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Revista Subjetividades

Print version ISSN 2359-0769On-line version ISSN 2359-0777

Rev. Subj. vol.18 no.2 Fortaleza May/Aug. 2018

http://dx.doi.org/10.5020/23590777.rs.v18i2.5198 

RELATOS DE PESQUISA

 

O olhar do agente educador sobre a constituição psíquica de crianças acolhidas

 

The view of the educating agent on the psychical constitution of hosted children

 

La mirada del agente educador sobre la constitución psíquica de niños acojidos

 

Le regard de l'éducateur sur la constitution psychique des enfants accueillis

 

 

Poliana Omizzollo (Lattes)I; Milena da Rosa Silva (Lattes)II

IMestre em Psicanálise: Clínica e Cultura, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e especialista em Atendimento Clínico - ênfase Psicanálise pela Clínica de Atendimento Psicológico da UFRGS
IIDoutora em Psicologia pela UFRGS. Orientadora de Mestrado no PPG Psicanálise: Clínica e Cultura. E Professora do Instituto de Psicologia da UFRGS, do Departamento de Psicanálise e Psicopatologia

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este estudo visa compreender, através do olhar de agentes educadores de instituições que acolhem crianças separadas de suas mães, como aquelas se constituem psiquicamente, tendo em vista a relevância da função materna para o desenvolvimento emocional do bebê. A partir da perspectiva dos agentes, refletimos sobre as possibilidades de desenvolvimento que cada criança encontra ao deparar-se privada da convivência com sua família de origem e acolhida em uma instituição. Assim, foram realizadas entrevistas com quatro profissionais que atuam diretamente no cuidado de bebês e crianças pequenas que se encontram em abrigos de Porto Alegre, e analisadas vinhetas de um caso clínico que impulsionou este escrito. A abordagem realizada possibilitou a compreensão de diversos fatores implicados na árdua tarefa do vir a ser enquanto sujeito no âmbito de uma instituição de acolhimento, enfatizando as possibilidades que irrompem quando consideramos um espaço para a escuta clínica. Percebemos, assim, que um vínculo calcado na confiança e na confiabilidade é possível, mas que, geralmente, encontra-se emaranhado por entre as dificuldades inerentes à função.

Palavras-chave: abrigo; constituição psíquica; relação mãe-bebê; privação.


ABSTRACT

This study aims to understand, through the view of educating agents from institutions that host children separated from their mothers, as they are psychically constituted, considering the relevance of the maternal function for the emotional development of the baby. From the perspective of the agents, we reflect on the possibilities of development that each child finds when he is deprived of the coexistence with his family of origin and welcomed in an institution. Thus, interviews were conducted with four professionals who work directly in the care of infants and young children who are in shelters in Porto Alegre, and analyzed vignettes of a clinical case that drove this writing. The approach made possible the understanding of several factors involved in the arduous task of becoming a subject within a host institution, emphasizing the possibilities that emerge when we consider a space for clinical listening. We thus perceive that a bond based on trust and reliability is possible, but is usually entangled with the inherent difficulties of function.

Keywords: shelter; psychic constitution; mother-baby relationship; deprivation.


RESUMEN

Este trabajo tiene el objetivo de comprender, por medio de la mirada de agentes educadores de instituciones que acogen niños separados de sus madres, cómo aquellos se constituyen psíquicamente, teniendo en cuenta la relevancia de la función materna para el desarrollo emocional del bebé. A partir de la perspectiva de los agentes, reflexionamos sobre las posibilidades de desarrollo que cada niño encuentra al estar privado de la convivencia con su familia de origen y acogida en una institución. Fueron, realizadas encuestas con cuatro profesionales que actúan directamente en el cuidado de bebés y niño pequeños que se encuentran en refugios de Porto Alegre, y evaluadas viñetas de un caso clínico que impulsó este escrito. El enfoque realizado posibilitó el entendimiento de muchos factores implicados en la difícil tarea del venir a ser mientras sujeto en el marco de una institución de acogida, con enfoque en las posibilidades que surgen cuando consideramos un espacio para la escucha clínica. Percibimos que es posible un vínculo basado en la fiabilidad, pero que, en general, se encuentra liado entre las dificultades inherentes a la función.

Palavras clave: refugio; constitución psíquica; relación madre-bebé; privación.


RÉSUMÉ

Cette étude vise à comprendre, du point de vue des éducateurs qui travaillent chez des institutions accueillant des enfants séparés de leurs mères, comment les enfants constituent leur psyché si on rend compte de la pertinence de la fonction maternelle pour le développement affectif du bébé. À partir du regard des éducateurs, on réfléchit aux possibilités de développement que les enfants font face quand ils sont privés de cohabiter avec leurs familles d'origine et sont accueillis dans une institution. Ainsi, des entretiens ont été menés avec quatre professionnels qui travaillent directement dans les soins des bébés et des jeunes enfants accueillis dans un abri à Porto Alegre. On a aussi analysé des vignettes cliniques d'un cas clinique qui a donné l'origine à cet écrit. L'approche effectuée a permis la compréhension des plusieurs facteurs impliqués dans la difficile tâche d'être un Sujet dans un abri, en mettant en relief les possibilités qui éclatent quand on considère un espace pour l'écoute clinique. On a pu apercevoir, donc, qu'un lien fondé sur la confiance et sur la fiabilité est possible, mais, généralement on trouve des difficultés inhérentes à la fonction.

Mots-clés: abri; constituition psychique; relation mère-bébé; privation.


 

 

Nunca será demais estudar em profundidade as questões da relação da criança com sua mãe (Winnicott, 2005a, p.11).

A epígrafe impressa revela um tema cuja importância foi substancialmente assegurada por Winnicott e por muitos outros estudiosos que se ocuparam e ainda se ocupam de crianças - e também de adultos, através da psicanálise. Partindo desse pressuposto, que exalta a importância da mãe para a constituição subjetiva do bebê, o presente escrito toma corpo na medida em que busca contribuir acerca dessa temática, considerando, no entanto, situações diferentes daquela visível no enunciado: quando, por algum motivo, a relação da criança com sua mãe é interrompida. Refletimos sobre as possibilidades de desenvolvimento que cada criança encontra ao deparar-se privada da convivência com sua mãe e acolhida em uma instituição. Seria possível um cuidado adequado permitir sua constituição psíquica e seu desenvolvimento saudável? Pode ele substituir o cuidado prestado pela mãe/família? Essa pesquisa, de cunho qualitativo, buscou compreender um pouco das inúmeras questões que esse tipo de situação impõe, atentando à visão do cuidador no que tange à constituição psíquica de crianças que, em algum momento, sofreram tal separação.

De acordo com Winnicott (2000), para que o sujeito possa desenvolver-se continuamente, sem interrupções, precisa que, prematuramente, quando ainda absolutamente dependente, esteja imerso em um ambiente com condições de manter essa continuidade, de modo que a mãe, ou a figura que a compreende, exerce um papel fundamental nos momentos iniciais desse desenvolvimento. Dessa forma, dá lugar especial para a relação que se estabelece entre a criança e seu cuidador nos primeiros momentos da vida do bebê, sendo esaa relação crucial e determinante para sua constituição subjetiva. Assim, é importante que pensemos na função importantíssima que este adulto desempenha, através da qual o bebê precisa ser compreendido e atendido no tocante às suas necessidades físicas e psíquicas.

Uma mãe suficientemente boa, de acordo com Winnicott (2013), deve ser capaz de exercer funções fundamentais na sua relação com o bebê: holding, handling e a apresentação de objetos. O holding inclui especialmente o holding físico, onde o bebê é segurado, protegido. Considera a sensibilidade cutânea, a rotina completa de cuidado além das mudanças instantâneas do dia a dia. Implic,a acima de tudo, empatia materna, satisfazendo as necessidades, também fisiológicas, do bebê. Esse processo, portanto, está inserido na experiência de "continuar a ser", de uma forma em que o bebê consegue se sentir vivo mesmo antes de se tornar um sujeito. Dessa forma, no holding mais precoce a mãe participa inteiramente na sensação de tempo do bebê, de modo que o ajuda a criar a ilusão de que o tempo se faz a partir dos ritmos do próprio bebê. A mãe se vê, de certa forma, anulada em favor de seu bebê. Esse esforço inconsciente que se faz a partir de sua presença discreta fornece condições para o bebê se tornar espontâneo e detentor de suas sensações (Ogden, 2010).

Já o handling, ou manipulação, é a forma que "facilita a formação de uma parceria psicossomática na criança, o que contribui para o sentido de real" (Winnicott, 2013, p.27). A partir da apresentação de objetos ao bebê ocorre a realização, ou seja, o tornar real os impulsos criativos do bebê, o que o propicia ao bebê a capacidade de se relacionar com objetos. Assim, a mãe, quando suficientemente boa, apresenta a realidade ao bebê paulatinamente, conforme percebe que ele é capaz de suportá-la.

A partir do pressuposto, podemos perceber que, assim como afirma Winnicott (2013), somente na presença de uma mãe - ou substituto suficientemente bom -, a criança poderá iniciar um processo de desenvolvimento pessoal e real, ou seja, poderá constituir seu psiquismo e se desenvolver de forma sadia se imersa num ambiente provido de cuidados suficientes e ininterruptos.

Considerando o exposto, muitas questões se apresentam à medida que trabalhamos com situações nas quais a relação entre o bebê e sua mãe foi precocemente interrompida. Winnicott (2005b), a partir de seus estudos calcados em sua experiência durante a Segunda Guerra Mundial, observou a seriedade de dificuldades na vida de crianças que tiveram que ser separadas de suas famílias. Foi nesse ínterim que o termo privação se revelou tão importante, de modo que faz alusão àquilo que a criança é impossibilitada, ou seja, refere-se principalmente aos cuidados e atenção maternos que deixam de ser proporcionados à criança.

Bowlby (2002) apresenta o que nomeia privação total, termo utilizado para se referir às crianças separadas de suas mães e institucionalizadas. Essas crianças foram privadas daquilo que uma mãe dá sem pensar, isto é, tudo que permeia a relação íntima e legítima entre uma mãe devotada e seu bebê. Ele afirma ainda que perturbações psíquicas são exemplos de danos causados pelo não estabelecimento dessa relação, de modo que a criança privada provavelmente "nunca tenha tido oportunidade de aprender os processos de abstração e de organização do comportamento no tempo e espaço" (Bowlby, 2002, p. 56).

Atualmente, são inúmeros os motivos que causam a separação de bebês de suas mães e a consequente privação de seus cuidados. Essa privação, muitas vezes, dá-se antes mesmo da ida para o abrigo, ou seja, enquanto privação de direitos fundamentais que acabam por embaraçar, ou até mesmo impedir, que cuidados fundamentais sejam proporcionados ao bebê. Referimo-nos às crianças muito pequenas que, por algum motivo, são separadas de suas famílias e acolhidas institucionalmente. É possível pensar que essas crianças tenham vivenciado uma interrupção desse continuar a ser, ou, como também é possível, que sequer tenham chegado a experienciar esse estado de díade com sua mãe.

A partir das concepções supracitadas, é essencial que clarifiquemos algumas considerações acerca da criança acolhida, submetida a uma privação total. O termo abrigo é oriundo da formulação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) (Lei n. 8.609, 1990) e refere-se a instituições de acolhimento para crianças e adolescentes (e também adultos) que se encontram em situações de vulnerabilidade ou risco. Atualmente, tem-se utilizado a expressão "acolhimento" para se referir às ações que envolvem o resguardo de pessoas em alguma instituição. Hoje, um abrigo convencional se define pela moradia de crianças e adolescentes que são cuidados por monitores ou educadores, responsáveis pelo seu pleno desenvolvimento.

Os primeiros centros de acolhida infantil tiveram seu início após a Segunda Guerra, tendo em vista o caos que havia se formado (Cruz, 2006). Percebeu-se a existência de um grande número de crianças órfãs, sem que houvesse alguém responsável por elas. Então, começaram a surgir instituições específicas, onde a atenção era voltada para a sobrevivência emocional, pós-trauma de guerra, baseando-se na tentativa de reconstrução social. A partir da observação do alto índice de mortalidade infantil e deficiências no desenvolvimento psicológico naqueles centros, ficou claro que o corpo não sobrevive apenas com cuidados físicos No Brasil, de acordo com o ECA, o abrigo não deveria implicar privação de liberdade, mas sim atuar como medida de transição até a criança poder retornar à sua família de origem ou ser integrada a uma família substituta, de modo que seja considerado um âmbito protetivo como moradia alternativa e provisória.

Tanto o Estatuto da Criança e do Adolescente quanto a Constituição Federal (1988) deixam clara a importância assegurada à família na sociedade brasileira, de modo que cabe a ela garantir às crianças e adolescentes seus direitos fundamentais. Assim, em seu artigo 19, o ECA atesta que "toda criança ou adolescente tem direito de ser criado e educado no seio de sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária". No entanto, a partir do levantamento realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplica (IPEA, 2003), que buscou conhecer as características, a estrutura de funcionamento e os serviços prestados pelos abrigos para crianças e adolescentes beneficiados com recursos do governo federal, verificou-se que a grande maioria das instituições não se encontra com todos (ou a maioria) dos quesitos dentro do que é promulgado pelas políticas da infância e adolescência e de acolhimento no país.

O que mais chama a atenção é que, mesmo a convivência familiar sendo preconizada pela Constituição Federal e pelo ECA, há uma grande quantidade de crianças abrigadas que possuem família e vínculo (mais de 58%), e ainda assim acabam permanecendo muito tempo na instituição ou não retornando para o seio familiar. Vale destacar que o principal motivo apontado para o abrigamento, que é a pobreza, não representa motivo legal para tal medida, já que o Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece a obrigatoriedade de inclusão da família em programas oficiais de auxílio quando pais ou responsáveis não conseguem cumprir com suas obrigações de proteção aos filhos por motivos de carência material. Ressalva-se, porém, que a pobreza pode estar articulada a outros fatores determinantes da violação de direitos que podem ter justificado o abrigamento das crianças e dos adolescentes (IPEA, 2003).

O que se evidencia, portanto, é uma desarticulação entre as políticas voltadas para as crianças e adolescentes com as ações que se destinam às famílias. Essa articulação, ao ocorrer devidamente, poderia, se não evitar o ingresso das crianças nos abrigos, abreviá-la, de modo que ocorra em último caso, quando estritamente necessário.

Moreira (2014) salienta o quão eficazes se mostram as formas através das quais são aplicadas medidas de proteção da criança e do adolescente que se encontra em situação de risco ou vulnerabilidade no contexto familiar, visto que, ao serem levados a abrigos, podem encontrar um ambiente seguro, saudável, com acesso à escola, ao lazer e demais práticas culturais. Porém também evidencia a dificuldade dos locais de acolhimento quanto à restauração dos vínculos familiares: "por um lado, pela crença compartilhada em um modelo ideal de família, e, por outro, pela descrença na potencialidade das famílias que tiveram seus filhos acolhidos institucionalmente" (p. 34). Assim, a autora aponta para dois importantes entraves no que tange à potencialização dos recursos da família, sendo o primeiro referente a medidas anteriores à institucionalização e, o segundo, referente à pouca esperança na possibilidade de mudança da família, a partir de seu desejo de mudar de posição e se transformar. Através do estudo realizado pela autora, percebe-se que, de fato, há uma grande dificuldade em manter os vínculos entre as crianças e adolescentes e suas respectivas famílias, que muitas vezes acaba por se perder e prolongar ainda mais esse tempo que deveria ser transitório na instituição.

Ainda a respeito do lugar ocupado pelos cuidadores de uma instituição em relação aos bebês, Gabeira e Zornig (2013) questionam a diferença entre os cuidados fornecidos pelos cuidadores e pela própria mãe, sustentando que a função do cuidador se estabelece no momento em que se dá a falta da mãe, ou seja, não se trata da mesma relação maternal, por mais que, muitas vezes, expectativas maternais (por parte de ambos os envolvidos) se façam presentes. Além disso, tais expectativas geralmente se veem fadadas ao sofrimento, uma vez que, inevitavelmente, haverá uma ruptura entre a dupla, seja pela criança deixar a instituição ao ser adotada, seja ao deixar o berçário por finalizar um ciclo de sua vida. Isto pode provocar no profissional sentimentos de raiva, abandono e desvalorização do trabalho.

Por todas essas razões, essas situações que, de certa forma, se atrelam ao que se Winnicott denominou como privação (2005c), nos levam a indagar sobre as possíveis marcas que acompanharão a criança no seu percurso em direção à integração, além de que nos motivam a buscar compreender esse novo ambiente que, para essas crianças, passa a ser um novo lar: Seria ele suficientemente bom, a ponto da criança ser capaz de se desenvolver apropriadamente? Além disso, seria ele apto a proporcionar recursos satisfatórios para cada criança desenvolver-se subjetivamente, considerando suas histórias e individualidades?

Essas questões foram despertadas na primeira autora deste trabalho ao se deparar com um caso em sua prática clínica, que, somado a outras questões, compõe os interrogantes supracitados. Trata-se de uma situação clínica de uma criança acolhida institucionalmente, fato ocorrido nos primeiros dias de sua vida. Surgiu, assim, um grande desejo de compreender a constituição infantil de bebês quando em privação do contato com sua mãe e, consequentemente, em situação de acolhimento institucional. Para tanto, se faz necessário buscar essa compreensão nos locais em que essas crianças se encontram, sobretudo através da percepção daqueles que estão incumbidos dos cuidados.

Ainda existem muitas dúvidas a respeito de locais que acolhem bebês, crianças e adultos, de modo que, apesar de em suas legislações podermos vislumbrar a que se propõem - acolherão acolhimento por tempo provisório, calcando-se no intuito de proteger o indivíduo (Lei n. 8.609, 1990) - há o que escapa delas, ou seja, o que toca justamente à efígie e à subjetividade de cada um que ali o habita. O que nos intriga, portanto, se refere à qualidade das relações estabelecidas entre quem cuida e quem é cuidado, compreendendo que as consequências desse laço serão determinantes para o vir a ser de cada sujeito.

Tendo em vista o exposto, o presente trabalho buscou explorar como os agentes cuidadores agem, sentem e se percebem diante da complexidade que envolve o cuidado de crianças acolhidas, considerando que seu contato diário e acompanhamento do desenvolvimento podem auxiliar a entender a constituição psíquica da criança acolhida institucionalmente. Busca, ainda, refletir sobre a constituição psíquica do sujeito separado prematuramente de sua mãe/família, no âmbito do acolhimento em abrigos, bem como sobre que função exercem os agentes educadores nessas instituições, tendo em vista a importância de um vínculo saudável na infância primitiva. Acreditamos que essas são questões de grande relevância atual, seja para o entendimento de profissionais que atuam junto a crianças institucionalizadas, seja para reflexão e elaboração de políticas públicas e suas aplicações. O estudo encontra suas bases teóricas no âmbito da psicanálise, de modo que a concepção de sujeito e sua subjetividade são tomadas como fundamentais nesse enlace que situa a criança pequena como um ser em estruturação e integração, ainda dependente.

 

Método

Utilizamos como dispositivo uma pesquisa de cunho qualitativo, capaz de propiciar uma maior aproximação da complexidade do tema em questão.

Participantes

Participaram deste estudo quatro profissionais (agentes educadores) que atuam diretamente no cuidado de bebês e crianças pequenas que se encontram em dois abrigos no município de Porto Alegre. São dois homens e duas mulheres, sendo que dois deles (um homem e uma mulher) estão há mais tempo na função (mais de cinco anos) e possuem ensino médio completo. Já os outros dois atuam na instituição há cerca de dois anos e possuem ensino superior.

Instrumentos e Materiais

Foram realizadas entrevistas, através de questões abertas, que serviram como norte para o pesquisador. As entrevistas, gravadas e posteriormente transcritas, abordaram os seguintes temas: Tempo que o profissional exerce a função atual; atividades que exerce; o papel que acredita exercer perante as crianças; o tipo de vínculo estabelecido e o tipo de cuidado é prestado; como percebe as crianças que ingressam na casa e qual o consequente sentimento despertado nele próprio; como percebe o desenvolvimento das crianças por quem é responsável; os prazeres e as dificuldades do fazer; e como acredita que será lembrado futuramente pela criança.

Procedimento

As entrevistas ocorreram nos domínios da instituição de acolhimento, nas casas cujos participantes trabalham, ou seja, em ambiente privado, sem a interferência de outras pessoas. Os profissionais foram informados pelo pesquisador acerca da pesquisa a partir do esclarecimento dos objetivos e procedimentos e também da leitura do termo de consentimento livre e esclarecido. Uma vez de acordo, assinaram o termo e iniciou-se a entrevista. Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa.

As entrevistas foram analisadas a partir de uma leitura clínica, de modo que o material foi organizado por temas posteriormente. Primeiro, foi realizada a escuta/leitura atenta do material gravado, com o intuito de resgatar os conteúdos de maior importância. Ao longo do trabalho, trechos das entrevistas foram descritos e identificados com nomes fictícios dos profissionais. Ademais, o caso clínico que motivou o escrito foi utilizado para complementar os achados das entrevistas. Tais achados foram discutidos em conjunto com proposições teóricas que podem lançar luz aos dados, bem como serem enriquecidas por eles, em um movimento de dupla mão entre teoria e evidências empíricas.

 

Resultados e Discussão

Por um Possível Vir a Ser: Quem são/como serão essas Crianças?

Freud (1905/1996) postulou na obra Três ensaios sobre a teoria da sexualidade que não há período em que a capacidade de receber e produzir impressões seja maior do que nos primeiros anos da infância. É um momento no qual inscrições importantes operam, quando se instaura a subjetividade e se alinha a constituição psíquica. A questão que se funda aqui é justamente sobre como é possível uma criança constituir-se tendo vivenciado situações inolvidáveis de abandono e separação. Ao escutar os agentes educadores, tentamos buscar um sentido, ou alternativas, a essa interrupção no vir a ser que se apresenta com tanta veemência. "Nunca será como se estivessem no ambiente familiar, mesmo sem o cuidado necessário, o sentimento de abandono e de não pertencimento os acompanha, fazendo com que mesmo sem condições prefiram estar com suas mães", relata Marta acerca de sua percepção sobre as crianças com quem convive.

Em carta redatada ao British Medical Journal acerca da evacuação de crianças pequenas separadas de suas mães durante a Segunda Guerra Mundial, Bowlby, Miller e Winnicott alertaram as autoridades sobre os perigos iminentes desse ato (Winnicott, 2005b). Os autores enfatizaram que esse tipo de experiência "pode significar muito mais do que uma tristeza. Pode equivaler a um blackout emocional e levar facilmente a um distúrbio grave do desenvolvimento da personalidade" (Winnicott, 2005b, p. 10). Winnicott (2005a, p. 11) propõe, dessa forma, que "quanto menor for a criança, maior será o perigo de separá-la de sua mãe", ou seja, quanto menor, menos chances terá de conseguir manter viva em si a imagem de alguém, de modo que se não for constantemente apresentada de forma tangível, essa pessoa estará morta para ela. Assim sendo, o autor enfatiza a importância da relação e do vínculo entre a criança e sua família, ciente de que essa unidade gera uma segurança fundamental à criança pequena, ao passo que sua ausência pode suscitar efeitos sobre o desenvolvimento psíquico capazes de provocar danos à personalidade e ao caráter.

A opinião dos educadores entrevistados corrobora a premissa de que uma criança que sofre privação de um cuidado natural dispensado pela mãe/ambiente pode posteriormente sinalizar importantes dificuldades de estruturação. Ao mesmo tempo, percebem que, muitas vezes, as crianças que chegam parecem gostar do novo ambiente, pois esse fato decorre de situações que impediram que continuassem em seus lares, com seus pais e irmãos. Assim como Marta conta: "Uns chegam bem, outros choram, ficam mal. Temos que ter o timing". Em consonância, Gustavo afirma: "Ela vem assustada, vem não querendo ficar na casa, achando que todos são bichos-papões, e tu passa uma segurança para ela". O que se percebe, portanto, é uma tentativa dos agentes educadores de garantir um bom acolhimento, capaz de proporcionar a segurança necessária no novo lar.

Ali há um teto, uma cama quentinha, comida, brinquedos, outras crianças e alguém para zelá-los. Acontece que, na maioria das vezes, isso não é suficiente para atenuar a dor de um abandono, de um descaso, de uma ruptura ruidosa que os acompanhará durante suas andanças. Além disso, identifica-se certa preocupação dos agentes acerca de quem é e como será a criança que recebem. Sabem que, por mais novos que sejam, já carregam consigo uma história: "Quem é essa pessoa? Como é o comportamento dele? Será que é agressivo? E os pequenos? A primeira coisa que passa na nossa cabeça é de quem será, (há) um certo receio", afirma Raquel quanto à ansiedade que se revela no momento da acolhida, quando expectativas sobre o passado e o futuro se fundem no novo presente.

O caso clínico que fomentou esse escrito apresenta as particularidades de Lara que, separada de sua mãe quando contava com dez dias, foi levada a um abrigo. Aos dois anos foi encaminhada para atendimento psicológico, pois apresentava terrores noturnos. No início dos atendimentos, Lara parecia bastante inibida, olhando os cuidadores com desconfiança, ao mesmo tempo em que mantinha o polegar da mão direita na boca e a mão esquerda na orelha. Esse momento estava sendo marcado para a menina por uma segunda separação, a de agentes educadores com os quais se apegara desde sua chegada a casa. Ela ainda não falava, e o trabalho em sessão se iniciou justamente pela via de um esvaziamento do corpo, em que a nomeação de suas partes constituía um meio através do qual, pouco a pouco, o corpo dava espaço para a palavra. Assim, foi sendo realizado um genuíno trabalho de holding, de sustentação para um psiquismo, para além de um corpo. Alicerça-se, portanto, a dúvida do quanto o abrigo supunha na menina algo para além de um corpo, e do quanto podia sustentá-la no seu vir a ser.

Os atendimentos de Lara, portanto, se davam também no intuito de oferecer um ambiente suficientemente bom, onde o analista, identificando-se com a criança tal como a mãe "deveria tê-lo feito", atuaria no sentido de oferecer uma nova oportunidade, reparando possíveis falhas em suas primeiras relações.

Crescer em uma instituição de acolhimento impõe demandas às crianças que possivelmente não se fariam presentes em um ambiente familiar. O discurso dos agentes educadores revela o quanto necessitam "ser mais fortes", precisam sempre gritar mais alto, se fazerem vistas e escutadas. O grande número de crianças disputando a atenção de seu "tio" ou "tia" faz com que logo percebam que precisam se tornar independentes de suas funções, pois não há tempo suficiente de espera para receber atenção, para aprender e constituir um saber deles herdado. "Quem for muito quieto não vai ser ouvido, não vai ser lembrado, então tu tem que te impor; as crianças vão desenvolvendo uma personalidade muito forte, já somado aos traumas e revoltas que têm o direito de ter, e. às vezes. vão tendo um desenvolvimento meio negativo, meio carregado, difícil" expõe João, mostrando como essas crianças precisam ser impositivas, mais espertas, pois nem sempre terão alguém como referência - o monitor de hoje não necessariamente estará lá amanhã.

No caso de Lara, foi necessária a manifestação de um sintoma para que se julgasse importante o início de um atendimento psicológico. Nos primeiros meses de atendimento, já era possível perceber um grande avanço na menina no que se refere à linguagem, ao passo que se identificava sua angústia frente ao abandono. A agente educadora que a acompanhou no início já não se fazia presente nos atendimentos, estando também afastada de seu convívio rotineiro. A menina se apresentava ambivalente frente à figura da terapeuta, pois ao mesmo tempo em que necessitava marcar seu corpo como forma de criar um laço capaz de garantir sua sustentação naquele momento, agredia-o da mesma forma. Vislumbrava-se uma menina autoritária, pouco tolerante a frustrações, irritada e de choro fácil. Quando ficava brava, levava objetos de forma colérica também ao próprio corpo, principalmente à boca.

Winnicott (2005c) propõe que, para que possamos perceber os sinais favoráveis de crianças que sofreram com a privação, é preciso que esteja claro o que acontece com a criança doente. Assim, ele explica que somente dessa forma poderemos perceber que estados depressivos e atos antissociais são indicativos de que pode haver alguma esperança, visto que mostram uma conservação da unidade da personalidade.

Ao pensarmos o caso de Lara, é notável a importância de seu ingresso no tratamento, pois assim seria possível vislumbrar uma alternativa de reparação daquilo que outrora se perdera. Porém nem sempre se dispõe dessa condição, e é também através das palavras dos agentes educadores entrevistados que percebemos a premissa instaurada nesses casos. "É muito ruim tu ver que talvez aquela criança não consiga nem assimilar tudo o que está acontecendo com ela, mas, quando ela for adulta, aquilo vai ter um reflexo ruim", aponta João acerca de sua revolta e impotência para com a situação das crianças, relatando apostar na tentativa de proporcionar um ambiente mais leve e alegre a elas. Gustavo também concorda com a colega: "Na hora, sentimos meio que uma tristeza, mas temos que passar tranquilidade, que aqui não é o melhor lugar do mundo, mas é um lugar bom", de modo que seu discurso aponta para a ciência de que estão ali para atendê-las e ficam tristes com a situação, mas tentam passar uma boa imagem do local, como um lugar possível de crescimento.

Quem Sou Eu para com Elas?

Temas importantes que nortearam as conversas com os agentes educadores perpassaram pelo que corresponde ao papel e também ao vínculo que cada agente estabelece com as crianças. Estes se apresentam como cruciais para a constituição infantil, pois poderão sustentar (ou não) a capacidade para as relações objetais. Identificamos discursos que divergem a esse respeito: enquanto alguns acreditam que exercem um papel fundamental, semelhante ao desempenhado pela família, há também os que desacreditam desse vínculo, atendo-se ao profissionalismo. Essa divergência se explica por diversos fatores, mas o que se sobressai é a consciência que os educadores possuem da importância de um vínculo intenso a ser estabelecido com cada criança, pois consideram imprescindível que todos sejam bem cuidados e tratados.

Como sabemos, para que uma criança cresça e se desenvolva bem, é preciso que alguém a sustente minimamente, alguém capaz de compreendê-la e supô-la subjetivamente. A mãe, ou a figura que a compreende, precisa ter condições para esse fazer, um fazer no qual se volta para sua criança a ponto de esquecer-se de si, transmitindo a ela um saber inconsciente. Nesse sentido, Winnicott (2013) evidencia funções fundamentais que uma mãe suficientemente boa deve ser capaz de exercer na sua relação com o bebê, as quais se reúnem, em linhas gerais, na garantia da experiência de "continuar a ser", de uma forma em que o bebê consiga se sentir vivo mesmo antes de se tornar um sujeito.

Esse esforço inconsciente que o cuidador faz a partir de sua presença discreta fornece condições para o bebê se tornar espontâneo e detentor de suas sensações (Ogden, 2010). Desse modo, é somente através do laço e de sua continuidade que o bebê terá sustentação e continência para garantir seu vir a ser. Em uma instituição de acolhimento, questionam-se as possibilidades de cuidado envolvendo essas funções fundamentais enfatizadas por Winnicott. Ao refletirem sobre como isso se dá no dia a dia da instituição, os educadores se dão conta do quão difícil se torna essa tarefa, tendo em vista as diferentes nuances que se atravessam nesta tentativa.

Raquel se vê muito próxima das crianças por quem é responsável: "Acabamos fazendo um pouco essa função de pai e mãe, que é quem está sempre junto. Sempre em termo: estou só à tarde, outros colegas estão só pela manhã ou à noite, então isso também atrapalha um pouco no desenvolvimento da criança". Assim, ao mesmo tempo em que as percebem como carentes e sofridas, entendendo como fundamental o estabelecimento de um vínculo positivo, também percebem que esse vínculo não é suficiente, que ele não dá conta de satisfazer as necessidades da criança, nem recuperar o que já sofreram: "Por mais que a gente tente, é a questão de ter outros e outras coisas que demandam a atenção, então é diferente de como é numa casa", aponta Gustavo. Seguindo a mesma linha, Marta afirma: "Claro que nosso vínculo ajuda, mas eles são pessoas que vão ser diferentes, isso não tem como negar. Tem coisas que não há como arrancar da memória de ninguém, então não há vínculo que seja suficiente". Em geral, é visível o incômodo e a dificuldade dos educadores nesse sentido. Não se sentem preparados para tal, não sabem como agir, pois percebem o quanto as crianças são suscetíveis à formação de vínculos: "Eu tenho um pouco de medo de até onde eu posso corresponder a esse vínculo, e também porque eu não posso, eu não vou levar as crianças para minha casa", relata João acerca de sua experiência. Nessa conjuntura, pensamos em quantos sentimentos diversos são despertos, se misturam e os acompanham no desdobrar do dia a dia. Sentimentos que podem ir desde o receio por desconhecerem o que está por vir, até um próprio sentimento de culpa por não poderem, não quererem, terem medo de se deixarem invadir por esse vínculo tão intenso.

O que parece se cristalizar em tais falas, portanto, é a compreensão de crianças impedidas de estabelecerem vínculos satisfatórios, em que identificações primitivas também são ameaçadas. Assim, Winnicott (2013) fala da importância de um ambiente acolhedor, no qual a figura de uma mãe suficientemente boa (que será a própria mãe ou alguém que cumpra essa função), ao se adaptar às necessidades do bebê, proporciona-lhe a ilusão de que seu seio é parte do bebê, de modo que sua principal missão é desiludi-lo gradativamente, na medida em que o bebê se torna capaz de perceber objetivamente. Winnicott (1975a) apresenta a ideia de uma área intermediária, na qual fenômenos transicionais iniciam um processo de significação das relações de objeto. Importante salientar que não é o objeto que é transicional, mas que ele representa uma transição, momento em que o bebê, antes fundido com a mãe, passa a se relacionar com ela como algo externo. Essa confiança propiciada pela mãe permite que um espaço potencial passe a existir, possibilitando ao bebê adentrar em uma terceira zona, da vida criativa e cultural (Winnicott, 2005c). Esse trecho expressa a preocupação de Winnicott quanto à influência da separação sobre os fenômenos transicionais. Caso a mãe se ausente por muito tempo, a representação interna que o bebê possui dela se esmaece, o que tem como consequência a descatexização do objeto.

À luz do exposto, cabe pensarmos no caso de Lara. Em uma das primeiras conversas, a agente educadora revelou que a menina não possuía nenhum objeto pelo qual se apegara - ninguém possui algo somente seu lá -, passando grande parte do tempo chupando o polegar, principalmente em situações que julgava angustiantes. Após alguns meses, foi relatado pelos responsáveis da casa em que vivia e também pela escola que a menina se masturbava constantemente, e percebiam isso em momentos de espera prolongada ou quando algo a incomodava. Esse fato também foi percebido com maior intensidade no período em que a menina com quem possuía um vínculo muito forte na casa foi adotada, junto às férias de uma agente educadora e também da creche. Como afirma Winnicott (2005c, p. 211-212), "é preciso que exista alguém que esse objeto represente ou simbolize (...); objetos e fenômenos transicionais tornam a criança capaz de suportar frustrações e privações". A questão que indomitamente nos invade alude ao ambiente cuidador: Foi ele suficientemente bom a ponto de permitir que a criança desenvolvesse a importante ponte entre o mundo subjetivo e o objetivo? Sabemos que o objeto simboliza a criação desse espaço potencial e, quando isso não é possível, também não há a possibilidade de uma ameaça de separação, permanecendo o indivíduo voltado ao próprio corpo (autoerotismo) ou ao objeto. Isto se dá na medida em que o ambiente falha, não satisfaz, e assim a criança não consegue aproveitá-lo.

Nesse sentido, é relevante refletir sobre o novo ambiente e as (im)possibilidades que o compõe. Conforme observa Araújo (2007), Winnicott reconheceu as instituições enquanto parcelas da sociedade que complementam ou substituem os papéis parentais através da estabilidade engendrada por seus códigos e normas de conduta. A autora salienta que "o ambiente institucional promoveria as condições básicas para o desenvolvimento do indivíduo como ser social, ou mesmo, para que ele pudesse, antes de tudo, vir a ser um indivíduo" (Araújo, 2007, p. 68). Assim, na indicação de um ambiente institucional para uma criança, é necessário que este lembre seu próprio lar naquilo que possuía de saudável. São imprescindíveis, portanto, a estabilidade, os cuidados individuais e, principalmente, sua continuidade. Assim, caso o ambiente seja capaz de fornecer à criança a referência que lhe faltou em seu próprio lar, também poderá auxiliá-la a se desenvolver de forma plena, pois, como bem aponta Winnicott (2005d, p. 77), "é a natureza permanente do lar que o torna valioso, mais do que o fato de o trabalho ser realizado com inteligência".

Durante o período de tratamento de Lara, um importante trabalho foi realizado no sentido da busca de integração corpo, afeto e pensamento, o que integra o tecido psíquico que contorna tudo o que vem a compor experiências de vida. Como afirma Abadi (2005, p. 4), "o self deverá também conservar a capacidade de regressar a estados de menor integração, preservando a flexibilidade da rede simbólica". Assim, caso existam falhas na construção dessa transicionalidade, percebemos, como consequência, uma dificuldade no que se refere aos processos que entremeiam os mundos interno e externo, o que perpassa desde a construção dos limites do self até os excessos de integração, a patologia do falso self.

É difícil precisar, em nível de diagnóstico, o quão intensas foram as marcas oriundas da separação de Lara de sua mãe, e o quanto elas foram determinantes para os sintomas que resultaram no seu encaminhamento para atendimento psicológico. Todavia, esses pequenos trechos de sua história, junto ao discurso dos agentes educadores, ilustram algo do cuidado dispensado em instituições de acolhimento, e de que forma ele é capaz (ou não) de dar conta das importantes funções necessárias para a constituição infantil.

Como pode ser percebido, apesar da tentativa, o vínculo estabelecido com as crianças acaba sendo frágil perante o desamparo a que foram submetidas. Assim, as diferentes interfaces do cuidar imprimem nesses locais um sentimento de impotência. Os educadores salientam o quanto as crianças são bem cuidadas fisicamente, porém revelam suas dificuldades para além do cuidado físico: "(...) proteção, e essa parte talvez falte tempo para a gente fazer, para a gente cuidar do sentimento da criança. Essa coisa do plantão, de muitas pessoas, a gente não consegue se aproximar. A criança prefere estar com a família, sem comida, sem condições de higiene, mas tendo carinho, atenção. Têm muitas que nem isso têm, mas só pela proximidade e referência familiar", afirma João. O cuidado sofre interferências diversas, seja pelas diferentes demandas, seja pelas diferentes formas de se cuidar em virtude da alternância de educadores, seja pelo pouco tempo que resta com as crianças, seja pelaprópria falta de preparo e saúde para atendê-las.

Durante o atendimento de Lara, também foi possível registrar algumas dificuldades decorrentes dessa organização institucional: Era difícil saber quem era o "monitor de referência", como nomeado na primeira entrevista. Não sabíamos a quem nos reportar, alguém que soubesse mais sobre sua história, sobre seu cotidiano. Em sessão, Lara não mencionava o nome das pessoas responsáveis por ela.

Nesse sentido, indagamo-nos sobre a possibilidade de sustentação a ser proporcionada na instituição: como afirma Figueiredo (2009), a fim de que o cuidado se perfaça, é necessária a garantia de sua continuidade e contingência. Ao relatar sobre suas dificuldades, os agentes educadores se referem à impossibilidade, justamente, dessa continuidade, pois existem plantões a cumprir, e o próximo a cuidar não necessariamente o fará da mesma forma como estava sendo feito. Nesse sentido, Marta relata: "o cuidado é desde a criança não se machucar, mas vai mais além, tem que ser presente. Eu tento levar de berço o que eu tenho para eles, mas é muito difícil, eu só estou lá das 7 às 13 horas", e João completa: "Eu não posso perder mais tempo limpando a casa, tirando o lixo ou com coisas burocráticas do que com as crianças". Esses discursos exemplificam um pouco das inúmeras dificuldades encontradas pelos agentes educadores quando se trata de cuidar. Presume-se que ocorra uma quebra nesse processo, o que não assegura a continuidade da suposição simbólica do sujeito. Além disso, eles são convocados a diferentes demandas (como cuidar da casa e de serviços burocráticos), que não necessariamente privilegiam uma atenção dedicada às crianças sob seus cuidados.

No estudo realizado por Nogueira e Costa (2005a), as autoras perceberam grande dificuldade quanto à interação cuidador/criança devido à rigidez da rotina e ao grande número de crianças para apenas um cuidador, o que também foi descrito pelos agentes entrevistados. O ponto fundamental destacado pelas autoras se refere à qualificação do profissional encarregado pelo cuidar. Na maioria das vezes, o que se observou é que a habilidade que alguns agentes demonstraram decorria do fato de possuírem filhos biológicos, o que não necessariamente os leva a se utilizarem da maternagem, permanecendo restritos a sua função como empregados de uma instituição com obrigações a cumprir. Nesse sentido, Raquel salienta que "o ideal é que as pessoas pensassem que também estão sendo pagas para dar carinho", e chama a atenção para o fato de não possuírem momentos de formação e/ou de trocas, em que fosse possível falar sobre suas dúvidas, dificuldades e obstáculos do dia a dia. Nogueira e Costa (2005b, p. 45) também enfatizaram a necessidade de formação e capacitação para os profissionais incumbidos do cuidado de crianças que possuem em seu histórico experiências de ruptura e sofrimento. Assim, questionaram as possibilidades de desenvolvimento saudável de crianças que acabam não sendo atendidas e cuidadas de forma integral: "É uma necessidade primordial dessas crianças a possibilidade de encontrarem ambiente adequado, atmosfera que as ajude a encontrar segurança e bem-estar, um quadro não somente acolhedor, mas estável".

É importante ter ciência de que a relação do cuidador com a criança nunca será a mesma da mãe com seu filho, pois aquela somente se dá na ausência da mãe, o que por si só demarca uma circunstância ímpar. Assim mesmo, muitas vezes o único saber de que os cuidadores dispõem pertence a seu ímpeto maternal. Gabeira e Zornig (2013) se questionam sobre a diferença entre os cuidados fornecidos ao bebê pelos cuidadores e pela própria mãe, sustentando que a função do cuidador se estabelece no momento em que se dá a falta da mãe, ou seja, não se trata da mesma relação maternal, por mais que muitas vezes expectativas maternais se façam presentes. É importante salientar que essas expectativas, muitas vezes, estão fadadas ao sofrimento, uma vez que, inevitavelmente, haverá uma ruptura entre a dupla, seja pela criança deixar a instituição ao ser adotada, seja ao deixar o berçário por finalizar um ciclo de sua vida. Isto pode provocar no profissional sentimentos de raiva, abandono e desvalorização do trabalho. João relata situações difíceis que vivenciou no momento em que uma criança, a quem se afeiçoou muito, foi adotada: "Eu lembrava dela e chorava... Mas não é para isso que estou lá, para me apaixonar pelas crianças desse jeito, mas acho que é normal. Acho que até é bom para elas sentirem que tem alguém que gosta e se preocupa com elas. Me falta competência para lidar com essas necessidades". Quando essa relação se encontra permeada por instintos (maternos), existem também perigos que a envolvem, podendo afetar tanto o profissional quanto o bebê. O agente de cuidados pode provocar decepções e frustrações nos bebês ao considerar suas próprias necessidades emocionais, dificilmente compensadas no âmbito coletivo (Gabeira & Zornig, 2013). Assim, como forma de se defenderem de constantes separações dolorosas, acabam tornando-se mais impessoais, rígidos e mecânicos.

 

Conclusão

No enredo inscrito tecemos um panorama acerca das vicissitudes que envolvem situações de rupturas no laço mãe e bebê, e o consequente ingresso da criança numa instituição de acolhimento. Winnicott (1975b, p.150) salienta o quanto o amor da mãe, ou da figura que a compreende, é capaz de permitir ao bebê sua autonomia. Segundo o autor "um bebê pode ser alimentado sem amor, mas um manejo sem amor, ou impessoal, fracassa em fazer do indivíduo uma criança humana nova e autônoma". Em pesquisa realizada por Omizzollo (2017, pp. 101-102), observou-se que "o acolhimento institucional pode significar uma potência (de vida) caso ocorra um encontro permeado pelo acolhimento e pelo cuidado", isto é, mesmo sendo o abrigo permeado pelas mais diversas marcas e complexidades, é a partir da disponibilidade de cada cuidador para sustentar a história e as dores das experiências iniciais de cada criança que se possibilita, acima de tudo, uma aposta.

Nessa conjuntura, buscamos através do discurso dos agentes educadores uma compreensão acerca da constituição psíquica de crianças em acolhimento. O fato da experiência de cada agente ser singular merece destaque no tocante à escuta e análise de cada entrevistado. Percebemos, assim, que na particularidade com que cada educador vivencia seu papel, muitos temas relacionados aos interrogantes que este trabalho supõe emergiram de suas falas, legitimando a magnitude conferida à infância primitiva e tudo o que a circunda.

A abordagem realizada possibilitou a compreensão de diversos fatores implicados na árdua tarefa do vir a ser enquanto sujeito no âmbito de uma instituição de acolhimento. As dificuldades com as quais os agentes educadores se deparam - ainda que o esforço por parte dos mesmos seja visível - faz com que ainda nos intriguemos a esse respeito, tendo em vista a premência de um ambiente estável e acolhedor.

Ao serem questionados acerca de como percebem o desenvolvimento das crianças que acompanham no seu dia a dia, os agentes educadores demonstram certa complacência para com elas, pois as percebem como sujeitos cujas marcas que carregam consigo fazem com que cresçam permeadas por dificuldades e necessidades de imposição e revolta. Eles entendem que se essas crianças ali estão é porque, antes de sua chegada até o abrigo, sobreviveram em um mundo hostil e marcado pela falta, principalmente pela falta de um suporte mínimo que os sustentasse no seu caminho rumo à estruturação. Apesar de não se convencerem com o fato das crianças estarem ali e não junto à suas famílias, também entendem que há uma necessidade primeira, de zelo e cuidado mínimo com cada criança por quem são responsáveis. Porém, tal como a psicanálise faz com que nos questionemos sobre de que maneira podem essas crianças se constituírem psiquicamente, eles também se inquietam com o quão conturbado se faz esse cuidado, o quão dificultosa se torna essa tarefa, pois não se trata de um simples "tomar conta". Trata-se de proporcionar um cuidado que permeie o "estar junto", numa tentativa de restaurar um laço que pouco ou nunca existiu. Entendem, portanto, que um ensaio para um vínculo calcado na confiança e na confiabilidade pode ser possível, mas que, inevitavelmente, se encontra emaranhado por entre as dificuldades inerentes ao seu fazer.

Em meio a tudo isso também se encontra Lara, que cerca de um ano e meio após iniciar seu tratamento é recebida por uma mãe adotiva, desejosa por ela. Em sessão, a menina irritada e autoritária se retrai, como se estivesse doando-se para alguém cuidá-la. Através da transferência, expõe sua angústia e medo de novamente ser abandonada, marca que tão logo não cicatrizará.

É incontestável a relevância do até então discutido, principalmente quando circunstâncias como as supracitadas vêm ao encontro de nós, terapeutas. Nesse caso, Winnicott (1975c) adverte que o analista veja seu paciente, pois somente através de sua capacidade de se identificar com ele será possível garantir um setting seguro o suficiente para garantir o holding e o handling que anteriormente não obtiveram êxito. Assim, afirma o autor:

o vislumbre do bebê e da criança vendo o eu (self) no rosto da mãe e, posteriormente, num espelho, proporcionam um modo de olhar a análise e a tarefa terapêutica (...). É um derivado complexo do rosto que reflete o que há para ser visto (...). Se eu fizer meu trabalho suficientemente bem, o paciente descobrirá seu próprio eu (self) e será capaz de existir e sentir-se real. (Winnicott, 1975c, p. 161)

O que Winnicott propõe enquanto função de espelho desempenhada pelo terapeuta pode ser pensado também acerca da posição dos agentes educadores. A capacidade de se identificar com as crianças tornará possível um ambiente suficientemente seguro, contribuindo. assim. para o crescimento e enriquecimento da personalidade de cada criança.

Para finalizar, foi possível perceber que as formas de agir, pensar e sentir enquanto agente educador em uma casa de acolhimento podem possuir um significado muito mais abrangente e intenso do que o pressuposto por eles próprios. Lá, mostrou-se indiscutível a necessidade de um fazer a mais, um fazer pelos que cuidam, para aqueles a quem foi conferida a incumbência desse cuidar. Lá, onde vivem (e sobrevivem) crianças com as mais diferentes histórias, mais diferentes marcas, mais diferentes formas de esperança, há a primordialidade de um olhar menos condolente e mais identificatório, capaz de supor que ali existe alguém. Lá, e em todos os lugares que abrigam crianças separadas (fisicamente ou não) de suas mães, é imprescindível um porto, um lugar ou um alguém que sirva como a ancoragem vital, que se assente na continuidade e acredite na possibilidade de um vir a ser. Acreditamos que, como defendido por Silva, Martins e Lisboa (2017), a partir da formação e qualificação dos profissionais que trabalham com bebês, mas também do amparo, pode-se oferecer a escuta e o espaço que viabilizam a atribuição de novos sentidos, e a construção de experiências de vida mais enriquecedoras e mais genuínas.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Poliana Omizzollo
Email: poli.ana@hotmail.com

Milena da Rosa Silva
Email: milenarsilva@hotmail.com

Recebido em: 27/05/2016
Revisado em: 02/03/2017
Aceito em: 29/09/2017

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