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Revista Subjetividades

Print version ISSN 2359-0769On-line version ISSN 2359-0777

Rev. Subj. vol.18 no.3 Fortaleza Sept./Dec. 2018

http://dx.doi.org/10.5020/23590777.rs.v18i3.5580 

RELATOS DE PESQUISA

 

Uma partida em qualquer porto, um navegar por mares loucos...

 

A trip to any harbor, a sailing through crazy seas...

 

Una salida de cualquier puerto, un navegar por locos mares...

 

Un départ chez n'importe quel port, une navigation en oceans fous ...

 

 

Mário Francis Petry Londero (Lattes)I; Simone Mainieri Paulon (Lattes)II

IDocente de Psicologia na Universidade Federal de Pelotas (UFPel), doutor em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul
IIDocente e pesquisadora do PPG de Saúde Coletiva e do PPG de Psicologia Social e Institucional da UFRGS

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo reflete sobre a escuta clínica a partir de uma pesquisa-intervenção participativa e avaliativa das práticas de cuidado em saúde mental na rede de atenção básica, realizada na região metropolitana do estado do Rio Grande do Sul. Sustentado no método cartográfico, o estudo foi desenvolvido com grupos de interesse, stakeholders, que reuniram usuários, trabalhadores e gestores da rede de atenção psicossocial de cada um dos seis municípios participantes. As narrativas extraídas de cenas cotidianas de um dos municípios pesquisados são apresentadas com a finalidade de destacar as dificuldades que tanto os trabalhadores como a comunidade têm em acolher os sofrimentos psíquicos expressos na discursividade psicótica. Ao final, aponta-se o quanto a clínica da reforma psiquiátrica teria a aprender com as experimentações desviantes que a loucura e as pesquisas participativas podem ofertar quando operadas sob uma ética da diferença.

Palavras-chave: política pública; reforma psiquiátrica; clínica; pesquisa-intervenção; loucura.


ABSTRACT

The article reflects on clinical listening from a participatory and evaluative intervention research on mental health care practices in the primary health care network in the metropolitan region of the state of Rio Grande do Sul. Based on the cartographic method, the study was developed with stakeholders, who gathered users, workers and managers of the psychosocial care network of each of the six participating municipalities. The narratives extracted from daily fscenes of one of the cities surveyed are presented with the purpose of highlighting the difficulties that both workers and the community have in accepting the psychic sufferings expressed in psychotic discursiveness. In the end, it is pointed out how much the clinic of psychiatric reform would have to learn from the deviant experiments that madness and participatory research can offer when operated under an ethic of difference.

Keywords: public policy; psychiatric reform; clinic; intervention research; madness.


RESUMEN

El trabajo se refiere a la escucha clínica a partir de una investigación-intervención participativa y evaluativa de las prácticas de cuidado en salud mental en la red de atención básica, realizada en la región metropolitana del estado del Rio Grande del Sur. Sujetado en el método cartográfico, el estudio fue desarrollado con grupos de interés, stakeholders, que reunieron usuarios, trabajadores y gestores de la red de atención psicosocial de cada unos de los pueblos participantes. Las narrativas extraídas de escenas cotidianas de uno de los pueblos investigados son presentadas con el objetivo de enfocar las dificultades que tanto los trabajadores cuanto la comunidad tienen en acoger los sufrimientos psíquicos expresos en la discursividad psicótica. Al final, se indica cuanto la clínica de la reforma psiquiátrica tendría a aprender con las experiencias desviadas que la locura y las investigaciones participativas pueden ofrecer cuando operadas bajo una ética de la diferencia.

Palabras clave: política pública; reforma psiquiátrica; clínica; investigación-intervención; locura.


RÉSUMÉ

L'article aborde l'écoute clinique à partir d'une recherche-intervention participative et évaluative sur les pratiques de soins de santé mentale dans le réseau de soins de santé primaires de la région métropolitaine de l'État du Rio Grande do Sul au Brésil. Sur la base de la méthode cartographique, l'étude a été développée avec des groupes d'intérêts,, qui ont réuni des utilisateurs, des travailleurs et des directeurs du réseau de soins psychosociaux de chacune des six municipalités participantes. Les récits extraits des scènes quotidiennes de l'une des municipalités participantes sont présentés dans le but de mettre en évidence les difficultés rencontrées par les travailleurs et par la communauté pour accepter les troubles psychiques exprimées dans le discursivité psychotique. À la fin, il est souligné combien la clinique de réforme psychiatrique aurait à apprendre avec des expériences déviantes que la folie et la recherche participative peuvent offrir lorsqu'elles fonctionnent dans une éthique de la différence.

Mots-clés: politique publique; réforme psychiatrique; clinique; recherche interventionniste; folie.


 

 

Sobre o Começo do Navegar

Nem todo trajeto é reto, nem o mar é regular. (Banda: MetáMetá, Música: Cobra Rasteira1)

Este artigo explora narrativas extraídas a partir de algumas intervenções que recolhem cenas-memórias de atos de escuta clínica ocorridos no entremeio de uma pesquisa-intervenção intitulada "Qualificação da Saúde Mental na Atenção Básica: análise das práticas de equipes da Região 10-Macrometropolitana/RS a partir do Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB)". Nossa proposta é pensar sobre o agenciamento entre a prática de pesquisa interventiva e a clínica operada nos encontros ocorridos no desenrolar da investigação realizada. Voltada a pensar os processos de cuidado em saúde mental no território da Atenção Básica (AB), a pesquisa-intervenção produziu espaços de escuta, ao longo do percurso, que extrapolaram, em muito, seu propósito inicial. Sua dimensão interventiva foi, assim, transbordada, transitando por diversas esferas do Sistema Único de Saúde (SUS), seja no âmbito dos serviços e gestão, seja no que diz respeito às territorialidades locais, aos espaços comunitários, do dia a dia de cada pessoa que se inseria no caminho metodológico proposto.

Foram caminhos que só puderam ser traçados, descobertos e mesmo inventados a partir dos encontros junto ao grupo que se formou no decorrer da pesquisa, e que foi incluindo, progressivamente, novos pesquisadores, usuários, a comunidade em geral, trabalhadores e gestores dos serviços que compõem a teia de cuidado das cidades2 envolvidas com a avaliação e dispostas a pensar a qualificação da saúde mental na AB3.

Neste encontro, em ato em campo, algumas ferramentas metodológicas que serviam para que não nos afogássemos entre tantas misturas pareciam, em alguns instantes, naufragar. A pesquisa interventiva e avaliativa de quarta geração, o círculo hermenêutico e a escuta analítico-institucional foram guias metodológicos que, no decorrer do estudo, foram sofrendo "antropofagias" (Rolnik, 2000) que mais multiplicavam caminhos - Hódos - do que indicavam um alvo, uma verdade, uma metá (Passos & Barros, 2009). E isso, propriamente, não foi um problema, no sentido ruim do termo; ao contrário, nos fez andar - por que não navegar? - e problematizar os encontros que desatualizavam o que, até então, ganhava ares de instituído, rota já traçada sobre a prática de cuidado realizada junto à saúde mental na AB.

O escrito que aqui apresentamos não foi, portanto, conduzido por águas calmas e cristalinas. Aliás, é possível que a analogia mais interessante a se fazer - nesta pesquisa que aqui anunciamos ser de cunho cartográfico -, seja a de atravessar uma pororoca, este acontecimento-encontro entre o mar e o rio no qual a água é turva e repleta de forças que interagem em um território de misturas pouco claras. Ao longo do processo, desejamos enfrentar a água turva com uma espécie de devir Ahab-Moby Dick, que, em seus mareares, produziam, um acoplado ao outro, cartas novas sobre o mar, diferentes dos mapas já traçados e indicados para as rotas marítimas. Ahab e a baleia davam voltas pelo mundo em um jogo de perseguição delirante que inventava "rotas adicionais em espaços que antes estavam em branco" (Melville, 1851/2013, p. 220).

Nesse sentido, a partir dos encontros que desenharam essa pororoca, será possível pinçar ondas afectivas com as quais tentaremos produzir uma escuta, mareando histórias que enlaçam o pesquisar, o intervir e o clinicar com cada verbo, atiçando e marcando o outro com linhas adicionais nos territórios, até então, invisíveis.

 

Mareando Narrativas

As narrativas que aqui serão apresentadas discorrem sobre uma atmosfera clínica que se forjou a partir dos encontros da pesquisa-intervenção, nos quais se pôde acolher um mar de palavras em relação à saúde mental e às práticas que a cercam. Ondas e mais ondas afectivas, que iam e vinham se encontrar no corpo de cada integrante da pesquisa. Algumas, de maneira abrupta, causavam surpresa; outras levavam a risadas. Algumas traziam a tristeza, o fracasso, e também havia aquelas que elevavam, que davam prazer em acreditar que é possível um cuidado potente.

O que fazer com essas vozes era a pergunta que nos vinha à cabeça muitas vezes, junto a essa avalanche de forças que invadiam nossos corpos com pedidos, sussurros, lamentos e esperanças que embaralhavam a escuta e solicitavam um destino. Poderíamos silenciá-las, anestesiá-las, temê-las, apontar um norte, marcar verdades que minguariam as vidas por vir que ali se apresentavam. Ao contrário, poderíamos também nos amigar a elas, entrar e sair de diversos mundos que ali se apresentavam sem a pretensão de ordenar as discursividades, de maneira a enriquecer a construção da clínica da reforma psiquiátrica e do cuidado em saúde mental na rede em que intervínhamos.

Nesse encharcamento de palavras e cenas da pesquisa, desejamos efetivar propriamente as narrativas, trazendo à discussão os casos muitas vezes vistos como inviáveis, as situações que não cabem nas disciplinarizações e normativas procedimentais, que a tudo buscam prever, engessando os processos de cuidado no cotidiano do trabalho clínico. A intenção de narrar cenas até então impensáveis é, justamente, porque acreditamos que são elas que podem nos trazer novidades para pensar a clínica e a pesquisa de cunho cartográfico e interventivo. O exercício de acolher e pensar sobre o inesperado, por mais angustiante que seja, é o que nos possibilita abrir frestas em uma escuta surda frente à exterioridade, frente à loucura que desafia, utopicamente, essa vida minimizada do contemporâneo. Uma "vida nua" - expressão que Pelbart (2013) trabalha para pensar a subjetividade mínima - que atravessa o tecido social e que, por isso mesmo, entra em jogo nas práticas de cuidado.

Conformando um corpo que se torna refém de químicas controladoras das disfunções, a subjetividade mínima alude à redução da vida a um corpo-máquina operador de previsíveis, produzindo meros zumbis impotentes para um ziguezaguear na vida. A atenção à saúde, sobretudo na nossa realidade do SUS, em tempos de biopoder, diz desse modo econômico de subjetividade que tenta evitar, a todo custo, processos relacionais e de vínculo entre cuidadores e usuários, cuidadores e cuidadores, cuidadores e familiares de usuários, usuários e usuários, e a rede de cuidado territorial.

Trabalhar com o vivo, em ato (Merhy, 2002), torna-se um desafio quando a rede está impregnada por amarras institucionais que desprezam tudo que foge ao prescrito. Não por acaso, ao percorrermos a rede de atenção, muitas vezes, nos deparamos com trabalhadores, gestores e, não raro, até mesmo usuários indisponíveis aos atendimentos que não se adequem à oferta procedimental recomendadas nos serviços. É nessa lógica que as equipes demandam cada vez mais protocolos de atendimento e que os gestores fantasiam processos cada vez mais previsíveis de se operar. E, quando uma demanda escapa às normatizações, parece que nada resta a fazer senão encaminhá-la a equipamentos especializados. Tal processo de desresponsabilização, nada incomum à Atenção Básica, expressa a fantasia de que só um especialista poderia produzir escuta adequada e dispor a acolhida "especial" que o trabalhador "comum" não se sente capaz de ofertar. Parece ser sempre o outro que pode estabelecer o necessário vínculo e a adequada escuta aos sofrimentos, por demais individuais, dos sujeitos que acessam a rede. Pouco se considera, entretanto, que o suposto especialista, da mesma forma como o restante da rede, está embretado pelas tramas de controle, e tampouco consegue acolher a diferença.

A produção de trabalho vivo, a invenção de vínculos, a coragem de estar em um processo relacional de cuidado e a possibilidade de uma intervenção clínica são desafios para toda a rede, que torna-se, em sua evitação de contatos para além do protocolizado, de certa forma, refém das estratégias de controle do biopoder, das suas malhas, tanto docilizadoras dos corpos no poder disciplinar como regulamentadoras da vida na biopolítica (Foucault, 1975-1976/2010). Aliás, em se tratando desse emaranhado institucional, nem mesmo o usuário escapa ao desejo de ser cuidado de maneira procedimental, fria e "eficazmente" eleita como a que mais dá resultados. A produção desejante instalada em nossa maquinaria social, alinhada ao biopoder, inspira-se em uma atenção à saúde e em uma modalidade de clínica efetivada em blocos cirúrgicos, em uma atmosfera afectiva mínima, que joga a fabricação de subjetividades para uma "zona de baixa intensidade" (Pelbart, 2013).

Nesses espaços em que impera um ideal asséptico, vemos um desejo de que o paciente passe pelo processo sem dores, sem angústia, de preferência em estado de anestesiamento, no qual se torna presa fácil ao saber médico/hospitalar que irá manipular seu corpo enquanto dorme. Reduzido à carne, matéria sem alma, esse corpo dócil se entrega à promessa de uma nova vida que nascerá no pós-operatório, sem a mínima implicação com o cuidado de que é mero alvo.

No contraponto de tal perspectiva de cuidado, os encontros da pesquisa aqui apresentada pautaram-se por uma ética que propõe a aproximação ao inesperado, junto àquilo que, a todo momento, foge das regulamentações constituídas pelo biopoder. Por isso mesmo, as forças mobilizadas em alguns desses encontros podem ser ditas como instituintes, que movem a vida em um alto grau de potência, ao ponto de rachar as paredes instituídas na clínica, na pesquisa e na rede de cuidado à saúde mental. Eis o desafio: flanar pelas paisagens arriscadas, por aquilo que deixa a "clínica mínima" arrasada por não possuir definições eficazes, por aquilo que agoniza, que sofre e desassossega e que, em sua intensidade, nos encoraja a experimentar uma amizade com o acaso. Em tempos de subjetividade mínima e controle máximo, tal jogo com o inesperado parece cambaleante, mas renasce a cada encontro de corpos em seu poder afectivo, incabível aos modelos de cuidado padronizados (Spinoza, 1677/2007; Pelbart, 2013).

Abaixo, elencamos duas estórias que a pesquisa-intervenção testemunhou e que a nós parecem problematizar os destinos da clínica, sua composição em meio a uma pesquisa e os desafios éticos que ambas possuem quando contextualizadas em tempos de disciplinarização dos corpos. A fim de acompanhar as navegações que passamos a realizar, propomos a seguinte questão: como potencializar os agenciamentos entre a clínica e a pesquisa-intervenção de modo a produzir uma escuta que acolha as diferenças e que transversalize a rede de cuidados em saúde mental?

Trata-se, pois, de dar espaço a uma escuta utópica, que valoriza a experimentação ao anunciar um horizonte por vir (Galeano, 2007) e que maquina espaços para o nascimento de singularidades, "fazendo nascer novos modos de existência, sem qualquer anseio de totalização" (Pelbart, 2010, p. 15).

 

O Navegar em meio a um Redemoinho

O diabo na rua, no meio do redemoinho [...] (Guimarães Rosa, 1956/2001)

A cena retirada do escrito trágico de Guimarães Rosa (1956/2001) descrevendo "o diabo na rua, no meio do redemoinho" faz uma interessante conexão com as narrativas que aqui serão apresentadas. Vista, ao longe e com espanto, a população comum fica paralisada por esse embate entre o Fora e alguém que foi ali colocado para, simplesmente, fazer circular esse plano de fúria intensiva. A população, em geral, ao longo dos séculos, acostumou-se a ver tais cenas de longe, com cada vez mais receio de se aproximar desse lugar distante e próximo ao mesmo tempo. O intempestivo de que aqui se trata é da ordem do animalesco para o indivíduo domado; aquilo que, ao nos contaminar, nos angustia em sua "abertura para o futuro, com o qual nada acaba, pois nada nunca começou - tudo apenas se metamorfoseia" (Deleuze, 1986/2005, p. 97).

Para Pelbart (2009, p. 123), à luz do Foucault de Deleuze, a produção da subjetividade se passa na "crispação do Fora", e é com essa contração das forças oriundas desse Plano do Fora que se cria um dentro, espécie de invaginação das forças a delimitar um indivíduo memorial. A todo tempo em batalha com o intempestivo que não cessa de lhe crispar e de lhe empurrar para uma zona de dessubjetivação, a singularidade delineada nessa dobra do Fora se desenha sempre nessa tensão entre uma dobra feita - indivíduo conservador de memórias - e um Fora - em nada individual - deformador da própria dobra. Mas como deve ser a vida daquele que fracassa nesse processo de crispação? Como ele compartilha a vida junto àqueles que conseguem não naufragar nesse mar intensivo do Fora? Certamente, uma difícil experiência, sobretudose ela coincidir com o próprio percurso de vida de um sujeito desabitado pela memória indispensável para se domar as forças invasoras do Plano do Fora. O Fora, nesses casos, torna-se elemento de muito sofrimento, até mesmo patológico, apreendido como agente identificador daqueles que destoam de um mundo refratário às forças que instalam a diferença.

Esse percurso de vida é o destino de alguns sujeitos, se é que podemos chamá-los assim, a partir de uma lógica neurotizante e manicomial, os quais transitam entre nós com a nomeação de loucos, psicóticos ou esquizofrênicos. Pelbart (2009, p. 144) comenta que o personagem social eleito para carregar o emblema da loucura não pode ser "considerado sujeito de uma subjetividade", pois a "loucura descampada é a ruína da tríade que nos constitui: Saber, Poder, Subjetividade". O louco carece de forças para efetivar uma dobradura que faça uma espécie de filtro protetivo às forças do Fora, ao ponto de fazê-las se tornarem um saber degustável e propício enquanto um território subjetivo - o dentro do Fora -, que conceda um certo norte para a vida, formando zonas de enunciação e de visibilidade. É como se o "tímpano estourasse"; e, uma vez furado, não distingue os sons que lhe invadem, os sentidos não se criam, fracassa o estabelecimento de uma certa ordenação. Não há ligação de um ponto a outro, pois "agora por essa membrana esgarçada já tudo passa: o próprio dentro escancarou-se" (Pelbart, 2009, p. 123). O louco, escravo às forças da desrazão, é impossibilitado de constituir um dentro, ficando à mercê das ondas do mar que a todo instante invadem a areia apagando as pegadas que, até então, tentavam demarcar um percurso, um destino, uma memória (Sousa, 2008). Nesse sentido, não há ritornelo, o sujeito não consegue constituir um território existencial a partir da música cantarolada, não há passagem entre-dois, entre territórios existenciais e caos, o ritmo fica descompassado (Deleuze & Guattari, 1980/1997). O caos traga para si os territórios, por demais singulares, do louco para um contexto social de "subjetivação neurótica" (Rolnik, 1997), que desdenha tamanha diferença no cotidiano da vida. O louco fica sem apoio para se arriscar a ir e vir entre um território e outro, que poderia lhe dar chão, e naufraga no caos, perdido no "turbilhão do Fora", abandonado à própria sorte, como reflete Rolnik (1997, p. 89):

[...] perdido e dilacerado pela tempestade de forças em seu corpo, atordoado pelas vozes estranhas dos híbridos e, ao mesmo tempo, impossibilitado de constituir modos de existência com base nesses afetos, de fazer dobras. É como se estivesse encarcerado no fora.

Novamente, acompanhados por Pelbart (2009, p. 123), é possível entender que, no louco, a "dobradura se dês-dobra, abrindo-se" ao deixar-se encharcar por qualquer força que venha a fazer frente. Eis o encarceramento de que fala Rolnik (1997), ou o enclausuramento no Fora que Pelbart (2009) nos aponta quando descreve o lugar em que opera o psicótico.

Definida um pouco mais a posição subjetiva do louco no contexto social, passamos para duas narrativas que, de certa forma, dizem respeito a essa problemática do sujeito sem lugar, anômalo, para o qual a sociedade insiste em buscar certa identidade; digamos, certo transtorno que amenize a chaga que tal modo de operar na vida traz ao entorno com que ele convive. A implicação disciplinar de domar esse sujeito fugidio às normativas sociais é uma tentação (Dunker, 2015). Mas não estamos falando de uma operação que tenta dar voz a essa angústia trazida de inumanidades avessas à docilização. O sujeito louco - ou, pensemos, a parte potencialmente louca do sujeito, sua abertura ao Fora -, como agora entendemos, é submetido à lei neurotizante aplicada e distribuída no seio familiar, nas "prisões, casas de correção, hospitais psiquiátricos ou gabinetes de psicanalistas" (Foucault, 1961/2008, p. 79).

Vamos às narrativas...

 

Fones de Ouvido para não Naufragar

A partir da pesquisa interventiva - de cunho avaliativo e qualitativo - referente à saúde mental na rede da AB, iniciamos encontros que chamamos de grupo de interesse4. Os grupos de interesse foram inspirados em pesquisas avaliativas de quarta geração, que trabalham com a perspectiva de incluir participantes de diferentes segmentos sociais, de maneira que se possa realizar análises ampliadas a partir das múltiplas leituras representadas por cada interessado na temática (Guba & Lincoln, 2011).

Destarte a ideia de nossa pesquisa, de abrir possibilidades para exercitar certa antropofagia sobre a proposta metodológica, incluindo atores a cada fase, diferentes visões, invenções e sofrimentos que circulam pela rede de atenção à saúde mental foram se multiplicando e complexificando as compreensões com que os grupos trabalhavam até então sobre a questão. A circulação de ideias, nesse sentido, ocorreu em ato, com cada grupo de interessados podendo alçar suas questões em cima dos apontamentos de outro grupo de interessados, com a mediação dos pesquisadores. Dentro de nosso percurso de pesquisa, os grupos de interessados que compareceram nos encontros foram trabalhadores da rede, usuários, gestores, estudantes, pesquisadores e familiares de usuários. Nessa rica conjunção, ao longo dos meses, compartilhamos muitas experimentações, problemas, dores e sensações. Uma delas aconteceu em um dia em que uma associação de pais de esquizofrênicos esteve presente, na qual as falas das mães mobilizaram bastante o grupo.

As mães, defensoras de seus filhos, ou defensoras de seus "doentes mentais", bradavam em muitos momentos sobre o sofrimento que passam por estarem aprisionadas ao viverem com um familiar doente mental-esquizofrênico. Falavam da falta de assistência à família por parte da rede de cuidadores e sobre o lugar que ocupam, que lembraria o "limbo". Expunham as dificuldades inerentes a ter que cuidar de alguém doente sem saber ao certo de onde vem e como se cura a tal "doença dos nervos". O clima do encontro ficava pesado com essas falas desesperadas. Com dor e angústia, os trabalhadores escutavam das mães que eles não conseguiriam viver 24 horas com um "doente mental". Nessa contenda, ninguém no encontro arriscava-se a dar uma saída para essas mães, mesmo que elas suplicassem respostas. Talvez porque fosse impossível, talvez porque elas quisessem mais jogar para fora aquelas queixas do que qualquer coisa, em uma espécie de catarse testemunhada pelos outros integrantes do grupo de interesse.

Ao lado de uma das mães, o filho ouvia todo esse peso jogado em suas costas - "afirmações dessas mães" que não cessam de, cada vez mais, apagar o que restou de "subjetividade em seus filhos" (Jerusalinsky, 2011, p. 238) - e parecia tentar ficar alheio a tudo que se passava à sua volta. O "doente mental", mais que filho, significava quase que a desgraça na vida dos familiares, que se sentiam presos, com a dignidade da família se esvaindo com o tempo que não passa, posto que ele só é gasto no cuidado de uma espécie de bichinho inocente que não fala por si e que não pode ficar sozinho em nenhum instante para não fazer besteira e não se perder por aí.

Não à toa, Forrest5 usava um fone de ouvido gigante, parecendo desejar filtrar todo aquele despejo feito por sua mãe, silenciando as vozes dos normais que o acusavam de ser "tudo de ruim" no seio de uma "boa família". Em um momento em que Forrest se emociona com a fala da mãe, que contava toda a história de desgraça ao percorrer a rede de cuidado, um dos pesquisadores tenta colocar o dito "doente mental" na conversa. Interrompe, assim, aquela falação da mãe e, olhando para Forrest, lhe indaga: o que acha sobre tudo isso que sua mãe conta de sua história? O silêncio predomina, o que coloca todo o grupo em contato com uma atmosfera angustiante. Forrest, até então imerso em si mesmo e violentado por tantas forças, emocionado, mas protegido por seu fone de ouvido, demora a arriscar uma fala e, depois de um tempo, profere a seguinte frase: "não tenho nada a dizer".

Essa frase-palavra da ordem de um social regulamentador retumba em todos os presentes. "Não tenho nada a dizer". Ele não teria nada a dizer, porque não tem nada dentro de si que possa ser expressado; nada que vale a pena ser vivido e compartilhado com esse outro que só o invade e que não abre nenhum caminho no qual possa ganhar legitimidade de existência? Que dor oca! Lugar de quem está impedido de falar e minguado de sentidos (Rolnik, 1997). "O louco é tido antes de tudo como aquele que não sabe", e que, por isso, pouco se sente à vontade de legitimar a própria fala (Pelbart, 2009, p. 141).

Depois de sua declaração, a mãe retoma sua dor, que corta a carne do próprio filho ao comentar que Forrest não reclamava de nada, que dizia sempre ser bem atendido e que era agradecido pelos cuidados que recebia. Entretanto, em um leve devaneio que começara a distrair um dos pesquisadores enquanto a mãe falava, ele imaginara outra questão para Forrest. No caso, queria saber o que era tão bom nos atendimentos que recebia. Como os cuidadores cuidam de você? Na continuação da imaginação, pensou uma possível resposta: tudo é bom. E logo imaginou outra pergunta: O que seria ruim nos atendimentos? Mais uma vez, a partir do próprio corpo afectado pelo encontro que já queria falar por Forrest nesse devaneio, o pesquisador fantasiou a seguinte resposta: tudo é bom, eu que sou ruim. Como deve ser dolorido e desamparador ser o pior no todo da vida que se leva.

O louco, o doente mental, o esquizofrênico, a alteridade radical que não cessa de perturbar as regulamentações de uma sociedade, vive uma vida de migalhas frente ao outro que faz o "favor" de lhe cuidar/vigiar. Contudo, essa discursividade, tão bradada nas falas das mães e que incomodava a todos no grupo de interesse, não foi produzida por elas, mas sim ao longo dos séculos, pelos saberes sobre esse diferente que não se encaixa no projeto de docilização dos corpos e no controle da espécie (Foucault, 1975-1976/2010).

O familiar do louco, em sua loucura familiar/social, desnuda a todos à sua volta com seus enunciados desesperados que excluem aqueles que dizem que cuidam. "Joga na cara" de todos o quanto tais enunciados dizem respeito a uma coletividade que insiste em manter manicômios mentais (Pelbart, 1991), a segregar o louco de uma possível autonomia de vida, causando mal-estar. Infelizmente, este Forrest, assim como tantos outros da vida real, não virou sucesso de bilheteria e pouco se sente acolhido ao vagar por seus territórios existenciais que, a todo custo, tenta sustentar. O destino errante aqui é julgado incapacitado, com a negação do direito de correr, de amar, de cuidar de um filho, de ser capaz de pescar camarões e enfrentar tempestades em alto mar. Talvez, a única coisa em comum entre o Forrest da vida real ali, na nossa frente, e o Forrest do filme seja a possibilidade de praticar pingue-pongue, mesmo que o primeiro só possa jogar em momentos recreativos em alguma clínica psiquiátrica na qual venha a passar uma temporada.

O louco necessita ser calado, e é bom não participar das discussões dos sãos, pois, em seu enclausuramento no Fora, acaba, sem desejar, protegendo o social de se reconhecer no plano do impensável, na exterioridade que escapa às previsões de controle. Não à toa, Foucault (1961/2008) intitula o primeiro de seus capítulos da História da Loucura como Stultifera Navis. A nau da loucura - quadro pintado pelo holandês Hieronymus Bosch em meados do século XVI - mostrava uma das práticas com as quais as cidades se livravam de seus amaldiçoados. Navegações iam e vinham trazendo e levando loucos para terras distantes e desconhecidas. O representante da loucura era colocado a vagar no "interior do exterior" (Foucault, 1961/2008, p. 12):

É um prisioneiro no meio da mais livre, da mais aberta das estradas: solidamente acorrentado à infinita encruzilhada. É o passageiro por excelência, isto é, o prisioneiro da passagem. E a terra à qual aportará não é conhecida, assim como não se sabe quando desembarca, de que terra vem. Sua única verdade e sua única pátria são essa extensão estéril entre duas terras que não lhe podem pertencer.

Esse "não direito a pertencer" mostrava - e ainda se manifesta enquanto efeito institucional no cotidiano da clínica - o lugar do louco e da desrazão na sociedade, que, na época das naus, no período medieval, era visto como alguém amaldiçoado que contaminava a cidade com seus pecados. Esterilizar a cidade era preciso, nem que fosse à força, a pauladas, empurrando tais personagens malquistos e que encarnavam a desrazão para um vão existente entre uma cidade e outra, para a floresta ou para as águas de um rio ou mar; um lugar de ninguém, terra sem lei que, quem sabe, poderia purificá-los de todos os males.

"O louco torna-se a tela de projeção intensíssima do Fora total" (Pelbart, 2009, p. 150). Ainda bem que existem os fones de ouvido, substitutos dos tímpanos estourados, mesmo que tal troca envolva o silenciamento das falas do outro em nós. É um movimento, no caso feito por Forrest, de criar uma proteção subjetiva de fechamento do escutar frente às forças que tentam lhe atravessar, e não um filtro que barra, já que também cede, em movimentos peristálticos (Deleuze, 1986/2005), às forças que estão a pulular para constituir subjetividades nascentes.

Poderíamos pensar outras saídas para o dito "doente mental" que não a dolorida/surda/solitária dos fones de ouvido de Forrest? Como trabalharmos, em uma escuta interventiva, uma abertura para que a discursividade louca, a desrazão, possa se firmar? Pesquisadores e clínicos estão preparados para se contaminarem com essa força animalesca e intensiva, sem filtros da desrazão? Em meio a essas perguntas, seguimos a marear pela próxima narrativa.

 

Claudinha, uma Tartaruga em nossos Tempos

Era de bom tom levar tartarugas para passear pelas galerias [...] (Benjamin, 1994, p. 51)

Colocar a tartaruga na rua, lentificar o tempo do capital, frear sua linearidade e forjar um espaço que problematize sua regularidade, eis em que Benjamin nos inspira para seguir viagem.

No começo do século XX, a população europeia vivia tempos de aceleramento e controle, nos quais o visionário filósofo Walter Benjamin já construía imagens extraordinárias para problematizar esse modo pavimentado de transitar pela vida, pela pólis, por ruas já não admiráveis, mas funcionais. Para uma tartaruga benjaminiana, esse tempo sem respiro seria cansativo demais!

No começo do grupo de interesse na cidade de Porto Alegre, logo chegou uma usuária para participar. Parecia vir carregada pela irmã, outra usuária da rede de saúde mental que viera compor esse grupo. Nos primeiros encontros, no início dos grupos, a usuária carregada pela irmã se apresentava com disposição, marcando sua presença. Mas logo parecia voar com o pensamento para longe de toda a discussão que estávamos a travar, por vezes, inclusive, cochilava. Era um sono tranquilo, de descanso. Às vezes, acordava e proferia algumas palavras, mas suas ideias pouco tinham efeito no grupo, pareciam falas perdidas, sonâmbulas talvez, o fato é que ninguém dava crédito para suas leituras sobre a vida e o cuidado em saúde mental. Sua fala-tartaruga era lenta demais para ser processada pelo grupo.

Com o passar do tempo, Cláudia6 se apropria cada vez mais do grupo, vai criando vínculo vagarosamente, se mostra de maneira silenciosa e sua presença começa a ganhar vigor. Nesse tom suave que, aos poucos, o grupo vai escutando, constrói um território conjunto, coletivo, elástico, na intenção, de cada vez mais, se esticar junto à multiplicidade de vozes que ali se produziam. Já acolhida pelo grupo, Cláudia passa a ser chamada de Claudinha, que, ao contrário da primeira, é desperta e se arrisca a interferir nas discussões, valorizando soluções de cuidado que experiencia na rede, sobretudo através do Geração POA, serviço da rede de saúde ligado ao eixo da reabilitação psicossocial de sua cidade.

A certa altura dos encontros do grupo de interesse, planejávamos a finalização da pesquisa a partir de um evento final que ofertaríamos à Rede de Atenção Psicossocial da região - a "RrrrrrAPS", como Claudinha falava. Quando o evento estava prestes a começar, lhe chega a demanda de organizar, junto a outra trabalhadora do mesmo grupo de interesse, a produção de sacolas para os participantes do evento. Claudinha não se esquivou, muito menos dormiu no ponto. Ela ajudou nas discussões sobre itinerários que se produzem na rede para pensar a confecção das sacolas, costurou-as, trouxe as ideias e produções das sacolas para discutir no grupo, e isso tudo foi lhe tornando grande dentro desse espaço, mesmo com sua estatura pequenina.

A partir daí, ninguém mais a viu cochilar nos encontros, e com empolgação apontava suas ideias que, por vezes, tropeçavam umas nas outras, mas que, cada vez mais, eram acessíveis aos entendimentos lógicos/racionais dos pesquisadores e trabalhadores da rede. O grupo se deixava levar por outro tempo de escuta, de escuta aberta a fluxos, ideias, palavras, afectos ainda não dóceis; um tempo selvagem, sem começo e sem fim, que desacelera os códigos vigentes em suas velocidades instantâneas e informacionais à medida que abre espaço para códigos anômalos, de destinos imprevisíveis e abertos para novas costuras de sentidos de vida.

Por fim, no último encontro do grupo de interesse, após o evento final da pesquisa, Claudinha nomeia uma parte do evento de uma maneira inusitada, no caso, a que ocorreu a partir da fala de um dos palestrantes principais, convidado brioso que todos ansiavam em ouvir. Sua fala foi certeira sobre o entendimento de como se passou o encontro com o palestrante ilustre. Ela disse: "foi aquela coisa... blá-blá-blá... pensar a rede a partir do surf...". Mas não ficou por aí seu comentário. Claudinha fez uma analogia a quando se chega em casa e liga a televisão sem a intenção de prestar atenção no que está passando na tela, que fica ligada só para descanso, para que o tempo passe enquanto a mente vagueia.

Ao analisarmos no grupo sua fala, achamos que Claudinha tinha razão, indicando que, sim, foi uma fala para descanso, foi um tempo outro que se atravessou no encontro. Um momento mais vagaroso, reflexivo e acolhedor para muitos que estavam ali desejando ouvir o quão possível pode ser a construção de redes afetivas na vida e na atenção à saúde. Da mesma forma, essa fala se inseriu após o almoço, depois de uma manhã intensa de trabalhos, na qual usuários, gestores, estudantes, pesquisadores e trabalhadores experimentaram mais o seu corpo. Foi esse o contexto a fazer com que aquela fala blá-blá-blá parecesse uma televisão ligada para descanso. Um descanso acolhedor para, logo em seguida, despertar.

Contudo, o melhor estava por vir...

No desenrolar dessa fala de Claudinha, parecia que, na atmosfera do grupo, apostávamos, de maneira intensiva, nessa fala de Claudinha. Escutávamos com toda a atenção seus dizeres um pouco arrastados, seu vai e vem sobre vários assuntos, mas que, ao final, davam sentido àquela grupalidade. Digamos que Claudinha, ao expor seus pensamentos, abre muitas vírgulas em uma mesma frase, e isso torna suas ideias difíceis de serem apreendidas se a escutamos de maneira acelerada e linear. "Não que el[a] falasse de uma maneira ininteligível; a desordem, de facto, não estava na frase em si, mas no percurso inexplicável que fazia a partir de um qualquer ponto da sua cabeça até ao exterior" (Tavares, 2007, p. 149). Mas, em um esforço de tartaruga, prestávamos atenção e, apesar de todas as vírgulas e voltas que dava na frase, foi possível observar o quanto sustentou sua ideia ao produzir sentido e legitimar seu discurso perante um coletivo pesquisador que se fez clínico quando afeito a acompanhar suas errâncias discursivas de alguém situado na psicose (Calligaris, 2013). Claudinha não cochilou. Estava desperta ao produzir um território-reflexivo sobre o evento de Porto Alegre, que ocorreu no Hotel Continental, no décimo andar, nos dias 6 e 7 de outubro, como ela mesma fazia questão de repetir.

Nesse último encontro da pesquisa, explicitou-se, para muitos de nós, o quanto aqueles grupos de interesse, ao longo dos dois anos de encontros da pesquisa, haviam produzido, para além de uma investigação, um espaço de escuta a todos que, como Claudinha, deles participaram. Foram espaços que serviram para alavancar sentidos de vida em um ambiente acolhedor que dava voltas e mais voltas em discussões sobre saúde mental, mas que também enunciava composições inéditas à medida que cada um falava sobre suas experimentações enquanto o restante do coletivo testemunhava e se alimentava disso para seguir seus destinos na vida e na rede de atenção à saúde. A pesquisa-intervenção amplificou, assim, sua dimensão clínica. Uma clínica de escutas compartilhadas em meio aos encontros grupais que tratavam da saúde mental na AB. A aprendizagem em ato de como cuidar quando o assunto é sofrimento psíquico, seja acompanhando a errância de alguns usuários, legitimando seus discursos solapados, seja criando estratégias coletivas que possam acolher sofrimentos em saúde mental invisíveis. São sofrimentos que, muitas vezes, passam despercebidos no cotidiano da rede, ou são anestesiados por meio de medicações psicotrópicas ou prescrições comportamentais. Nesse sentido, o espaço de pesquisa produziu uma clínica muito próxima da proposta de apoio matricial existente na Rede de Atenção Psicossocial. Balizado por trocas de experiências de cuidado, de transmissão de práticas já experienciadas por um ator de cuidado com outros que estão necessitando da acolhida a suas inexperiências, o apoio matricial encoraja aqueles que estão a temer o encontro com o inusitado, que causa tanto espanto aos iniciantes no cuidado em saúde mental (Londero & Paulon, 2018).

 

Considerações Finais sobre o Navegar Percorrido

Eis o desafio clínico que pudemos experienciar nos encontros de pesquisa interventiva e que servem para pensarmos a rede de cuidado: como construir sentidos em meio a um turbilhão de ideias que, muitas vezes, se perdem no meio do caminho e que ficam invisíveis no cotidiano do trabalho em saúde? E, sobretudo, como acolher esse sujeito que pouco se conecta com a vida à maneira neurótica, que resiste em ser refém dessa discursividade assujeitada pelas regulamentações da vida ao desviar da gramática rigidamente proferida sem poesia?

No ato revolucionário de inventarmos novos dispositivos de cuidado em saúde mental que permitissem fechar os manicômios no final do século passado, liberamos os ditos "loucos" para transitarem pelas ruas. Mas teria sido também libertada, para passear entre nós, a tartaruga benjaminiana? Será que, com essa regulamentação da vida, que nos coloca em uma condição de sobrevivência mansa, agradecida por migalhas, possuímos potência para abraçar o que nos empurra para um encontro afectivo com o inesperado? Se só sobrevivemos, pouco importa se os loucos estão dentro ou fora dos manicômios, pois todos se encontram "manicomiados", aprisionados, medicalizados por uma cultura dilacerante que corta, no corpo, as marcas singulares que nos diferem enquanto seres virtuais potencialmente exteriores a nós mesmos.

Ensimesmados, tanto o louco como o dito cidadão "normal", são praticamente iguais nessa estratégia de controle do biopoder. Ambos fracassam e se amedrontam frente à possibilidade de entrarem em contato com o estranho, extraindo dele potência de vida. Poucos se arriscam a se relacionar com o impensável que força o pensamento e faz deslizar os sentidos de vida, recriando mundos a todo o momento.

O desafio parece ser o de produzir uma cultura de acolhimento à diferença no seio da sociedade capitalista. Será isso possível? Será que conseguimos chegar a isso a partir desse Estado ilusoriamente provedor e mantenedor de suas nações e que, aparentemente, garante em lei a circulação de certas diferenças?

Foucault, ao tratar do assunto da legitimação dos direitos dos homossexuais, nos indica um caminho interessante para se pensar e que pode servir de inspiração quando tratamos da acolhida àqueles que reservamos a nomeação de loucos. Há que se criar outras formas culturais, diria ele:

Do meu ponto de vista, deveríamos considerar a batalha pelos direitos dos gays como um episódio que não poderia representar a etapa final. E por duas razões: inicialmente, porque um direito, em seus efeitos reais, está ainda muito mais ligado a atitudes, a esquemas de comportamento do que a formulações legais. É possível que exista uma discriminação em relação aos homossexuais, embora a lei proíba tais discriminações. É então necessário lutar para dar espaço aos estilos de vida homossexual, às escolhas de vida em que as relações sexuais com pessoas do mesmo sexo sejam importantes. Não basta tolerar dentro de um modo de vida mais geral a possibilidade de se fazer amor com alguém do mesmo sexo, a título de componente ou de suplemento. O fato de fazer amor com alguém do mesmo sexo pode muito naturalmente acarretar toda uma série de escolhas, toda uma série de outros valores e de opções para os quais ainda não há possibilidades reais. Não se trata somente de integrar essa pequena prática bizarra, que consiste em fazer amor com alguém do mesmo sexo, nos campos culturais preexistentes; trata-se de criar formas culturais. (Foucault, 1982/2006, pp. 119-120)

Nesse sentido, o mesmo vale quando pensamos as práticas de cuidado em saúde mental e a acolhida à loucura. Criamos leis com direitos aos cidadãos que sofrem de dores psíquicas, tratamos de criar e sustentar a Reforma Psiquiátrica, mas como produzir uma cultura afeita à possibilidade da desrazão circular sem que isso cause um temor a ameaçar a sociedade, as famílias, os serviços e a rede de cuidados em saúde? Falamos aqui de micropolítica, de contaminação pela afectividade dos encontros com o inusitado, da biopotência em seu poder de afetar e ser afetado (Pelbart, 2003) enquanto revolução cultural no seio de um mundo burocratizante e de mínima afetação. Falamos de intervir em um mundo anestesiado.

Não se trata, então, de apenas integrar os loucos à sociedade, recuperá-los para a vida social, como algumas estratégias de recovery propõem. Trata-se de se colocar em experimentação com o desarrazoado que todos escondem de si mesmos e de criar possibilidades reais de existência que desvirtuem os valores segregadores ainda hoje tão arraigados em nossa cultura cristã-ocidental, que segregam aqueles que tensionam os padrões regulamentadores da vida.

A pesquisa, a clínica e as práticas de cuidado da rede de saúde necessitam "espreguiçarem-se" por territórios desarrazoados, tensionar limites, tanto para movimentar essa cultura manicomial - e, assim, ultrapassá-la de vez - como para que se alimentem dessa potência de vida, mesmo que, em um primeiro momento, pareçam por demais ameaçadoras e doloridas - que persiste em ser selvagem no seio de uma maquinaria social constituída pelo biopoder. Como escrevera Lispector (1973, p. 75), a "dor é vida exacerbada. O processo dói. É o espreguiçamento amplo até onde a pessoa pode se esticar".

Na prática, no cotidiano da atenção à saúde mental, seja na AB, nos serviços especializados ou em tantos outros pontos da rede de cuidado, é necessário criar uma cultura de acolhida a esses casos que não cabem em protocolos e que não são ensinados de maneira prévia nos bancos escolares. A partir da pesquisa-intervenção efetivada, ratificamos a necessidade do encontro da rede de atenção periodicamente, para se produzir trocas de experiências em relação às práticas de cuidado que estão sendo exercidas por usuários, trabalhadores e serviços. Vimos, ao longo da pesquisa, o quanto o encontro e o diálogo entre usuários, familiares, trabalhadores e gestores pode solucionar problemáticas que percorrem a rede de saúde mental, pois cada um, com suas vidas e experiências, acabam por contribuir para uma melhor qualificação do cuidado. Somente nesse movimento de ativar e aquecer a rede, de se produzir laços entre gestores, trabalhadores, usuários e familiares, de maneira que cada um se torne um ser singular e não apenas um número que não "bate" com os protocolos previamente planejados, é que poderemos almejar uma atenção que acolha a alteridade radical transmitida nos passos desses que levam consigo movimentos errantes e destoantes de uma lógica de biopoder. A revolução cultural se faz em rede, como uma onda que impulsiona outras navegações, outros destinos ainda não mapeados nesse devir navegador dos mares-mundos.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Mário Francis Petry Londero
Email: francislonder@hotmail.com

Simone Mainieri Paulon
Email: simone.paulon@ufrgs.br

Recebido em: 15/08/2016
Revisado em: 10/11/2018
Aceito em: 08/12/2018

 

 

1 Acesso (16/07/2015): https://www.youtube.com/watch?v=7GoC_EjQVJk
2 Cidades participantes:Porto Alegre, Cachoeirinha, Gravataí, Viamão, Glorinha, Alvorada.
3 A pesquisa foi aprovada pelos comitês de ética de cada cidade participante, bem como pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
4 Trata-se de uma das modalidades de encontro ofertadas na pesquisa em saúde mental na AB. A pesquisa estruturou o campo com três modalidades de encontro: Grupo de Interesse, no qual todos os interessados no assunto da saúde mental na atenção básica poderiam participar (usuários, familiares, estudantes, trabalhadores, pesquisadores e gestores); Grupo Focal, no qual ocorriam encontros com grupos de usuários e com grupos de trabalhadores no intuito de se pensar o mapeamento do PMAQ no que tange à saúde mental; e Grupo Gestor, que, em um primeiro momento, era para ser uma instância gestora da pesquisa, mas que, no decorrer das intervenções, passou a ser um grupo de escuta aos gestores de cada cidade participante. Na cidade que este artigo está colocando em foco, houve oito encontros de grupos focais para trabalhadores e oito para usuários ao longo dos dois anos da pesquisa. Já os encontros do grupo de interesse foram feitos de maneira mensal praticamente, totalizando vinte encontros. Este grupo de interesse tinha a participação de maneira atuante de dois gestores, seis usuários, oito trabalhadores, dois estudantes de saúde e quatro pesquisadores. Contudo, a cada encontro do grupo de interesse esse número variava, tendo chegado a momentos nos quais o grupo era formado por mais de trinta participantes por encontro.
5 Para proteger a identidade do participante da pesquisa, utilizamos o nome do personagem principal do filme "Forrest Gump, o contador de histórias" (direção de Robert Zemeckis, Estados Unidos, 1994).
6 Nome fictício.

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