem está presente no ato de consumo das drogas, mas ausente no sentido de uma apropriação da produção desse ato.

O telespectador não precisa se esforçar para perceber a dor que aflige a personagem que, para sobreviver psiquicamente, descentra-se de si mesma, afastando-se de sua experiência subjetiva e retirando-se da possibilidade de efetuar um trabalho de luto.1 Essa parte ferida da vida de Hannah é congelada, inclusive, afetivamente, por meio do uso de entorpecentes que a afastam do trabalho psíquico necessário na integração efetiva dessa vivência de perda. Por essa razão, Hannah não pode abrir mão das drogas, elas cumprem justamente a função de mantê-la apartada de um estado de desamparo e de angústia que o retorno do clivado produz.

Na cena em que ela vai à ponte para cometer um suicídio, vemos a expressão de um retorno do clivado, pois já não se tem mais os efeitos anestesiantes e paralisantes da droga que a vacinam de entrar em contato com essa parte não integrada de sua vida. O efeito disso é o seu dilaceramento egóico, ligado ao transbordamento pulsional que enseja a tentativa de acabar com a própria vida como recurso possível de suspensão da dor psíquica, ou, como propõe Roussillon (2012, p. 284), de neutralização energética. De acordo com a autora, trata-se de uma tentativa de neutralizar o retorno do clivado por meio de um conjunto de operações que visem restringir, tanto quanto possível, tudo aquilo que tenha potencial para reativar a zona traumática e o estado degenerativo de falta que a acompanhou. Parafraseando a autora, "a neutralização pode ser utilizada como mecanismo complementar da organização narcísica ou como mecanismo principal" (Roussillon, 2012, pp. 284-285).

Dessa forma, consideramos que esse recurso é o mecanismo principal de Hannah. Em virtude de seu luto, ela petrifica a sua vida e seus afetos por meio de um contrato mortífero com o objeto-droga. Citando a fala da personagem: "meu luto é muitas coisas. Fez eu me comportar de formas que eu me arrependo e que não entendo completamente". Vê-se claramente a função da clivagem, que resulta no sentimento de despersonalização e falta de coesão egóica (Green, 2008, p. 99).

Viver sem o Objeto

Hannah ilustra bem o funcionamento subjetivo do que aqui apresentaremos como casos-limite. Privilegiaremos a concepção greeniana, que designa esse modelo de auto-organização subjetiva presente em alguém cuja estrutura não é a neurose (Green, 2008, p. 173). Em síntese, podemos dizer que o fronteiriço é aquele que não construiu suficientemente os limites intrapsíquicos (limites entre as instâncias psíquicas) e intersubjetivos (limites entre o interno e externo do psiquismo do sujeito, entre sujeito e objeto), pois a tentativa de separar bom e mau, prazeroso e desprazeroso, somático e psíquico, fantasia e realidade, tal como Freud (1925/2006f) propõe em A Negativa, resulta em uma dissociação. Gurfinkel (2013, p. 45) esclarece que a dissociação dos casos-limite incide diretamente no trabalho de simbolização, o qual, por sua vez, está relacionado com a capacidade do sujeito de reunir e de fazer comunicar esses elementos separados, divididos.

Assim, é preciso tomar consciência que, nessa perspectiva, o termo "limite" é adotado pelo autor como um conceito psicanalítico que vai além de uma simples linha divisória que separa e faz fronteira, mas que diz respeito a um espaço que se constrói e que favorece as trocas e transformações (Green, 1998). São esses territórios que, em situações desfavoráveis, vão se constituir de maneira frágil e colocar em evidência a consideração do outro no processo de constituição psíquica que, como sabemos desde Freud (1914/2006b), já se assume a importância dos investimentos primários para a construção de uma base narcísica, a qual é responsável para estruturar o espaço de investimento pessoal.

Como demonstram vários autores interessados na problemática do fronteiriço, há um aspecto que precisa ser realçado nos casos-limite, a saber: a destrutividade no eixo do narcisismo. Para versarmos sobre o tema, partimos do pressuposto greeniano de que a pulsão revela o objeto. Portanto, não existe satisfação pulsional sem a revelação de um objeto nem um objeto sem investimento pulsional, de modo que a relação entre eles é de complementaridade e de recíproca determinação. Convém salientar, portanto, que pulsão e objeto não se confundem. Quando se estabelece a coalescência da pulsão com o objeto, há uma potencialização dos aspectos traumáticos, tanto os provenientes das pulsões como os dos objetos (Figueiredo & Cintra, 2004, p.21). Nesses casos, o processo de diferenciação entre sujeito/objeto é dificultado por um objeto que não se deixou esquecer pelos movimentos pulsionais, daí a marca do fronteiriço de extrema porosidade em relação ao outro.

Partindo desse pressuposto, infere-se que o padecimento dos casos-limite diz respeito às vicissitudes dos vínculos primários, ou seja, de como o objeto primordial desempenhou suas funções de despertar e conter as pulsões no processo de estruturação subjetiva. Essa relação imprime o protótipo de como serão os futuros desdobramentos psíquicos do sujeito, resultado do processo de fusão diferenciação entre eu-outro que, nos casos-limite, foi excessivamente fusionante, ou excessivamente faltoso (Green, 1998).

O que Green (1998) propõe é que, quando o objeto primordial não é apagado e nem cede o seu lugar para objetos substitutos, há uma hipertrofia de sua condição de objeto 'absolutamente necessário' para satisfazer as exigências pulsionais do sujeito, convertendo-se em um objeto onipotente e infalível.

A fala de Hannah, "eu não sabia como ficar no mundo sem ele",demonstra bem a sua incapacidade de tolerar a separação e as falhas do objeto primordial, pois é como se ela, muito mais do que se ver ameaçada por essa perda, estivesse diante de uma impossibilidade de perdê-lo, esquecê-lo, negativá-lo internamente (Cardoso, 2010b, p. 85).

Dessa forma, entendemos que as modalidades de investimento no objeto-droga e objeto-namorado correspondem ao modelo de referência das relações objetais primordiais de Hannah que, segundo nossa hipótese, estiveram marcadas pela ausência de uma atividade negativizante desses objetos, ou seja, de um trabalho de luto.

Para Green (1998), essa ação do negativo é fundamental para a construção dos limites psíquicos, formulando o conceito de trabalho do negativo, que diz respeito à atividade psíquica enquadrante que usa do poder da negatividade para estruturar espaços psíquicos. Ao negar o objeto, ele se converte em parte da estrutura psíquica do sujeito, sendo, portanto, efeito do trabalho do negativo a capacidade do sujeito de desinvestir e descentrar dos objetos primordiais os investimentos maciços. Assim, inaugura um movimento desejante que conduz a busca por objetos substitutos a serem perseguidos e desejados, ou a serem evitados e abandonados (Figueiredo & Cintra, 2004).

Quando isso não ocorre, ou é insuficiente, o sujeito não é capaz de apagar o objeto primário, vivendo um relacionamento do tipo absoluto com o objeto, de um enlaçamento mortífero que superpõe a lógica do desejo pela lógica da necessidade (Cardoso, 2010c, p.23).

O objeto da necessidade é demandado para responder às necessidades do sujeito, diferenciando-se, portanto, do objeto de desejo. Segundo Minerbo (2013, p. 116), ele pode até ter um colorido erótico, mas, na realidade, cumpre uma função narcísica, no sentido de que se busca através dele a garantia e a manutenção egóica: ". . . esses objetos, ainda não completamente separados do sujeito, são típicos da subjetividade não-neurótica. São objetos arcaicos, vividos como excessivamente bons ou maus, como poderosos ou desprezíveis, que podem salvar ou destruir o sujeito" (Minerbo, 2013, p.116).

Essas considerações facilitam o nosso entendimento sobre as precárias fronteiras psíquicas de Hannah e de sua frágil capacidade de interiorização, razão pela qual são recorrentes os movimentos de exterioridade em suplência à interioridade, típicos dos casos-limite (Cardoso, 2010b, p. 83). Neles, o sistema de para-excitação (mecanismos autoeróticos) não dá conta de realizar o agenciamento dos excessos pulsionais e o sujeito é 'arrastado' por sua força pulsional.

É interessante perceber como a narrativa do filme vai ao encontro dessa característica. Na cena em que Hannah dança em uma praça num estado de frenesi, seu corpo parece figurar uma 'tela' no qual são descarregados os excessos de excitações sem qualquer espécie de filtro. A dança metaforiza o seu transbordamento pulsional, que bloqueia o pensamento e demanda soluções de amansamento e evacuações mais urgentes. Outra cena que nos permite constatar o apelo excessivo à exterioridade no funcionamento psíquico da personagem é quando Tahir, literalmente, faz sua contenção física para que ela não se jogue da ponte. Com base nisso, apreende-se a função de continência do objeto-namorado, visto que ele silencia as tensões e emoções de Hannah, desempenhando verdadeiramente a função de holding proposta por Winnicott (1983).

Esse conceito do psicanalista inglês engendra uma série de cuidados oferecidos pelo objeto primordial, que é suficientemente bom para conferir ao sujeito a sensação de segurança tão necessária para os processos de constituição psíquica e de simbolização.

Nessa mesma esteira de raciocínio, Green (2008, p. 150) enumera 12 funções que o objeto primário precisa desempenhar a fim de que o trabalho do negativo possa ser sustentado, viabilizando a constituição dos limites psíquicos, isto é, dos espaços de comunicação e de transformação de energia. Priorizaremos apenas as funções que nos parecem mais importantes para ilustrar como Tahir, ao ser tomado com objeto/função de consumo pulsional de Hannah, pode reeditar essas funções e, desse modo, promover uma espécie de cicatrização de sua ferida narcísica.

A primeira delas diz respeito à função de despertar ou interpelar para a vida. Sentimos isso com relação à cena em que Hannah e Tahir se beijam embaixo d'água e, em seguida, ela aparece frequentando o grupo de ajuda aos usuários de droga. As imagens nos sugerem, justamente, que ele foi o 'oxigênio' que ela precisava para deixar de ficar submersa em suas defesas.

A segunda é a função de containing, a qual reagrupa, liga e organiza as experiências emocionais potencialmente traumáticas, e impede, dessa forma, o transbordamento da energia pulsional desligada. Na cena em que Tahir está prestes a morrer, podemos afirmar que se trata de uma situação potencialmente traumática para Hannah. No entanto, ele subverte essa possibilidade conferindo sentido a essa experiência e transformando a força de destruição em força de ligação, de desinvestimento em investimento. Em suma, fazendo com que a protagonista conseguisse poupar seu narcisismo da destrutividade, que poderia aspirá-la como consequência de mais uma perda. Observamos também como ele tem papel fundamental na concatenação dos afetos de Hannah, dando-lhe mais potência para admitir a dimensão da ausência por meio de um remanejamento interno que contempla o vazio e o desconforto da perda. O prolongamento mais notável dessa função é justamente quando o filme acaba na cena em que Hannah retorna para sua casa, para seu filho e sua família, assegurando a continuidade de seus investimentos em outros objetos, em novas atividades e campos de ação da função objetalizante.

Essas considerações teórico-clínicas tiveram por objetivo revelar como o trabalho do negativo é dialético e dinâmico, pois pressupõe o envolvimento da subjetividade do outro e da qualidade de suas respostas à demanda pulsional do sujeito. Com base no exposto, inferimos que, no caso analisado, o trabalho do negativo do objeto primordial falhou e o objeto ficou enquiestado, cristalizando o ego de Hannah em uma situação de radical servidão em relação ao 'outro'. O conceito de servidão, proposto por Dockhorn (2014), é empregado para fazer menção à situação de assenhoramento do sujeito, que entrega para um "outro" a sua condição de ser desejante, e se aprisiona, desse modo, ao mandato narcísico dos objetos. Parece-nos adequado falar de um estado de servidão e de vulnerabilidade narcísica presente na personagem diante do objeto-droga e objeto-namorado.

Assim como Hannah, os demais casos-limite se organizam psiquicamente a partir dos movimentos e das mudanças associadas ao objeto. Essa dinâmica ilumina o que está em jogo com os casos-limite ao mostrar a impossibilidade de eles perderem o objeto, seja ele um objeto real, seja fantasiado, pois, ao perdê-lo, perdem-se a si mesmos.

Tanto a falta de conhecimento sobre estar no mundo quanto o sentimento de perda de si deflagram que o objeto não pode ser perdido, porque ele cumpre uma função de atestar a existência do sujeito. Cardoso (2010c, p.85) escreve que é como se o objeto "emprestasse" ao sujeito a sua consistência. É curioso pensar que a escolha de Hannah por Tahir também foi feita "às cegas", pois ela nada sabia sobre ele nem mesmo sentiu-se curiosa para perguntar, como se essa informação fosse a mais irrelevante, reafirmando o estatuto desse objeto tomado como "único" e "insubstituível".

Desse modo, a atividade do sujeito não será somente no plano interno, de ter que lutar contra suas excitações pulsionais. É também no plano externo, com as loucuras das pulsões desligadas do objeto e da ameaça de não mais existir (Candi, 2010, p. 251). Essa luta nem sempre beneficia o sujeito, visto que a pulsão de morte pode se tornar independente das pulsões de vida nessa batalha e arrastar o sujeito para um movimento desobjetalizante.

A função desobjetalizante (Green, 2008) nos permite compreender não somente o ataque feito ao objeto através do que ele chama de desligamento, mas também a todos os seus substitutos, colocando em risco o próprio ego. "Afinal, é o investimento submetido ao processo de objetalização que está em jogo. A manifestação que nos parece própria à destrutividade da pulsão de morte é o desinvestimento" (Green, 2008, p. 153). Green (2008) associa essa função à atividade de um narcisismo negativo, na qual o anseio é pelo nível zero de tensão (princípio Nirvana), culminando em um desinvestimento subjetivo. O narcisismo negativo seria fruto de um desinvestimento das catexias objetais que retornam para o próprio sujeito, desfazendo os investimentos que a função objetalizante tinha conseguido fazer.

Do ponto de vista clínico, isto se traduz em um sentimento de morte psíquica, onde há o empobrecimento do ego, apontado por Candi (2010, p. 253) como uma procura ativa de um estado mítico, silencioso e vazio, que aspira a um estado de não ser. É o que ela deixa escapar quando diz: "a heroína tira a dor, mas provavelmente vai me matar". A vida, diz Green (1998, p.23), torna-se equivalente à morte, pois é o alívio de todo desejo. Isto nos leva a pensar no sofrimento narcísico da personagem, marcado por sua dificuldade de assumir uma posição desejante, principalmente nas situações mais radicalmente destrutivas, em que o excesso da pulsão de destruição subtrai o trabalho objetalizante da pulsão de vida.

Assim vemos que a dificuldade que Hannah tem para efetuar o trabalho de luto do seu marido é, em realidade, uma repetição de uma série de lutos não realizados do objeto primordial, que condensa, dessa forma, passado e presente. Não se trata, como apontam Figueiredo e Cintra (2004), de uma busca do "velho" através do novo objeto, mas de uma procura de objetos capazes de responder às necessidades mais básicas de constituição psíquica e que, no caso analisado, parece ter sido encontrada no objeto-namorado.

As funções desempenhadas para Tahir foram determinantes para dar continuidade ao trabalho do negativo, que é, por excelência, um trabalho de luto. Esse processo, que consiste em negativar a presença do objeto primário, viabiliza a própria percepção de si, o trabalho da representação e do recalcamento. Pressupõe-se que o objeto foi introjetado, que ocorreu um alargamento do ego mediante a sua internalização e de suas funções, de modo que, mesmo quando o objeto não estiver ali presente para responder às exigências pulsionais de satisfação, o sujeito poderá recorrer aos objetos substitutos por meio de novas ligações.

Portanto, a perda de Tahir estrutura um espaço interno em Hannah em que ele está e não está presente. Diríamos, nesse momento, que o objeto foi perdido, mas, ao mesmo tempo, foi integrado ao seu ego na forma de um elemento vazio estrutural que possui a qualidade de estar presente mesmo ausente.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Giovanna Amanda Presa
Email: giovannapresa@hotmail.com

Maria Virgínia Filomena Cremasco
Email: mavicremasco@gmail.com

Recebido em: 13/09/2016
Revisado em: 07/08//2017
Aceito em: 07/11/2017

 

 

1 Freud (1917[1915]/2006c) trabalha com a noção de que quando um objeto é significativo do ponto de vista dos investimentos libidinais do sujeito é perdido, mobiliza-se uma exigência de trabalho que pode ou não ser realizado. Trata-se do trabalho de luto, no qual, grosso modo, a pessoa elabora a sua perda a partir de um processo que contempla, dentre outros aspectos, novos investimentos em objetos substitutos.

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