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Revista Subjetividades

versão impressa ISSN 2359-0769versão On-line ISSN 2359-0777

Rev. Subj. vol.18 no.1 Fortaleza jan./abr. 2018

http://dx.doi.org/10.5020/23590777.rs.v18i1.7251 

ESTUDO TEÓRICO

 

A proposta dos discursos como leitura estrutural para os novos sintomas

 

The proposal of the speeches as structural reading for the new symptoms

 

La propuesta de los discursos como lectura estructural para los nuevos síntomas

 

La proposition des discours comme lecture structurale pour des nouveaux symptômes

 

 

Magali Milene Silva (Lattes)

Doutora em Psicanálise pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Atualmente é professora de módulo da Universidade José do Rosário Vellano e professora de graduação do Centro Universitário de Lavras

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo objetiva apresentar a proposta lacaniana dos discursos como ferramenta para leitura das apresentações sintomáticas contemporâneas, buscando discutir elementos dos novos sintomas a partir do discurso universitário. Nesse percurso, apresentamos propostas de leitura dos novos sintomas por outros operadores teóricos, indicando os discursos como mais adequados. Retomando a noção freudiana do sintoma como efeito de uma defesa inconsciente e a leitura lacaniana do sujeito como o nome desse efeito, propomos a noção de novas manifestações clínicas veiculadas por preferências discursivas em detrimento da noção de novos sintomas. Situamos a proposta lacaniana dos discursos e discutimos as especificidades e consequências do discurso universitário para a emergência do sintoma no laço social. Apontamos, por fim, a importância da sustentação do discurso do analista, resgatando sua vertente subversiva e convocando à movimentação discursiva.

Palavras-chave: discursos; psicanálise; Lacan; novos sintomas.


ABSTRACT

The article aims to present the Lacanian speeches proposal as a tool for reading contemporary symptomatic presentations, seeking to discuss elements from the new symptoms in university speeches. In this course, we present proposals for reading the new symptoms by other theoretical operators, indicating the speeches as more adequate. Returning to the Freudian notion of the symptom as an unconscious defense and the Lacanian subject reading as the name of this effect, we propose the notion of new clinical manifestations conveyed by discursive preferences to the detriment of the notion of new symptoms. We situate the Lacanian proposal of the speeches and discuss the specificities and consequences of the university speeches for the emergence of the symptom in the social bond. Finally, we point out the importance of sustaining the discourse of the analyst, rescuing his subversive side and calling for the discursive movement.

Keywords: speeches; psychoanalysis; Lacan; new symptoms.


RESUMEN

Este artículo objetiva presentar la propuesta lacaniana de los discursos como herramienta para lectura de las presentaciones sintomáticas contemporáneas, buscando discutir elementos de los nuevos síntomas a partir del discurso universitario. En este trayecto, presentamos propuestas de lectura de los nuevos síntomas por otros operadores teóricos, indicando los discursos más adecuados. Retomando la noción freudiana del síntoma como efecto de una defensa inconsciente y la lectura lacaniana del sujeto como el nombre de este efecto, proponemos la noción de nuevas manifestaciones clínicas relacionadas por preferencias discursivas en detrimento de la noción de nuevos síntomas. Posicionamos la propuesta lacaniana de los discursos y discutimos las especificidades y consecuencias del discurso universitario para la emergencia del síntoma en el lazo social. Indicamos, por fin, la importancia del sostenimiento del discurso del analista, rescatando su vertiente subversiva y llamando al movimiento discursivo.

Palabras clave: discursos; psicoanálisis; Lacan; nuevos síntomas.


RÉSUMÉ

L'article vise à présenter la proposition lacanienne des discours comme un outil de lecture des présentations symptomatiques contemporaines, avec l'objectif de discuter des éléments des nouveaux symptômes à partir du discours universitaire. Dans cet article, on présente des propositions pour la lecture des nouveaux symptômes par d'autres opérateurs théoriques, indiquant quels discours sont considérés les plus adéquats. Reprenant la notion freudienne du symptôme comme effet d'une défense inconsciente et aussi la lecture lacanienne du sujet comme le nom de cet effet, on propose la notion de nouvelles manifestations cliniques véhiculés par des préférences discursifs au détriment de la notion de nouveaux symptômes. On situe la proposition lacanienne des discours et on discute, aussi, les caractéristiques spécifiques et les conséquences du discours universitaire pour l'apparition du symptôme dans le lien social. Finalement, on met en relief de l'importance du soutien du discours de l'analyste, qui récupère son aspect subversif et appelle le mouvement discursif.

Mots-clés: discours; psychanalyse; Lacan; nouveaux symptômes.


 

 

O sujeito de que fala a psicanálise é historicamente determinado? A resposta a essa questão é, ao mesmo tempo, negativa e afirmativa. Não se trata de determinação direta, de forma que mudanças sociais e políticas x produziriam sujeitos y. Por outro lado, também não se trata de uma ordem subjetiva alheia aos movimentos históricos. Os eventos históricos têm efeitos sobre o modo como o sujeito, a partir da singularidade estrutural, situa-se no laço social. O discurso veicula a maneira como uma posição subjetiva se exerce. Perguntamos se podemos pensar a "novidade" sentida por alguns analistas na demanda que chega à clínica, as "diferentes" manifestações do mal-estar e os chamados "novos sintomas" como diferentes enlaces da estrutura na história. Ou ainda se seriam os discursos uma ferramenta adequada para esta reflexão.

Muitos psicanalistas trabalham os impasses diagnósticos da clínica a partir de propostas de reformulação da noção de estrutura clínica, em especial, por duas vias: uma abordagem que considera que os "novos" fenômenos clínicos não são fundamentados numa escolha estrutural, restando aquém ou além dessa escolha; e outra que convida a pensar a estrutura como veiculada pela organização social de forma que a sociedade contemporânea não privilegiaria a escolha da neurose, mas da perversão ou da psicose. Muitas vezes, parecem construções mais descritivas do que conceituais, abordagem semelhante àquela da clínica dos manuais diagnósticos, como o DSM, em que as propostas diagnósticas são apresentadas mais como fatos a serem constatados do que construídos.1

A expressão "novos sintomas" causa alguma estranheza se pensarmos o sentido freudiano do sintoma como formação de compromisso entre forças conflitantes, como efeito do modo como uma defesa contra uma falta insuportável ao aparelho psíquico se constitui e falha, tal como ele propõe nos primórdios de sua obra (Freud, 1894/1996a). Nessa lógica, o sintoma seria efeito de uma posição ética, efeito do modo como uma modalidade de resposta à castração se constitui para um sujeito, naquilo que organiza e naquilo que essa organização falha, trazendo algo de sofrimento como retorno. As manifestações clínicas que eram trazidas a Freud como queixa (dores, paralisias, contraturas, fobias, etc.) seriam expressão do manejo singular de um conflito insuportável para o eu. Essas modalidades de defesa serão categorizadas por Freud em neurose e psicose e, em alguns momentos, acrescentando aí a perversão (Freud, 1908/1996d). Haveria então, para Freud, duas dimensões do sintoma: a dimensão da defesa, situada como manejo inconsciente de uma problemática inerente aos seres de cultura - o problema da não orientação natural para a satisfação; e a manifestação clínica dessa defesa, traduzida naquilo de que o paciente se queixa e que pode nomear como sofrimento. Essa digressão nos permite recolocar a questão sobre os "novos sintomas". Seriam novas modalidades de defesa ou, em termos lacanianos, novas estruturas clínicas? Ou seriam novas manifestações clínicas das posições subjetivas?

Este artigo objetiva apresentar, suscintamente, algumas propostas de leitura dos sintomas que chegam à clínica hoje a partir da noção de estrutura clínica e dos problemas advindos dessas leituras, propondo a teoria lacaniana dos discursos como ferramenta conceitual mais adequada para pensar as especificidades da apresentação do mal-estar na clínica contemporânea. Portanto, defendemos a hipótese de que os ditos "novos sintomas" dizem respeito ao encadeamento discursivo singular valorizado por nossa cultura como laço social, podendo ser caracterizados como manifestações clínicas singulares de estruturas defensivas produtoras de sintoma tal, como Freud propôs. Assim, acreditamos que a singularidade dos fenômenos clínicos de nosso tempo refere-se à dificuldade de encadeamento discursivo do mal-estar ou à fixação em modos específicos de laço social, que têm como consequência certo apagamento da dimensão subjetiva nas narrativas sobre o sofrimento, ou mesmo à dificuldade em constituir uma narrativa.

 

Algumas Leituras sobre Estrutura Clínica e"Novos Sintomas"

A seguir, são apresentadas, de maneira geral, formulações de alguns autores que procuram inovações teóricas para dar conta das novidades que percebem a partir da clínica. O nosso objetivo aqui é antes trazer a proposta do autor em vez de percorrer os meandros de seu argumento. Procuramos, assim, situar o estado da discussão, a fim de propor os discursos como ferramenta útil para refletir sobre as especificidades das apresentações sintomáticas na clínica contemporânea.

Julia Kristeva (2002) traz a expressão "novas doenças da alma" para se referir aos sintomas clínicos característicos da contemporaneidade, que são marcados, segundo a autora, por uma grande pobreza simbólica, o que conduz a uma dificuldade de associação, a um silenciamento da alma. Nessas novas doenças da alma, o ato e o abandono substituem a tentativa de construção de sentido. Esse processo faz com que o próprio território da alma, enquanto campo de construção singular das representações psíquicas, acabe se empobrecendo em detrimento de uma atenção cada vez maior ao organismo, controlado quimicamente, impedindo a tentativa de associar palavras ao estranho que aparece no corpo. Assim, a vida psiquicamente empobrecida do homem moderno transita entre os sintomas somáticos, quimicamente tratados, e a transformação dos desejos em imagens, como exemplifica o devaneio diante da televisão. O mal-estar, entretanto, parece persistir. Todavia, segundo a autora, quando essas pessoas procuram análise, não trazem as questões dos analisandos clássicos, mas algo da impossibilidade dos psicóticos de simbolizarem traumas insustentáveis. Assim, vemos que a autora situa a questão da singularidade do mal-estar na clínica contemporânea em novas estruturas clínicas, ou na dificuldade de constituir uma estrutura.

Em suma, Kristeva (2002) propõe a dificuldade de representar a pobreza simbólica como característica comum das novas manifestações clínicas (compulsões, adições, depressões), o que torna difícil diagnosticar esses pacientes segundo a nosografia psicanalítica que prevê neurose, psicose ou perversão. O discurso desses pacientes em análise revelaria sua dificuldade em construir uma cena fantasmática, estando de algum modo aquém da constituição de uma posição estrutural. Seguindo essa lógica, poderíamos dizer que estariam aquém da proposta freudiana de constituição do sintoma como defesa. A função do analista, nesse contexto, parece ser trazer representações a esse simbólico empobrecido, executar um verdadeiro "enxerto fantasmático" (expressão da autora para descrever sua intervenção em um caso). Aqui, parece-nos que o analista opera numa perspectiva delicada, oferecendo seus significantes para as construções do paciente em análise e correndo o risco de se afastar radicalmente da prática analítica de escuta do sujeito. Além disso, na perspectiva freudiana, o aparelho psíquico se constitui como defesa. Se não há o estabelecimento de uma defesa, seria o próprio psíquico que não se constituiria.

No entanto, se o mal-estar persiste, mesmo em formas que dispensam muito blá-blá-blá, algo da divisão do sujeito se presentifica, uma organização se apresenta, mesmo que não possa ser lida como o leitor espera. Consideramos que é a partir desse mal-estar que o analista deve operar, possibilitando outros caminhos de trabalho com a falta do objeto que não aquele que o sintoma sistematicamente repete. Assim, tratar-se-ia de resgatar vias de acesso ao sujeito do inconsciente, mas ainda apostando nele, sujeito dividido pela articulação significante. Portanto, o desafio do analista é encontrar na singularidade de cada relação transferencial os caminhos por onde a escuta é possível.

Para Dani-Robert Dufour (2009), o liberalismo descontrolado de nosso tempo convoca a foraclusão do Nome-do-pai, o que se dará de maneira cada vez mais abrangente se não houver uma intervenção no sentido da preservação da alternativa neurótica. O autor parece estabelecer uma hierarquia do melhor ao pior - neurose, perversão e psicose, respectivamente - de modo que em "todos os lugares onde existem instituições, principalmente familiares e/ou educativas, que se sustentam ainda, isso pode ser contido, quer dizer contido nos limites da neurose; ali onde não há mais instituições, então a perversão se apresenta como um meio possível de prevenir a psicose" (Dufour, 2009, p. 143). A pós-modernidade liberal traria o declínio das neuroses em prol das psicoses narcísicas. Sua proposta, então, é ater-se à neurose, resistir à dissolução do núcleo neurótico, agarrar-se aos sintomas. O sujeito moderno, que emergia sob a queixa da neurose, está morto; há emergência de um novo sujeito, sob a égide da psicose, o sujeito pós-moderno, ao qual, muitas vezes, o que resta é a alternativa perversa.

Esse modo de tratar as estruturas soa duplamente estranho. Primeiro, ao parecer estabelecer uma hierarquia entre elas, moralização avessa à ética da psicanálise. Depois, porque parece tomar a escolha estrutural como uma escolha controlada pelas condições sociais, e o Outro não é sinônimo de social.

Luciano Elia (2010) aborda a questão de maneira clara e interessante a partir da seguinte pergunta: a Ordem Social engloba o Outro, sendo mais ampla, ou é o contrário? O autor responde que o Outro só pode ser menor que o Social uma vez que ele é marcado pela operação de castração - é o Social menos um, descompleto.

O Social é maior, mais amplo, porque se pretende como o conjunto completo e inteiro de determinações 'simbólicas' do sujeito, e coloco o simbólico entre aspas porque ele só perde as aspas se perder, no mesmo ato, a completude. Porque o Outro é a menos, ele permite que o sujeito vá além das determinações simbólicas que recebe. De algo a menos, passa-se a algo a mais, que, longe de suprimir o a menos, sustenta-se precisamente dele (Elia, 2010, p. 142, grifos do autor).

Pode-se dizer, por exemplo, que o Social é o conjunto de valores, costumes, leis e símbolos que determinam o sujeito e o dizem, mas o ponto de destaque da psicanálise é exatamente aquele em que o Social não pode dizer o sujeito, ou seja, o ponto no Outro, enquanto lugar simbólico, em que falta o significante que define integralmente o sujeito. É nesse ponto que o sujeito emerge, engendrado pela articulação significante em que um significante o representa para outro, mas também no resto dessa operação, além de significantes.

Pensar o sujeito do inconsciente em sua relação com o Outro é bastante diverso de pensar o indivíduo em sua relação com o Social. Portanto, conforme conclui Elia (2010), o sujeito não é idêntico à sua determinação social, aos significantes que o representam. Por isso, o autor prefere falar do sujeito na cultura, e não do sujeito da cultura, uma vez que esta não o determina completamente. Desse modo, o campo inaugurado por Freud com o inconsciente cria um para além do social, uma dimensão que o ultrapassa em seu próprio furo, sem destituir suas leis de funcionamento, mas destacando delas o limite. Aquilo que do Outro se transmite e marca decisivamente a constituição do sujeito não são apenas os significantes enunciados, mas a estrutura significante que aponta para a falta de significação inerente à própria cadeia significante; em outras palavras, o universal da castração.

Em outro trabalho de mesmo cunho, Dufour (2005) propõe que as figuras que constituem uma ficção do Outro para o sujeito mudam ao longo da história e que essa mudança traria consequências para o modo como o sujeito se constitui. Na pós-modernidade, entretanto, o contexto sociocultural, baseado no liberalismo, não proporia nenhuma figura do Outro em relação à qual o sujeito pudesse vir a constituir-se como desejante. O autor diz que, "em suma, na pós-modernidade não há mais Outro no sentido do Outro simbólico: um conjunto incompleto no qual o sujeito possa verdadeiramente enganchar uma demanda, formular uma pergunta ou apresentar uma objeção" (Dufour, 2005, p. 59). Não havendo mais figura capaz de representar o Outro, seria como se não houvesse Outro, não havendo mais terceiro, de forma que os novos sujeitos se constituem em relação dual ou, ainda, autor referencialmente. Os efeitos desse processo são sujeitos enveredados pela via da psicose, sucumbindo a um processo de crescente dessimbolização.

Essa concepção parece confundir duas maneiras como podemos pensar o Outro. Podemos pensá-lo como a linguagem que antecede e determina o sujeito, estenografado, pelo matemaS (Ⱥ), insuportável ao sujeito que tenta recobrir essa falta de algum modo. Esse sentido, enquanto estrutura não-toda da linguagem, que coloca um hiato estrutural no coração do homem como ser de linguagem, não se refere a figuras que mudariam no tempo e espaço, mas a algo que é da natureza da cultura, como propôs Freud, ou da natureza da linguagem, se pensarmos com Lacan. Nessa concepção, não faz sentido pensar que não há Outro, seria como pensar que não somos mais seres de linguagem ou pensar que o Outro consistia e deixou de consistir por algum acontecimento de nossa realidade. Na verdade, o Outro não existe. Faltam esse significante e essa plenitude de gozo que definiriam o Outro como integral, como completo. Faltam estruturalmente.

Por outro lado, podemos também pensar o Outro a partir dos modos como o sujeito tenta fazê-lo consistir e, nesse sentido, pensar em figuras do Outro, construídas pelos sujeitos ao longo da história, para oferecer uma face à falta que lhes é inerente. Essas figuras, sim, podem variar tanto quanto a criatividade dos seres de linguagem em criar ficções que lhes permitam viver. Talvez fosse interessante situar aí a questão das novas figuras do Outro, mas, mesmo assim, a proposta do autor é que não há figuras dignas desse nome na atualidade liberal e que essa ausência acarretaria a não constituição do sujeito. Enfim, uma confusão de níveis de análise que acaba por tornar inviável pensar o sujeito, o inconsciente e a própria psicanálise.

Jean Pierre Lebrun (2004), por sua vez, acredita que estamos vivendo numa comunidade de renegações, o que traz no título de um livro: "A perversão comum - viver junto sem o outro". Para esse autor, a transmissão de uma geração a outra não é capaz de veicular a noção de limite: os pais não sustentam limites para o filho; a criança não internaliza limites. Ambos tentam evitar considerar os limites, de modo que a constituição do sujeito não ocorre. No singular e no coletivo, passa-se de uma economia neurótica para uma economia perversa. Isto não quer dizer que os sujeitos tenham se tornado perversos, mas que se trata de uma comunidade que faz laço preferencialmente pela via da perversão, sujeitos convidados a partilhar um funcionamento perverso - em que os laços são regidos essencialmente pelo imaginário, não havendo lugar para a falta e supondo-se o encontro com o objeto.

Aqui, também, parece haver uma aproximação indevida entre o limite como um enunciado discursivo - proferido em nossa cultura por pais e educadores, como um "não pode fazer isso" dirigido à criança, uma proibição - e uma falta primordial - falta que situa o gozo e linguagem como incompletos, uma impossibilidade. Talvez possamos concordar que haja dificuldade dos agentes sociais em veicular enunciados que contenham a prescrição de limites, porém isso não significa que o desamparo que nos caracteriza como seres de linguagem tenha sido suprimido. Ao contrário, a permissividade veiculada por nossa sociedade figura como uma tentativa de contorno, a qual tem duas faces, uma que defende e outra que revela a precariedade de qualquer defesa. De qualquer modo, o trabalho de cultura é considerado por Freud (1930[1929-30]/1996e) como uma tentativa: projeto que a cultura não pode abandonar mesmo que seja impossível alcançar. Particularidade da cultura que também tem como efeito o mal-estar. Nesse exemplo, parece que o trabalho com a noção de discurso, já que o próprio autor fala de laços sociais, seria mais interessante para a discussão que as estruturas clínicas ou a estrutura do Outro.

Charles Melman (2003), com quem Lebrun partilha algumas ideias, afirma que estamos diante de uma "nova economia psíquica", antes organizada pelo recalque e agora pela exibição do gozo. A fim de justificar essa posição, o autor enumera uma série de contrapontos: o sexo distancia-se da ordem da representação, apresentando-se como necessidade; os limites são tênues e mesmo apagados; o lugar da autoridade está abalado ou mesmo inoperante; há negação da falta e da castração. Assim, o contexto acabaria por propiciar a perversão como norma social ou uma psicose social por não oferecer pontos de fixação para a constituição do desejo.

Passamos de uma cultura fundada no recalque dos desejos e, portanto, cultura da neurose, a uma outra que recomenda a livre expressão e promove a perversão. Assim, a saúde mental hoje em dia não se origina mais numa harmonia com o Ideal, mas com um objeto de satisfação. A tarefa psíquica se vê enormemente atenuada e a responsabilidade do sujeito apagada por uma regulação puramente orgânica (Melman, 2003, p. 15).

Essa nova economia psíquica seria correlata a um novo sujeito que nega a castração e não se constitui mais como dividido, apresentando um modo de gozo na via do excesso, cada vez mais sob a égide da pulsão de morte. Trata-se de um sujeito que não se fixa a uma posição, efeito do homem da sociedade ocidental contemporânea; homem sem gravidade, como evoca o autor.

Melman (2003) faz uma leitura que prega não haver mais sujeito, ou inconsciente, ao mesmo tempo em que não há mais trabalho de cultura, o que é estranho se a pensamos, como propôs Freud (1930[1929-30]/1996e), como construção de opções incompletas para contornar o desamparo. A descrição de Melman (2003) do contexto contemporâneo, talvez por ser colocada sob a forma de uma entrevista realizada por Lebrun, é tão catastrófica que parece não deixar outra via senão a conformidade com esse estado destrutivo das coisas.

Essas diversas propostas, trazidas aqui a título de ilustração de um estado de debate que toma lugar no campo psicanalítico, nos permitem perceber como diversos psicanalistas, com trajetórias singulares, se enveredaram na lógica de proclamação do novo que permeia o discurso social contemporâneo. O risco que consideramos importante apontar não é de problemas quanto ao rigor dos trabalhos, mas do uso da psicanálise como um objeto a mais na série oferecida pelo mercado.

Nossa posição é que há nessas leituras da singularidade dos fenômenos clínicos contemporâneos - entendendo a clínica como um encontro com o inédito - uma junção indevida de diferentes níveis de consideração do problema.

 

O Discurso Como Ferramenta para Discutir as Apresentações Sintomáticas

Cada sujeito, a partir de sua aposta estrutural, pode se posicionar em relação ao gozo, à mestria e ao saber de diferentes modos, em diferentes modalidades de laço social, que Lacan (1969-70/1992) nomeou como discursos. Com os discursos, Lacan traz uma tentativa de pensar o sujeito na singularidade de suas possibilidades de enlaçamento social, enlaçamento entre os elementos de uma estrutura. Não se trata, entretanto, de uma leitura histórica do sujeito, mas da consideração do modo como o laço social se exerce para um sujeito num determinado ponto de sua história.

Lacan (1969-70/1992) ressalta que os discursos são laços sociais, laços entre os falantes. Cada discurso fixa uma posição para o sujeito, todavia é possível circular entre os discursos. Sendo possível a circulação entre os discursos, o conflito entre eles está na esfera da organização social, pensando aqui o social como agenciamento dos discursos, privilegiando uma ou outra organização discursiva. O sujeito pode, em diferentes momentos de sua história, situar-se em um ou outro discurso, constituindo diferentes modos de exercer seu enlaçamento com o Outro. Isto implica que podemos falar de diferentes posicionamentos do sujeito no discurso e de diferentes efeitos desse posicionamento para o sujeito, no entanto não podemos falar de novos sujeitos ou de sujeitos pós-modernos, atributos estranhos ao sujeito da psicanálise (na verdade, qualquer qualificação é estranha ao sujeito do inconsciente).

Consideramos que não há motivos para abandonar o diagnóstico estrutural na clínica psicanalítica, porém é preciso não esquecer que se trata de uma estrutura clínica e que, como tal, considera o sujeito não apenas naquilo que se deixa representar, mas naquilo que não pode ser reduzido a nenhuma representação. Falar de novos sujeitos é considerar o sujeito a partir de adjetivações, consideração estranha ao modo como a psicanálise situa o sujeito. A estrutura clínica responde pela construção de uma resposta à incompletude do Outro, que fixa para o sujeito uma modalidade de gozo, mas pode se expressar de diferentes formas. O sintoma, portanto, não é indiferente ao laço social em que se apresenta, pois veicula determinadas formas de apresentação. A histérica se adapta, assim, às novas modalidades de mestria, porém continua em seu duplo papel de demandar uma mestria para apontar sua inconsistência, crítica da impossibilidade em que se fundam o desejo e a cultura. Não seria isso que indica seus sintomas tão entrelaçados ao laço social: loucuras consumistas, anestesia diante de tantos prazeres disponíveis no mercado, recusa anoréxica? Assim, defendemos que não são novos sintomas, mas novas manifestações clínicas do sintoma como defesa e ainda que a proposta lacaniana dos discursos são uma ferramenta privilegiada para pensá-las.

Acreditamos que a dominância discursiva da atualidade favorece determinadas formas de expressão sintomática como formação de compromisso, diferente de outras formas de outros momentos, diferentes, por exemplo, da sintomatologia histérica com que Freud se deparou nos primórdios da psicanálise. Além disso, acreditamos que a formulação dos discursos é mais adequada para pensar essas questões do que a consideração dos limites das estruturas clínicas.

Podemos, então, nos perguntar se nós, como analistas de nossa época, exatamente por compactuarmos com os discursos por ela agenciados, não teríamos dificuldades de escutar a denúncia trazida pelos sintomas atuais. Em que medida são novos sintomas, sem simbolização, sem decisão estrutural, sem uso da metáfora paterna ou antiga dificuldade de escuta? Será que, de nossa dificuldade de escuta, não fazemos uma dificuldade de fala do outro?

Desde seus primeiros trabalhos, Freud (1895/1996b) considera o aparelho psíquico como uma construção singular em resposta ao desamparo inerente à condição humana de dependência do outro, dependência que acabaria por conduzir à função de comunicação, de forma que a relação com os objetos seria mediada por registros, por representações, situando um hiato constitutivo no campo da satisfação. Lacan aborda essa problemática em termos da estrutura não-toda da linguagem: falta um significante no campo do Outro, que poderia definir integralmente o sujeito ou ainda falta o gozo pleno - possibilidades de leitura do matemaS (Ⱥ), que indica que o Outro é essencialmente faltoso (Lacan, 1957-58/1999).

Essas elaborações abordam o universal da castração, a falta inerente aos seres falantes, com a qual todos devem se haver. Talvez seja mais simples pensar em termos de orientação: como seres de linguagem, não podemos contar com a orientação dos instintos, de modo que qualquer orientação deve ser forjada na linguagem, a qual, nesse sentido, carecerá intrinsecamente de garantia. Essa falta constitutiva, entretanto, é insuportável, imprimindo a necessidade de respostas. Como Freud articula desde os primórdios de suas elaborações teóricas, o psíquico se constrói como uma defesa, uma defesa contra o hiato que o atravessa, sendo, ao mesmo tempo, sua condição de constituição. A resposta singular da estrutura clínica estabelece um modo de relação com essa falha universal. O sujeito se constitui, assim, ou na sua modalidade de resposta, estabelecendo um modo de relação com o Outro, fazendo-o consistir de alguma maneira, defendendo-se do universal da castração, ou o sujeito se constitui, ao mesmo tempo, como tentativa e como furo de qualquer tentativa de construção de uma orientação. Como Freud já nos indicava, essa defesa será sempre falha, uma vez que não pode oferecer senão contornos parciais a esse hiato intransponível. A neurose, a psicose e a perversão funcionam, assim, como modalidades de manejo da castração, estabelecendo formas de contorno do problema e formas como esse contorno falha simultaneamente. O laço social, por sua vez, é onde esse modo singular de relação do sujeito com o Outro se exerce.

A teoria dos discursos como laços sociais apresenta uma retomada de Lacan da perspectiva estrutural sob um novo viés. O discurso traz a colocação de lugares e termos, mas marca o impossível inerente a toda tentativa discursiva de literalização. O discurso porta a escrita da fixação de laços entre os elementos (S1, S2, a, $) ao estabelecer posições a partir das quais os elementos se relacionam. É uma maneira de superar a perspectiva histórica em prol da estrutural e, ao mesmo tempo, falar do sujeito no laço social circunscrito historicamente. Dizer que o laço social é circunscrito historicamente implica considerar que uma configuração histórica específica pode favorecer a emergência de um discurso em detrimento de outros. Assim, a proposta dos discursos permite tratar tanto do que se fixa quanto do que circula na inserção do sujeito no laço social (os lugares são fixos, mas os elementos, em sua liberdade restrita, podem circular).

Lacan apresenta sua proposta dos discursos ao longo de seu seminário de 1969-1970. São marcados por quatro lugares, nos quais os elementos estariam dispostos, estabelecendo um modo de relação entre eles e, com isso, um modo de relação do sujeito com o gozo. Os elementos S1 (significante mestre), S2 (saber, cadeia significante), objeto a mais-de-gozar e o sujeito se disporiam em quatro lugares: o agente, o Outro, a verdade e a produção. De acordo com a disposição dos elementos nesses lugares, deslocando-se em quarto de giro, teríamos os quatro discursos: do mestre, da histérica, do analista e da universidade.

Cada um desses discursos marca um modo como o laço social pode se fazer para um sujeito. No entanto, o discurso pressupõe o deslocamento do sujeito em seu enlaçamento. Assim, um discurso oferece uma fixação de elementos e lugares, mas as posições são móveis, apesar de limitadas. Podemos depreender dessa movimentação intrínseca a noção de discurso que, embora fixe uma posição para o sujeito, possui mobilidade em seu enlaçamento social. O sujeito pode se situar em diferentes lugares, configurando cada um dos discursos. Dependendo do lugar onde o sujeito se situa, ou seja, do discurso engendrado, constitui-se para ele uma relação específica com o gozo, com a mestria e com o saber. O laço social trazido pelo discurso é um laço entre os elementos que o compõem. Propor que há dominância de um discurso implica considerar que há dominância de certo tipo de relação do sujeito com o gozo, a mestria e o saber. Assim, dizer que atualmente a dominância do discurso universitário é favorecida pelo modo como nossa sociedade se organiza, por exemplo, é dizer que se privilegia um modo específico de relação do sujeito com o gozo, o saber e a mestria.

Milner (1996, p. 48) destaca que a teoria lacaniana dos discursos é anti-histórica: "Por uma doutrina da pluralidade dos lugares, da pluralidade dos termos, da diferença entre propriedades de lugar e propriedades de termos, da mutabilidade dos temos em relação aos lugares, obtemos o que se poderia chamar de articulação não cronológica". Assim, um discurso não se transforma internamente; sua transformação implica um corte com aquele discurso e instauração de outro. Todavia esse corte não é cronológico, é apenas o nome da diferença real desses discursos. Não há continuidade de um discurso ao outro, mas mudança de posição, que constitui outro modo de enlaçamento entre os elementos.

A atribuição de Lacan de que o sujeito da psicanálise é o sujeito da ciência situa a psicanálise como sincrônica à ciência moderna. A ciência moderna se caracteriza, em especial, pela exigência de literalização, a que a matematização procura atender. A psicanálise, por sua vez, faz um uso particular das noções de letra e matematização, importantes para a formalização científica. Milner (1996), discutindo o que nomeia como doutrinal da ciência na obra de Lacan, recorre à noção de discriminante de Karl Popper. Para esse autor, a possibilidade de refutação é característica fundamental da episteme científica: uma proposição científica deve poder ser refutada. No entanto, uma proposição só pode ser refutada se seu referente, seja ele material, seja lógico, puder ser outro que não aquele que é; ou seja, o referente é contingente, e não necessário. A partir de sua retomada da noção de discriminante de Popper, Milner (1996) conclui: só existe ciência do contingente. Toda proposição científica é contingente, podendo ser infinitamente outra que aquela que é (universo infinito). Porém, ao buscar a captação pela letra, a ciência impõe o esquecimento da contingência que a autorizou. A letra para a ciência moderna visa a apreender o contingente como contingente, mas uma vez que ele tenha sido apreendido, esquece a contingência em que se fundou e opera como se seus axiomas fossem necessários.

A letra não abole o acaso: é efeito de um lançamento de dados. Mas, uma vez que o dado cai e mostra sua face visível, é impossível que os números sejam outros e não aqueles que se apresentam à visão, embora pudessem ser contingentemente outros quaisquer. Assim, é a letra: para que seja outra, é preciso um novo lançamento de dados. A psicanálise chama de sujeito o intervalo em que os dados estão no ar, a própria suspensão dos dados (não o lançador, que não há). O discurso do analista convoca o questionamento dessa contingência esquecida, vivida no sintoma como necessária.

Em seu seminário de 1972-1973, Lacan retoma sua proposta dos discursos como liames sociais, registrando novamente os quatro discursos e as mudanças inerentes ao giro dos elementos entre as posições. Na lição de 9 de janeiro de 1973, entretanto, uma novidade é trazida para o campo do discurso: a noção de letra, que aparece de forma cada vez mais contundente na obra Lacan. Embora a linguagem constitua a relação sexual como impossível para o ser falante, a letra aparece como algo que permite um suporte dessa não relação. Nessa concepção, o discurso figura, então, como uma escrita formalizada por letras, algo que permite ao sujeito um suporte para o laço social, uma vez que não há complementaridade na relação entre os falantes. O significante não tem referente. Ele só produz efeito de significação para um sujeito ao remeter-se a outro significante. O discurso, como laço entre os falantes, situa um modo de funcionamento para o significante, forjando um referente, mesmo que este seja um semblante e não seja permanente, ou garantido, senão no próprio discurso.

Aplicando a ideia de contingência da letra aos discursos, como sugere Milner (1996), podemos dizer que, uma vez que a letra se apresenta, um discurso não pode mudar a letra, pode mudar de letra - descontinuidade essencial entre os quatro discursos. Milner (1996) resume a lei dos discursos: existem descontinuidades, e ainda existem descontinuidades tais que afetam todos os discursos. Para Lacan, o sujeito é o nome que estenografa essa descontinuidade absoluta inerente a todo enlaçamento discursivo.

 

Laços Sociais e Sintoma

Os discursos situam um lugar para o sujeito no laço social e indicam a posição do sujeito em relação ao gozo, posição que o analista faz girar com sua intervenção. Assim, uma histérica pode adotar qualquer discurso: o discurso universitário, analítico, do mestre ou mesmo o discurso histérico. Falar em estrutura do discurso é diferente de falar em estrutura clínica. A estrutura clínica traz a marca de uma invariante no modo como o gozo se constitui para um sujeito em sua face organizada e limitada, mas também em sua face disruptiva e além da significação. A estrutura do discurso aborda o modo como cada sujeito, a partir da irredutível singularidade de sua estrutura clínica, pode se movimentar no laço social, pode exercer o seu modo de gozo, numa relação específica com o saber e com a mestria. O discurso trata de um enlaçamento entre os elementos, cujas posições ele fixa. Fixando, dessa maneira, uma posição para o sujeito.

Os discursos são, assim, apresentados por Lacan no seminário a eles dedicado2:

 

 

Lacan dedica o seminário em que apresenta os discursos a trabalhar o avesso da psicanálise: o discurso do mestre é avesso ao discurso da psicanálise. O discurso do mestre é o primeiro apresentado por Lacan e aquele do qual derivam, por quarto de giro, os outros três.

No discurso do mestre, o agente é o significante mestre que coloca a trabalho um saber, tendo como efeito uma produção de gozo, barrada ao sujeito. Logo, no discurso do mestre, o sujeito desconhece o gozo que o atravessa, mas também o mestre o desconhece, pois ele é um produto rechaçado de sua produção de saber. Trata-se de uma movimentação discursiva que cria laço a partir do velamento da divisão subjetiva e que emerge como verdade incômoda, a ser constantemente reenviada ao circuito da mestria. O sujeito não pode, entretanto, ser silenciado, mas sua divisão pode ser mascarada ao ser constantemente adiada.

A dominante do discurso do mestre é S1, significante mestre, que Lacan propõe chamar de lei enquanto articulada. O significante mestre pretende apontar uma direção, mas seu poder depende do saber a que se remete.3 No discurso do mestre, encontramos S1, significante mestre, campo do senhor, dirigindo-se a S2, saber, campo do escravo. O saber está do lado do escravo, uma vez que o escravo sabe o que o mestre quer e sabe como executá-lo. O produto do discurso do mestre é o mais-de-gozar, perda de gozo inerente à dependência do mestre em relação ao escravo, mas perda que situa o único modo como o mestre tem acesso ao gozo: pela mediação do escravo. O gozo se situa do lado do escravo, revelando, assim, a verdade da divisão subjetiva do mestre.

O sujeito traz a marca do desejo, sempre insatisfeito, como verdade do discurso do mestre, verdade da inconsistência da mestria, que surge como uma descontinuidade em relação ao mandato simbólico do mestre (Calazans, 2004). Todavia, é o próprio sujeito dividido que, na tentativa de encontrar respostas para o enigma da sua divisão, convoca um significante mestre. O significante pretende apontar um lugar para o sujeito na rede simbólica, mas há um resíduo, o real presentificado no gozo, o qual impede que a mestria seja um projeto bem-sucedido. A barreira entre o sujeito e o gozo mostra a interdição do gozo - o sujeito, verdade do discurso do mestre, nada sabe sobre seu gozo. Desse modo, no agenciamento do discurso do mestre, o sujeito, assujeitado ao mandato simbólico, desconhece o gozo que traz em seu sintoma.

Os demais discursos, derivados do discurso do mestre, uma vez que se desdobram dele por um quarto de giro, são por ele impregnados. O discurso da histérica traz a queda do efeito de discurso engendrado pelo mestre. Sua dominante é o sintoma, expresso no sujeito dividido. O sujeito deixa de ser a verdade do discurso do mestre e assume a posição de agente. O sintoma revela a relação do discurso do mestre com o gozo, trazendo para primeiro plano aquilo que é sua verdade, a divisão subjetiva e o gozo a ela inerente. Assim, o discurso da histérica traz o saber no lugar reservado ao gozo pelo discurso do mestre. Se no discurso do mestre o sujeito aposta que um significante mestre pode dizer o que ele é, o discurso da histérica é mostra da inconsistência dessa aposta. O discurso da histérica, de algum modo, se propõe a ouvir esse resíduo de gozo que resiste ao encontro com o mestre. Assim, o que a histérica quer é um mestre, porém um mestre que não saiba demais, sobre o qual ela possa reinar. Esse discurso se apresenta por desmascarar o mestre, mas, ao mesmo tempo, compactua com ele, supondo-o. Desse modo, o lugar da verdade desse discurso é ocupado pelo objeto a, insistência de gozo, mais-de-gozar. Há, entretanto, uma barreira entre o mais-de-gozar e o saber que impede que o saber sobre o gozo buscado pela histérica seja encontrado. O discurso da histérica se relaciona com o mestre a partir de uma dupla visada: ao mesmo tempo em que aponta a falha inerente ao Outro, a qualquer que ocupe o lugar de mestre, insiste em procurar a mestria.

A relação da histérica com o pai é exemplar dessa posição do sujeito em relação ao mestre no discurso da histérica, como nos traz o caso Dora (Freud, 1905/1996c): o pai é castrado e a histérica o sabe castrado, mas seu desejo o toma num lugar idealizado. Assim, o discurso da histérica evoca a castração como verdade do mestre, pois ele não possui um saber sobre seu gozo, mas vela essa verdade com a idealização constitutiva de seu desejo.

O discurso do analista, laço social determinado pela prática de uma análise (Lacan, 1970/2003), formulado a partir de um quarto de giro do discurso da histérica (discurso que é evocado em uma análise), traz o objeto a como agente, convocando o sujeito a trabalhar a partir do mais-de-gozar que o atravessa como ser de linguagem. Isto indica um viés da subversão evocada pelo discurso do analista: ao invés de tomar um significante no lugar de mestria, toma o rechaço do desejo de mestria como dominante e se propõe a considerar seus efeitos sobre o sujeito. Toma como dominante aquilo que é rechaçado pelo discurso, o objeto a em sua função de mais-de-gozar, que se apresenta ao sujeito como um impasse. O analista se faz, dessa maneira, lugar de desejo do analisante: "o que fazemos em análise senão instaurar, através da regra, um discurso? Esse discurso é tal que o sujeito suspende o que nele? Exatamente sua função de sujeito. O sujeito fica dispensado de sustentar seu discurso com um eu digo" (Lacan, 1968-69/2008, p. 19). O objeto a como dominante funciona como uma questão irredutível que coloca o sujeito a trabalho, interrogando o mandato simbólico dos significantes mestres que ele elege. É o sujeito que é posto no lugar do trabalho: o sujeito trabalha a partir daquilo que rechaça. Com essa operação, o discurso do analista visa a produzir um saber singular.

O discurso do analista traz o saber no lugar da verdade, o saber como enigma que revela que a verdade não pode ser dita senão pela metade, um semidizer. A interpretação deve visar ao saber como verdade. Trata-se de uma aposta no saber que emerge da enunciação, para além do enunciado, mas emerge como um dito não todo, semidito. O discurso do analista tem como efeito um saber em forma de enigma, um saber que se caracteriza por pretender ser mais da ordem da enunciação do que do enunciado.

Ao passo que os demais discursos pretendem oferecer uma solução para o real que habita o sujeito, tentando recobri-lo e fracassando de algum modo pela insistência do gozo, o discurso do analista não pretende uma solução para a divisão subjetiva, mas a sustentação do sujeito inerente a essa divisão. Como afirma Lacan (1969-70/1992, p. 66), ". . . não esperem portanto, de meu discurso nada mais subversivo do que não pretender solução . . .". O discurso do analista é avesso à mestria: do significante mestre, do saber ou mesmo do suspiro histérico. É o único discurso que não se coloca a partir da função de dominação, ". . . deve se encontrar no polo oposto a toda vontade, pelo menos confessada, de dominar" (Lacan, 1969-70/1992, p. 65).

Lacan situa o discurso do analista como um discurso subversivo, que opera a partir daquilo que emperra os demais, mas esse discurso também pode ser pensado como o giro dos discursos: o discurso do analista tem como efeito a não fixação em um discurso. Assim, "há emergência do discurso analítico a cada travessia de um discurso a outro" (Lacan, 1972-73/1985, p. 27). Ao trazer para cena o objeto a, resíduo de gozo, o discurso analítico questiona os demais discursos, convocando a movimentação discursiva. Desse modo, há algo do discurso do analista em toda movimentação discursiva.

Chaumon (2009) propõe que o desafio do analista de nossa época é situar o discurso analítico na tensão dos quatro discursos em seu movimento. O funcionamento de um discurso, entretanto, pode se dar de determinada forma que procure impedir a mudança de discurso, posição a que o discurso do analista deve ser avesso. Assim, propomos que o discurso do analista não é apenas avesso ao discurso do mestre, mas também, e principalmente, avesso à estagnação discursiva.

 

Discurso Universitário e Sintoma na Clínica Contemporânea

No discurso universitário, o saber ocupa o lugar de agente. Trata-se do saber como um mandato de ordem, saber que se pretende sem enunciação, desencarnado de qualquer mestria, mas que acaba por subjugar o sujeito - por isso Lacan o chamou de mestre moderno. O saber imprime os objetos ao trabalho. É o próprio mais-de-gozar que é posto a trabalhar pelo saber - o saber universitário cria esse engodo de que são os objetos que trabalham e ditam seu ritmo, subordinando os sujeitos ao saber acéfalo e aos objetos. O sujeito é delegado ao lugar de produto. A verdade desse discurso é o significante mestre, verdade que estenografa a mestria que o universitário pretende disfarçar, mas que exerce de maneira tirânica, subjugando o sujeito a efeito descartado da contabilidade das coisas.

O sujeito como produto marca a incompletude do discurso universitário, a impossibilidade do saber integral que esse discurso pretende. Todavia, o funcionamento desse discurso é feito de tal modo que, tão logo o sujeito surja como produto de sua articulação, ele é reenviado ao circuito pelo significante mestre, mascarando a própria divisão do sujeito que, no entanto, retorna na produção, lançando, dessa maneira, o sujeito, num incessante jogo com os objetos disponibilizados pelo mercado.

A demanda que nos chega à clínica é atravessada pelo discurso universitário, discurso dominante da atualidade. Vem marcada pelo pedido de extinção rápida do sofrimento e pelo silenciamento do mal-estar. Os pacientes demandam insistentemente um diagnóstico, um tratamento (de preferência medicamentoso) e um cálculo do prognóstico. Se as pacientes de Freud demandavam que as deixassem falar, há uma demanda clínica atual que tudo se passe sem que ele precise nada dizer, ou ainda, sem que seja necessário se comprometer com um dito. Não querem se haver com isso que os incomoda, mas demandam um especialista, representante do saber, para removê-lo. O modo como o sujeito emerge também é agenciado pelo lugar que lhe destina o discurso, comandado pelos objetos e por enunciados vazios, ditos científicos. A escuta das falas atravessadas por esse agenciamento nos dá a impressão de não haver aí qualquer implicação, pois se colocam como se quem falasse fosse a depressão, a bipolaridade, o pânico, a compulsão, a anorexia, etc. Essa fala que nos chega parece ser enunciada pelas coisas, como demonstram o excesso de categorias diagnósticas e medicamentos. "Penso muito em me matar, é a depressão falando, doutora, não faz sentido nenhum, mas a depressão é assim". "Não consigo me concentrar mais, não consigo escutar ninguém, são os efeitos colaterais dos medicamentos, o que posso fazer, preciso deles". Falas como essas, colhidas de minha escuta clínica, são condizentes com o discurso universitário. Quando instigados a se colocarem em suas falas, há recusa, dificuldade, desentendimento.

O sujeito enredado pelo discurso universitário padece da invasão do objeto; não consegue localizar nem a mestria nem o desejo. Assim, sujeito e significante mestre ficam velados e o sintoma parece flutuar numa zona fantasma, da qual nada é possível dizer. Para suportá-la, devemos nos entorpecer com medicamentos, objetos de consumo, prazeres disponíveis no mercado e terapias. Assim, há a defesa sintomática, mas é difícil encadeá-la numa narrativa. Aí, onde a narrativa falha, algo precisa se apresentar para produzir laço social, tendo lugar os objetos sob os quais o paciente que nos demanda tratamento não consegue indicar o desejo, num deslizamento em que fica difícil localizar pontos de emergência para o sujeito, senão exatamente onde a engrenagem emperra.

Talvez possamos até mesmo dizer que há pobreza simbólica no discurso universitário. Ela se refere à dificuldade em agenciar o sofrimento num encadeamento discursivo uma vez que, no discurso universitário, a questão do sujeito sobre sua divisão é tamponada com o saber. Sustentamos, assim, que se trata de dificuldade de fazer um laço social que permita dizer do sofrimento, e não de problemas na estrutura clínica ou do Outro.

Trabalhar com os discursos é fazê-los girar. Dessa forma, girar o discurso universitário é revelar a mestria a ele subjacente e enunciada aí sem nome, possibilitando ao sujeito situar o mestre e, em outro quarto de giro, questionar a mestria ao frequentar o discurso da histérica.

É importante destacar que os discursos fornecem endereçamentos para o laço social: são construções de semblante, mas têm como elemento o mais-de-gozar, resto não reduzido à operação discursiva, mesmo que agenciado por ela, marcando sua impossibilidade de completude. A partir desse resto inassimilável que o analista chama para a cena, é possível convidar o sujeito à movimentação nos discursos.

O discurso do analista, discurso apresentado por Lacan como discurso que subverte o discurso do mestre, deve subverter também o discurso universitário, discurso do mestre moderno. No discurso do analista, é o objeto a que vem no lugar de agente, lugar ocupado pelo analista. Esse discurso toma como dominante aquilo que é rechaçado pelos demais discursos, resistindo à mestria (do significante mestre ou do saber). O sujeito é convocado pelo discurso do analista a trabalhar a partir disso que o causa, a fim de evocar os significantes mestres que o assujeitam, e questioná-los em sua mestria. Tem como efeito de verdade um saber singular - saber não todo, que comporta a enunciação. Ao tomar o objeto a como agente, o discurso do analista convoca aquilo que emperra os discursos para a cena, convocando a movimentação discursiva.

Assim, orientados pelo discurso do analista, frente às novidades e impasses inerentes à clínica, sustentamos a aposta no sujeito do inconsciente e a tarefa clínica de oferecer uma escuta diante do que o analista está "condenado a inventar" (Roustang, 1987, p.115). A clínica psicanalítica convoca o esforço de sustentação do discurso do analista. O discurso do analista, como Lacan nos alertou, não é fácil de ser sustentado, e a mestria pode conduzir o analista facilmente a outro discurso. Além disso, o discurso do analista, por ser avesso à mestria, situa-se em tensão com os outros discursos. Desse modo, em um estudo que aborda o contemporâneo e o novo, concluímos com o tradicional: o convite ao analista de não recuar frente ao sempre inédito da experiência clínica.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Magali Milene Silva
Email: magalimilene@gmail.com

Recebido em: 20/11/2017
Revisado em: 11/03/2018
Aceito em: 29/03/2018

 

 

1 Adotamos aqui a ideia de Robert Blanchet de que todo fato é construído.
2 Não consideramos aqui o discurso do capitalista, que situamos mais propriamente como anomalia discursiva do que como laço social.
3 Aqui, já aparece um indicativo de que o mestre é castrado: não se fundamenta em si mesmo, caracterizando-se pelo fracasso de sua própria mestria.

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