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Revista Subjetividades

versão impressa ISSN 2359-0769versão On-line ISSN 2359-0777

Rev. Subj. vol.19 no.2 Fortaleza maio/ago. 2019

http://dx.doi.org/10.5020/23590777.rs.v19i2.e8987 

RELATOS DE PESQUISA

 

(Im)possibilidade de mobilização subjetiva na clínica das patologias do trabalho: o caso das professoras readaptadas

 

(Im)possibility of subjective mobilization in the clinic of work pathologies: the case of readapted teachers

 

(Im)posibilidad de movilización subjetiva en la clínica de las patologías del trabajo: el caso de profesoras readaptadas

 

(Im)possibilité de Mobilisation Subjective en Clinique de Pathologies de Travail: Le Cas des Enseignants Réadaptés

 

 

Graziele Alves Amaral (Lattes)I; Ana Magnólia Mendes (Lattes)II; Emílio Peres Facas (Lattes)III

IProfessora Adjunta do curso de Psicologia da Universidade Federal de Goiás (UFG). Doutora em Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações pela Universidade de Brasília (UnB)
IIProfessora da Universidade de Brasília, Instituto de Psicologia, Departamento de Psicologia Social e do Trabalho e Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações - PSTO. Pós-Doutorado na Université de Nice-Sophia Antipolis
IIIProfessor da Universidade de Brasília, Instituto de Psicologia, Departamento de Psicologia Social e do Trabalho e Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações - PSTO. Psicólogo, Doutor em Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações pela Universidade de Brasília com período sanduíche em Université Catholique de Louvain

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A partir da constatação de que os estudos em clínica psicodinâmica do trabalho enfocam trabalhadores em situação de normalidade e não expressam, claramente, como a mobilização subjetiva ocorre a partir da escuta clínica, pretendeu-se, com este artigo, problematizar o conceito dejouriano de mobilização subjetiva em contexto de trabalhadores adoecidos. A pesquisa foi realizada com base no referencial teórico e metodológico da psicodinâmica do trabalho. Foram realizadas 22 sessões de clínica do trabalho com professoras readaptadas do Distrito Federal e os dados foram analisados conforme a técnica de análise clínica do trabalho. A mobilização subjetiva, como um processo de resgate do sentido e do prazer no trabalho, não foi possível de ser alcançada na clínica. Esse resultado se deve ao fato de o trabalho na readaptação se constituir em um trabalho morto, inclusive no sentido de contribuir para o isolamento e a exclusão dessas profissionais, levando ao desmoronamento dos laços sociais e à impossibilidade de uma mobilização coletiva potente o suficiente para mudar as questões estruturais desse não trabalho a que estão submetidas. Apesar de defender a impossibilidade de mobilização subjetiva em um trabalho morto, a grande contribuição da clínica do trabalho realizada foi no sentido de demonstrar a potência política da clínica do trabalho a partir de novos destinos que as professoras adoecidas puderam dar ao sofrimento.

Palavras-chave: mobilização subjetiva; readaptação profissional; clínica do trabalho.


ABSTRACT

This article aimed to problematize the Dejourian concept of subjective mobilization in the context of sick workers based on the fact that studies in clinical psychodynamic work focus on workers in a normal situation and do not clearly express how subjective mobilization occurs from clinical listening. The research was based on the theoretical and methodological framework of psychodynamic work. Twenty-two occupational clinic sessions were held with readapted teachers from the Federal District and the data were analyzed according to the clinical work analysis technique. Subjective mobilization, as a process of rescuing meaning and pleasure at work, could not be achieved in the clinic. This result is due to the fact that the work on re-adaptation constitutes a dead work, including in the sense of contributing to the isolation and exclusion of these professionals, leading to the collapse of social ties and the impossibility of a collective mobilization powerful enough to change the structural issues of this non-work to which they are subjected. Despite defending the impossibility of subjective mobilization in a dead work, the great contribution of the clinic work performed was to demonstrate the political power of the work clinic from new destinations that the sick teachers could give to suffering.

Keywords: subjective mobilization; professional re-adaptation, clinic work.


RESUMEN

A partir de la constatación de que los estudios en clínica psico-dinámica del trabajo enfocan trabajadores en situación de normalidad y no exprimen, claramente, cómo la movilización subjetiva ocurre a partir de la escucha clínica, se pretendió, con este trabajo, problematizar el concepto dejouriano de movilización subjetiva en contexto de trabajadores enfermos. La investigación fue realizada con base en el referencial teórico y metodológico de la psico-dinámica del trabajo. Fueron realizadas 22 sesiones de clínica del trabajo con profesoras readaptadas del Distrito Federal y los datos fueron analizados según la técnica de análisis clínica del trabajo. La movilización subjetiva, como un proceso de rescate del sentido y del placer en el trabajo, no fue posible de ser alcanzada en la clínica. Este resultado es debido al hecho de que el trabajo en la readaptación se constituye en un trabajo muerto, incluso en el sentido de contribuir para el aislamiento y la exclusión de estas profesionales, llevando al derrumbe de los lazos sociales y a la imposibilidad de una movilización colectiva suficientemente fuerte para cambiar cuestiones estructurales de este no-trabajo a lo cual están sometidas. Aunque se defienda la imposibilidad de movilización subjetiva en un trabajo muerto, la gran contribución de la clínica del trabajo realizada fue en el sentido de demostrar la potencia política de la clínica del trabajo a partir de nuevos destinos que las profesoras enfermas pudieron dar al sufrimiento.

Palabras clave: movilización subjetiva; readaptación profesional; clínica del trabajo.


RÉSUMÉ

À partir de la constatation que les études sur le travail chez des cliniques psychodynamiques n'observent que des travailleurs en situation normale et n'expriment pas clairement comment la mobilisation subjective peut arriver chez l'écoute clinique, cet article a l'objectif à problématiser le concept de mobilisation subjective de Dejourian dans le contexte des travailleurs malades. La recherche a été menée sur la base du cadre théorique et méthodologique de la psychodynamique du travail. Vingt-deux séances de clinique du travail ont été organisées avec des enseignantes réadaptées du District Fédéral, au Brésil. Les données ont été analysées selon la technique d'analyse du travail clinique. La mobilisation subjective, en tant que processus de récupération du sens et du plaisir au travail, n'a pas pu être réalisée dans la clinique. Ce résultat est dû au fait que le travail de réadaptation constitue un travail mort, spécialement au sens de contribuer à l'isolement et à l'exclusion de ces professionnelles. Cela conduit à la rupture des liens sociaux et à l'impossibilité d'une mobilisation collective assez puissante pour changer les problèmes structurels de ce non-travail auquel elles sont soumises. Malgré la défense de l'impossibilité de mobilisation subjective dans un travail mort, la contribution importante de la clinique de travail réalisée a été de démontrer le pouvoir politique de la clinique de travail à partir de nouvelles destinations que les enseignantes malades ont pu donner à la souffrance.

Mots-clés: mobilisation subjective; réadaptation professionnelle; clinique de travail.


 

 

Este artigo tem como objetivo problematizar o conceito dejouriano de mobilização subjetiva em contextos de trabalhadores adoecidos. Os estudos em psicodinâmica do trabalho, mais especificamente as clínicas do trabalho, que abordam a mobilização subjetiva como um dos seus efeitos, têm enfocado trabalhadores em situação de "normalidade". Ainda assim, a maioria desses estudos não aponta os dispositivos clínicos utilizados no processo de escuta dos trabalhadores que contribuíram para a mobilização subjetiva do coletivo (Facas, Mendes, Freitas, Amaral & Duarte, 2017). Portanto, cabe questionar se a mobilização subjetiva como um dos principais efeitos da clínica do trabalho acontece também em grupo de trabalhadores adoecidos. Esse pode ser um ponto de partida para que possam ser introduzidos novos referentes em relação a possíveis formas de significação do sofrimento no trabalho para além da mobilização subjetiva.

Essa problematização foi desvelada a partir de um estudo em clínica do trabalho com professoras readaptadas do Distrito Federal. Foram realizadas 22 sessões embasadas nos eixos propostos por Mendes (2014): os dispositivos para a escuta clínica (que abrangem a análise da demanda, a transferência e a interpretação); a formação do clínico (que envolve a qualificação teórica, a prática da escuta e o próprio processo de análise) e a supervisão clínica. A partir do uso desses dispositivos clínicos, pretendia-se analisar seus efeitos sobre a mobilização subjetiva desse grupo de trabalhadoras. Os resultados apresentados neste artigo são um dos desdobramentos da tese de doutorado de uma das autoras.

Professores readaptados são aqueles que, devido a um processo de adoecimento ou de acidente que, em um primeiro momento, gerou afastamento do trabalho, no momento do retorno ao trabalho encontram-se incapacitados para realizar a função que exerciam antes. Com isso, devem ser realocados para cargo com atribuições e responsabilidades compatíveis com a limitação física ou psíquica que tenham sofrido. Essa prerrogativa é garantida pela Lei Federal 8.112 (que dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos civis da União), segundo a qual: "a readaptação é a investidura do servidor em cargo de atribuições e responsabilidades compatíveis com a limitação que tenha sofrido em sua capacidade física ou mental verificada em inspeção médica"; "a readaptação será efetivada em cargo de atribuições afins, respeitada a habilitação exigida, nível de escolaridade e equivalência de vencimentos e, na hipótese de inexistência de cargo vago, o servidor exercerá suas atribuições como excedente, até a ocorrência de vaga" (Lei n. 8.112, 1990).

Na prática, trata-se de um processo longo, que se inicia com a avaliação do servidor público pelos médicos da perícia para levantar a existência de patologia(s) que pode(m) levá-lo ao licenciamento. A partir de avaliações médicas, tal licença pode ser prorrogada até o prazo máximo de 24 meses, quando o servidor se submete novamente a uma perícia que irá determinar se ele deve retornar ao trabalho normalmente, permanecer licenciado, retornar ao trabalho como readaptado ou ser aposentado por invalidez. No caso de retorno ao trabalho como readaptado, em seu prontuário devem estar descritas as limitações do servidor e as determinadas atividades. O processo de readaptação é reavaliado periodicamente, e o mais comum é a renovação (Nunes, 2000). A legislação sobre a readaptação, destinada a servidores públicos, não determina a requalificação profissional nem o acompanhamento do trabalhador readaptado, apenas a sua realocação (Fantini, Silveira & La Rocca, 2010).

O crescimento do número de adoecimentos e afastamentos laborais, que são a causa da readaptação, reflete os impactos da lógica liberal na saúde do trabalhador, em que pesam fatores de ordem social e econômica. Tais fatores costumam ser negligenciados ou minimizados, pois se observa a individualização do adoecimento no sentido de culpabilização do trabalhador, atribuindo-se ao sujeito a responsabilidade por seu adoecimento, como se fosse um sinal de sua fraqueza, desconsiderando o contexto que gerou o adoecimento. E, então, a promessa da readaptação, no sentido de promoção da saúde do trabalhador, fica comprometida (Amaral & Mendes, 2017). A partir de uma análise do estado da arte sobre o tema da readaptação profissional, as autoras puderam constatar as falácias desse sistema, sendo recorrentes, nos estudos científicos, as inadequações na condução do processo de reinserção profissional do trabalhador adoecido.

Amaral e Mendes (2017) ainda chamam a atenção para o fato de que, na literatura científica, a grande maioria dos estudos sobre readaptação refere-se à categoria docente ou a profissionais da educação, indo ao encontro do aumento do índice de adoecimento laboral nessa categoria profissional. Professores da rede pública de ensino são referenciados por Duarte e Mendes (2013) como uma categoria adoecida, fato que as autoras atribuem à falta de reconhecimento, às precárias condições de trabalho e ao cotidiano de violência social presente nas escolas. Antunes (2014) também problematiza essa questão, apontando o crescimento das readaptações no ensino público como consequência dos impactos da reestruturação do capitalismo no sistema educacional e nas condições e relações de trabalho docente.

No Distrito Federal (DF), de 2012 a 2014, houve um aumento do percentual de professores readaptados por ano na educação básica. Segundo dados fornecidos pela Gerência de Acompanhamento de Servidores em Situação Funcional Específica, pertencente à Secretaria de Estado de Educação do DF, em 2012, ocorreram 272 novas readaptações, o que correspondia a 1,4% do total de professores. Em 2013, foram mais 550 readaptações, correspondendo a 2,0% do total de docentes e, em 2014, esse percentual subiu para 2,3%, com 551 readaptações. Em 2015, com a unificação das Perícias Médicas do Governo do DF, a Subsecretaria de Saúde deixou de repassar esses números para a Secretaria de Educação. Com essa mudança no governo, ainda houve prejuízos para os professores readaptados no que se refere à extinção da gerência de readaptação profissional existente até então, o que contrasta com o aumento no número de readaptações. Segundo Ricardo, Barreto, Campos e Castro (2014), em 2014, o número total de professores readaptados no DF chegava a cerca de 3.500. Embora o número de adoecimentos e afastamentos do trabalho entre professores venha aumentando nos últimos anos, não se observa a ampliação na mesma proporção de políticas públicas que se atentem para a melhoria da qualidade das condições objetivas de trabalho desses profissionais (Antunes, 2014).

Dito isso, este estudo se justifica pela relevância em oferecer um espaço de escuta do sofrimento no trabalho de professores na condição de readaptação profissional, no sentido de procurar, a partir dessa escuta, viabilizar possibilidades de ressignificação do sofrimento por esse grupo de trabalhadores. A partir da realização da clínica do trabalho, foi possível vislumbrar os efeitos dessa escuta que, mesmo que não tenha levado o grupo à mobilização subjetiva, pôde contribuir para que pudessem emergir novos destinos do sofrimento.

Este artigo apresenta, primeiramente, uma descrição teórica sobre o conceito de mobilização subjetiva. Em seguida, descreve o método da clínica realizada com professoras readaptadas, a partir do qual puderam ser descritas algumas nuances do trabalho realizado por elas. Por fim, traz a problematização sobre o conceito de mobilização subjetiva na clínica com trabalhadores adoecidos.

 

Trabalho e mobilização subjetiva

O trabalho implica sempre um confronto com o real que coloca em xeque as certezas da prescrição. A discrepância entre o trabalho prescrito e o trabalho real pode trazer certa desestabilização diante do inesperado e do inusitado que o real impõe. A forma como o sujeito pode responder diante dessa discrepância vai ser decisiva nos destinos do sofrimento no trabalho. Quando esse confronto com o real é inflexível, incontornável, sem possibilidades de mudanças e de negociações, esse sofrimento terá um destino patogênico. Ao contrário, se o trabalhador tem possibilidades de fazer ajustes para a realização do trabalho real, deslocando os constrangimentos e limites do real pela mobilização de sua inteligência, tem-se a possibilidade de vivência de prazer.

Diante do sofrimento no trabalho, os sujeitos podem fazer uso de estratégias defensivas para minimizar os efeitos deletérios da organização do trabalho e manterem, ainda que precariamente, a saúde mental. Ainda assim, as estratégias defensivas não levam à vivência de prazer no trabalho. Outra forma de enfrentamento do sofrimento no trabalho é por meio da mobilização subjetiva. As defesas têm um papel de proteção e de adaptação, mas isso não é condição para mobilização subjetiva no trabalho. A mobilização subjetiva, sendo um meio para lidar com o sofrimento, diferencia-se das estratégias defensivas individuais ou coletivas, uma vez que implica a ressignificação do sofrimento, ao contrário das defesas, que o negam ou o minimizam (Mendes, 2007a).

Dejours (1992) cunhou o conceito de mobilização subjetiva para se referir ao processo que se caracteriza pelo uso da inteligência do trabalhador e pelo espaço público de discussão sobre o trabalho. A utilização desses recursos depende da dinâmica contribuição-retribuição simbólica, que diz respeito ao reconhecimento do trabalhador por parte dos pares e da hierarquia. Dejours (1992) ainda ressalta que a mobilização subjetiva não pode ser prescrita, sendo vivenciada de forma particular por cada operário. Além disso, ela é fundamental na gestão coletiva da organização do trabalho, pois evita o uso de estratégias defensivas ou a descompensação psicopatológica.

Nessa direção, Mendes e Duarte (2013a) sintetizam que uma das formas de se conquistar prazer no trabalho é por meio da mobilização subjetiva. Refere-se a um processo intersubjetivo em que há engajamento da subjetividade do trabalhador e espaço público de discussões sobre o trabalho, passando pela dinâmica do reconhecimento e pela cooperação. É, pois, o processo pelo qual o sujeito pode sentir, pensar, criar e inventar no trabalho, possibilitando a transformação do sofrimento por meio de uma operação simbólica de resgaste do sentido do trabalho (Mendes & Duarte, 2013a, p.259). Seguindo a conceituação dejouriana, a mobilização subjetiva é composta por quatro dimensões indissociáveis: inteligência prática, espaço de discussão coletiva, cooperação e reconhecimento. Essa mobilização emerge quando os trabalhadores agem no sentido de subverter os efeitos prejudiciais da organização do trabalho, negociando, pressionando e se apropriando das regras de um coletivo de trabalho ou rejeitando-as. É, portanto, uma mobilização política, em que o sujeito se insere em uma dinâmica de troca para o alcance de seus objetivos e os do coletivo de trabalho (Mendes & Duarte, 2013b). A mobilização subjetiva, como um processo intersubjetivo de resgate do sentido do trabalho, permite a transformação do sofrimento.

A inteligência prática ajuda o trabalhador a resistir ao trabalho prescrito; é o que o trabalhador acrescenta de si (sua capacidade de sentir, de criar) para transcender o que está prescrito e desenvolver um saber fazer particular que dê conta do trabalho real (Mendes & Duarte, 2013a). Trata-se de um saber que não pode ser ensinado pelos especialistas, pois essa inteligência é produzida no exercício do trabalho; nesse sentido, é o trabalho que produz a inteligência, e não o contrário. O sofrimento advém, justamente, quando se bloqueia a possibilidade do exercício da inteligência criadora ou quando não são reconhecidos os esforços dos trabalhadores na construção e exercício dessa inteligência. A sua utilização e reconhecimento levam ao prazer no trabalho (Dejours, 2011a).

Essa inteligência é, fundamentalmente, enraizada no corpo, pois necessita da percepção para que ela seja acionada na resolução de um problema. Sendo assim, o engajamento do corpo é responsável pelos resultados obtidos pelo uso da inteligência prática, mesmo em atividades intelectuais, pois o engajamento do corpo não exclui o pensamento racional, ou seja, ele está presente em todas as atividades de trabalho. Outra característica da inteligência prática é conceder maior importância aos resultados da ação do que ao caminho percorrido para alcançá-la; daí o sentido de que a inteligência precede o saber, o que prevalece é a astúcia, a engenhosidade. Outra questão que a caracteriza é seu poder criador, pois implica sempre algo a ser desenvolvido, sendo necessário transgredir regras prescritas que não conseguiram prever/resolver tal situação. Existe uma espontaneidade na inteligência prática, e quando há situações de trabalho em que o potencial de criatividade é subempregado, o trabalhador sofre, o que pode levá-lo ao adoecimento (Dejours, 2011b).

Para que essa inteligência seja conhecida, compartilhada e reconhecida por um coletivo de trabalhadores, precisa passar por uma validação social que é viabilizada no espaço público da fala. Ele é construído pelos trabalhadores e pode ser caracterizado por ser um espaço no qual as opiniões, eventualmente contraditórias, podem ser livremente formuladas e publicamente declaradas, e no qual há abertura para expressão coletiva do sofrimento. Nele são compartilhadas e acolhidas opiniões baseadas em diferentes crenças, desejos, valores, posições ideológicas, escolhas éticas, experiência técnica e estratégias de mediação e de resistência. Há relação de equidade entre aquele que fala e aquele que escuta, bem como abertura para a autoexpressão e a autenticidade (Mendes, 2007b).

Para que nesse espaço possa haver essa livre expressão do sofrimento, o compartilhamento e a busca de caminhos alternativos de transformação da realidade do trabalho, é preciso que ele seja consolidado por meio de relações de confiança, cooperação e construção de regras de trabalho. É em função da confiança que os trabalhadores podem tornar visíveis suas formas de realizar o trabalho e suas transgressões, possibilitando que os outros possam prever as regularidades em sua conduta. E essas relações de confiança acontecem a partir da cooperação (Vasconcelos, 2013).

A cooperação é fruto da convergência das contribuições dos trabalhadores para construir um produto, serviço ou ideia em comum. Ela articula as habilidades específicas de cada trabalhador e integra as diferenças para possibilitar a minimização de erros e a maximização de resultados. Para haver cooperação, é preciso haver discussões, criação de acordos e regras de trabalho, participação nas decisões, confiança, deliberações e arbitragens com o objetivo de gerir a organização do trabalho (Mendes & Duarte, 2013a). O sentido da cooperação se liga à vontade das pessoas trabalharem juntas e superarem coletivamente as contradições inerentes ao trabalho real. Difere, portanto, de estratégias de gestão, que prescrevem alternativas coletivas que nem sempre são de interesse dos trabalhadores, tampouco podem gerar espaços de confiança e de mobilização subjetiva (Ghizoni, 2013).

A cooperação, na psicodinâmica do trabalho, passa por um processo que vai desde a discussão sobre a forma como os colegas de trabalho respeitam as regras de trabalho prescritas até a visibilidade das práticas no trabalho real num espaço de construção da confiança. A confiança é uma luta constante, pois ela se baseia em questões afetivas, mas principalmente éticas, assentando-se na visibilidade dos ajustes singulares para fazer frente às contradições das prescrições do trabalho (Ghizoni, 2013). A cooperação pressupõe a valorização e o reconhecimento da marca pessoal e do esforço de cada um no trabalho coletivo, favorecendo a identidade psicológica e social dos trabalhadores (Mendes, 2007b).

O reconhecimento pode ser entendido como retribuição moral e simbólica advinda da contribuição dada pelo sujeito à organização do trabalho por meio do engajamento de sua subjetividade e da inteligência no trabalho (Dejours, 2011c). Essa retribuição se apresenta como reconhecimento no sentido de constatação da contribuição individual à organização do trabalho ou como gratidão por sua contribuição. Tais julgamentos tratam do fazer, e não da pessoa do trabalhador, e podem acontecer sob duas formas: julgamento de utilidade e julgamento de beleza.

O julgamento de utilidade técnica, social ou econômica é proferido pela hierarquia, pelas chefias, subordinados e, algumas vezes, até por clientes. O julgamento de beleza refere-se à qualidade do trabalho, que expressa tanto a conformidade com as regras quanto a sua originalidade, e é proferido por colegas de profissão (os pares), pois é preciso conhecer para reconhecer. É por meio deste último que as novas formas de fazer, que fogem aos procedimentos padronizados, podem ser integradas no registro das técnicas aceitas e até tornarem-se institucionalizadas. A validação do trabalho pelo reconhecimento contribui para a construção do sentido do trabalho, pois permite dar ao sofrimento uma significação social. Assim, o não reconhecimento pode gerar no sujeito dúvida quanto à relação mantida com o real por intermédio do trabalho, desestabilizando a identidade e desencadeando patologias relacionadas ao trabalho (Gernet & Dejours, 2011).

Por trás da mobilização subjetiva, há a busca de identidade, não só no sentido de o sujeito querer realizar o trabalho, mas também de querer dar vida ao trabalho, deixando sua marca pessoal. É por isso que a mobilização subjetiva está sujeita à dinâmica do reconhecimento, pois ela mobiliza não apenas uma compulsão para o trabalho, mas o desejo de obter benefícios em termos de um sentido para si do trabalho que realiza, como uma retribuição de seu engajamento e de sua contribuição. Além disso, em nome do engajamento da subjetividade, que envolve a mobilização subjetiva, o sujeito espera poder contribuir para o aperfeiçoamento da organização do trabalho e para o seu próprio aperfeiçoamento, por meio do engrandecimento de sua subjetividade. A mobilização subjetiva pode ser entendida como um processo que permite ao sujeito (se) criar e (se) inventar, sendo um modo de o trabalhador transformar o sofrimento em prazer e, assim, manter-se na luta pela sua saúde mental no trabalho (Mendes & Duarte, 2013a).

Desse modo, é possível compreender a concepção de Dejours (2011a) sobre a manifestação espontânea da mobilização subjetiva. Diante do trabalho, a maioria das pessoas saudáveis, espontaneamente, já mobiliza sua inteligência e sua personalidade. Mas, por outro lado, essa manifestação espontânea da mobilização subjetiva não deixa de ser extremamente frágil, já que ela depende da dinâmica contribuição-retribuição, ou seja, se o sujeito é considerado um simples executante condenado à obediência e à passividade, a tendência é que se desmobilize. Freitas (2006) problematiza essa questão apontando a mobilização subjetiva como uma estratégia de resistência que não tem encontrado espaço nas organizações atuais.

Nessa direção, Mendes (2016) traz à tona uma discussão sobre a forma como o discurso nas organizações tem capturado a subjetividade dos sujeitos, ao prometê-los o lugar inexistente da plenitude. Interpelados por esse discurso que lhes remete à onipotência e, portanto, afasta-lhes do desamparo existencial, tornam-se prontos a atenderem às exigências que lhes são colocadas incessantemente. O que se observa nesse movimento é que o trabalho tem produzido subjetividades dessubjetivadas e sujeitos assujeitados, pois, nesses modelos de gestão, o afeto está impedido, o que faz com que o sujeito não se engaje na sua mobilização e entre em um processo de servidão voluntária, atendendo à demanda desse grande Outro.

Desse modo, o sujeito, para se apartar da angústia e do vazio existencial, liga-se nessas narrativas liberais de completude, acreditando que ele está no comando das suas escolhas, mas, na verdade, trata-se de uma promessa que, no fundo, forja um sujeito de desejos. É nesse ponto que a autora aponta o processo de desumanização das novas formas de organização do trabalho, num contexto em que não há espaço para o desejo, para a mobilização subjetiva ou para a realização de sentido no trabalho. O trabalho tem produzido uma repetição em que não há espaço para a criação, o que há é uma repetição sem elaboração, sem afeto e sem sentido (Mendes, 2016).

Ferreira (2011) traz um outro elemento importante para a compreensão da mobilização subjetiva: a ressonância simbólica. Para o autor, a ressonância simbólica amplifica a mobilização subjetiva e é potencializada quando o trabalho resulta de uma escolha do sujeito, possibilitando a satisfação dos desejos inconscientes. Isso porque o trabalho que resulta da escolha do sujeito possibilita condições mais favoráveis à ressonância simbólica e, consequentemente, ao prazer no trabalho, pela possibilidade diferenciada de engajamento para a criação e a transformação do sujeito. Dejours e Abdoucheli (2009) destacam que a ressonância simbólica articula o teatro privado da história singular do sujeito e o teatro público do trabalho. Pela intermediação do trabalho, o sujeito se engaja em relações sociais para as quais são transferidas as questões herdadas de seu passado e de sua história singular (Dejours, 1996), ou seja, para que a curiosidade fundamental do sujeito seja acessada no encontro com o real do trabalho, é preciso que essa tarefa tenha sentido para o sujeito considerando-se sua história singular.

Dejours (1996) ainda acrescenta que existem três condições necessárias para o estabelecimento da ressonância simbólica. A primeira seria a escolha da profissão, ainda que não seja garantia de ressonância simbólica, pois entre a profissão e a função, muitas vezes, existem diferenças que se traduzem em condições desfavoráveis de trabalho. A segunda condição seria a possibilidade de assumir a concepção do trabalho, pois essa atividade de experimentação ocuparia a atividade de experimentação do teatro infantil. A terceira condição passa pelo caráter coletivo do trabalho, pois supõe o julgamento do outro.

Quando existem condições favoráveis à ressonância simbólica, o trabalho pode ser fonte de satisfação sublimatória, possibilitando ao sujeito fazer uso de sua inteligência criadora e ser reconhecido por isso. Por outro lado, existem situações de trabalho antissublimatórias, em que o contexto dificulta ou até paralisa a aptidão do sujeito interpretar, agir e criar, constituindo-se em deletérias do ponto de vista da saúde mental no trabalho (Dejours & Abdoucheli, 2009).

Ferreira (2011) lembra que as vivências de prazer no trabalho referem-se aos processos psíquicos mobilizados na articulação entre o inconsciente e o trabalhar que convergem com o desejo do sujeito. As exigências se realizam pela gratificação pulsional por meio da sublimação e são reforçadas pela produção de sentido do trabalho. Desse nodo, "o processo sublimatório é fundamental porque possibilita estabelecer a continuidade com o desejo. Ao contrário de outros processos defensivos, a sublimação assegura a saída pulsional para o sofrimento. Não faz desmoronar a estrutura e o funcionamento psíquico e somático" (Ferreira, 2011, pp. 137-138).

Dejours (2011d) analisa o conceito de sublimação da teoria freudiana a partir das questões do trabalho e ressalta que o custo psíquico do bloqueio da sublimação pode ser danoso para a saúde. É pelo trabalho vivo que ocorre a formação de habilidades individuais e de competências coletivas. Essas habilidades e competências dependem, primeiramente, da mobilização da inteligência prática, na busca de qualidade da produção, ou seja, diz respeito a uma dimensão ordinária da sublimação, já que em qualquer tipo de trabalho há a exigência de qualidade.

O trabalho ainda implica um conjunto de relações que formarão competências coletivas por meio da cooperação. Para que a cooperação aconteça, é necessário um espaço de deliberação, no qual se formam acordos e regras de trabalho por meio da atividade deôntica. Nesse sentido, a mobilização dessas inteligências estaria relacionada aos dois elementos da sublimação, quais sejam: deslocamento da pulsão em relação ao objeto e em relação ao seu objetivo. Nesse ponto, o processo de sublimação se relaciona a outro elemento da mobilização subjetiva: o reconhecimento. Isto porque existe a expectativa de uma recompensa para reparar essa renúncia. É aqui que se insere a noção de atividade socialmente valorizada da sublimação, que vem a partir do julgamento de utilidade e do julgamento de beleza sobre o trabalho bem feito (Dejours, 2011d).

Ressaltam-se os riscos para a saúde mental dos trabalhadores das situações de trabalho antissublimatórias, nas quais os sujeitos, quando escapam da descompensação psicopatológica, o fazem lançando mão de outras defesas que não a sublimação, especialmente defesas em que imperam a repressão pulsional. Considerando a sublimação como uma defesa, já que se trata de um novo destino à pulsão, é possível diferenciá-la de todas as outras formas de defesas, pois ela é a única que não se realiza em detrimento do Eu, ao contrário, está a seu favor. Acontece que os novos mecanismos de gestão das organizações de trabalho, pautados na avaliação individualizada do desempenho e nos preceitos da qualidade total, desestruturam os fundamentos coletivos da sublimação ao promoverem o individualismo, destruírem a confiança e a lealdade, e paralisarem a dinâmica do reconhecimento (Dejours, 2011d).

A psicodinâmica do trabalho, sendo antes de tudo definida como uma clínica por promover um espaço de fala e de escuta do sofrimento no trabalho, seria um caminho para mudança no sentido da conquista da saúde e do prazer no trabalho. Ao possibilitar ao sujeito pensar sobre o trabalho, tendo a fala e a escuta qualificada como propulsores, esse espaço se revela como uma possibilidade de acessar a experiência no mundo, de tomada de consciência, de reapropriação do sentido do trabalho e de ação coletiva na reorganização do trabalho. Assim, permite romper a dominação simbólica em que se encontram muitos trabalhadores, que assumem o discurso da gestão e perdem contato com sua própria experiência (Moraes, 2015). Nesse sentido, Mendes e Araújo (2012) se referem à clínica do trabalho como promotora da autonomia, da criação e da negociação, em que há espaço para a construção de estratégias saudáveis para mediar o sofrimento e ressignificá-lo, transformando-o em vivência de prazer.

 

Método

A presente pesquisa foi realizada com base no referencial teórico e metodológico da psicodinâmica do trabalho, que propõe a interligação entre pesquisa e intervenção. Seguiu-se os dispositivos clínicos descritos por Mendes (2014): análise da demanda, transferência e interpretação. Para fins deste artigo, tem-se como objetivo problematizar o conceito dejouriano de mobilização subjetiva em contextos de trabalhadores adoecidos. Para isso, foi preciso compreender o trabalho das professoras readaptadas e verificar a possibilidade de mobilização subjetiva ou de outras formas de ressignificação do sofrimento no trabalho ao longo da clínica do trabalho realizada.

Foram realizadas 22 sessões semanais de clínica do trabalho entre os meses de agosto de 2015 a abril de 2016. As sessões ocorreram na sede do Sindicato dos Professores do Distrito Federal (SinPro/DF) e tiveram como participantes professoras readaptadas da rede pública de ensino do Distrito Federal, convidadas a participarem da clínica do trabalho por intermédio do sindicato. Formou-se o coletivo de trabalhadores, constituído por 11 professoras readaptadas, mas duas delas só compareceram a uma única sessão. O número de participantes por sessão variou de 2 a 7.

A clínica do trabalho foi conduzida pela psicóloga responsável por esta pesquisa e por uma clínica-estagiária, que formaram o coletivo de pesquisadores, juntamente com a supervisora e alunos de um laboratório de pesquisas em clínica do trabalho de uma universidade pública. Era nesse coletivo de pesquisadores que ocorreriam as supervisões clínicas semanais.

Mediante a autorização das participantes e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, conforme regulamentação do Comitê de Ética em Pesquisa ao qual a pesquisa foi submetida, a partir do sexto encontro, as sessões foram gravadas em áudio e transcritas na íntegra para que pudessem ser analisadas. Até a quinta sessão, as clínicaspesquisadoras trabalharam para construir um vínculo com as participantes de modo que elas pudessem se sentir confortáveis e confiantes para a gravação em áudio.

Além do registro das sessões, outros instrumentos utilizados foram: diário de campo, memorial e registro das supervisões. O diário de campo era redigido por cada clínicapesquisadora após as sessões, de modo que pudessem registrar eventos verbais e não verbais observados ao longo da sessão, além de sentimentos em relação à clínica, aos participantes e à própria colega de trabalho. Esse material era trabalhado na supervisão clínica, momento em que as transferências eram sinalizadas e trabalhadas, de modo a instrumentalizar as clínicas-pesquisadoras para a condução da clínica. O memorial, construído com base nas falas das participantes, procurava resgatar os eventos que ocorreram na sessão, muitas vezes acrescidos de interpretações. Cada sessão era iniciada com a leitura do memorial da sessão anterior, deixando aberta a possibilidade de o grupo discordar da forma como a sessão anterior havia sido retratada. Além desses instrumentos, a clínica-pesquisadora ainda utilizou o registro das observações e sugestões das supervisões clínicas.

Os dados, compostos por transcrição das sessões, memoriais, diários de campo e registro das supervisões, constituíram o material de pesquisa. Esses dados foram analisados pela técnica de análise clínica do trabalho (ACT) que é baseada na qualidade e no significado do discurso (Mendes & Araújo, 2012). A ACT foi criada para organizar o material coletado nas sessões coletivas de clínica do trabalho e é constituída por três etapas: análise dos dispositivos clínicos, análise da psicodinâmica do trabalho e análise da mobilização do coletivo de trabalho. Para fins deste artigo, serão descritos e analisados dados referentes à terceira etapa, já que a análise dos efeitos dos dispositivos clínicos sobre a mobilização subjetiva dos trabalhadores participantes dessa clínica advém da análise da mobilização do coletivo de trabalho. Também foi necessário descrever alguns elementos provenientes da análise psicodinâmica do trabalho (segunda etapa da ACT), de modo a elucidar o real do trabalho das professoras readaptadas, descrito a seguir.

 

Resultados: o trabalho das professoras readaptadas

Antes de relatar o trabalho das professoras, cabe mencionar as patologias que as levaram ao processo de readaptação. A depressão foi a maior causa de afastamentos que levou à readaptação (seis casos), tendo sido causa única em três casos e em outros três aparecendo concomitante com outros distúrbios. A fibromialgia foi relatada por duas professoras. Outras formas de adoecimento foram relatadas por apenas uma pessoa: síndrome do pânico, transtorno bipolar, psicose, bursite, tendinite, lesões no joelho, escorregamento de vértebra e calo nas cordas vocais. Foram narrados o aparecimento de novos adoecimentos depois do processo de readaptação, como problema na coluna, acidente vascular cerebral (AVC) e transtorno do pânico, estes dois últimos relatados como problemas causados pelo trabalho.

No momento em que aconteceu o adoecimento que gerou, posteriormente, a readaptação, apenas uma professora estava atuando fora da sala de aula, como coordenadora de uma biblioteca regional. As outras eram professoras regentes nas mais diversas áreas: Português, Matemática, Ciências, Artes, Educação Física, Ensino Especial, Alfabetização e Educação de Jovens e Adultos (EJA).

Não foram relatados detalhes sobre divisão de tarefas, normas e regras, exigências técnicas, relação com pares e chefias, estilo de gestão em relação ao trabalho que realizavam antes do adoecimento. Suas narrativas estiveram muito mais voltadas para a ressignificação do sofrimento relativo ao adoecimento e à readaptação do que para uma compreensão da organização do trabalho que contribuiu para o seu adoecimento. Ao longo da clínica, foi possível perceber que o rearranjo dos processos defensivos utilizados pelas professoras fazia muito mais sentido para elas do que a implementação de mudanças na organização do trabalho. A doença já estava instalada e o trabalho em sala de aula já não era mais possível. Além disso, a estrutura da Secretaria de Educação e de toda direção escolar não favorecia a realização de um trabalho significativo na readaptação. Assim, era preciso criar novas formas de se relacionar com esse novo trabalho, com os colegas de escola e com a estrutura educacional a partir das limitações impostas pelo adoecimento. Desse modo, a ênfase do presente artigo não recaiu sobre a análise da organização do trabalho anterior ao adoecimento, mas, sim, sobre na relação dos sujeitos com o trabalho na readaptação.

Dentre as professoras readaptadas participantes dessa clínica do trabalho, quatro atuavam na biblioteca das escolas, duas na coordenação do laboratório de informática, duas atuavam como apoio administrativo da direção e uma na mecanografia. Independente da função exercida, a falta de prescrição das atividades para as quais as professoras readaptadas foram realocadas foi recorrentemente relatada, sendo uma questão que lhes gerava muitos problemas. Havia a sensação de terem sido "jogadas" para determinada área, sem orientações ou suporte: "Me tiraram de um lugar que eu sentia segurança e me jogaram na biblioteca (...) Lá eu não me identifico, porque eu sinto [a biblioteca] como um depósito de ser humano". Além do sentimento de inutilidade, a indefinição das diretrizes quanto às atividades a serem realizadas por professores nessa condição gerava desvios de função ou subutilização de suas capacidades.

Outra consequência advinda da falta de definições e diretrizes para a atuação do professor readaptado é o fato de se tornarem uma espécie de "quebra-galho". Nos relatos, as professoras demonstravam, com muita ênfase, as vivências de exclusão, de rejeição e de discriminação por parte da maioria das pessoas da escola a partir do momento em que se tornaram readaptadas. Carregavam o peso do estigma de preguiça, de acomodação e até de "picaretagem". Para compensar, procuravam se mostrar úteis e comprometidas no trabalho, o que, por outro lado, fazia-lhes vivenciar outro tipo de conflito nas relações de trabalho: o acirramento do clima de disputa e de competição. Ainda que existisse apoio por parte de alguns poucos colegas de trabalho, situações de desrespeito e desconsideração no ambiente profissional eram comuns no cotidiano laboral, chegando a demonstrarem a intensificação das situações de assédio, vivenciadas depois da readaptação. Sentiam a nítida diferenciação entre professores regentes (que atuam em sala de aula) e professores readaptados, como se se tratasse de duas categorias totalmente distintas. Assim, era como se elas fizessem parte do grupo dos que, por terem adoecido, são considerados improdutivos, não confiáveis, indesejáveis, ou seja, uma ameaça à ideologia produtivista.

Narrativas que traziam os sentimentos de inutilidade, de perda de espaço profissional e de subutilização de suas capacidades foram muito marcantes e recorrentes. Tudo isso remetia-lhes ao que descreviam como a vivência violenta de terem sido alijadas do processo de educação, sendo irreparável a perda da relação direta com o aluno por não poderem mais voltar para a sala de aula, o que está atrelado à perda da identidade profissional.

Nessa condição, sentiam a invisibilidade do trabalho que realizavam, a ponto de terem relatado a sensação de se sentirem inexistentes. Além disso, experimentavam o desânimo com as novas atividades que lhes eram atribuídas pelo esvaziamento de significado e pela falta de perspectiva para uma atuação mais efetiva: "a gente vai se decepcionando, vai desanimando (...) cada dia que passa eu estou chegando em casa mais desanimada (...), porque não é mais nada daquilo que eu vivi ou que talvez eu tenha sonhado".

Diante desse cenário, diferentes formas de reação puderam ser observadas. Algumas professoras envolviam-se de maneira exagerada no trabalho, mesmo ultrapassando os limites de sua doença, como forma de obterem algum reconhecimento, outras viam na aproximação da aposentadoria uma perspectiva para o fim desse sofrimento, ao passo que outra se esforçava para não ser aposentada pela junta médica, pois queria continuar sentindose produtiva. O trabalho na causa militante ou em causas sociais ligadas à educação passou a ser o que deu sentido para algumas professoras e havia quem procurasse, fora do contexto da escola, algum tipo de trabalho, como atividades manuais ou filantrópicas. Enfim, cada uma, a seu modo, procurou formas de preencher esse vazio deixado pela falta do trabalho como professora regente.

 

A mobilização do coletivo: mobilização subjetiva?

Ao longo do processo da clínica do trabalho com as professoras readaptadas, foi possível observar um reposicionamento desses sujeitos em termos dos novos destinos que puderam dar ao sofrimento. Mas será que é possível considerar esse reposicionamento subjetivo como um processo de mobilização subjetiva?

Primeiro, é preciso destacar que esse grupo não se constituiu em um coletivo de trabalho fora do contexto clínico. Isto porque essas professoras trabalhavam em escolas diferentes e, muitas vezes, distantes geograficamente. Portanto, o único espaço de convivência era o espaço da clínica. Ao longo do processo, houve situações em que elas combinavam encontros informais entre si, em uma perspectiva de manterem laços que ultrapassavam a questão profissional. Foram situações isoladas, ainda que os relatos fossem entusiasmados sobre essas oportunidades de convivência. De qualquer forma, como não conviviam dentro do contexto profissional, a questão do reconhecimento, elemento central na mobilização subjetiva, ficava comprometido. Pelos relatos que compartilhavam no espaço coletivo de discussão, havia momentos em que podiam reconhecer o trabalho das colegas, tanto no sentido da execução das atividades quanto no sentido da marca pessoal pelo trabalho realizado. Eram momentos importantes na clínica, já que elas sabiam das dificuldades que enfrentavam, enquanto professoras readaptadas, na execução de um trabalho significativo e de qualidade. Entretanto há que se considerar que esse reconhecimento era feito com base nos relatos das colegas, o que pode trazer uma artificialidade nessa dinâmica, ou seja, sabiase que o que estava sendo reconhecido era algo verbalizado como um trabalho e não o trabalho em sua materialidade. Talvez por isso esses momentos de reconhecimento não reverberavam com a intensidade que poderia ser esperada nesse processo.

De qualquer forma, era importante para as professoras terem um espaço onde poderiam falar de um trabalho que lhes foi significativo, já que, em seu contexto profissional, eram mal vistas ou desconsideradas. Nesse ponto, pode-se trazer outra dimensão do reconhecimento que se refere ao reconhecimento da condição sofrente, a qual todas estavam submetidas. Desse modo, a partir do reconhecimento entre si de seus respectivos sofrimentos, puderam compartilhar a angústia e o medo, sair da negação, da repetição e do ressentimento, e buscar novos destinos ao sofrimento. Portanto, ao se reconhecerem como companheiras de sofrimento, puderam se confrontar com o real, suportando e aceitando melhor o vazio, a incompletude, a imperfeição e a finitude, o que possibilita articular o sofrimento como força motriz questionadora (Mendes & Ghizoni, 2016).

A mobilização subjetiva, como um processo que permite ao sujeito (se) criar e (se) inventar, muitas vezes não tem encontrado espaço para se manifestar nas organizações, dado o caráter falacioso dos discursos empresariais que prometem a plenitude aos trabalhadores excelentes e comprometidos. Esse tipo de chamamento conduz os sujeitos à negação de sua humanidade, posto que não há espaço para falhas, sendo os sujeitos convocados a estarem prontos a atender às exigências que lhe são colocadas incessantemente. Nesse contexto desafetado, produz-se sujeitos assujeitados, engatados nas narrativas de plenitude e que não encontram espaço para a emergência do seu desejo, para a criação ou a elaboração (Mendes, 2016). A clínica do trabalho, ao promover um espaço de fala e escuta do sofrimento no trabalho, permite que o sujeito acesse sua experiência no mundo e se sinta mais livre para se expressar em sua individualidade, podendo usufruir do trabalho como espaço para se constituir e não só para sobreviver (Mendes & Duarte, 2013b).

Pôde-se perceber que essa dimensão da mobilização subjetiva de reapropriação do sentido do trabalho como meio de se constituir não foi possível de ser alcançada na clínica com as professoras readaptadas. A partir da readaptação, o trabalho delas passou a ter um sentido de sobrevivência, pois lhes eram designadas tarefas repetitivas e sem continuidade, em que não encontraram caminho para exercer funções pedagógicas, fazendo com que seu trabalho se tornasse sem sentido, o que defendemos como um "não-trabalho" ou como um trabalho morto.

Ferreira (2016) discorre sobre três condições que caracterizam um trabalho como um trabalho morto: as situações de violência ou de assédio moral; as situações de excesso de prescrição, controle e coerção; ou as situações de total falta de prescrição. No caso das professoras readaptadas, percebe-se a mortificação do seu trabalho por essas três vias. Vivenciavam desde situações de violência e de assédio moral nas relações com os pares e com as chefias, passando por situações em que a falta de prescrição as deixava no ostracismo ou à mercê das necessidades ocasionais da instituição ou dos gestores, até situações em que eram submetidas a uma hierarquia que as tolhia, limitando sua atuação, inclusive no âmbito pedagógico. Diante da mortificação do trabalho docente na condição da readaptação, foi importante para as professoras perceberem e se situarem nessa nova condição laboral. Nesse sentido, o depoimento de uma professora do grupo foi importante para explicitar sua recusa de se agarrar em uma falsa ilusão de que, como professora readaptada, continuava nutrindo uma relação genuína com aluno:

Não considero: "ah, estou com aluno!"; não vem que não é, você auxilia (...) Eu não consigo, depois de vinte e dois anos de profissão, ver que, como coordenadora de laboratório, eu tenho influência e igualdade. (...) Não passei num concurso para isso, para acreditar que eu estou fazendo alguma coisa, não estou.

Retomando a ressonância simbólica como um elemento importante da mobilização subjetiva, que inclui o aspecto da escolha do sujeito pelo trabalho que realiza (Ferreira, 2011), vimos que o trabalho na readaptação não decorre de uma escolha, pois os sujeitos não são envolvidos na definição das atividades que passam a desempenhar a partir de suas limitações funcionais. Pelo contrário, é comum o relato desses profissionais terem que travar embates para que os projetos que planejam colocar em prática sejam considerados pelas instâncias deliberativas institucionais. Agravando ainda mais esse cenário, costuma-se compensar a falta de pessoal nas funções técnico-administrativas pela determinação de tais atividades aos readaptados. No caso das professoras readaptadas, a escolha pela docência, que elas haviam feito com convicção em determinado momento de suas vidas, era incompatível com as atividades repetitivas e burocráticas que elas passaram a desempenhar depois da readaptação. Nesse contexto, o trabalho não é favorável à ressonância simbólica.

A mobilização subjetiva, sendo uma operação subjetiva de resgate do sentido do trabalho, pode ser pensada na dinâmica de um trabalho que ultrapassa o sentido de sobrevivência. No caso, o trabalho das professoras readaptadas, pela falta de perspectivas de aproveitamento de seus potenciais, não proporciona mobilização subjetiva, pois não há como falar em um resgate do sentido do trabalho em um trabalho morto, a não ser que mudanças estruturais na forma de condução do processo de readaptação sejam realizadas. Mudanças pelas quais as professoras sentiam-se impotentes para lutarem. Primeiro, por envolver questões políticas e estruturais muito amplas, em um contexto em que se tem observado a retirada de direitos desses profissionais. Segundo, porque a própria classe dos professores readaptados é muito desunida; muitos encontram-se fragilizados pelo processo de adoecimento e de exclusão, desmobilizando-se para esse tipo de luta. As professoras do grupo encontravam algum tipo de apoio para terem uma postura de resistência no sindicato e, assim, participavam dos movimentos do SinPro/DF que diziam respeito à busca de melhorias para os readaptados. Ainda havia, no grupo, algumas professoras envolvidas diretamente na militância da categoria docente. De todo modo, a batalha é longa e árdua, com efeitos que não podem ser vislumbrados em curto ou médio prazo.

Diante de todos esses argumentos, defendemos que não há como se obter mobilização subjetiva se não há trabalho, ou seja, se o trabalho não pode ser vivenciado como uma atividade que envolve o engajamento do corpo, a mobilização da inteligência, a capacidade de refletir, de interpretar e de reagir, e o poder de sentir, de pensar e de inventar, conforme conceituação dejouriana, não há como se conceber a possibilidade de mobilização subjetiva. Na verdade, pode-se pensar nesse tipo de mobilização quando os trabalhadores que fazem parte de uma mesma organização do trabalho conseguem, principalmente a partir de um espaço público de discussão, subverter os efeitos negativos dessa organização do trabalho. Nessas circunstâncias, mesmo que, inicialmente, a mobilização subjetiva esteja comprometida, a clínica do trabalho pode ajudar a resgatá-la. Porém quando estamos diante de um quadro de trabalhadores adoecidos e não pertencentes a uma mesma organização do trabalho, o adoecimento e o isolamento seriam impeditivos para uma mobilização subjetiva. Primeiro, porque, diante de tal quadro, a prioridade para esses sujeitos passa a ser o enfrentamento da cronicidade da doença e suas consequências para a vida pessoal e profissional. Segundo, porque o retorno ao trabalho não tem sido pensado, em termos de políticas públicas, como um processo digno de readaptação ou de reabilitação, na acepção mais ampla do que esses termos poderiam representar.

Desse modo, até o momento, o que se observa em termos do trabalho de docentes readaptados é um processo de mortificação do trabalho, conforme caracterização de Ferreira (2016), pela subtração da capacidade inventiva dos trabalhadores e pelas vivências de silenciamento e de solidão. Uma situação que leva ao que o autor chamou de paralisia das formas de vida no trabalho, o que também podemos pensar como a subtração do desejo desses sujeitos. O fato de seu adoecimento representar uma denúncia das falhas de um sistema que promete plenitude, pode fazer com que, ao retornar ao trabalho, esses sujeitos sejam colocados no limbo, como uma forma de tentar silenciar o que não se cala, a doença.

Assim, ainda que a mobilização subjetiva não seja possível com um grupo de trabalhadores, como o das professoras readaptadas, a clínica do trabalho pode trazer avanços significativos quanto ao reposicionamento subjetivo dos sujeitos, no sentido de resgatar a voz desses trabalhadores e, com isso, possibilitar a emergência do seu desejo. Os efeitos da clínica do trabalho com as professoras readaptadas foram visíveis. Mas, por estarem isoladas em diferentes contextos organizacionais, não dispunham da força do coletivo para mudar a organização do trabalho, subvertendo seus efeitos prejudiciais. Apesar disso encontraram outras formas de lutar por sua saúde física e mental no trabalho.

Foi possível verificar a construção do espaço público de discussão e seus efeitos sobre a forma de vivenciar o sofrimento advindo do adoecimento e da readaptação e sobre as novas formas de relação com o corpo adoecido, com o trabalho e com os pares. As professoras puderam elaborar questões relativas à sua identidade profissional, que se encontrava abalada pelo adoecimento em função das perdas de capacidades laborativas e da reinserção profissional pelo complexo processo de readaptação. Desvencilhar-se de algumas ilusões que permeavam sua imagem do trabalho docente e reconhecer as adversidades da organização do trabalho foi importante para que pudessem se desengatar da onipotência e vivenciar o lugar do vazio do trabalho. A partir daí, as professoras puderam dar novos destinos ao sofrimento. As narrativas, inicialmente presas na repetição das queixas, do ressentimento e da raiva, passaram a ser mais voltadas para tentativas de se aceitarem em uma nova situação profissional, ainda que essa situação fosse bastante desfavorável e requeresse delas uma postura de busca de respeito e de reconhecimento, enfrentamento para o qual passaram a se sentir mais fortalecidas. Portanto, a aceitação não foi no sentido de resignação, mas de uma conscientização quanto à condição sofrente e de um reposicionamento subjetivo diante dessa força motriz questionadora.

Diante de tais argumentos, o conceito dejouriano de mobilização subjetiva mostrou-se insuficiente para explicar os efeitos dos dispositivos de uma escuta clínica do sofrimento no trabalho em um grupo de trabalhadoras adoecidas, não podendo ser identificados a inteligência prática, o reconhecimento e a cooperação no coletivo em questão. A mobilização subjetiva, nessa perspectiva, não parece se aplicar a trabalhadores adoecidos, restringindo-se a contextos em que há trabalho formal, assalariado e nos moldes de uma organização capitalista. Essa limitação conceitual não consegue abarcar o trabalho psíquico que, na teoria freudiana, refere-se ao trabalho do inconsciente e que, portanto, é ininterrupto e abrangente.

Pode-se dizer que esse seria o trabalho do devir do sujeito, a partir do qual pode emergir o sujeito do desejo, que não mais coloca demandas ao trabalho no sentido de tamponar sua falta. Contrapondo a essa perspectiva, o trabalho da readaptação visa readaptar o sujeito ao trabalho capitalista, colocando-o em uma posição de submissão às exigências crescentes, em busca de algo que não vai encontrar sua realização nessa dimensão. Assim, o trabalho das professoras na readaptação estava em processo de mortificação, um trabalho paralisado, reduzido a atividades laborais fragmentadas e sem sentido, e que, portanto, não permite o surgimento do sujeito. É aí que vemos a dimensão da readaptação como uma promessa que não se cumpre, pois ela enreda o sujeito em uma relação mortífera com o trabalho, relação em que o sujeito é tido como objeto.

Ainda restava às professoras, entretanto o trabalho psíquico, que foi intensificado durante o processo da clínica do trabalho. Nesse sentido, houve mobilização da subjetividade desses sujeitos a partir do seu trabalho psíquico, que difere da mobilização subjetiva da proposta dejouriana. Foi possível perceber o trabalho dos sujeitos dessa clínica, que foram construindo novas formas de ser no trabalho e fora dele. Esse sim, um trabalho vivo e cujo movimento está em consonância com o devir do sujeito. Os efeitos que se conseguiram alcançar com essa clínica referem-se a novos modos de significação do sofrimento, a partir de um reposicionamento subjetivo das professoras em relação ao seu trabalho. Esse reposicionamento consistiu em uma compreensão mais clara sobre as adversidades da organização do trabalho, não em uma perspectiva vitimizada, mas de forma a deslocar a culpabilização individual do adoecimento para uma denúncia do contexto social.

Nessa direção, outro aspecto constituinte desse reposicionamento subjetivo foi uma melhor aceitação de seus limites e de sua potência, o que permitiu um maior investimento em relações e atividades mais saudáveis e significativas. Dessa maneira, para romper com o ciclo mortífero que envolvia o processo de adoecimento-readaptação-novos adoecimentos, o reposicionamento subjetivo alcançado também envolveu um certo desapego do discurso missionário que as envolvia na promessa da plenitude.

 

Considerações Finais

A partir da constatação de que os estudos em clínica psicodinâmica do trabalho enfocam trabalhadores em situação de normalidade e não expressam, claramente, como a mobilização subjetiva ocorre a partir da escuta clínica, pretendeu-se, com este artigo, problematizar o conceito dejouriano de mobilização subjetiva em contextos de trabalhadores adoecidos.

A partir do espaço público de discussão construído com professoras readaptadas da rede pública de ensino do Distrito Federal, construiu-se um terreno fértil para que os sujeitos pudessem dar novos destinos ao sofrimento. Foi possível observar um reposicionamento subjetivo dos sujeitos, que passaram a se sentir mais fortalecidas para lidar com o sofrimento do adoecimento e da readaptação, já que a clínica permitiu que se desapegassem das ilusões missionárias sobre seu trabalho e construíssem uma narrativa mais autônoma. Mas a mobilização subjetiva, como um processo de resgate do sentido e do prazer no trabalho, não foi possível de ser alcançada na clínica.

Esse resultado se deve ao fato de o trabalho na readaptação se constituir em um trabalho morto, inclusive no sentido de contribuir para o isolamento e a exclusão dessas profissionais, levando ao desmoronamento dos laços sociais e à impossibilidade de uma mobilização coletiva potente o suficiente para mudar as questões estruturais desse "nãotrabalho" a que estão submetidas. Apesar de defender a impossibilidade de mobilização subjetiva em um trabalho morto, a grande contribuição da clínica do trabalho realizada foi no sentido de demonstrar sua potência política a partir de novos destinos que as professoras adoecidas puderam dar ao sofrimento.Verificou-se um processo de alteridade e de assunção de maior autoridade sobre si mesmas quando passaram a escolher as lutas que queriam lutar e engajando-se em outros projetos de vida. Para tanto, Mendes, Merlo, Duarte e Araújo (2014, p. 73) defendem que a "saúde, nesse sentido, é a possibilidade de o sujeito colocar-se em condições de habitar as multiplicidades, de construir recursos capazes de reconfigurar suas práticas psíquicas e sociais de modo mais criativo". Assim, nomear o sofrimento move o sujeito para a ação no sentido de buscar caminhos que o libertem do universo contraditório que o aflige. A partir desse ponto, pode-se pensar em alternativas diante dos imperativos universais, em possibilidades de resistência aos projetos homogeneizadores.

As professoras participantes dessa clínica parecem ter começado a caminhar nessa direção. Enfrentando seus sentimentos, suas doenças e suas dores, tentavam combater algumas injustiças no trabalho e investir em outros projetos pessoais que lhe desafiariam. Abel (2009), tratando sobre os efeitos do trabalho psicanalítico, defende que esses efeitos se referem à modificação de perspectiva, com a produção de novas significações que, por sua vez, geram novos modos de se lançar no devir. Nessa perspectiva, as professoras alcançaram novas significações em seu modo de ser e em sua relação com a doença e com o trabalho; alcançaram, portanto, um reposicionamento subjetivo.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Graziele Alves Amaral
E-mail: graziamaral@yahoo.com.br

Ana Magnólia Mendes
E-mail: anamag.mendes@gmail.com

Emílio Peres Facas
E-mail: emilio@unb.br

Recebido em: 05/02/2019
Revisado em: 16/06/2019
Aceito em: 19/07/2019
Publicado online: 29/08/2019

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