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Revista Subjetividades

versão impressa ISSN 2359-0769versão On-line ISSN 2359-0777

Rev. Subj. vol.18 no.2 Fortaleza maio/ago. 2018

http://dx.doi.org/10.5020/23590777.rs.v18i2.7113 

RELATOS DE PESQUISA

 

Contexto físico e sociocultural de uma aldeia indígena "Tembé" na amazônia brasileira

 

Physical and sociocultural context of "Tembé" indigenous village in brazilian amazonia

 

Contexto físico y sociocultural de um pueblo indígena "Tembé" en la amazonia brasileña

 

Contexte physique et socioculturel chez "Tembé", un village autochtone dans l'amazonie brésilienne

 

 

Miriam Dantas de Almeida (Lattes) (OrcID)I; Janari da Silva Pedroso (Lattes) (OrcID)II; Celina Maria Colino Magalhães (Lattes) (OrcID)III; Estela Márcia França Aido (Lattes) (OrcID)IV

IPsicóloga. Mestrado em Psicologia pela Universidade Federal do Pará (UFPA), no Programa de Pós-Graduação em Psicologia
IIPsicólogo. Pós-Doutorado em Psicologia (Universidade Católica de Brasília). Professor Associado 3 da Faculdade de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFPA
IIIDoutora em Psicologia (Psicologia Experimental) pela Universidade de São Paulo. Atualmente é Professora Titular da UFPA
IVMestranda em Psicologia Social e Clínica no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFPA

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O estudo do desenvolvimento humano se faz necessário nos diversos contextos socioculturais, pois a partir dele é possível identificar as variáveis que influenciam no ciclo da vida. O contexto para realização da pesquisa foi a aldeia indígena Tenetehar-Tembé, localizada na Terra Indígena do Alto Rio Guamá (TIARG), na Amazônia brasileira. Realizou-se uma pesquisa qualitativa, com utilização de instrumentos de observação participante e diário de campo, que permitiram a descrição do contexto físico e social dessa comunidade. Houve a participação do cacique, das lideranças e dos professores indígenas da aldeia Sede. Objetivou-se com este estudo relatar a estruturação física e sociocultural da aldeia Sede, onde residem os Tenetehar-Tembé, à luz da Teoria do Nicho Desenvolvimental, com enfoque no subsistema denominado de Contexto Físico e Social. Os dados coletados foram sistematizados em eixos temáticos para melhor compreensão e análise, a saber: a aldeia como lugar de todos os indígenas; espaço social da aldeia sede; ambientes sagrados da aldeia; e o tempo na aldeia. Tais categorias revelaram o conceito que os indígenas têm sobre ambiente físico e social, do lugar que eles habitam e o respeito que possuem dos lugares sagrados em determinados horários. Práticas que abrangem desde crianças até as pessoas idosas da aldeia, o que exerce influência direta no curso desenvolvimental. Entende-se ser necessário refletir sobre a maneira como os cuidadores tratam suas crianças e no que acreditam ser adequado ao cuidado delas, correlacionando com o ambiente em que são cuidadas, uma vez que essa relação se configura e é construída no meio sociocultural em que estão inseridos.

Palavras-chave: nicho desenvolvimental; crenças; práticas; índios; Amazônia.


ABSTRACT

The study of human development becomes necessary in the different sociocultural contexts, because from there it is possible to identify the variables that influence the cycle of life. The context for the realization of the investigation was the indigenous Tenetehar-Tembé, located on the Indigenous Land of Alto Rio Guamá (TIARG), in the Brazilian Amazon. A qualitative survey was carried out, such as the use of participatory observation instruments and the field diary, which allowed us to describe the physical and social context of this community. There was the participation of the cacique (village chief), of the leaders and the indigenous professors of the Headquarters district. It was aimed here to report the physical and sociocultural structure of the village headquarter, where the Tenetehar-Tembé live, in the light of the Developmental Niche Theory, with an approach in the so-called Physical and Social Context subsystem. The collected data were systematized in thematic areas for better understanding and analysis, namely: the village as a place for all indigenous people; social space of the headquarters village; sacred environments of the village; and the time in the village. These categories have revealed the concept that indigenous peoples have about physical and social environment, the place they inhabit and the respect we have of sacred places in certain hours. Practices that ranges from children to the elderly people in the village which has a direct influence on the developmental course. It is understood to be necessary to reflect on the manner in which caregivers treat their breeding and in what they prove to be appropriate for their care, correlating how the environment in which they are taken care of, once the relationship is configured and is built in the socio-cultural medium in which they are inserted.

Keywords: developmental niche; beliefs; practices; indians; Amazon.


RESUMEN

El estudio del desarrollo humano es necesario para los distintos contextos socioculturales, porque por él es posible identificar las variables que influyen en el ciclo de la vida. El contexto para realización de la investigación fue el pueblo indígena Tenetahar- Tembé, ubicado en la Tierra Indígena del Alto Río Guamá (TIARG), en la Amazonia brasileña. Una investigación cualitativa fue realizada con la utilización de equipos de observación participante y diario de campo, que permitieron la descripción del contexto físico y social de esa comunidad. Hubo la participación del cacique, de los líderes y de los profesores indígenas del pueblo Sede. El objetivo de este trabajo es informar la estructuración física y sociocultural del pueblo Sede, dónde viven los Tenetahar-Tembé, a la luz de la Teoría del Nicho de Desarrollo, con enfoque en el subsistema nombrado Contexto Físico y Social. Los datos fueron sistematizados en ejes temáticos para mejor comprensión y análisis, es decir: el pueblo como lugar de todos los indígenas; espacio social del pueblo; ambientes sagrados del pueblo; y el tiempo en el pueblo. Estas categorías muestran el concepto que los indígenas tienen sobre ambiente físico y social, del lugar donde viven y el respeto que poseen de los lugares sagrados en determinados horarios. Prácticas que envuelven desde niños hasta los mayores del pueblo influyen directamente el curso del desarrollo. Se entiende ser necesario reflexionar sobre la forma como los cuidadores tratan a sus niños y en qué creen ser adecuado a los cuidados con ellos, relacionando con el ambiente en el que son cuidados, una vez que esa relación se constituye y es construida en el medio sociocultural en que están metidos.

Palabraas clave: nicho desarrollo; creencias; prácticas; indígenas; Amazonia.


RÉSUMÉ

L'étude du développement humain est nécessaire dans plusieurs contextes socioculturels, parce qu'il est possible d'identifier les variables qui influencent le cycle de vie, à partir de ces études. Le contexte dans lequel se déroulait la recherche a été le village autochtone "Tenetehar-Tembé", situé dans le territoire autochtone Alto do Rio Guamá (TIARG), dans l'Amazonie brésilienne. Une recherche qualitative a été réalisée, à l'aide d'outils d'observation et de journaux de terrain, qui ont permit la description du contexte physique et social de cette communauté. Il y a eu la participation du chef tribal, des dirigeants et des enseignants indigènes du village siège. L'objectif de cette étude a été de rendre compte de la structure physique et socioculturelle du village siège, où résident les Tenetehar-Tembé, en utilisant la théorie de la niche développementale, en mettant en relief le sous-système appelé Contexte Physique et Social. Les données collectées ont été systématisées en axes thématiques pour les mieux comprendre et analyser. Les axes sont: le village comme lieu de tous les peuples autochtones; espace social du village siège; environnements sacrés du village; et le temps dans le village. Ces axes ont révélé le concept que les peuples autochtones ont d'environnement physique et social, du lieu où ils habitent et du respect qu'ils ont pour des lieux sacrés à certains moments . Il y a des pratiques qui incluent des enfants jusqu'aux personnes âgées du village. Cela a une influence directe sur le chemin du développement. Il faut, donc, réfléchir à la manière comme les soignants traitent les enfants, bien comme à ce que les soignants pensent être approprié pour eux. C'est important aussi faire une corrélation avec l'environnement où ils sont soignés, puisque cette relation est configurée et construite dans l'environnement socioculturel où ils sont.

Mots-clés: niche développementale; croyances; pratiques; peuples autochtones; Amazonie.


 

 

O presente estudo tem como objetivo analisar o ambiente físico e sociocultural de uma aldeia indígena Sede, onde residem os Tenetehar-Tembé, no estado do Pará, Brasil. Este trabalho fundamenta-se na teoria do Nicho Desenvolvimental, uma abordagem crítica da Psicologia e Antropologia, uma vez que a primeira tende a estudar a criança fora do seu contexto e, a segunda, estuda em demasiado o contexto em si, com escassos elementos subjetivos do sujeito. A união dessas perspectivas teóricas se constrói no direcionamento de olhar a criança a partir uma análise única (Harkness & Super, 1992). Os autores citados estavam interessados em identificar e interpretar as semelhanças e diferenças no cuidado às crianças de diferentes grupos socioculturais. Portanto, a proposta desse modelo compreende interfaces entre o desenvolvimento da criança e a cultura.

Segundo Harkness e Super (1992, 1996) e Super e Harkness (1999), o contexto da criança é visto como um Nicho, sendo analisado a partir de suas estruturas culturais. A noção de Nicho Desenvolvimental é apresentada a partir da inter-relação de três componentes ou subsistemas: 1) o contexto físico e social no qual a criança vive; 2) os costumes culturais e historicamente estabelecidos em relação aos cuidados das crianças; e 3) a psicologia dos cuidadores. O intercessor focal dessa relação é o grupo familiar como centro da vida da criança em seus anos iniciais, mediando a sua experiência com a cultura mais ampla (Super & Harkness, 1999).

De maneira abrangente, a literatura aponta que os cuidados podem ser ofertados à criança sob diferentes formas. Segundo Keller (2007), as práticas de cuidados adotadas pelos cuidadores podem assumir funções diversas, o que vai depender da situação e do grupo social no qual estão inseridos. O papel do cuidador e as formas diversas de cuidado podem variar amplamente, devendo ser considerados o contexto e a cultura em que todos os membros da comunidade estão inseridos (Harkness & Super, 1992; Super & Harkness, 1999).

Ao considerar os três subsistemas que compõe o Nicho de Desenvolvimento, este trabalho enfatiza a importância do contexto físico e social em que a crianças e seus cuidadores primários estão inseridos, isto é, a aldeia Sede onde a pesquisa foi realizada. É complexo, para um olhar de fora, descrever sobre o que é o ambiente nos espaços indígenas, porque difere, em muito, da ideia etnocêntrica que tende a compreender o outro a partir de sua perspectiva cultural. Para os não indígenas, o ambiente sociocultural (os mitos, os ritos) e o físico (a aldeia, a floresta) pareces-lhe diferente, uma vez que pressupõe a existência de algo concreto, possível de ser mensurado, para ser entendido como realidade natural. De acordo com Coelho (2014), para os Tenetehar-Tembé, a compreensão de físico tem outros contornos, porque a cosmologia mitológica é presente e rege as leis fundamentais do cotidiano (Descola, 1997).

A conceituação de cosmologia de Descola (1997) refuta que as cosmologias amazônicas constituiriam transposições simbólicas das propriedades objetivas de um meio ambiente bem específico. Nesse caso, seriam, pelo menos em sua arquitetura interna, o reflexo e um produto da adaptação bem-sucedida a um meio ecológico de grande complexidade, no qual seria favorável a adequação dos indígenas na sua realidade em relação com o ambiente físico e social.

Tal complexidade sobre os conceitos e constructos ocidentais a respeito do meio ecológico - ambiente, floresta e natureza - não alcançam a diversidade dos conceitos que os indígenas Tenetehar-Tembé construíram ao longo dos tempos em sua cultura. Para Castro (2006), o termo natureza é definido como o mundo físico, ou seja, o conjunto das coisas que existem realmente. Em que pese a importância da natureza, os indígenas vivem nas florestas com quem interatuam de maneira harmoniosa e diversificada, sendo a relação com o ambiente mútua e integrada ao seu desenvolvimento.

 

Método

Delineamento

Trata-se de um estudo qualitativo, do tipo etnográfico, sustentado no olhar do pesquisador que, por meio da observação direta/observação participante, realizou a pesquisa e compôs sua escrita (Clifford, 1998; Schmidt, 2006). Desse modo, a inserção no campo de pesquisa foi primordial para a descrição dos cenários, do ambiente físico e social na construção dos eixos temáticos que permitiram interpretações e conclusões sobre o significado dos dados abstraídos (Creswell, 2007).

Participantes

Nessa pesquisa foram coletados dados sobre o ambiente físico e social com a participação dos indígenas, que incluíram o cacique, as lideranças e os professores indígenas da aldeia Sede. Os participantes do estudo foram designados por nomes fictícios conforme recomendação do Comité de Ética de Pesquisa.

Ambiente

A pesquisa foi realizada na aldeia Sede da etnia dos Tenetehar-Tembé, que está localizada na Terra Indígena do Alto Rio Guamá (TIARG), no nordeste do estado do Pará, entre a margem direita do rio Guamá e a esquerda do rio Gurupi, fazendo limites com os estados do Pará e Maranhão (Dias, Rocha & Mitschein, 2012). A área do Alto Rio Guamá equivale a 278.000 hectares (Dias et al., 2012). A jurisdição da área indígena pertence aos municípios paraenses de Garrafão do Norte, Santa Luzia do Pará, Nova Esperança do Piriá e Paragominas.

A área dos Tembé na região permite situar as 16 aldeias da Terra Indígena do Alto Rio Guamá (Lobo, 2016). A aldeia Sede está localizada na região pertencente ao município de Santa Luzia do Pará, que integra um grupo de aldeias situado entre as aldeias do Pirá e Ytuaço, que fazem limites com as margens do Rio Guamá, localizadas a 17 quilômetros da área urbana do município de Garrafão do Norte (Lobo, 2016).

Instrumentos de Coleta de Dados

Observação participante

O uso da observação como instrumento de coleta empírica permitiu coletar aspectos do ambiente físico, uma variedade de situações do cotidiano e comportamentos dos participantes, de forma individual e grupal (Minayo, 1994). O observador foi orientado a participar da experiência com reflexão das ideias pré-concebidas, uma vez que isso podia gerar alteração na coleta de dados. Entende-se que observação participante é uma arte presente sob o olhar e na descrição dos seus achados. A referida técnica consiste na ideia de partir do não saber, assim o observador não procurará nenhuma conclusão prévia (Clifford, 1998; Oliveira, 1996). Todas as observações foram registradas no diário de campo.

Diário de campo

O diário de campo foi utilizado para coleta e registro de dados (Minayo & Sanches, 1993). O diário teve como objetivo registrar as atitudes, os fatos e os fenômenos percebidos no campo de pesquisa. As anotações registravam as observações dos comportamentos dos indígenas (falas, gestos, expressões corporais, emoções, cantos, danças, risos e as descrições das pinturas), bem como as impressões do pesquisador quando estava no campo, que serviram para a interpretação dos dados.

Procedimento

A pesquisa teve início na aldeia Sede, após a autorização da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), do Comitê de Ética em Pesquisa (Parecer nº 1.942.285) e do cacique da referida aldeia. Foram realizadas visitas à aldeia para ambientação, participação nos rituais e visitas às casas dos indígenas para observar e coletar dados a partir de conversas com eles.

A pesquisa iniciou em 2017 (janeiro e fevereiro) para ambientação do pesquisador com os indígenas na aldeia. Depois do período das chuvas, em maio e junho de 2017, começou a coleta de dados e participação dos rituais, sendo notada uma mudança nas atividades (cultivo, caça e rituais) realizadas na aldeia de acordo com as estações do ano na Amazônia.

A coleta de dados foi realizada nos locais frequentados pelos indígenas: as mães, os caciques, os professores, as lideranças e idosos, com o objetivo de descrever as características e significados do ambiente físico e social da aldeia Sede. Tais relatos verbais e observações incluíram a construção dos ambientes.

Análise de dados

A análise dos dados foi estruturada a partir das recomendações de Leininger (1985), que orienta algumas etapas no tratamento das informações etnográficas: descrição das observações e registro das narrativas no diário de campo; formulação de eixos temáticos de acordo com o fenômeno; identificação de semelhanças e diferenças dos conteúdos temáticos; inferências referentes aos fenômenos observados na aldeia; retorno à aldeia para validação das inferências com informantes e ajustes para esclarecimento de informações; organização dos eixos temáticos finais; e interpretações com base na teoria do Nicho Desenvolvimental. Os dados foram sistematizados em quatro eixos temáticos: A aldeia como lugar de todos indígenas; Espaço social da aldeia Sede; Ambientes sagrados da aldeia; O tempo na aldeia.

 

Resultados e Discussão

A Aldeia como Lugar de todos os Indígenas

Para descrever o ambiente dos Tenetehar-Tembé, importa conhecer as características socioculturais e ambientais dessa etnia para, assim, se fazer possível a contextualização das atividades. O ambiente da aldeia é um lugar em que todos podem circular, desde que sejam respeitados os horários. Ressalta-se que há uma proibição nessa circulação para o visitante que não pode transitar na aldeia Sede sem a orientação dos indígenas, pois o ambiente da floresta para os Tembé é particular (Lobo, 2016). Em razão disso, os estranhos devem pedir permissão para adentrar nesse espaço, pois há um cuidado em respeitar os espíritos da floresta e a preservação florestal frente às ameaças de invasão de suas terras.

Para Descola (1997), é perfeitamente compreensível que as populações indígenas da Amazônia e das Guianas saibam aplicar estratégias de uso dos recursos que, mesmo transformando de maneira durável seu ambiente natural, não alterem os princípios da ecologia, nem colocaquem em risco as condições de reprodução desse ambiente. Observa-se que os indígenas contribuem para a preservação do meio ambiente evitando a devastação da floresta e outros problemas ambientais causados pela ação do não indígena. Dessa maneira, o registro realizado em campo permitiu compreender essa relação por meio da fala de uma liderança feminina da aldeia Sede:

Para nós, a nossa relação com a natureza é de preservação. Onde existe a floresta, existe qualidade de vida, por isso tem que ser cuidada. A natureza é tudo para a gente. Ela é composta por tudo - pelas aves, as árvores, rios, nosso artesanato, tecido, alimentação; tudo depende dela. A nossa sobrevivência depende de como tratamos quem fornece alimentos e outras coisas importantes para nós, indígenas (Aila, Liderança feminina, Diário de Campo, 2017).

A ideia de preservação dessa liderança feminina assume um valor ecológico sustentável para a sobrevivência e manutenção da tradição dos Tembé, que demarca a proteção da floresta. Autores como Balée (1994) e Coelho (2014) demonstram que os estudos sobre a ecologia e a etnoecologia evidenciam a fragilidade dos diversos ecossistemas amazônicos, além da diversidade e extensão dos saberes e das técnicas desenvolvidas pelos ameríndios no sentido de tirar proveito de seu meio ambiente para adaptar às suas necessidades e sustento.

Os Tembé não são povos agricultores, mas eles utilizam a terra para o plantio de mandioca (Manihot esculenta) para a produção de farinha. As famílias possuem roças ou lotes de terras cultivadas das quais tiram parte de sua alimentação. Para Dias et al. (2012), isso tem uma relação de vivência, e não de sobrevivência precária com o seu ambiente natural. Apesar de terem recursos financeiros (ajuda governamental), buscam meios de proteção do seu habitat, como o uso sustentável dos próprios recursos naturais.

Para os Tenetehar-Tembé, o seu ambiente da aldeia e floresta inclui os humanos, os animais e os espíritos como residentes de um espaço que também é sagrado. Existe uma relação de adaptação mútua entre o físico e o sobrenatural, pois o ambiente está relacionado ao conjunto de acontecimentos dentro e fora da aldeia. No entanto, alguns autores divergem a respeito das ideias relacionadas à adaptação do homem e o espírito. Para Wagley e Galvão (1961), antes de alcançarem o espaço apropriado, os espíritos ficam vagando na floresta e aldeia, onde residem as pessoas, e podem atacar os humanos devido ao desejo de se relacionarem com esses frente à saudade causada pela morte.

Para os Tembé, a relação entre humanos e espíritos, que são nomeados como karuwara, é comum e respeitada, pois os espíritos de humanos e dos animais não se ausentam da aldeia, já que são partes do seu ambiente natural. Os Tembé acreditam que os espíritos humanos caçam, pescam e se organizam como os Tembé em suas aldeias. Desse modo, a interação entre os espíritos e os Tembé é constante, pois o ente sobrenatural mantém relações com os indígenas no espaço da água e da floresta. O espírito de humanos e animais (karuwara) volta, muitas vezes, durante alguns eventos, para dançar e se alimentar, principalmente quando invocado pelo pajé, e depois retorna para seu local na floresta. Um momento respeitado dessa manifestação do espírito no ambiente da aldeia ocorre no final do ritual do Wira'u-haw (Festa do Moqueado) (Coelho, 2014).

No último dia da festa, um dos momentos de auge é a situação de transe da karuwara, que não possui matéria e tenta entrar no corpo humano. O transe é uma definição de condição imposta pela relação de contato estabelecido entre humanos e espíritos mediado pelo pajé. É interessante ressaltar a importância dos objetos, colares, cuias e maracás presentes no ritual, já que foram os próprios karuwaras que elegeram esses artefatos (Lobo, 2016). Os karuwaras que não alcançam o espaço de Maíra (Deus dos Tembé) são os mais ameaçadores, pois, quando voltam para a festa, onde acontecem as cantorias, atacam as pessoas que estão desprotegidas e, geralmente, são crianças, mulheres grávidas e demais pessoas não indígenas presentes no ritual do Wira'u-haw.

Espaço Social da Aldeia Sede

O ambiente social da aldeia Sede é entendido como um padrão de organização familiar em agrupamento, o que é comum nas aldeias da região em estudo. A aldeia pode ser compreendia como um pequeno vilarejo, habitual entre as etnias indígenas, inclusive a Tembé. Nessa comunidade, pai, mãe e filhos convivem com os parentes consanguíneos e os afins. A comunidade é liderada pelo cacique com a participação dos membros dos grupos familiares. Alguns Tembé relatam que, quando as famílias vivem de acordo com as regras existentes em seu território, o grupo vive bem e todos são capazes de gerenciar suas vidas conforme suas rotinas e a possibilidade de viverem melhor a cada dia nas suas casas (Diário de Campo, 2017).

É importante registrar que as casas são construídas de acordo com a proximidade de parentesco, de forma que se tornam vizinhos e isso facilita os relacionamentos e as redes de apoio social e afetivo. Identificou-se, a partir dos relatos, que houve mudanças na forma tradicional de residirem em Ocas, o que alterou, na atualidade, a organização dos espaços conforme se pode observar na figura 1:

As casas foram construídas, estrategicamente em círculos, a fim de os indígenas poderem ser observados no cotidiano por todos e pelas lideranças. Porém, houve mudanças para algumas comunidades indígenas, uma vez que as construções das casas passaram a ser de alvenaria em vez de taipa, madeira, palha e telhas de madeiras (cavacos), materiais tradicionalmente usados outrora pelos indígenas (Ponte & Aquino, 2013).

As casas, atualmente, obedecem ao modelo padrão financiado pela Caixa Econômica Federal, pelo Projeto Minha Casa Minha Vida do governo federal e Cheque Moradia, um projeto do governo do estado do Pará. Houve modificações das casas com banheiros sanitários e água tratada, o que reflete em um impacto nas condições de vida dos indígenas (Coelho, 2014), contudo muitas ainda estão inacabadas e sem acabamento interno. Cada casa mantém uma cozinha no quintal, apenas coberta de palhas, com o fogão a lenha ou carvão utilizado para preparo de comidas a base de caças e peixes (Diário de campo, 2017).

Aqui, na beira do rio, na primeira aldeia, não tinha como expandir. O povo vai crescendo, não tinha como fazer mais casas, foi que a gente teve a ideia de fazer novas moradias, por exemplo, a intenção nossa. Nós vamos mudando pra cá conforme o tempo, então, quem tem as suas casas já velha, que for recuperar, já começa a recuperar fazendo outra pra cá, deixando isso. Mas teve uns que continuaram ainda no lugar certo porque acha assim, tem pessoas que passa uma vida pra fazer um sitio, pra deixar assim, acha ruim pra reiniciar. Mas a ideia de fazer essa aldeia aí foi de todo mundo ir pra lá. (Cacique, Diário de campo, 2017)

Nota-se que essa organização integra características tradicionais da cozinha simples, que acolhe e agrupa as pessoas em torno do fogão de lenha, e o novo local passa a ser um lugar privado para dormir. Apesar de algumas famílias terem mudado sua casa de lugar, geralmente, no final da semana, se agrupam para compartilharem seus alimentos entre os parentes próximos. A preparação da comida é feita pela mãe ou avó, sendo que as crianças acompanham a preparação desses alimentos e sempre ficam por perto brincando na cozinha dos fundos e atendendo aos pedidos das mães para levar ou buscar objetos e temperos para a finalização da alimentação.

Em algumas situações, a criança desempenha o papel de mediadora quando há conflitos entre ascendências. Elas têm livre acesso às casas e aproximam as famílias pelo simples fato de serem conduzidas pelos pais, que as levam para brincar, se aglomerar às outras crianças, pois, enquanto brincam, os pais conversam e resolvem problemas do cotidiano da aldeia. É nesse contexto que se verifica uma dinâmica contínua de alianças e conflitos, cujo entendimento se faz imprescindível para a realização dos objetivos entre vizinhos (Coelho, 2014). No relato do cacique se pode apreender esse fenômeno da mudança grupal e individual:

Em outros tempos, automaticamente, a gente se vizinhava. Tinha os trabalhos comunitários, mutirão, uns ajudavam os outros. Hoje não está tendo isso, cada um cuida da sua vida. Outra coisa que mudou, por exemplo, para pescar, a gente tinha que ir junto todo mundo. Tinha o mingau independente de festa ou não. Uma pessoa que colocou o roçado cedo, colheu cedo, quando o arroz já estava bom, todo mundo ia beber o mingau de arroz naquela casa, e o fulano tem muito mandiocaba, 'vamos beber uma maniquera com ele'. Todo mundo metia a mão na massa, todo mundo fazia. Não era simplesmente 'eu vou beber o mingau lá' não. Todo mundo pegava o seu paneiro, pegava o seu ralo, ia. Pegava o tanto de mandioca que tinha que ser e todo mundo ralava, todo mundo compartilhava. E, na hora de beber, todo mundo estava lá junto, bebendo, quer dizer, hoje já não se faz isso. (Cacique, Diário de Campo, 2017)

Para além desse entendimento da organização do grupo familiar, pode-se observar uma questão a ser discutida: a mudança social que produziu problemas na aldeia, conforme o relato do cacique:

A mudança social da aldeia trouxe problema, porque antes a aldeia crescia, só que ninguém se apegava, as casas eram todas de tapiri. As pessoas ajudavam a liderança quando estavam insatisfeitas com alguma coisa resolvia na aldeia. Hoje as pessoas estão apegadas com casas boas, emprego, fazem cooperativas, criam associações e, de certo ponto, tiram a autonomia dos caciques e lideranças, é uma luta com esse desenvolvimento. A evolução mudou, porque antes as pessoas insatisfeitas saíam das aldeias e criavam outras aldeias. Hoje não, ficam medindo forças com as lideranças, porque não querem deixar as suas casas boas, os seus empregos, mas vão de encontro às opiniões das lideranças. Isso é um problema, isso é por conta do avanço. (Cacique, Diário de Campo, 2017)

O desenvolvimento da aldeia, identificado no relato do cacique, revela a existência de conflitos entre lideranças e integrantes da comunidade. É oportuno ressaltar as dificuldades em lidar com as mudanças sociais que os Tembé da aldeia Sede têm enfrentado entre lideranças e liderados que impactam nos relacionamentos interpessoais na aldeia. De acordo com Dias et al. (2012), atualmente, essa relação é conflituosa, pois há uma acentuada desvalorização das normas e, principalmente, da hierarquia que, outrora, foi um ponto positivo para o crescimento da aldeia.

O relato do cacique permite entender uma mudança e vulnerabilidade nos relacionamentos, que são caracterizados pela existência de conflitos, muitas vezes, não tão explícitos, mas que aparecem em condições adversas, ou seja, reclama-se dos fatores econômicos, sociais e dos laços afetivos que as mudanças provocaram. A organização dos grupos familiares em espaços privados alterou uma dinâmica de interações grupais. Portanto, o ciclo de desenvolvimento indígena, que agora se organiza pelo modelo de família privada, influenciada pela aculturação, deixa marcas e altera a cultura do povo Tembé (Coelho, 2014).

As descrições do ciclo de vida dos indígenas Tembé e suas mudanças variam de acordo com a etnicidade. Todavia há uma diferença conforme o local que ocupam, não tendo um modelo único para todas as etnias, pois os povos indígenas organizam de modo diverso os seus arranjos familiares. O modelo de grupo familiar Tenetehar-Tembé é composto por pessoas que moram na mesma casa, parentes ou não, sendo que há casos de famílias que são compostas por filhos de um primeiro matrimônio, casos em que há separação por morte ou novos relacionamentos após o óbito do companheiro (Barh, 2000). O relato de uma indígena caracteriza um tipo de arranjo familiar:

A minha a cunhada morava em outra aldeia, porém fazia uso abusivo de bebida alcoólica e não cuidava dos filhos, por esse motivo o meu irmão veio morar aqui em casa, trazendo as crianças. A minha filha é casada, ela com o marido e a filha vão morar aqui até que a casa deles fique pronta, por isso a casa ficou pequena, no quarto dorme toda a minha família. Eu divido a cama com dois filhos menores. O meu marido dorme em uma rede no quarto. (Mãe indígena, Diário de Campo, 2017)

O fato é que a proteção e cuidado das pessoas e alteração doméstica produzem ajustes e adaptação que resultam em novas formas de relacionamentos familiares, isso pode fortalecer vínculos familiares mais íntimos no grupo familiar privado, mas produzir distanciamento de um modo grupal e compartilhado. No desenvolvimento histórico e temporal dos Tembé, especificamente os integrantes da aldeia Sede, vários fatores mudaram o contexto físico e social, e interferem no meio como um todo, provocando mudanças na cultura que resultaram na adoção de novas práticas e hábitos (Coelho, 2014).

Portanto, o contexto, a partir das configurações físicas e sociais da vida cotidiana, apresenta um papel significante no desenvolvimento, bem como os tipos de interações que podem ocorrer. Esse ambiente influencia e é influenciado pelo indivíduo que está no centro do Nicho (Super & Harkness, 1999; Harkness & Super, 1996). Esse desenvolvimento influencia as práticas de cuidado infantil e as etnoteorias parentais, as quais se imbricam e relacionam com as crenças e valores vastamente compartilhados por uma cultura maior, a exemplo da cultura dos Tenetehar-Tembé, os pares. Enfim, o contexto social em que estão inseridos.

Ambientes Sagrados da Aldeia

O conceito de ambiente que os indígenas apresentam é diferente daquele que o mundo ocidental expõe. Para Lobo (2016), os projetos de conservação ambiental aparecem na visão de algumas lideranças indígenas como uma forma de garantir e confirmar o direito ao território, visto que eles necessitam de uma afirmação, quanto ao ambiente, para o bom desenvolvimento de seu povo. Para descrever o ambiente dos Tenetehar-Tembé, primeiramente se faz necessário conhecer as mais relevantes características socioculturais e ambientais dessa etnia para, assim, se fazer possível a contextualização com a realidade da referida aldeia. Entretanto, existe um conceito de ambiente que está relacionado aos lugares sagrados, com horários pré-determinados e que regulam a vida na aldeia a partir dos rituais.

Nesse ambiente sagrado da floresta, os rituais do Tembé permitem conectar com o sobrenatural, o que explica o ciclo de vida desde o período gestacional, a festa da criança, a tocaia, a festa do mingau e a festa da moça na puberdade, quando a menina está preparada para o casamento e maternidade. Em síntese, os rituais atribuem à mulher um papel importante no cuidado dos filhos, dos pais e dos avôs no ambiente da aldeia.

É interessante observar que não são todos os lugares e momentos que podem ser frequentados pelas pessoas da Aldeia e que essa proibição considera a idade do indígena para poder transitar. Para Coelho (2014), as crianças, por exemplo, não podem sair para o espaço do mato a qualquer hora, nem tomar banho em qualquer lugar. A cultura Tembé considera que esses lugares são sagrados e guardados por uma divindade sobrenatural, sendo necessário alcançar determinada idade para ter permissão para circular nesses espaços.

Em referência ao sobrenatural, existem regras que são seguidas por todos (Coelho, 2015). Para o cumprimento das regras, há uma diferenciação entre as crianças e os mais velhos, pois acreditam na existência de afinidades entre humanos e natureza, o que determina os limites de não sair de casa em horários que são considerados proibidos (Coelho, 2014). Para Garcia (2015), o modo relacional que engloba a criação dessas dicotomias esteve no centro de uma reflexão sobre as relações que o mundo social dos humanos e o sobrenatural estabelecem com toda a natureza para ser pensada em termos sociais e em continuidade com as relações intergrupais.

Contudo, as relações entre os humanos e o sobrenatural podem ser entendidas a partir de um exemplo vivido no período da quaresma, quando acreditam nas aparições de espíritos da floresta e incorporações. Entende-se que o sincretismo com catolicismo faz parte das práticas culturais da aldeia (Capiberibe, 2017). Desse modo, os Tenetehar-Tembé estabelecem relação com os não humanos e com os espíritos da natureza, pois acreditam na experiência do sobrenatural na aldeia.

A união com o cristianismo foi concretizada por meio da construção de igrejas cristãs (católicas e evangélicas), que os indígenas adotaram devido ao processo de catecismo praticado historicamente com essas populações (Capiberibe, 2017). O sincretismo religioso, bem como a visão cosmológica, aumenta a cada dia, e esse recurso sobrenatural é visto como medida de proteção, pois une a cosmovisão indígena com a religião cristã, o que, para os Tembé, é considerado um meio de proteção diante do perigo vindo do mundo sobrenatural.

É necessário entender que "os povos indígenas sabem qual é seu lugar e conhecem cada ponto de suas terras, quem não conhece são os não indígenas" (Beltrão, 2012, p.29). Contudo também entre os indígenas existem obrigações a serem cumpridas, que cabem às lideranças, à família das crianças e às mulheres grávidas, que devem guardar imposições relacionadas aos horários e lugares que podem ou não serem frequentados, pois, caso adentrem em um local proibido, correm o risco de serem afetados pelo sobrenatural em decorrência de sua desobediência ou, ainda, por desconhecimento. Uma das consequências mais vistas de descumprimento dessas regras é o "mal olhado", que acomete a pessoa com dores no corpo e febre (Castro, 2015).

Desse modo, faz-se necessária a discussão sobre o ambiente que pertence não somente aos indígenas, mas a todos os seres existentes nas proximidades da comunidade, onde cada espaço da floresta guarda um significado (Beltrão, 2012). Assim, é importante relatar o respeito pela floresta e a preservação para garantir um ambiente saudável. Na aldeia Sede o que se observa é uma demasiada importância em preservar o ambiente e os saberes que são repassados de geração em geração por meio de narrativas das crenças e rituais. Um elemento que se destaca sobre esse assunto é a preocupação das lideranças com o risco de perda dos conhecimentos e costumes tradicionais (Ponte & Aquino, 2013).

O Tempo na Aldeia

A visão dos Tembé a respeito do ambiente em que estão inseridos organiza a condição de sujeito no ciclo de vida (criança e adulto) demarcado pelo tempo e território, que incorpora aspectos naturais e sobrenaturais, as atividades extrativistas e da agricultura. Desse modo, o conceito de tempo e de idade deve ser compreendido como multidimensional e, por isso, a idade cronológica não se torna uma boa medida da função desenvolvimental (Hoyer & Roodin, 2003).

Na perspectiva de análise, o tempo não aparece como medida mensurável e absoluta. A noção cronológica é relativa e subjetiva, se constrói na vivência que demarca uma identidade (Andrews, 2000). Para Coelho (2014), alguns lugares da aldeia Sede são guardados pelo sobrenatural, as crenças nos espíritos ou por uma noção de tempo psicológico.

As integrações relacionais entre as vivências pessoais e o contexto físico e sociocultural envolve diferentes aspectos: biológico, cronológico, psicológico, social e espiritual (Hoyer & Roodin, 2003). O argumento da ação do sobrenatural e da possibilidade de humanos e espíritos se relacionarem em lugares próprios e em horários definidos são baseados em uma regra de circulação que pode ser identificado no relato:

Na aldeia Sede, as crianças e adultos têm hora para circular, aqui tudo tem hora, tudo depende da organização, do cuidado. A gente tem que prestar bem atenção quando a gente começa a circular na aldeia direto. Não tem como definir o que pode acontecer. Tudo tem horário e também dias. Têm dias de brincadeira que a gente pode levar a noite toda, mas não são todos os dias que se pode circular a noite toda pela aldeia. (Cacique, Diário de Campo, 2017)

Tal narrativa reitera que o ambiente da aldeia, além de estar relacionado aos horários e à permissão de acesso aos lugares que são conservados pelos guardiões espirituais da floresta, é local respeitado pelos Tenetehar-Tembé, e que os seres espirituais fazem parte do mundo encantado que não pode ser contrariado (Dias et al., 2012). Na narrativa do cacique sobre o afastamento de uma criança, observa-se o que pode acontecer quando as leis estabelecidas dentro da aldeia não são seguidas:

Foi para o mato com o tio e começou a tomar banho nos igarapés e, inclusive, em poço d'água, porque sempre na mata existe poço, tipo uma lagoa, a água bem alvinha. Então, o tio pediu pra que ele não fosse tomar banho e não saísse de perto dele, e ele desobedeceu. Começou a pular na água, brincar com os peixinhos, isso foi a gota d'água. Ele correu doido com uma dor de cabeça, até que conseguiram trazer ele, mas a lonjura que ele estava, chegou aqui quase morto. Ele não prestou atenção nas recomendações que foram feitas. Todo mundo soube o que aconteceu. Mesmo que ele tivesse chegado a tempo, não era levado para hospital, era levado para o pajé, mas a criança já chegou aos últimos suspiros. (Cacique, Diário de Campo, 2017)

Pode-se notar que os indígenas criam suas crianças com determinadas recomendações em relação ao horário permitido para transitar pela aldeia. Existem proibições taxativas quanto à saída para o mato a qualquer hora e para tomar banho em qualquer lugar, sendo que a tarefa de educar essas crianças cabe aos pais, que devem promover o cuidado, observação e proteção para evitar o adoecimento ocasionado pelos seres sobrenaturais, uma vez que estes não podem ser incomodados nas suas horas de descanso nas suas moradas (Coelho, 2014). O relato de uma professora declara a necessidade da permissão:

Os espíritos, para a gente, fazem parte do ambiente. É tudo porque nós indígenas temos as nossas crenças. Quando o marido da gente vai para o mato, tem a curupira, então tem que pedir permissão para entrar e poder caçar. Se a criança vai para rio, que também tem o seu dono, tem que pedir permissão. Tudo isso é ambiente pra gente. (Professora de indígena, Diário de Campo, 2017)

Essa relação entre os espíritos e o humano se estabelece em nível de aparições ou no mau olhado naqueles que, de algum modo, adentram nos lugares de sua habitação. Os guardiões espirituais têm o propósito de guardar o ambiente escolhido por eles para sua morada, que devem ser respeitados pelos Tembé como espaços ou ambiente dos espíritos. Somente o xamã ou curandeiro tem a permissão de transitar em todos os lugares e períodos (Cunha, 1998). A narrativa do cacique assinala essa permissão de circulação:

As crianças da aldeia Sede são estimuladas numa autonomia vigiada e se deslocam livremente pela comunidade. Brincam e realizam atividades de acordo com a sua idade, horário e local, mas sempre sendo acompanhadas pelos pais, mães, irmãos ou irmãs maiores, ou parentes próximos, os que ajeitam o amplo conjunto de cuidadores, e esse é um investimento que se faz. A criança é cuidada para que não tenha um aprendizado destorcido. (Cacique, Diário de Campo, 2017)

Como se percebe no discurso do cacique Tembé, as crianças, mesmo na aldeia, não andam sozinhas, o que faz parte das regras pré-estabelecidas, contribuindo para a formação do caráter e da cultura das crianças em desenvolvimento, que vão crescendo com a certeza que têm deveres a cumprir na comunidade. Essa crença orienta os cuidados, conforme descrito por Tooby e Cosmides (1995), e as práticas adotadas nas interações, que são essenciais para o desenvolvimento infantil a partir da psicologia dos cuidadores e as suas etnoteorias parentais, podem influenciar nos cuidados oferecidos às crianças.

Isto representa as práticas de cuidado que são adotadas pelos que cuidam. Para Harkness e Super (1996), tais práticas abarcam os costumes culturais e históricos que influenciam os cuidados ofertados às crianças por aqueles que delas cuidam. Nesse sentido, fazem referência às técnicas de proteção, de ensino e de socialização usadas por integrantes de determinados contextos, visto que tendem a estar integradas à comunidade cultural que os cuidadores a tomam como óbvias, como uma forma natural de se comportar, sem precisar contestá-las, uma vez que está arraigada na vida cotidiana.

Existem relatos de casos de quando os cuidados não foram observados, ocasionando até a morte. O seguinte relato corrobora com essa concepção:

Na aldeia onde eu morava aconteceu de um filho ir para o rio pescar. Passou do meio dia, quando ele chegou a casa dele, com febre, e a mãe pensava que era febre de gripe e só levava à farmácia. Quando ela correu atrás da curandeira pra querer rezar, já foi tarde, ele não aguentou, porque ele via as pessoas. Ele dizia 'mãe, eles estão querendo me pegar e vão me levar', aí quando ela foi querer atendimento da curandeira, não deu mais tempo, já tinham levado a sombra dele. O menino não aguentou o sofrimento e morreu. (Professora, de idioma. Diário de Campo, 2017)

Portanto, há um entendimento dos indígenas sobre a crença da sombra que pode ser levada por um espírito e ocasionar a morte se passar do tempo determinado para o socorro. É relevante acrescentar que ação xamânica relacionada ao caso dessa criança que veio a óbito depois que esteve no rio em uma hora imprópria não produziu efeito. Segundo Castro (2015), as operações xamânicas não se deixam reduzir a um jogo simbólico de classificação fenomenal, tampouco são da mesma espécie que o contínuo fusional da interserialidade imaginária do sacrifício e da morte.

 

Considerações Finais

Várias alterações ocorreram no ambiente físico e social da aldeia Sede nos últimos anos. As mudanças espaciais das novas casas, a organização das famílias e a adoção de um modelo privado impacta na realidade dos Tembé. No entanto, a identidade subjetiva dos Tenetehar-Tembé é mantida pelo sentimento que os reconhece como indígenas e na reprodução de seus rituais e relação com a floresta. Assim, as alterações de alguns hábitos, como o modo de se vestirem, de convivência com os não indígenas, de estudarem fora de suas aldeias e do uso tecnologias, ainda não descaracterizaram sua identidade.

Portanto, é o significado étnico que os define como indígenas dentro de seu território, assim como fortalece sua etnicidade e identidade cultural. Essas mudanças, por outro lado, pouco impactam nos cuidados tradicionais, uma vez que os Tenetehar-Tembé continuam a utilizar práticas de curanderismo, mantêm a crença em espíritos e os seus rituais. A tradição é mantida por meio da história oral e das gravações tecnológicas.

A análise das mudanças espaciais, do ciclo da vida e das atividades dos Tembé em diversos tempos e períodos demarca uma noção sem datação. A memória mantém-se viva, narrada como um tempo psicológico que se qualifica, mas não se mede. A existência de poucos registros históricos, como fotografias e vídeos, podem dificultar uma precisão cronológica e uma caracterização histórica do ambiente físico. Talvez essa dificuldade limite o estudo ao se propor a discussão do contexto físico e sociocultural na perspectiva do nicho desenvolvimental.

Nesse sentido, esta pesquisa se mostra importante para o meio acadêmico, porque ela revela o conceito que os indígenas têm sobre ambiente físico e social, do lugar onde eles habitam e o respeito que possuem pelos lugares sagrados em horários pré-determinados, prática que vai desde as crianças até as pessoas de maior idade da aldeia. Outro fator evidente nesta discussão é que a criança tem autonomia vigilante como medida de proteção para transitar na aldeia, o que é obedecido para evitar possíveis adoecimentos causados pelo adentramento em locais em horários proibidos. Mas a criança também se apresenta como mediadora de conflitos.

Refletir a maneira como os cuidadores tratam suas crianças, ou o que acreditam estar adequado no cuidado delas, implica em metas de socialização desses cuidadores para com os seus filhos, seus conhecimentos sobre o desenvolvimento infantil e outros fatores relacionados ao tema se configuram. Além disso, também são construídos por elas conjuntamente com seus pares no meio sociocultural que pertencem. Assim, o conjunto dessas crenças construídas pelas comunidades indígenas influencia diretamente no cuidado demandado às crianças, podendo resultar em diferenças no curso considerado normal para o desenvolvimento.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Miriam Dantas de Almeida
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Celina Maria Colino Magalhães
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Estela Márcia França Aido
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Recebido em: 12/10/2017
Revisado em: 24/05/2018
Aceito em: 09/06/2018

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