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Print version ISSN 2359-0769On-line version ISSN 2359-0777

Rev. Subj. vol.18 no.1 Fortaleza Jan./Apr. 2018

http://dx.doi.org/10.5020/23590777.rs.v18i1.6188 

ESTUDO TEÓRICO

 

Manifestações paranoicas na ausência de psicose

 

Manifestations paranoids in the absence of psychosis

 

Manifestaciones paranoicas en la ausencia de psicosis

 

Manifestations paranoïaques en l'absence de psychose

 

 

Vinícius de Aquino Braga (Lattes)I; Isalena Santos Carvalho (Lattes)II

IPsicólogo no Centro de Reabilitação e Promoção da Saúde (CER), pela EMSERH. Professor de Psicologia (UEMA - Campus Bacabal). Mestre pelo Curso de Pós-Graduação Mestrado em Psicologia (UFMA)
IIProfessora Doutora do Mestrado Acadêmico em Psicologia da Universidade Federal do Maranhão (UFMA)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Manifestações paranoicas podem ocorrer mesmo na ausência de psicose. A proposta deste trabalho é discutir como isso é possível. Como método de trabalho, realizamos pesquisa bibliográfica, na qual recorremos a leituras e releituras de obras de Freud e de Lacan, bem como de autores contemporâneos da Psicanálise, como Charles Melman e Marcel Czermak. Para tanto, partimos da noção de Verwerfung como mecanismo atrelado à estrutura psicótica, na medida em que o Nome-do-pai pode não ser instaurado para o falante e permanecer forcluído. Bem como tratamos também da Bejahung, a simbolização primitiva. Apresentamos a constituição do Eu como propriamente paranoica, pois possui uma base rivalitária que põe em jogo uma agressividade (nem sempre) latente, que podemos apreender nas manifestações tipicamente paranoicas que um sujeito pode apresentar, mesmo que não se possa constatar uma psicose. Trata-se de um funcionamento inerente ao próprio psiquismo e decorre do fato de que nosso eu - função imaginária - é fundado sobre uma base em que nos apreendemos primeiramente no outro. Por fim, discorremos acerca do que é a paranoia e como se manifestam fenômenos paranoicos de modo a contribuir para uma escuta na clínica para além do encerramento dos funcionamentos paranoicos somente no campo da psicose. Os mecanismos imaginários constitutivos do eu não podem ser tomados isoladamente como critério para a identificação da estrutura. Podemos encontrar situações em que manifestações paranoicas ocorrem mesmo na ausência de psicose.

Palavras-chave: psicanálise; Verwerfung; eu; paranoia.


ABSTRACT

Paranoid manifestations may occur even in the absence of psychosis. This paper aims to discuss how it is possible. As a method of work, we carried out a bibliographical research, in which we used readings and re-readings of Freud and Lacan works, as well as contemporary authors of Psychoanalysis, such as Charles Melman and Marcel Czermak. To do so, we begin with Verwerfung notion as a mechanism attached to the psychotic structure, insofar as the parent-name may not be established for the speaker and remain foreclosed. In addition, Bejahung, dealing the primitive symbolization. We present the constitution of the I as properly paranoid because it has a rivalry base that puts at stake a (not always) latent aggressiveness that we can perceive in the typically paranoid manifestations that a subject can present, even if a psychosis cannot be verified. It is an operation inherent in one's own psyche and derives from the fact that one's self-an imaginary function-is founded on a basis in which one first apprehends the other. Finally, we discuss what paranoia is and how paranoid phenomena manifest themselves in order to contribute to a listening in the clinic beyond the closure of paranoid functions only in the field of psychosis. The imaginary constitutive mechanisms of the self cannot be taken in isolation as a criterion for the identification of the structure. We can find situations in which paranoid manifestations occur even in the absence of psychosis.

Keywords: psychoanalysis; Verwerfung; I; paranoia.


RESUMEN

Manifestaciones paranoicas pueden ocurrir en ausencia de psicosis. La propuesta de este trabajo es discutir como eso es posible. Como método de trabajo realizamos investigación bibliográfica donde recurrimos a lecturas y relecturas de obras de Freud y Lacan, así como de autores contemporáneos del psicoanálisis, como Charles Melman y Marcel Czermark. Para eso, partimos de la noción de Verwerfung como mecanismo ligado a la estructura psicótica, a la medida en que el Nombre-del-padre puede no ser establecido para el hablante y seguir forcluido. Bien como tratamos también de la Bejahung, el simbolismo primitivo. Presentamos la constitución del Yo como propiamente paranoica, porque posee una base 'rivalitaria' que pone en cuestión una agresividad (no siempre) latente, que podemos aprender de las manifestaciones típicamente paranoicas que un sujeto puede presentar, aunque no se pueda constatar una psicosis. Se trata de un funcionamiento inherente al propio psiquismo y viene del hecho de que nuestro yo - función imaginaria - es fundado sobre una base en la cual nos asimilamos mentalmente primero en el otro. Finalmente, hablamos acerca de lo que es paranoia y como se manifiestan fenómenos paranoicos solamente en el campo de la psicosis. Los mecanismos Los mecanismos imaginarios constitutivos del yo no pueden ser tomados por separado como criterio para identificación de la estructura. Podemos encontrar situaciones donde manifestaciones paranoicas ocurren en la ausencia de psicosis.

Palabras clave: psicoanálisis; Verwerfung; yo; paranoia.


RÉSUMÉ

Les manifestations paranoïaques peuvent arriver même en l'absence de psychose Ce travail a l'objectif d'analyser comme cela arrive. Comme méthode de travail, on a effectué des recherches bibliographiques. Donc, on a utilisé des lectures et relectures des œuvres de Freud et de Lacan, ainsi que des auteurs contemporains de la psychanalyse, comme Charles Melman et Marcel Czermak. À cette fin, on a utilisé la notion de Verwerfung comme un mécanisme lié à la structure psychotique, dans la mesure où le Nom du Père ne peut pas être établi pour le parleur et ni rester en forclusion. On traite aussi de la Bejahung, la symbolisation primitive. on présente la constitution du Moi comme paranoïaque, car il y a un base rivalitaire qui met en scène une agression (pas toujours) latente, ce qu'on peut saisir chez les manifestations typiquement paranoïaques q'un sujet peut présenter, même si ne soit pas possible constater de la psychose. Il s'agit d'un fonctionnement inhérent au psychisme et découle du fait que notre Moi - fonction imaginaire - est fondé sur une base sur laquelle on nous saisi tout d'abord dans l'autre. Finalement, on parle sur ce qui est de la paranoïa et comment les phénomènes paranoïaques se manifestent afin de contribuer à une écoute clinique au-delà de la fermeture des fonctionnement paranoïaque le domaine dans de la psychose . Les mécanismes de l'imaginaires constitutifs du Moi ne peuvent pas être pris isolément comme critère pour l'identification de la structure. Nous pouvons trouver des situations dans lesquelles des manifestations paranoïaques se produisent même en l'absence de psychose.

Mots-clés: psychanalyse; Verwerfung; Moi; paranoïa.


 

 

Na psicanálise, o interesse pela paranoia está presente desde os primeiros trabalhos de Freud. No entanto, mesmo tendo ele apresentado as bases para a sua investigação, é Lacan quem desenvolve um tratamento para os paranoicos. A paranoia é apresentada em seu "Seminário 3", no qual Lacan (2010) apontou como aparecia, no âmbito da Psiquiatria clássica, como uma categoria nosográfica que carecia de uma definição mais específica. A obra lacaniana sobre a paranoia parte, inicialmente, de sua tese de doutorado, em que aborda as relações entre as psicoses paranoicas e a personalidade, questões que o levam a apontar uma constituição paranoica na constituição do Eu. Com o recurso ao Estádio do Espelho e aos registros real, simbólico e imaginário, ele nos demonstra como ocorrem essas formações que são propriamente paranoicas, em que um infans (como ele chama a criança que ainda não acedeu ao domínio da linguagem) pode, a partir de uma prematuração orgânica, constituir-se através do outro. Ao apreender seu eu como outro, o sujeito está colocado em uma tensão quanto ao seu próprio eu, que poderá sempre se manifestar como outro. Há sempre uma virtualidade paranoica inscrita na constituição do eu que pode se manifestar de modo mais vivo em alguma situação, mesmo na ausência de uma psicose.

Tal questão instigou a necessidade de fazer um estudo objetivando nos interrogar como ocorre, afinal, essa ultrapassagem que nos coloca não só em posição de rivalidade com o outro, que tem reflexos em toda a sociedade que vivemos, mas que também pode nos conduzir a fazer loucuras, mesmo quando não somos psicóticos. Objetivamos, portanto, demonstrar como podem ocorrer reações paranoicas em casos em que não é constatada uma psicose através dos mecanismos paranoicos de constituição do eu.

Além de Freud e Lacan, recorremos aqui como referência a dois autores contemporâneos que se posicionam sobre como o estudo da paranoia é importante para a atualidade da clínica psicanalítica, colocando-nos fenômenos que podemos observar no dia a dia. Trata-se de Charles Melman e Marcel Czermak.

Para tanto, investigamos o conceito de Verwerfung. Esse conceito nos levou ao de Bejahung, que abre a possibilidade através da linguagem para a delimitação do campo da realidade em dentro e fora (Lacan, 1998b) em um tempo primitivo da constituição psíquica. Isto ocorre porque o inconsciente se organiza como uma linguagem bem antes que possamos articular a fala e os pensamentos deliberadamente, o que significa que escutamos os significantes bem antes que possamos fazer uso desses recursos tal como estamos acostumados a pensar. E é na tessitura da linguagem que se inscrevem essas operações de simbolização e exclusão radical (Bejahung e Verwerfung).

Abordamos ainda os mecanismos de formação imaginária do eu, que denotam uma dimensão propriamente paranoica visto que o eu se constitui pelo outro e manterá desde sempre uma agressividade latente, que pode se manifestar nas situações mais insuspeitas para com esse outro, seu semelhante.

Finalmente, abordamos o conceito de paranoia na psicanálise e exemplificamos situações cotidianas que podem exprimir a possibilidade, sempre virtualmente presente, de o eu retomar sua autonomia inaugural e causar-nos um sentimento de estranheza que pode nos levar a uma reação do tipo paranoica.

 

Verwerfung e bejahung - Dentro e Fora Paranoicos

O tema da Verwerfung nos salta em qualquer leitura que façamos sobre psicose na Psicanálise devido ao fato do funcionamento dessa estrutura ser marcado pela não incidência do significante Nome-do-Pai. Ao examinarmos os primeiros seminários de Lacan em que o termo aparece, é possível observar que se trata de um mecanismo que tem uma contrapartida, a Bejahung, que se constitui como uma simbolização primeira num tempo mítico da constituição do sujeito. Portanto, partimos do seu exame para precisar em que medida essas operações estão relacionadas ao tema da paranoia.

Lacan (1998b), ao se remeter ao tema da Verwerfung, abordado por Freud no caso do Homem dos Lobos, dá uma delimitação conceitual mais precisa ao tal termo, tal como podemos encontrar em sua "Resposta ao comentário de Jean Hyppolite sobre a "Verneinung" de Freud". Ele pinça a frase que Freud utiliza a respeito do relato do paciente,"Eine Verdrängung ist etwas anderes als eine Verwerfung"1 (Lacan, 1998b, p. 389), para demarcar que há uma diferença entre o mecanismo percebido no caso clínico e o do recalque, tal como se percebe, por exemplo, nos casos de histeria.

No caso do Homem dos Lobos, Freud observa que algo de primordial havia sido expulso da realidade e cunhado o material do que viria a ser reconhecido na história dele como um trauma, datado em um tempo que corresponde à idade de três anos e meio. Segundo Lacan (2009), ele próprio percebe que se trata de uma experiência cunhada por retroação. Portanto, ali onde o que estava expulso quer se impor, o paciente só pode responder com uma lembrança alucinatória já na idade de cinco anos. Essa experiência nos remete ao que Freud (1911/2006c), p.78) diz do mecanismo delirante no qual "o que é internamente abolido retorna desde fora", observado a respeito do caso da paranoia de Schreber.

O que Lacan (2010) ressalta é que o recalque (Verdrängung) não é o único destino possível para um conteúdo que se impõe ao sujeito, nem a Verneinung, mas que é possível remontar a uma operação de rejeição ao nível da primeira organização do sujeito no simbólico. O próprio Lacan (1998b) nos chama a atenção no texto Homem dos Lobos para o fato de que algo da experiência primeva pode tomar o destino de uma supressão, que é um termo que ele adota antes de adotar definitivamente o termo "forclusão" para se referir ao mecanismo que Freud (1918/2006d) denominara de Verwerfung.

Lacan (1998b) situa essa primeira operação de rejeição com o recurso aos registros Real, Simbólico e Imaginário, e afirma que o infans elabora uma primeira simbolização pela via de uma afirmação (Bejahung), ". . . que não é outra coisa senão a condição primordial para que, do real, alguma coisa venha se oferecer à revelação do ser, ou, para empregar a linguagem de Heidegger, seja deixado-ser" (Lacan, 1998b, p. 389). Seria a partir dela que o ser falante imprimiria um sinal de mais ou menos, presença ou ausência, existe ou não existe, no real que se impõe, estabelecendo um campo de realidade psíquica possível para si.

A partir da Bejahung é possível uma ordenação dos significantes que são estruturados dessa maneira que é transmitida ao infans em tempo muito primevo e que lhe possibilita essa articulação simbólica arcaica que serve de base para que mais à frente um juízo sobre a realidade possa ser realizado (existe ou não existe). Essa simbolização ocorre à medida que a estrutura da linguagem é colocada para o infans, pois, ao redor dele, fala-se.

É nessa via da articulação de um sujeito no campo da linguagem que Lacan (1998b) ressalta esse tema da Bejahung, tomando como ponto de partida o texto Homem dos Lobos. Ele diz, mais precisamente, que há ali a elaboração de uma ontologia sobre o funcionamento do inconsciente na articulação primordial do simbólico com o real, e isto pela via da linguagem. O simbólico permite ao infans a possibilidade de fazer um furo no real, marcá-lo com o sinal de uma ausência, e se organizar na realidade estruturada pela linguagem que lhe constitui como humano.

Isto é demonstrado por Lacan (2010) com o fato de que o infans, ainda que ainda não fale, já escuta. E, por já escutar, os sons que poderão vir a se constituir como significantes através das retranscrições da memória num tempo posterior, desde época muito tenra, estabelecem-se como traços mnêmicos, o que Freud (1950/2006b) descreveu na Carta 52 a Fliess. Lacan (2010) endossa esse fato de que o aparelho acústico do humano capta os sons (ou fonemas) antes que possam vir a ser ou não integrados simbolicamente como significantes/significados por um sujeito. São percepções que se articulam como imagens por relações de simultaneidade e constituem os traços de memória que poderão ser investidos e integrar, ou não, uma história de sujeito, e que, portanto, já contam antes que possam por ele ser contados.

A organização simbólica transmitida pelo Outro através dos significantes permite ao humano estabelecer uma diferença entre um dentro e um fora primitivo (Lacan, 1998b), pois é a partir do material mnêmico simbolizado que sua realidade se constitui. Essa oposição é o que abre caminho para que ele se constitua como um eu.

 

Estádio do Espelho - Relação Com o Outro e o Outro

O eu na obra de Freud é concebido como uma gradação diferenciada do Isso que se constitui pela repetição na experiência com o mundo externo. Assim, o eu não está dado desde o início, mas se constitui por algumas operações que lhe permitirão funcionar como se estivesse desde sempre presente e assumido como tal. Freud vai além demonstrando que uma parte desse eu permanece inconsciente nesse desenvolvimento.

É uma suposição necessária a de que uma unidade comparável ao Eu não esteja presente no indivíduo desde o início; o Eu precisa antes ser desenvolvido. Todavia, as pulsões autoeróticas estão presentes desde o início, e é necessário supor que algo tem de ser acrescentado ao autoerotismo, uma nova ação psíquica, para que se constitua o narcisismo (Freud, 1914/2004, p. 99).

Essa passagem do texto condensado "À guisa de introdução ao Narcisismo" (1914/2004) já nos permite dizer que essa unidade é formada num dado momento pelo humano. Ela nos aponta que há uma ação que ocorreria para uma passagem do autoerotismo ao narcisismo.

Essa passagem ocorre porque se torna cada vez mais insustentável o predomínio do Princípio de Prazer no funcionamento da criança, fazendo com que a dimensão alucinatória da satisfação se torne menos eficaz e exija com mais intensidade a busca da satisfação no mundo externo.

Desse modo, a criança sairia de uma condição mítica, em que tudo no mundo é "eu", para uma posição em que considera que "eu" é aquilo que é prazeroso e tudo que é desprazer é projetado fora, até chegar a perceber que nem sempre aquilo que dá prazer está no "eu", e nem tudo que é desprazeroso vem de fora. Nessa organização, um limite com a realidade vai se estabelecendo à medida que o Princípio de Realidade cobra seu lugar. Freud descreve de modo mais claro esse desenvolvimento:

Uma reflexão mais apurada nos diz que o sentimento do eu adulto não pode ter sido o mesmo desde o início. Deve ter passado por um processo de desenvolvimento, que, se não pode ser demonstrado, pode ser construído com um razoável grau de probabilidade. Uma criança recém-nascida ainda não distingue o seu eu do mundo externo como fonte das sensações que fluem sobre ela. Aprende gradativamente a fazê-lo, reagindo a diversos estímulos. . . . Surge, então, uma tendência, a isolar do eu tudo que pode tornar-se fonte de tal desprazer, a lançá-lo para fora e criar um puro eu em busca de prazer, que sofre o confronto de um 'exterior' estranho e ameaçador. As fronteiras desse primitivo eu em busca de prazer não podem fugir a uma retificação através da experiência (Freud, 1914/2004, p. 75-76).

Esse jogo em que um eu se vê às voltas com a realidade e as demandas dos Princípios de prazer e Realidade em sua constituição ainda não é o suficiente para demonstrar a estrutura do narcisismo para Lacan (2009). Ele desenvolve então o que denominou de Estádio do Espelho.

O Estádio do Espelho diz que toda a constituição do eu passa por uma dialética em que o infans se projeta sobre uma forma simbólica primordial em que constitui sua imagem já alienada, posto que há uma prematuração do humano na entrada no mundo da linguagem (Lacan, 1998a). Segundo Lacan (2009, p. 109): "O sujeito antecipa-se ao acabamento do domínio psicológico, e essa antecipação dará seu estilo a todo exercício posterior do domínio motor efetivo".

Tal prematuração é por ele demonstrada com as noções da fisiologia para explicar que o filhote do humano nasce em uma condição orgânica em que ainda é débil e incapaz de dominar precisamente seus movimentos (Lacan, 1998a); carente, podemos dizer, de uma imagem corpórea. Nessa fase, como afirma Lacan (2009), o infans não passa de um corpo despedaçado, sede de investimentos desordenados que lhe fornecerão material simbólico para que ele elabore sua imago. Esse material simbólico é formado, justamente, pelos significantes que circulam ao redor desse sujeito e que irão se articular com as imagens que lhe servirão de suporte para tomar uma pretensa unidade de eu.

A Bejahung se relaciona com a formação desse continente que o infans toma como seu corpo próprio através da formação de um corpo de significantes. Ele pode antecipar-se nessa forma corpórea porque, de certa forma, há um material significante que lhe permite uma identificação primordial a uma Gestalt, que o situa com relação a uma apreensão de uma unidade, de um corpo próprio. Já lhe é possível uma simbolização em termos de dentro e fora, eu e não-eu, que é articulada pela matriz simbólica dos significantes que lhe atravessam e lhe outorgam tal ou tal imagem como sendo a sua, articulação possível a partir das operações primevas a que nos referimos de expulsão e simbolização da realidade diante da qual ele poderá se situar.

Essa introjeção é possível porque esse outro, semelhante, acarreta um Outro absoluto que se coloca como lugar de alteridade radical e, funcionando na linguagem, se coloca como aquele que autentifica a tomada da imagem própria a partir do outro como sendo a sua. Podemos concluir, a partir de Lacan (2010), que a relação ao Outro permite ao sujeito demarcar um limite entre o eu e o outro.

Lacan (2009), ressaltando o fato de que essa imagem é investida libidinalmente através de uma captação erótica do outro, afirma que, diferentemente dos outros animais, por haver essa alienação entre a imagem captada e o suposto objeto real, há sempre descompasso entre aquilo que se busca e o suposto objeto de desejo. Ao passo que os significantes lhe asseguram sua tomada de uma unidade própria num momento antecipado de um domínio motor, por ser constituído como objeto do outro, esse eu sempre terá essa marca de origem estranha, externa, o que nos leva a algumas implicações de ordem propriamente paranoica.

 

Paranoia

No primeiro desenvolvimento que Freud (1950/2006a) faz sobre o tema da paranoia, chega a considerá-la como uma neurose do mesmo tipo da neurose obsessiva ou da histeria, mas também já demonstra que as coisas podem ser bem diferentes entre tais formas clínicas. É na já mencionada obra clássica de Freud, "Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia (Dementia paranoides)" (1911/2006c), ou Caso Schreber, que ele fornece um quadro mais amplo e determinante sobre os mecanismos que regem a paranoia.

Na referida obra, ele delineia três fatores que concorrem para o desencadeamento do quadro paranóico de Schreber, a saber: a fixação do eu em determinado ponto do desenvolvimento, ou seja, no narcisismo; regressão à homossexualidade latente; e o que seria uma forma particular de projeção em que, como diz Freud (1911/2006c, p. 78), "aquilo que foi internamente abolido retorna desde fora".

Ora, como em escritos anteriores, Freud (1911/2006c) reforça que há um abuso de um mecanismo comum da vida normal. A sutileza aqui é que ele próprio já começa a seção III de sua obra afirmando que há uma distinção na maneira pela qual os sintomas são formados e pela qual o recalque operaria na paranoia, o que demonstra que ele se dá conta de que ocorre outra coisa. Então se trata de entender esse mecanismo que altera toda a configuração da relação com a realidade e que é a grande descoberta de Freud, segundo Lacan (2010).

O que se impõe tão ruidosamente à nossa atenção é o processo de restabelecimento, que desfaz o trabalho do recalque e traz de volta novamente a libido para as pessoas que ela havia abandonado. Na paranoia, este processo é efetuado pelo método da projeção. Foi incorreto dizer que a percepção suprimida internamente é projetada para o exterior; a verdade é, pelo contrário, como agora percebemos, que aquilo que foi internamente abolido retorna desde fora (Freud, 1911/2006c, p. 78).

Logo, o paranoico psicótico, na verdade, realiza um mecanismo mais radical do que o que ocorre normalmente numa neurose - em que algo é suprimido (ou seja, se é suprimido, é sabido em algum nível, ainda que pela negação) - na qual algo é verdadeiramente abolido e faz retorno sem que dele o paciente saiba algo, pois não é possível o menor reconhecimento disso como pertencente a si.

Lacan (2010) mostra que esse mecanismo é o mesmo que Freud observa a respeito do Homem dos Lobos, para o qual a denominação de recalque não é condizente, e utiliza o termo Verwerfung com referência à castração para dizer que o sujeito dela "nada queria saber no sentido do recalque". Ele a rejeitara, e isso retorna no real produzindo alucinação dessa experiência.

O percurso de Freud no campo da paranóia mostra como, em suas observações a respeito dessa categoria, há um limite para que ele possa precisar seus mecanismos, de tal modo que se distingam claramente de outra afecção mental, ou até mesmo de uma pessoa sadia. Assim sendo, Freud mostrou que se trata de algo que pode muito bem ser reconhecido na vida normal, em maior ou menor expressão.

Não queremos dizer com isso que a paranoia seja apenas um exagero de traços característicos de um mecanismo psíquico normal, pois concordamos com Lacan (2010, p 24) que "não se torna louco quem quer". Ele parte desse tipo de funcionamento para nos esclarecer especificidades estruturais que estão colocadas a respeito das psicoses, pois é nesse campo que a paranoia é normalmente situada.

Ao tratar do tema das psicoses, Lacan trabalha com a paranoia em seu "Seminário 3", em que mostra como os fenômenos psicóticos são fenômenos de linguagem.

Lacan (2010) se baseia na análise que Freud faz do livro de Schreber e na própria obra do jurista para aceder a uma noção mais efetiva do que é a paranoia em sua forma mais extremada, ou seja, na psicose, a partir da chamada língua fundamental. Assim, pela via da linguagem, demonstrou como é possível identificar o que marca a paranoia e a especifica como psicose. Com isto, evita recair em toda sorte de imprecisões como as que os psiquiatras da época tiveram que enfrentar em busca de uma definição do tema a partir das tentativas de compreender os fenômenos paranoicos de forma psicogenética ou organogenética. Adesignação "paranoia", quando surge na psiquiatria, de acordo com Lacan (2010), "(...) abrangia mais ou menos inteiramente as loucuras - setenta por cento dos doentes dos manicômios portavam a etiqueta paranoia. Tudo o que chamamos psicose ou loucura era paranoia" (p. 13).

A constituição do eu em relação ao Outro comporta uma dimensão paranoica na medida em que o sujeito elabora uma delimitação da realidade que determina para ele a diferença mundo interno e mundo externo, eu e não-eu, dadas a partir do momento em que há Bejahung. Melman (2015a, p. 26) diz: "É muito interessante notar o quanto este modo de apreensão da relação do dentro e do fora é um modo de apreensão fundamentalmente paranoico".

A Bejahungpossibilita uma distinção entre um dentro e um fora a partir do juízo atributivo: aquilo que é bom sou eu, e aquilo que é mau, não-eu; e posteriormente, aquilo pertence ou não pertence à existência, na forma dos juízos que mencionamos.

Essa concepção é muito curiosa, porque, se vocês refletirem sobre ela um só instante, vocês verão que, quando Freud isola a fase oral - que visa, portanto, a introjetar no eu tudo o que é bom e a deixar ou a rejeitar tudo o que é mau - essa concepção não visa nada mais do que constituir um fora propriamente falando paranoico (Melman, 2015a, p. 26).

A forma como o sujeito se projeta prematuramente é delimitada na estrutura da linguagem, que fornece a divisão entre o dentro e o fora. Trata-se de operações da linguagem, que é o que estrutura a realidade a partir do material das imagens em eu e não-eu, realidade interna e externa. Logo, na articulação dos significantes às imagens, o infans pode construir uma relação mais ou menos demarcada com relação à realidade. A constituição dessa fronteira está definitivamente atrelada ao funcionamento paranoico de base de cada um.

Os fenômenos constitutivos do eu reforçam para nós a impossibilidade de se determinar uma psicose somente pelo seu caráter intrinsecamente paranoico. O conhecimento humano, egoico, é marcado pela intrusão primordial do outro na relação com o mundo, e tal dimensão constitutiva do eu humano já é paranoica em alguma medida, ou seja, construímos nossa realidade a partir de um conhecimento que instaura uma relação paranoica com a realidade, o que Lacan (2010) chama de conhecimento paranoico.

A respeito do conhecimento paranoico, Lacan o chama mais precisamente de desconhecimento paranoico. Isto quer dizer que constituirei o mundo dos meus objetos a exemplo dessa primeira imagem, que foi a minha, apreendida no espelho como eu (moi) e como objeto do desejo da mãe. Na medida em que essa imagem é a imagem de um outro, minha própria imagem no espelho é a imagem de um outro, não somente porque ela é invertida, mas também porque ela é sustentada por um desejo, o desejo da mãe, que é Outro. Eu descubro, enfim, no espelho aquilo que minha mãe deseja e que é esse que eu (moi) sou, sendo a partir desse eu (moi) que eu organizarei meu conhecimento do mundo, quer dizer, a partir do que já é essa intrusão primeira. Quando eu encontro esse eu (moi) sob a forma do coleguinha ou do irmão, minha primeira reação é de querer fazê-lo cair (Melman, 2008, p. 47-48).

Pelo fato de o eu se constituir numa posição sempre cambiável com o outro, há uma tendência rivalitária de base, de maneira que sempre preciso fazer cair esse outro, que sou eu mesmo, dessa posição de objeto de desejo. Essa primeira intrusão deixa atrás de si uma tendência agressiva sempre capaz de se atualizar nas mais diversas formas (desde uma simples má impressão sobre alguém até a agressão propriamente dita, por exemplo). E isto pode se manifestar de modo mais vivo, visto que esse funcionamento arcaico não se apaga do inconsciente. Portanto, há nessa organização um conjunto de fenômenos que deixarão sempre a marca de um funcionamento que, talvez, pudéssemos dizer ser típico de uma psicose paranoica, mas que a escuta posterior mostra não se tratar de uma psicose propriamente dita. Afinal, o próprio mecanismo constitutivo do eu humano é um mecanismo paranoico por excelência.

Todo ponto de partida de Lacan se dá em torno dessa concepção, que consiste em mostrar que o eu do ser falante se constitui à imagem de um outro e que, a partir de então, cada um desses seres falantes vai passear com esse pequeno outro em si, integrado sob a forma do eu. A patologia vai nos mostrar que esse pequeno outro, identificado como eu, é capaz, em certas circunstâncias, de reencontrar sua autonomia inicial, inaugural; e que todos se acham assim expostos a experimentar sua identidade mais íntima como organizada por um duplo, um duplo estrangeiro, um duplo heterogêneo, capaz de se revelar em sua dimensão de alteridade, em certas circunstâncias afinal muito banais (Melman, 2015a, p. 23).

Como afirma Melman (2015a), há situações que são capazes de suscitar essa autonomia inaugural do eu na forma de um duplo, que é estrangeiro justamente por se constituir através do outro. A tensão dessa situação faz com que o eu que, na verdade, está colocado nisso que se crê vir de fora, não seja reconhecido naquilo que se atribui ao outro.

Melman (2015b) aponta no texto chamado "As Paranoias" que a paranoia não se apresenta sempre da mesma forma, sendo possível se falar em "paranoias", no plural. Há traços de paranoia para todo falante, mas elas variam quanto à forma de manifestação ou à resposta estrutural que suscitam no sujeito. Há, além dos mecanismos normais de constituição do eu, que são paranoicos, "a paranoia" (p. 17) como forma patológica que se apresenta sob a forma de paranoias delirantes, que funcionam de modo bastante diverso e estão situadas no campo das psicoses. Nelas, cada tipo de delírio constitui uma forma de paranoia diferente.

Existem situações nas quais é perfeitamente possível uma reação do tipo paranoica mesmo na ausência de psicose.

Quadros autenticamente paranoicos se constituem na ausência, retrospectivamente verificável, de psicose. É mesmo o registro quase obrigatório de todo sujeito, privado por alguma causa contingente dos recursos de sua fantasia, quando se revela a autonomia sempre possível do eu na figura do perseguidor (Czermak, 2015, p. 74).

O eu que, em sua constituição, passa pela dialética do ciúme, pode sempre vir a se manifestar dessa forma em alguma situação momentânea que a propicie. São situações em que podemos ter uma manifestação tipicamente paranoica.

Melman (2008) traz um exemplo sobre o tema que nos coloca ante a concepção rivalitária da nossa relação com o eu que pode se manifestar como outro, mostrando que há uma aproximação entre a paranoia e nosso funcionamento cotidiano, no texto "Como alguém se torna paranoico". Trata-se da fronteira que construímos paranoicamente entre um dentro e um fora:

Digamos que vocês morem em um quarto, e, do outro lado, em outro quarto, há vizinhos. Não há nada de extraordinário nisso, mas eles fazem barulho. Eles falam. Isso não tem nada de extraordinário, eles têm de falar mesmo. Mas do quarto, vocês podem ouvir esse barulho e, aliás, não compreendem muito bem o que eles dizem e não podem fazer parar esse barulho. Vocês batem na porta dos vizinhos e dizem: "Sejam gentis, façam um pouco menos de barulho, porque isso me incomoda e eu não posso trabalhar no meu quarto". Mas eles, os vizinhos, eles são muito gentis, mas não conseguem saber de que maneira a fala deles pode incomodá-los no seu quarto, então eles continuam. E quando vocês lerem o jornal encontrarão na coluna que se chama "Fatos diversos", uma nota sobre um homem que pegou seu fuzil, foi na casa do vizinho e o matou. Será que ele era paranoico? Não forçosamente, mas é a situação que o tornou paranoico e eu lhes dou esse exemplo porque veremos mais tarde que há condições estruturais muito interessantes e que dizem respeito, em particular, a uma noção que nos parece simples, mas que na realidade é complexa, que diz respeito à nossa relação com a fronteira, ao que seja uma fronteira. Porque espontaneamente somos levados a pensar, mesmo sendo normais, que do outro lado da fronteira pode haver uma ameaça (Melman, 2008, p. 15-16).

A situação acima ilustra que a nossa relação com a fronteira comporta uma dimensão paranoica; é um limite entre um dentro e um fora constituído paranoicamente, o que leva o sujeito a estar convencido pela ideia de que o outro sabe exatamente do que se passa do lado dele, tomando sua atitude como proposital.

O "borrão" na fronteira, no limite, acaba levando o sujeito a uma reivindicação, na medida em que se passa a crer que o outro é obrigado a forçosamente saber do que se passa com ele. Temos então, notadamente, um ponto de intersecção da clínica patológica, visto que há algo que se assemelha a um delírio de reivindicação naquilo que ocorre no cotidiano.

Vou lhes dar outro exemplo: vocês sobem em um vagão de trem, e todas as pessoas que estão ali falam uma língua incompreensível, são estrangeiros. Vocês estão sentados ali nos próprios lugares, e essas pessoas muito simpáticas falam uma língua que vocês não compreendem. Quer dizer que logo vocês se sentem excluídos dessa pequena comunidade. E, além disso, essas pessoas são alegres e se põem a rir entre si, falando. E vocês têm uma impressão esquisita. De onde vem essa impressão? Vocês tem a impressão de que elas riem de vocês, e até mesmo a impressão de que elas falam entre si, mas olhando para vocês. Temos aí um tipo de situação banal, mas que nos introduz igualmente na questão da paranoia porque mostra como as reações paranoicas - quer dizer, o sentimento de estar excluído, de ser observado, de que há pessoas que riem de vocês - podem ser facilmente provocadas pelas circunstâncias (Melman, 2008, p. 16-17).

O exemplo do trem remete à possibilidade de ter essa sensação de que, momentaneamente, tudo possa estar referido a nós, constituindo, dessa forma, uma espécie de megalomania transitória. Isto significa que a posição de exclusão da pequena comunidade do vagão coloca o sujeito numa relação muito íntima com sua identidade à medida que a alteridade radical que a situação suscita o leva a um estranhamento com relação ao seu próprio eu, que passa a se confundir com esses outros à medida que tudo passa a poder ser referido a ele. Essa identidade que assumimos e que vem do outro pode vacilar numa situação dessas em que chega a ser vivenciada de modo tão intenso. Disso decorre que possamos ter esses efeitos de estranhamento e autorreferência em relação ao que, no outro, projetamos de nós mesmos quanto à instabilidade transitória em que tal situação nos coloca ante a nossa identidade.

As situações trazidas apresentam fenômenos transitórios de paranoia, que podem acometer qualquer pessoa, na ausência de uma psicose. Melman (2008) as chama de "paranoia da vida cotidiana". Mas há outras denominações, como no texto "As Paranoias" (2015b), no qual ele utiliza a expressão "paranoias experimentais". São expressões que denotam a possibilidade de ocorrência de uma reação paranoica em determinadas circunstâncias.

Nesses exemplos de paranoias experimentais, ou da vida cotidiana, podemos verificar que o funcionamento paranoico, por ser um funcionamento sempre virtualmente possível de dar mostras e acarreta dificuldades específicas na vida social. Afinal, as situações mais banais podem suscitá-lo. Dessa maneira, o que acontece para que, no nível do social, não vivamos sempre ameaçados pelo dilema do "ou ele ou eu"? Ao que nos é possível recorrer para barrar essa tendência constitutiva?

O significante Nome-do-pai é o que, na estrutura, pode estabelecer um limite às tendências rivalitárias e paranoicas do eu decorrente de sua relação especular com o outro. Esse significante se instaura na medida em que o pai intervém no Édipo como lei e permite ao sujeito a operação da metáfora paterna.

A metáfora paterna, em Lacan (1999), diz da operação de substituição do X do significante do desejo materno pelo significante Nome-do-pai. A criança, na questão do desejo materno, encontra o falo como solução, e até pode tentar se colocar na posição desse objeto de desejo, mas isso não funciona porque a mãe se dirige alhures. Num segundo momento, o pai aparece como proibidor e faz a criança cair dessa posição. No tempo seguinte, surge como aquele que tem o falo e, por isso, detém aquela mulher, a mãe, como sua. A criança pode então fazer a passagem da questão sobre o desejo da mãe para a saída pela via do Nome-do-pai como significante da lei da interdição, do limite, da barra.

No momento de entrada no complexo de Édipo, a criança só acessa o resultado da metáfora paterna, que é a abertura da possibilidade de significação fálica desse desejo no Outro. A significação fálica se refere ao falo como significante, como aquele que articula todo significado. Essa significação, para a criança, só poderá ser articulada satisfatoriamente dentro de certos limites à medida que intervém o significante Nome-do-pai.

A questão da Verwerfung apresenta sua incidência no nível do significante, o que faz com que, na travessia edípica, seja abolida toda possibilidade de simbolização da questão sobre o falo, ou seja, é abolida a possibilidade assunção do Nome-do-pai. A falta do significante do Nome-do-Pai é o que define um quadro paranoico como psicótico.

É esse o Nome-do-Pai, e, como veem, ele é, no interior do Outro, um significante essencial, em torno do qual procurei centrá-los no que acontece na psicose - a saber, que o sujeito tem de suprir a falta desse significante que é o Nome-do-Pai. Tudo que chamei de reação em cadeia, ou de debandada, que se produz na psicose, ordena-se em torno disso (Lacan, 1999, p. 153).

Esse significante se coloca para o sujeito, e, à medida que há sua rejeição, a significação que decorre da entrada em jogo da lei, do pai, não pode ser integrada em sua história, porque rejeitando a saída da posição de ser o falo no primeiro tempo, forcluiu a própria castração e, com isso, a possibilidade de abrir mão do falo imaginário para receber os títulos de posse da posição viril do pai.

A diferença do fenômeno paranogênico nas estruturas se situa nesse ponto do expediente a que cada sujeito vai poder recorrer para lidar com a tendência paranoica do eu. É o próprio modo como a realidade pode funcionar para cada um que está em jogo dependendo de seu funcionamento, da resposta possível ao que se impõe daí. Se o significante Nome-do-Pai é contado no texto simbólico de sua história, há para o sujeito a possibilidade de distinção dialética do significante. Em outras palavras, é o que lhe permite não se tornar refém de uma significação que o fixe em um significado que vem do Outro sem a chance de deslizamento.

O que ocorre nas situações de manifestação paranoica é que o efeito metaforizante do Nome-do-Pai vacila ante a tendência rivalitária evocada por uma situação em que o falante se sinta ameaçado com seu eu. O Nome-do-Pai não é abolido, mas o falante, momentaneamente, não é capaz de dialetizar sua posição com relação ao outro e entra em disputa (ou eu ou o outro) de um modo paranoico. Ele é ultrapassado por uma tendência agressiva, constitutiva de seu próprio eu. No entanto, em não se tratando de uma psicose, é- possível para ele, pelo recurso ao simbólico, uma interrogação ao que o capturou imaginariamente na situação que desencadeou sua paranoia experimental, ou, pelo menos, saídas tipicamente neuróticas, como uma denegação ao ser interrogado sobre a situação.

Lacan (1998c) afirma em "De uma questão preliminar" que: "Em 1924, Freud escreveu um artigo incisivo, 'A perda da realidade na neurose e na psicose', no qual chamou atenção para o fato de que o problema não é o da perda da realidade, mas o expediente daquilo que vem substituí-la" (p. 549). Disso podemos concluir que o que se coloca como possibilidade de resposta à tendência do eu dar mostras de sua constituição paranoica, borrando a fronteira entre eu e outro, é o que nos possibilita determinar a estrutura, pois, caso seja possível o recurso a uma simbolização pela via do Nome-do-pai, trata-se de uma neurose, mas se esse significante estiver forcluído do funcionamento do sujeito e ele for tomado por essa tendência sem esse recurso, constataremos uma psicose.

Em consequência do que viemos abordando, e seguindo aquilo que Freud menciona em toda extensão de sua obra a respeito do fato de que nada que uma vez tenha passado pelo inconsciente se apaga, voltamos a afirmar que os mecanismos paranoicos que constituem nosso eu podem, por vezes, vir a se tornar manifestos em determinadas circunstâncias. Tais circunstâncias não refletem uma psicose, mas apenas evocam a manifestação de uma resposta psíquica latente constitutiva do eu, ou seja, uma resposta paranoica.

Isto nos remete ao fato de que o social também é, em alguma medida, organizado pela paranoia. Trata-se, portanto, de um funcionamento que está bem mais presente em nossas vidas do que gostaríamos de supor. O funcionamento paranoico não é exclusivamente consequência de uma psicose. Esta é determinada, de fato, pela forclusão do Nome-do-Pai, ou seja, pela Verwerfung desse significante, que representa a referência quanto à lei do significante, que organiza a cadeia no modo neurótico tal como a conhecemos.

No presente trabalho, partimos da ideia de uma paranoia que ocorre mesmo quando não há o reconhecimento de uma estrutura psicótica. Tal ideia, presente em autores como Melman e Czermak, levou-nos à leitura de textos sobre as psicoses em Lacan (1998c, 2010), como o "De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose" e "Seminário 3", com o intuito de buscar como seria possível.

O tema da Verwerfung, principalmente a partir da leitura do "Seminário 3" e do texto da "Resposta ao comentário de Jean Hyppolite sobre a "Verneinung" de Freud", aponta que algo é posto fora de circuito por ela sob a forma de uma percepção primária mítica e, desde então, pode retornar do real, causando um sentimento de estranheza. É o que teorizou Lacan no "Seminário 1" ao se referir ao caso do Homem dos Lobos.

Em termos de paranoia, propriamente, apresentamos a constituição do eu como um objeto do outro ao qual nos identificamos narcisicamente, bem como as consequências desse mecanismo. Foi o percurso necessário para sinalizar como Lacan desenvolveu a constituição do eu através de uma estruturação paranoica.

O tema da constituição paranoica do eu, da relação com o outro, seu semelhante, reflete o modo pelo qual a paranoia ocorre no cotidiano. Identificar a paranoia como algo que está no cotidiano é um tema complicado, pois se trata de um conceito muito ligado às loucuras. Por diversas vezes, tivemos dificuldade em apontar que alguns fenômenos típicos de uma paranoia são constitutivos sem parecer, com isso, que estávamos falando que se trata exatamente do mesmo modo de lidar com esse aparte da realidade para um neurótico e um psicótico, pois, em alguma medida, a realidade é amputada para ambos, como disse Freud no texto sobre a perda da realidade referido por Lacan (1998c). Os limites entre as estruturas, por vezes, apareceram borrados durante a escrita.

Outra dificuldade encontrada diz respeito ao fato de que Czermak e Melman, os principais teóricos a que recorremos para tratar da paranoia para além da psicose, têm um nível de formulações que já se desenvolveram tendo em perspectiva todo o percurso de Lacan. Então, nos ativemos aos conceitos e noções-chave para a compreensão dos mecanismos paranoicos e para lançar luz sobre as ideias relacionadas à paranoia que esses autores trazem. Assim, a delimitação dos conceitos possíveis de serem abordados no presente trabalho, por vezes, serviu de obstáculo para trazer de modo mais rico algumas articulações desses autores sobre o social.

Em nosso trabalho de leitura, buscamos encontrar nos seminários e escritos de Lacan os momentos em que ele correlaciona os fenômenos imaginários, que se dão para todo falante, e o que acontece nas psicoses, pois podemos aprender com as psicoses a respeito do funcionamento imaginário. Como Lacan (2010) afirma no "Seminário 3": "o estudo do delírio de Schreber tem o interesse eminente de nos permitir discernir de maneira desenvolvida a dialética imaginária" (p. 107), ou seja, os efeitos decorrentes da organização chamada Estádio do Espelho, que são para todo falante, mas com diferenças no modo como cada estrutura permite a cada um lidar com eles.

Czermak (2015) constata que vivemos uma atualidade paranoica, o que nos traz certo temor, pois parece que temos um destino funesto pela frente, o que nos leva a dar ainda mais ênfase na importância de produzirmos cada vez mais estudos sobre esse tema.

Esperamos, no presente trabalho, ter contribuído para que aqueles que se colocam na posição de escutar possam se dar conta de que os conceitos não podem nunca corresponder a um significado fixo e imutável, e cabe, principalmente a nós, que trabalhamos com a Psicanálise, não cedermos à tentação de tomar o andaime pelo prédio, como lembra Lacan (2009).

Diversas situações no cotidiano podem nos levar a uma reação paranoica e nos colocar em dificuldade para reagir de outro modo que não pela tensão agressiva do "ou eu ou o outro". Situações banais e que levam a manifestações agressivas de diferentes graus: desde as mais disfarçadas até as verdadeiras vias de fato.

A partir do estudo desse tema, podemos, em nossa prática clínica, balizar o manejo do tratamento a partir das novas coordenadas que se apresentam para o nosso social atualmente. Quem sabe poderemos, assim, permitir a mitigação dessa tendência paranoica para aqueles que se encaminham a esse trabalho.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Vinícius de Aquino Braga
Email: viniciusab007@hotmail.com

Isalena Santos Carvalho
Email: isalenasc@yahoo.com.br

Recebido em: 11/02/2017
Revisado em: 11/03/2018
Aceito em: 29/03/2018

 

 

1 "Um recalque é algo diferente de uma rejeição". Essa é a tradução que inferimos a partir da discussão de Lacan (1998b), em seus Escritos, sobre a incompatibilidade da tradução francesa com o que o texto de Freud de fato exprime. Na tradução francesa, consta ". . . um juízo que escolhe e rejeita" (Lacan, 1998b, p. 389). Não tem nada a ver com "escolha" e "juízo" ainda, o qual se constitui, para Lacan, somente num tempo depois dessa operação de Verwerfung, não se confundindo com ela mesma (a Verwerfung), como tal tradução pode parecer supor.

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