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Revista Subjetividades

Print version ISSN 2359-0769On-line version ISSN 2359-0777

Rev. Subj. vol.18 no.2 Fortaleza May/Aug. 2018

http://dx.doi.org/10.5020/23590777.rs.v18i2.6745 

ESTUDOS TEÓRICOS

 

Semelhanças e especificidades entre os estudos do ócio e os estudos do lazer

 

Similarities and specificities between idleness studies and leisure studies

 

Similitudes y especificidades entre los estudios del ocio y los estudios de recreación

 

Les similitudes et les spécificités entre les études de loisir et les études de loisirs

 

 

Marcos Gonçalves Maciel (Lattes)I; Luiz Alex Silva Saraiva (Lattes)II; José Clerton Oliveira Martins (Lattes)III

IPós-doutorado em Ócio e Desenvolvimento Humano e Docente do Departamento de Ciências do Movimento Humano pela Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG)
IIDoutor em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais e Docente do Centro de Pós-Graduação e Pesquisas em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais (UEMG)
IIIPós-doutorado em Estudos de Ócio pela Universidad de Deusto/UD e Professor Titular da Universidade de Fortaleza (Unifor)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

As concepções teóricas dos estudos do ócio e dos estudos do lazer apresentam semelhanças e especificidades quanto à análise dos fenômenos culturais. Assim, o objetivo deste trabalho é analisar essas duas perspectivas considerando suas abordagens conceituais. Para tanto, conduzimos uma pesquisa bibliográfica, por meio de uma revisão narrativa. As análises realizadas indicam que há distinções referentes aos aspectos filosófico, ontológico, epistemológico, axiológico e temporal. Todavia, apresentam similaridade em relação à subjetividade/atitude e à intervenção pedagógica. Embora singulares, ambas as áreas podem estabelecer um dialogismo para a construção de conhecimentos que compreendam os fenômenos sociais do ócio e do lazer enquanto desenvolvimento pessoal e coletivo.

Palavras chave: ócio; lazer; subjetividade.


ABSTRACT

The theoretical conceptions of idleness studies and leisure studies present similarities and specificities regarding the analysis of cultural phenomena. Thus, the objective of this work is to analyze these two perspectives considering their conceptual approaches. To do so, we conducted a bibliographical research, through a narrative review. The analyses carried out indicate that there are distinctions concerning the philosophical, ontological, epistemological, axiological and temporal aspects. However, they present similarity regarding subjectivity / attitude and pedagogical intervention. Although singular, both areas can establish dialogism for the construction of knowledge that understands the social phenomena of leisure and leisure as personal and collective development.

Keywords: idleness; leisure; subjectivity.


RESUMEN

Los conceptos teóricos de los estudios del ocio y de los estudios de la recreación presentan similitudes y especificidades cuanto al análisis de los fenómenos culturales. El objetivo de este trabajo es analizar estas dos perspectivas llevando en cuenta sus enfoques conceptuales. Para eso, condujimos una investigación bibliográfica, por medio de una revisión narrativa. Los análisis realizados indican que hay diferencias referentes a los aspectos filosófico, ontológico, epistemológico, axiológico y temporal. Sin embargo, presentan similitudes en relación a la subjetividad/actitud y a la intervención pedagógica. Aunque singulares, las dos áreas pueden establecer un dialogismo para la construcción de conocimientos que comprendan los fenómenos sociales del ocio y de la recreación mientras desarrollo personal y colectivo.

Palabras clave: ocio; recreación; subjetividad.


RÉSUMÉ

Les conceptions théoriques des études de loisir et des études de loisirs présentent des similitudes et des spécificités en ce qui concerne l'analyse des phénomènes culturels. L'objectif de ce travail est, donc, d'analyser ces deux perspectives en considérant leurs approches conceptuelles. Pour le faire, on a mené une recherche bibliographique, au moyen d'une revue narrative. Les analyses effectuées indiquent qu'il y a des distinctions concernant les aspects philosophique, ontologique, épistémologique, axiologique et temporel. Néanmoins, ils présentent des similitudes par rapport à la subjectivité / attitude et à l'intervention pédagogique. Bien que singuliers, les deux domaines peuvent établir un dialogue pour la construction d'une connaissance qui comprend les phénomènes sociaux de loisir et des loisirs tant que développement personnel et collectif.

Mots-clés: oisiveté; loisirs; subjectivité.


 

 

No Brasil, no senso comum, os termos ócio e lazer, normalmente, são entendidos como sinônimos, todavia recebem conotações diferentes (Rhoden, (2002). Etimologicamente, o ócio possui sua raiz no termo em latim otium, que denota o "nada fazer". Por sua vez, é uma derivação do termo grego scholé, que originou o vocábulo escola. Para os gregos, scholé é o tempo necessário para o desenvolvimento da reflexão e da capacidade do pensar. Já o vocábulo lazer procede do termo latim licere, ou ser lícito, ser liberado para algo, sendo reconhecido por alguns estudiosos da área como fenômeno social surgido a partir da Revolução Industrial (Dumazedier, 1979).

Tendo em vista não apenas as diferenças etimológicas desses termos, mas, sobretudo, epistemológicas, filosóficas e teóricas, surgiram duas áreas distintas de investigação, os estudos do ócio e os estudos do lazer.

Neste artigo, com base em autores como Cuenca e Prat (2012) e Larrosa (2002), diferenciamos as manifestações culturais produzidas ao longo da história da humanidade, enquanto vivências e experiências. A primeira trata de uma representação social construída a partir do mesmo significado social de uma ação humana, como ir ao cinema. Por sua vez, experiência é a qualificação subjetiva dessa vivência, portanto, individual, assumindo diversas formas de expressões de sentimentos e relevância.

Nesse sentido, os estudos do ócio têm como foco central de análise as experiências, subjetividades, produzidas a partir das distintas vivências sociais. Essa área, ainda em consolidação no Brasil, tem como idealizador o educador espanhol Manuel Cuenca, que é vinculado à Universidade de Deusto/Espanha e, desde o final da década de 1980, tomando como ponto inicial para reflexão o ócio grego, elaborou a proposta denominada de ócio humanista. Esse autor nos convoca a repensar diversos fenômenos culturais relacionados à temática. No entendimento de Sousa e Baptista (2015, p. 278), a abordagem contemporânea do ócio permite compreendê-lo enquanto momento de "(re)construção da auto identidade, de (re)elaboração da temporalidade, de aprendizagem e de desenvolvimento humano".

Por sua vez, os estudos do lazer, de maior tradição em nosso país, dedicam-se a investigar as vivências culturais realizadas no tempo livre das obrigações sociais. Enquanto objeto de estudo acadêmico, de acordo com Gomes e Rejowski (2005), tem seu início após a Primeira Guerra Mundial, quando houve o reconhecimento de direitos trabalhistas em diversos países europeus e nos Estados Unidos. Segundo essas autoras, isto ocorreu quando alguns pesquisadores sociais, àquela época, estipularam um planejamento científico para a investigação das brincadeiras e da recreação dos trabalhadores.

Especificamente no Brasil, ainda conforme as autoras em tela, somente na década de 1970, de maneira mais contundente, por meio da influência do sociólogo francês Joffre Dumazedier e de iniciativas realizadas pelo Serviço Social do Comércio, ocorreu o impulsionamento dessa área como campo de conhecimento.

As concepções dos estudos do ócio e dos estudos do lazer caracterizam-se pela interdisciplinaridade (Cuenca, 2000; Isayama & Melo, 2014). Todavia, apresentam algumas peculiaridades. Baptista (2016) destaca que a primeira corrente de investigação é de origem ibero-americana, sendo a segunda de criação anglo-saxônica.

Segundo Tôrres (2015), o estudo do ócio nos países de língua portuguesa ganha uma valiosa contribuição para sua compreensão social e acadêmica. No entanto, no Brasil, essa temática ainda recebe uma conotação pejorativa, vinculada à ociosidade e/ou preguiça (Rhoden, 2002). Por sua vez, o lazer, originalmente, também é vinculado à vagabundagem, ao tempo improdutivo (Gomes, 2004). Porém, na atualidade, é relacionado, sobretudo, ao descanso e divertimento (Aquino & Martins, 2008; Mascarenhas, 2005).

Assim, é relevante discorrer sobre as nuances de cada corrente de pensamento, de modo que se possa discuti-las criticamente, considerando suas distinções. Dessa forma, o objetivo deste trabalho é analisar essas duas áreas de conhecimento considerando suas abordagens conceituais. Para tanto, realizamos a discussão de algumas categorias de análise, entendidas como concepções, que serão apresentadas em subtópico, que compreendemos como sendo os pressupostos básicos de cada corrente de pensamento, a saber: a) básica, b) ontológica, c) epistemológica, d) categorização, e) dimensões e tipologia, f) foco e atributos, g) pedagógica, h) axiológica.

 

Procedimentos Metodológicos

Este trabalho é caracterizado como uma pesquisa bibliográfica, realizada por meio de uma revisão narrativa de literatura, que não utiliza critérios explícitos e sistemáticos para a busca e análise crítica da literatura, sendo frequentemente menos abrangente (Rother, 2007). A seleção do material que compõe a pesquisa, segundo Cordeiro, Oliveira, Renteria e Guimarães (2007), é arbitrária, pois esse tipo de revisão não precisa esgotar as fontes de informações, não exigindo um protocolo rígido para sua confecção.

Para tanto, a busca bibliográfica foi desenvolvida entre as obras de relevância sobre o tema, teses e dissertações impressas e/ou online, assim como a consulta em bases de dados, como a Scientific Eletronic Library, os Periódicos da CAPES e o Google Acadêmico, e em alguns portais específicos de revistas brasileiras relacionadas à temática, como a Revista Licere e a Revista Brasileira de Estudos do Lazer. Essa busca procedeu-se entre os meses de março a agosto de 2016, sendo utilizadas as seguintes palavras-chaves em português e espanhol: lazer e ócio.

Após o levantamento e análise do material pertinente, optamos por utilizar apenas os autores mais proeminentes em cada área. Selecionamos autores que seguem a proposta dos estudos do ócio no viés ibero-americano e autores que se fundamentam a partir do viés anglo-saxônico, sendo selecionados os trabalhos dos sociólogos Dumazedier e Marcellino, por suas importantes contribuições na construção teórica da área no Brasil (Bertini, 2005).

 

Análise das Concepções

Considerando as peculiaridades de cada área, apresentamos o Quadro 1, adaptado de Maciel (2016), que descreve algumas categorias de análise que auxiliam na compreensão das semelhanças e especificidades identificadas pelas distintas concepções. Todavia entendemos que, mesmo diante de tais características, é possível estabelecer um dialogismo entre as áreas, ao mesmo tempo em que cada uma pode desenvolver separadamente suas propostas, segundo os referenciais escolhidos.

Concepção Básica

Rhoden (2002), ao fazer uma análise sobre as experiências de ócio, assume os termos lazer, leisure, loisir como sinônimos ao ócio, tendo em vista o significado e o contexto em que são adotados. Nesse sentido, aponta as três formas mais comuns pelas quais o ócio é conhecido no meio acadêmico: 1) como uma categoria de atividade que pressupõe algumas características pertinentes à própria atividade; em outras palavras, como prática de uma atividade particular, considerada social e culturalmente como lazer ou recreação; 2) como um espaço de tempo na vida, separado e diferente do tempo de trabalho e do tempo comprometido com outras obrigações (sociais, familiares, políticas); 3) como experiência humana de caráter pessoal e subjetivo, com características psicológicas que a definem e a diferenciam enquanto fenômeno psicossocial. Ainda conforme a autora, a última concepção não colide totalmente com as apresentadas anteriormente, mas as complementa, ampliando consideravelmente o entendimento do que é ou pode vir a ser o ócio.

Considerando a última abordagem, o ócio sempre existiu enquanto fenômeno social, pois o tempo e as vivências realizadas são variáveis que interferem, mas não o definem nem o determinam (Cuenca, 2016). Na contemporaneidade, a perspectiva inicial do ócio humanista proposta por Cuenca tem por base as reflexões feitas pelo filósofo Aristóteles. Para este, o ócio era o princípio da virtude, uma vez que ele se volta para alcançar o fim supremo do homem, a felicidade (Cuenca, 2014, 2016). Esse autor relata que o ócio clássico promoveu o desenvolvimento de aspectos fundamentais para a formação humana, associando conhecimento e educação, pois possui, em sua essência, a perspectiva não utilitária das vivências culturais. Assim, pela busca do aprimoramento da virtude se alcança a sua mais alta e distinta nobreza, a felicidade, acompanhada pela inteligência, pela sabedoria e pela liberdade. Ademais, para Cuenca (2016, p. 10), "(...) o ócio é um ideal e não apenas uma ideia, é uma forma de ser, uma condição humana que é desejada, mas pouco alcançada".

Rhoden (2009) entende o ócio como vivência que não se encontra na atividade, mas na subjetividade. Monteagudo et al. (2013) relatam que é a subjetividade que aproxima as pessoas do ócio, pois apresenta uma materialidade na forma de ser e de estar no mundo conforme as circunstâncias envolvidas. Portanto, trata-se de uma disposição desejável, que possibilita o espírito de curiosidade e interesse, funcionando como agente catalisador entre o comportamento e a ação vivenciada.

Ademais, o ócio enquanto prática centrada na subjetividade não se apresenta de forma linear e causal, mas está imbricado de maneira dinâmica e complexa com os demais fenômenos culturais, independente dos tempos sociais. Seguindo essas características, Cuenca (2006, p. 14) conceituou o ócio como "(...) uma experiência integral da pessoa e um direito humano fundamental. Uma experiência humana complexa (direcional e multidimensional) e integral, isto é, centrada nas atuações queridas (gratuitas, satisfatórias), autotélica (com um fim em si) e pessoal (individual e implicações sociais)".

Conforme a visão humanista, Cuenca (2000) considera o ócio como fenômeno psicossocial, objetivando promover o autoconhecimento e, também, o reconhecimento do outro. De acordo com Rhoden (2009), essa visão aborda a autorrealização como foco, colocando o ócio em posição de estruturador e afirmador do ser humano, tirando-o totalmente de uma concepção utilitarista. Ainda segundo essa autora, o ócio humanista tem como proposta extrair do homem o máximo do seu potencial, colocando-o em uma posição de protagonista da sua própria história, agindo em sua personalidade e autoestima.

No entendimento de Monteagudo et al. (2013), o ócio se distingue do simples entretenimento ou diversão - embora sejam totalmente lícitos em suas vivências - pelo grau de envolvimento positivo com o esforço, empenho e a constância com que a pessoa se envolve em uma vivência. Dessa forma, o ócio, enquanto vivência madura e psicologicamente mais complexa, atua como fator de desenvolvimento pessoal, pois exige "(...) introspecção, reflexão, ação empenhada, consistência, formação em termos de aquisição de competências e habilidades" (Monteagudo et al., 2013, p. 163).

Quanto ao lazer, Bertini (2005) relata que a proposta clássica, no Brasil, é a concepção do lazer a partir das transformações sociais ocorridas pelo advento da Revolução Industrial, que segue a linha hegemônica proposta pelos autores Dumazedier (1979) e Marcellino (2014). Dessa forma, o lazer tem sua centralidade no tempo do não trabalho, isto é, por meio de lutas sociais entre operários e a classe patronal no final do século XIX, os trabalhadores conquistaram um tempo livre que lhes permitiam realizar determinadas atividades culturais. Alguns dos benefícios advindos dessas reivindicações repercutiram no ganho de direitos trabalhistas, como repouso remunerado, férias, redução da carga horária e aposentadoria.

Essas transformações refletiram em uma nova apropriação do uso do tempo livre pelos trabalhadores. Em meio a esse cenário, como citado por Gomes e Rejowski (2005), Dumazedier conduziu um estudo empírico, nas décadas de 1950 e 1960, em alguns países europeus, a partir do qual elaborou sua proposta sobre o lazer.

Vale ressaltar que esse sociólogo adota um viés funcionalista. Segundo Minayo (2008), o funcionalismo é uma das variantes da sociologia positivista que pretende substituir as explicações apresentadas pelos sujeitos sociais investigados, isto é, a subjetividade, pelos aspectos determinantes dos sistemas culturais e busca sentido da inter-relação entre órgãos e funções que compõem a sociedade. Para Padilha (1992), o lazer é entendido como funcionalista à medida que lhe é atribuída a função de estabelecer um equilíbrio-harmonia pessoal e/ou coletivo, isto é, como um remédio ou solução para possíveis problemas sociais provocados pelo trabalho.

Nessa perspectiva, o lazer seria compreendido como uma atividade realizada como meio, e não um fim em si mesmo, isto é, serve para se alcançar um "bem maior", seja no âmbito pessoal, seja social, deixando para segundo plano as experiências decorrentes de sua vivência. Portanto, a concepção do lazer segue uma vertente epistemológica distinta do ócio.

O lazer como fruto das conquistas laborais, isto é, vinculado inicialmente ao tempo do não trabalho, de improdutividade, serve como forma de recuperação das energias psicofisiológicas para retornar ao trabalho (Aquino & Martins, 2008). Partindo desse princípio, Dumazedier (1979, p. 34) conceituou o lazer como:

(...) um conjunto de ocupações às quais o indivíduo pode entregar-se de livre vontade, seja para repousar, seja para divertir-se, recrear-se e entreter-se ou ainda, para desenvolver sua informação ou formação desinteressada, sua participação social voluntária ou sua livre capacidade criadora após livrar-se ou desembaraçar-se das obrigações profissionais, familiares e sociais.

Alinhado às ideias de Dumazedier, nos anos de 1980, Marcellino propôs suas reflexões sobre o lazer tendo uma abordagem educacional, formulando o seu conceito sobre a temática, "(...) como a cultura compreendida no seu sentido mais amplo, vivenciada (praticada ou fruída) no tempo disponível (...)" (Marcellino, 2014, p. 31).

Ainda no cenário nacional, Gomes e Pinto (2009) tecem alguns comentários sobre a concepção do lazer. As autoras o entendem como uma dimensão da cultura construída socialmente a partir de três elementos inter-relacionados: a) tempo-espaço: corresponde ao usufruto do momento presente, não se limitando aos períodos institucionalizados - final de semana, férias - que vão além do espaço físico, por ser um local do qual os sujeitos se apropriam no sentido de transformá-lo em ponto de encontro - consigo, com os outros e com o mundo - e de convívio social; b) manifestações culturais: conteúdos vivenciados como fruição da cultura, seja como possibilidade de diversão, de descanso, seja de desenvolvimento; c) ações: fundadas no lúdico, sendo entendido como expressão humana de significados da/na cultura referenciada no brincar consigo, com o outro e com a realidade.

Em síntese, entendemos que o ócio tem como cerne uma concepção filosófica, enquanto o lazer segue uma abordagem sociológica do uso do tempo livre.

Concepção Ontológica

A perspectiva ontológica aborda a discussão sobre a natureza humana, isto é, de como o ser humano é compreendido em determinada perspectiva filosófica e social. Dessa forma, a visão ontológica assumida pelo pesquisador deve ser coerente com a abordagem epistemológica, a qual influenciará diretamente a construção do seu olhar sobre o objeto investigado.

Considerando essa questão, Triviños (1987) distingue as vertentes ontológicas em idealismo e materialismo. Segundo esse autor, essa diferenciação se refere à definição da primazia entre o espírito e a matéria. A concepção adotada pelo idealismo, originalmente, prioriza o espírito, que considera a ideia, o pensamento, a consciência sobre a matéria -; por outro lado, o inverso compõe o pensamento materialista, o qual observa o mundo real, defende que os fatos devem ser explicados a partir de si mesmo, até porque a matéria é a realidade objetiva, existe independente de nossa percepção ou consciência.

Os estudos do ócio, no nosso entender, adotam a concepção ontológica idealista. Francileudo (2009) e Francileudo e Martins (2016) compreendem que o ócio é inerente ao ser humano, portanto, ontologicamente constitutivo dele. Francileudo (2009, p. 65) assume essa percepção ao declarar que "essa experiência ontológica de ser faz crer que a pessoa transcende a si mesma e se torna parte de algo maior, ocorrendo mudança interior, crescimento profundo".

Essa perspectiva permite compreender o ócio como uma experiência atemporal, trazendo consigo, como características, comportamentos e ações diversas observadas no cotidiano. Essas experiências podem ocorrer, por exemplo, no trabalho, no tempo livre, na escola, no ambiente doméstico e nas diferentes relações sociais. Portanto, constituem inúmeras ações que são realizadas, sejam elas tradicionais, sejam adaptadas, sejam reproduzidas, sejam criadas pela dinamicidade e complexidade das manifestações sociais decorrentes de cada época e meio cultural. Assim, considerando as peculiaridades do ócio, a sua experiência pode ocorrer de forma híbrida/simultânea com diferentes práticas sociais (Cuenca, 2016).

Diferentemente do idealismo, a vertente do materialismo, que posteriormente embasou a proposta do materialismo histórico dialético (MHD) apresentada por Marx, grosso modo, concebe suas análises a partir da materialidade da existência, notadamente do trabalho, dimensão fundante de análise. Segundo Marx (2004), é por meio do trabalho que o homem produz os materiais necessários para sua sobrevivência. Assim, o homem faz sua história à medida que modifica os meios de produção e transforma a natureza; o homem evolui, muda a sociedade, transformando-a.

Conforme Marx (2004) e Lukács (1978), o trabalho é inerente à vida humana, isto é, uma dimensão ontológica fundamental, pois, por meio dele, o homem cria livre e conscientemente a realidade, bem como permite dar um salto da mera existência à sociabilidade. Assim, é a condição material do trabalho que define o tipo de realidade a que se tem acesso, inclusive o lazer.

O lazer, sendo compreendido como dialético ao trabalho (Gomes, 2004) e, a partir do tempo livre surgido, como conquista da classe operária, segundo nosso entendimento, tende a reconhecer o materialismo enquanto concepção ontológica, assumindo a centralidade do trabalho na vida do ser humano.

Concepção Epistemológica

No que diz respeito à abordagem epistemológica, Triviños (1987) traz à discussão as três concepções epistemológicas mais utilizadas no âmbito da educação e das ciências sociais: o materialismo histórico dialético, o positivismo e a fenomenologia.

Entendemos que o ócio segue uma perspectiva fenomenológica, ressaltando as subjetividades das vivências. Segundo Triviños (1987), a ideia fundamental da fenomenologia é a noção de intencionalidade, a qual denota uma consciência que sempre está dirigida a um objeto. Assim, essa vertente se detém na análise do puramente vivido ou experimentado, nos significados e na percepção do ser humano. Em outras palavras, quer dizer que tanto os objetos como os atos da consciência, sejam cognitivos, sejam volitivos, sejam afetivos, são fenômenos passíveis de sua investigação.

O lazer entendido como fenômeno moderno, tendo suas raízes compreendidas a partir da centralidade do trabalho, portanto, materialista, segue uma perspectiva advinda, sobretudo, do MHD. Dumazedier (1979) caracteriza o lazer a partir do enfoque empirista relacionado ao não trabalho, tendo como arcabouço a vertente da sociologia positivista que destaca a importância do sentido social da conduta humana em oposição às atribuições individuais dos motivos das condutas. Dito de outra forma, essa proposta pretende substituir as explicações apresentadas pelos sujeitos sociais investigados, isto é, as subjetividades, pelos aspectos determinantes dos sistemas culturais, e busca sentido na inter-relação entre órgãos e funções que compõem a sociedade.

Investigar o lazer pela lente do MHD é compreendê-lo por meio de conhecimentos que permitem categorizá-lo pela progressão dos acontecimentos sociais e históricos. Nessa perspectiva, o lazer é visto como um meio contra-hegemônico e de resistência e transformação social. Sendo entendido, portanto, não apenas como uma vivência, mas como uma prática social pautada nos aspectos político-culturais, potencialmente promotora de uma nova ordem social, mais justa e igualitária.

Como visto, os enfoques epistemológicos assumidos por cada corrente determinam diferentes concepções a serem seguidas pelos pesquisadores, influenciando o foco da temporalidade da vivência do ócio e/ou do lazer. Todavia, ressaltamos que essa decisão retrata as escolhas feitas pelos pesquisadores, segundo seus princípios e valores, devendo, assim, estar acima de qualquer aspecto axiológico pelos pares.

Concepção Categorização

Considerando a caracterização das vivências culturais, as duas correntes estabelecem uma categorização. A partir da perspectiva do ócio enquanto fenômeno psicossocial, Cuenca (2003) propõe quatro categorias de análise, conforme os valores, atitudes, significados e sentidos atribuídos por cada pessoa ao vivenciá-lo: exotélico, ausente, nocivo e autotélico.

O ócio exotélico apresenta como principal característica para sua vivência a motivação extrínseca, isto é, a pessoa se apóia em objetivos externos, para além do que a vivência oferece em sua essência. Por exemplo, fazer atividade física não por que gosta, mas com objetivo de perder peso, por questões de prevenção do acometimento de alguma doença ou por questões estéticas. A pessoa pode até ter escolhido determinada vivência de forma livre e espontaneamente, todavia a sua satisfação não está nela propriamente dita, mas no resultado pretendido.

O ócio ausente, ou passivo, consiste em uma vivência que busca um fim externo e que, além disso, possui uma característica própria em relação à percepção negativa do tempo, isto é, de querer preenchê-lo. Também pode estar associado à alienação que algumas vivências propiciam, como assistir televisão para preencher o tempo livre e/ou fugir do tédio. O ócio nocivo, por sua vez, perpassa por questões axiológicas, percepções que as vivências podem gerar consequências danosas para a pessoa ou para a sociedade.

Por fim, a última categorização do ócio, o autotélico, entendido por Cuenca como a plena vivência do ócio, diferenciando-se dos demais tipos correlatos, pois apresenta peculiaridades, como os atributos de percepção da liberdade, livre escolha, motivação intrínseca e satisfação (Cuenca, 2003, 2008; Francileudo, 2013; Monteagudo et al., 2013).

Em relação às categorias do lazer, Marcellino (2014) discorre sobre suas abordagens funcionalistas: 1) romântica - marcada pelos valores sociais tradicionais. Corresponde à nostalgia de práticas que ocorreram, remetendo às memórias agradáveis; 2) moralista - valor construtivo para a tranquilidade, a ordem e a segurança social; 3) compensatória - serve como oposição ao trabalho. Tem como objetivo compensar a insatisfação, a alienação promovida pelo trabalho e restaurar a dignidade humana; 4) utilitarista - visa oferecer a recuperação psicobiológica do trabalhador para aumentar a produtividade.

Em síntese, ainda segundo esse autor, a visão funcionalista do lazer busca promover: a paz social, a manutenção da ordem e suportar as imposições obrigatórias ao trabalhador, além da ocupação do tempo livre em atividades equilibradas, socialmente aceitas e moralmente corretas.

Categorias Dimensões e Tipologia

A partir das categorizações, podem-se estabelecer algumas distinções quanto às dimensões assumidas pelos estudos do ócio e estudos do lazer. Considerando as dimensões que permeiam o ócio autotélico, Cuenca (2003) o classifica em cinco perspectivas: lúdica, festiva, criativa, solidária e ambiental-ecológica.

A primeira dimensão está relacionada ao relaxamento e diversão, à "fuga da realidade cotidiana" e ao equilíbrio das funções mentais e físicas. Portanto, está ligada à regeneração do equilíbrio psicofisológico, ao descanso, bem como à interação com os jogos e aatividade física, que têm como objetivo promover a interação social e o autoconhecimento da pessoa.

A dimensão festiva está relacionada ao entretenimento, à alegria durante um evento, por exemplo, sagrado-religioso, sociocultural. Esse momento propõe um ambiente de bom humor, de liberdade, com caráter de não produtividade. Na festa acontecem atividades como canto, música e dança, sendo momentos de manifestação da identidade e solidariedade coletiva.

O momento da interação do ócio com a cultura, proporcionando uma formação, reflexão e crescimento pessoal, caracteriza a dimensão criativa. Nela se identifica a possibilidade de liberdade de ação e escolha, promovendo a satisfação pela intencionalidade da ação ativa com a experiência. Portanto, trata de uma atitude consciente e ativa, relacionada à autorrealização, aprendizagem e formação da pessoa. Enfim, refere-se a uma dimensão criativa e gratificante, possibilitando o desenvolvimento pessoal e um sentimento de alegria.

A dimensão ecológico-ambiental é um contato direto com a natureza, que permite o desenvolvimento de uma sensibilidade, aproximação com a beleza peculiar e um momento de contemplação. Essa experiência se dá em meio a locais que aproximam as pessoas da essência do equilíbrio da vida com a natureza, trazendo um sentimento de paz e equilíbrio interior, permitindo o (re)encontro do homem consigo e com o meio ao seu redor.

Por fim, Cuenca (ANO), cita a dimensão solidária ou de voluntariado, relacionada à experiência altruísta e social do ócio e, ao mesmo tempo, à participação em atividades desprendidas do egoísmo, isto é, que deixam de ser centradas em vivências que realizamos para o próprio sentimento de satisfação pessoal. Dessa forma, tem o intuito promover uma ajuda às pessoas que estão precisando de auxílio, sendo o exercício de uma responsabilidade social.

Essas dimensões, entendidas enquanto práticas sociais, assumem um caráter subjetivo imbricado ao cotidiano da pessoa. Portanto, relacionam-se de maneira dinâmica com os demais fenômenos e tempos sociais. Todavia, diante da complexidade assumida pelo fenômeno sociocultural, não é tão simples compreendê-lo em sua totalidade.

Tendo em vista uma classificação quanto aos tipos de ócio, Rhoden (2009) o subdivide em dois momentos, de acordo com a intensidade e o envolvimento com a vivência: estado de ócio e experiência de ócio.

O estado de ócio, embora pressuponha as mesmas qualidades psicossociais da experiência de ócio, apresenta-se em graus muito mais elevados de intensidade, profundidade e impacto, como viagens de férias e eventos familiares. Em outras palavras, apresenta características chamadas de experiências pico, nas quais a pessoa está envolvida com a vivência o suficiente para se fascinar por ela.

Por sua vez, as experiências de ócio, segundo Rhoden (2009), podem ser vivenciadas em "micro tempos sociais", isto é, a qualquer momento, podendo ocorrer diversas vezes ao longo do dia, pois dependem da subjetividade de como cada pessoa realiza as atividades do seu dia a dia. Portanto, essa perspectiva propõe maior fluidez, autonomia e liberdade às vivências pessoais. Assim, tanto o estado quanto as experiências de ócio podem ser explicados pelos mesmos aspectos da vivência, entretanto variam em graus de intensidade, dependendo da situação vivida.

Nos estudos do lazer, normalmente, as categorias são denominadas enquanto "conteúdos culturais do lazer", conforme os seguintes autores: 1) Dumazedier (1979): a) físico-esportivos - são as diferentes modalidades de atividades físicas; b) manuais - são atividades ligadas ao prazer de manipular, explorar e transformar diferentes objetos, como a bricolagem; c) artísticos - é a pratica e/ou assistência das diferentes formas de cultura erudita, como cinema, teatro, literatura e artes plásticas; d) intelectuais - está relacionado à busca de conhecimentos nas suas distintas possibilidades de acesso à informação; e) sociais - está relacionado com a busca do convívio social; 2) Camargo (1998): turístico - é a possibilidade de viajar, seja para outras cidades, seja para praias, em meio à natureza, com o intuito de ter novas vivências culturais; 3) Schwartz (2003): virtual - é a busca de vivências possibilitadas pelo acesso aos diferentes meios virtuais, como jogos on-line e navegação na internet.

Importante ressaltar que a vivência desses conteúdos culturais, muitas vezes, pode ocorrer de forma simultânea. Por exemplo, uma pessoa pode estar fazendo uma viagem (conteúdo turístico) para participar de uma atividade esportiva em meio à natureza (conteúdo físico-esportivo) e, ao mesmo tempo, ter contato com diferentes pessoas (conteúdo social). Também é possível desfrutar de apenas um desses conteúdos de forma isolada, como simplesmente ler um livro, conversar com os amigos ou tocar um instrumento musical.

Quanto aos tipos de lazer, considerando os atributos propostos por Dumazedier (1979), podem ser classificados em dois tipos: 1) lazer propriamente dito, atendendo às características lhe são atribuídas; 2) semilazer - atividades que não contemplam todos os atributos integralmente, mas que, de alguma forma, permitem identificar a existência de algumas de suas características, como um jantar de negócios no qual está trabalhando, mas a atividade lhe é prazerosa e lhe permite um convívio social. Em outras palavras, é uma atividade que não é realizada totalmente em um tempo livre da obrigação de trabalho ou social, mas é agradável para a pessoa.

Categoria Foco e Atributos

Quanto ao foco, os estudos do ócio apregoam que o ócio autotélico deve promover, primeiramente, mudanças internas, ou seja, na (re)construção do próprio ser. E, como consequência, deve reflitir em transformações tanto internas (saúde, afetiva, cognitiva) quanto externas (comunitárias). Conforme Cuenca (2016, p. 167):

Os benefícios que as pessoas percebem como resultado do ócio são diferentes dependendo se o ócio de que gostam é mais ou menos valioso do ponto de vista do desenvolvimento humano. As pessoas que desenvolveram formas valiosas de ócio percebem, melhor que os outros, os benefícios associados com a sensação de competência, o enriquecimento pessoal e o reconhecimento social.

Os atributos que caracterizam o ócio são a percepção de liberdade, a livre escolha e a satisfação. O primeiro atributo, segundo Monteagudo et al. (2013), refere-se à forma de identificação no momento em que o ócio é vivenciado. Esse momento não é percebido como um tempo cronológico; então, não pode ser medido. Segundo esses autores, essa percepção garante que a pessoa se sinta livre das obrigações, sem deixar de fazê-las.

Quanto à escolha da vivência, Cuenca (2008, p. 48) propõe que "(...) as experiências de ócio nos situam num âmbito que não está dominado pelo dever ou pela obrigação, mas pelas ações com finalidade em si mesmas e por si mesmas (...)", em outras palavras, a pessoa pode escolher livremente o que quer fazer. O terceiro atributo, a motivação intrínseca, como característica do ócio autotélico, permite a identificação, ou afinidade, com determinada vivência, deixando de lado a necessidade de obter alguma recompensa material ou psicológica ao realizá-la. Isto porque essa vivência, por si só, é a própria recompensa. Logo, o seu benefício sempre será a autossatisfação. Segundo Monteagudo et al. (2013), a motivação é uma construção dinâmica que pode experimentar mudanças causadas por fatores externos e internos. Assim, incialmente, pode-se ter uma vivência de ócio exotélico e, posteriormente, adquirir um gosto por ela, passando a desenvolver uma motivação intrínseca ou vice-versa.

Por fim, a satisfação, outro atributo essencial do ócio, é responsável pela sensação subjetiva de alegria, bem-estar e felicidade, atribuída e entendida como resultado da ação da experiência de ócio normalmente (Monteagudo et al., 2013). Esses autores diferenciam a satisfação promovida pelo ócio com a noção do simples prazer hedonista advindo, por exemplo, de uma diversão. Ainda conforme esses autores, na primeira situação, há um manifestar potencializador promovido pela vivência, que gera o desenvolvimento da condição humana. Complementando o raciocínio, os autores alegam que:

A satisfação de que falamos é experimentada pela capacidade que o ócio tem em resposta a necessidades inatas que o ser humano tem de mudar, crescer, melhorar e superar. O ócio imprime sentido à vida através da sua capacidade de nos fazer sentir vivos, pessoas de valor, em estado de progresso permanente. (Monteagudo et al., 2013, p. 160)

O sentimento de satisfação, conforme Francileudo (2013), não se caracteriza somente pelo prazer, consiste também na descoberta do próprio "eu interior", podendo ser transcendental - ocorrendo, inclusive, em momentos de meditação, oração, reflexão - ou nas capacidades adquiridas. Assim, a descoberta do ser, de acordo com Rhoden (2002), é um fator decisivo na interpretação da vivência, porque a experiência de satisfação depende do quanto a pessoa se identifica com o que está fazendo. Também, segundo essa autora, é importante que a pessoa seja capacitada o suficiente para executar tal tarefa, para não se frustrar com possíveis resultados negativos.

O desenvolvimento da complexidade de uma vivência de ócio não ocorre espontaneamente, mas em meio a um processo consciente, ou inconsciente, quando há a possibilidade de adquirir novas habilidades, ampliar seus conhecimentos, desfrutar de experiências agradáveis, e também menos agradáveis, para superar desafios, possibilitando a sua formação humana (Monteagudo et al., 2013). De acordo com esses autores, para que isso aconteça, é premente que a pessoa envolvida na vivência em questão tenha consciência dos benefícios decorrentes da mesma, contudo sem que se tornem uma meta utilitária.

Quanto à temporalidade envolvida no sentimento da satisfação do ócio, Monteagudo et al. (2013) entendem que ela pode estar permeada em distintos momentos: antes, durante e o depois de vivenciá-la. A satisfação que antecede o momento do ócio, isto é, a sua preparação, envolve uma antecipação cognitiva, que se traduz na criação de expectativas em torno dele. Por sua vez, durante ou após a sua vivência, o ócio produz sentimentos que o acompanham, permanecendo associados às recordações alegres que se darão na memória.

A contribuição do ócio para o desenvolvimento humano ocorre a partir do momento em que as suas vivências requerem um grau de complexidade psicológica, promovendo transformações pessoais. Rhoden (2008) destaca que o desenvolvimento pessoal, no âmbito psicológico, conduz ao aprimoramento da capacidade de autoconhecimento por meio da introspecção, do processo psicológico (cognitivo, emocional ou espiritual), do aprender a parar, escutar, meditar e contemplar. Enfim, para essa autora, o ócio contribui para a construção da estruturação da personalidade.

Quanto aos atributos do lazer, Dumazedier (1979) apresenta as seguintes características que balizam a sua prática: 1) livre escolha - liberação das obrigações institucionais, sejam profissionais, sejam familiares, sejam sociais, sejam espirituais/religiosas e políticas; 2) caráter desinteressado - não está vinculado a nenhum tipo de fim como recompensa última, isto é, sem fim lucrativo, profissional, utilitarista, ideológico, material, social, político e /ouespiritual/religioso; 3) hedonismo - notadamente, deve buscar um estado de prazer, tomado como um fim em si mesmo, representando a sua condição primária; 4) pessoal - objetiva atingir um aspecto funcionalista ao promover o descanso, o divertimento e o desenvolvimento individual da personalidade em detrimento das obrigações primárias impostas pela sociedade.

Percebemos algumas similaridades entre os atributos propostos pelas duas correntes de pensamento, sobretudo quanto à livre escolha, ao caráter desinteressado e à impessoalidade. Diferentemente, os estudos do ócio adotam a perspectiva da satisfação em detrimento ao prazer, adotado pelos estudos do lazer. Isto não quer dizer que, durante o lazer, não possa existir o sentimento de satisfação, todavia são formas distintas de compreender uma das manifestações decorrentes dessas vivências.

Concepção Pedagógica

Para Cuenca (2008, 2016), a compreensão do ócio não se dá de forma voluntária, sendo necessária uma intervenção pedagógica que possibilite uma apropriação de sua proposta enquanto um ideal de vida - o que é diferente de idealização, ou seja, uma pasteurização ou uniformização das ações humanas. Dessa forma, os profissionais da área precisam de uma formação que contemple a concepção filosófica e teórica sobre o ócio humanista, para além da tradicional discussão superficial do ócio grego, para poder refletir com as pessoas. A educação para o ócio, segundo Cuenca (2008), contempla o desenvolvimento de valores, atitudes, habilidades e conhecimentos pessoais, de modo a promover uma liberdade responsável e generosidade pessoal. Portanto, não se trata de ensinar como melhor utilizar o tempo livre, a compensação do tédio ou a prevenção de vícios sociais. Nessa perspectiva, corrobora a ideia apresentada por Francileudo e Martins (2016), sobre atribuir um sentido à vida e atentar para a dignidade humana, tão afetada pela sociedade consumista na contemporaneidade.

Os estudos do lazer, por meio de Dumazedier (1979), atribuem às práticas de lazer funções relacionadas ao divertimento, descanso e desenvolvimento. Marcellino (2014), por sua vez, defende a proposta do lazer como meio de emancipação cultural e social a partir da perspectiva gramsciana. Ainda de acordo com Marcellino (2014), p. 63), "(...) o verdadeiro aspecto educativo do lazer se dá com um dos possíveis canais de atuação no plano cultural, tendo em vista contribuir para uma nova ordem moral e intelectual, favorecedora de mudanças no plano social, ou seja, contra hegemonia".

Semelhante a Cuenca, Marcellino (2014) também aponta a necessidade de uma intervenção formativa. Conforme o último autor:

É importante que as atividades de lazer procurem atender as pessoas no seu todo. Para isso, as pessoas precisam saber a escolha, a opção, em termos de conteúdo, que está relacionado ao conhecimento das alternativas que o lazer oferece. Para isso, é preciso um mínimo de orientação que permite essa opção. (Marcellino, 2014, p. 122)

De acordo com Marcellino (2014), o desenvolvimento do lazer enquanto componente cultural requer competência técnica e opção política. Assim, o autor sugere a intervenção profissional por meio da proposta da "pedagogia da animação", a qual segue a perspectiva de mudança relacionada a um processo amplo de educação, que considere as relações entre as possibilidades da escola e as potencialidades educativas do lazer, não como redenção de uma situação social injusta, mas como canal de possível transformação.

Em síntese, ambas as áreas de conhecimento apontam a necessidade de intervenções pedagógicas que contribuam para a formação humana, embora com enfoques distintos quanto aos meios e aos fins das vivências.

Concepção Axiológica

Por fim, o último aspecto apresentado diz respeito à axiologia. Discutir valores na sociedade pós-moderna se tornou algo melindroso, podendo ser entendido, sobretudo, como juízo de valor, estereótipo moralista, sobre quem se atreve a ponderar sobre as escolhas pessoais e condutas sociais.

O relativismo característico dessa sociedade parece que deve prevalecer diante de posicionamentos distintos. Todavia escolher as vivências que têm o potencial de promover a virtude não é adotar um discurso moralista, pois cada um tem seu livre arbítrio. Este é um dos princípios defendidos tanto pelo ócio quanto pelo lazer. Assim, não se trata de julgar as escolhas, mas priorizar aquelas que promovam o desenvolvimento humano conforme o entendimento de quem opta por determinada vivência.

Tanto na concepção clássica, proposta por Aristóteles, quanto na concepção atual, apresentada por Cuenca (2016), o ócio autotélico "(...) convoca um compromisso pessoal, que acontece quando tomamos consciência do caráter diferencial da prática da atividade e imergimos em um processo consciente de desenvolvimento" (Cuenca, 2016, p. 13). Para Cuenca, o ócio autotélico nunca promoverá vivências contrárias à virtude e ao desenvolvimento do ser humano.

Embora priorize a vivência do ócio autotélico, como fim em si mesmo e virtuoso, Cuenca não nega a existência do ócio nocivo, que é prejudicial tanto à pessoa quanto à sociedade. Rojek (2011) também discute essa questão ao apontar que há determinadas práticas de lazer que podem ser prejudiciais, em dados contextos, tanto em âmbito subjetivo quanto social.

 

Considerações Finais

Refletir sobre as diferentes concepções dos estudos do ócio e dos estudos do lazer é buscar uma ampliação do entendimento sobre as nuances de cada área. Não menos importante é desfazer determinados mitos e prestar os devidos esclarecimentos sobre algumas das diretrizes que norteiam essas concepções.

Ao considerar as diferentes categorias de análise elencadas ao longo do texto, ainda que de forma sucinta, é possível identificar a existência de semelhanças e também de especificidades de cada área, todavia essas características não se dão apenas em função de observações por parte dos pesquisadores quanto aos "termos" e às "práticas" analisadas, pois termos e práticas podem mudar, ou não, com o tempo. Nessa relação, alguns termos se modificam, enquanto as práticas permanecem iguais, ou o inverso; ou, ainda, ocorrem ressignificações em ambos os aspectos.

Apresentamos algumas das especificidades que embasam as diretrizes de cada concepção, todavia não tínhamos a intenção de esgotar o assunto, pois as concepções podem apresentar diferentes formas de compreender determinado fenômeno social a partir das escolhas feitas pelos pesquisadores, assim como pelas representações sociais apontadas pelos agentes sociais.

Em geral, os estudos de ócio seguem uma abordagem fenomenológica, tendo a Psicologia Social como base teórica e investigando os aspectos relacionados ao ser, isto é, as subjetividades das experiências em diferentes tempos socais. Os estudos do lazer, por sua vez, concentram-se, sobretudo, na investigação das atividades realizadas no tempo livre enquanto conquista social, permeada pelas relações da classe trabalhadora e do capital, como direito social, valorização da cultura popular e dos movimentos sociais, e meio de transformação social, tendo como arcabouço epistemológico o MHD e, teoricamente, a Sociologia.

Enquanto similaridade entre as concepções, identificamos a necessidade de uma intervenção pedagógica e alguns atributos que refletem sobre as subjetividades. Dessa forma, acreditamos que estabelecer um dialogismo de ambas as áreas pode contribuir para ampliar a compreensão das subjetividades envolvidas na análise de determinado fenômeno social e, por conseguinte, na produção do conhecimento.

Para tanto, entendemos que o comportamento humano não pode ser descrito e muito menos explicado apenas com base em suas características exteriores e objetiváveis, sendo necessário priorizar os aspectos que permeiam as interpretações das subjetividades nos diferentes contextos sociais.

Focar as subjetividades é buscar construir propósitos a partir das realidades pessoais e/ou coletivas, que compreendem as situações com base em suas experiências, memórias e expectativas. Ademais, essas realidades seriam elaboradas e sistematicamente reelaboradas com base nas experiências dos investigadores e dos agentes sociais, o que possibilitaria interpretações dissonantes em querer determinar apenas uma realidade, pois trata do efeito dessas interações em uma situação específica que, muitas vezes, não pode ser generalizada.

Assim, as interpretações das subjetividades podem possibilitar a compreensão das realidades ao longo do tempo como um desdobramento natural das percepções pessoais e/ou coletivas, valendo-se dos princípios influenciadores em como os agentes sociais tomam consciência de si próprios e do mundo. Para tanto, é necessário interpretar as normas e regras sociais ao construir as interações.

Por fim, considerar as subjetividades é entender que a ação humana é significativa, tendo em vista o seu conteúdo intencional, que indica o tipo de ação e/ou que o significado de uma ação pode ser compreendido como o sistema simbólico e cultural a que pertence. Dessa forma, para que um determinado fenômeno social que envolve o ócio e/ou o lazer seja entendido, é necessário que os pesquisadores compreendam os significados e a qualificação que os atores sociais atribuem às suas vivências, assim como à complexidade multifatorial e multidimensional que as envolvem.

 

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Endereço para correspondência:
Marcos Gonçalves Maciel
Email: marcos.maciel@uemg.br

Luiz Alex Silva Saraiva
Email: saraiva@face.ufmg.br

José Clerton Oliveira Martins
Email: jclertonmartins@gmail.com

Recebido em: 13/07/2017
Revisado em: 14/07/2018
Aceito em: 24/11/2018

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