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Revista Subjetividades

versão impressa ISSN 2359-0769versão On-line ISSN 2359-0777

Rev. Subj. vol.19 no.3 Fortaleza set./dez. 2019

http://dx.doi.org/10.5020/23590777.rs.v19i3.e6857 

ESTUDOS TEÓRICOS

 

Trauma: um estudo sobre a inibição generalizada (ou econômica)

 

Trauma: a study on generalized (or economic) inhibition

 

Trauma: un estudio sobre la inhibición generalizada (o económica)

 

Traumatisme : une étude sur l'inhibition généralisée (ou économique)

 

 

Leonardo CâmaraI; Regina HerzogII

IPsicanalista, Professor Adjunto A do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Sâo Carlos (DPsi/UFSCar), Pós-Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Mestre e Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGTP/UFRJ), membro do Grupo Brasileiro de Pesquisas Sándor Ferenczi (GBPSF)
IIPsicanalista, professora associada do Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica (PPGTP/UFRJ), coordenadora do curso de especialização "Psicanálise e Contemporaneidade: trauma e urgências subjetivas" (CCE/PUC-Rio), coordenadora do Núcleo de Estudos em Psicanálise e Clínica da Contemporaneidade (NEPECC/UFRJ), pesquisadora do CNPq - bolsa de produtividade em pesquisa

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Freud descreveu, em seu trabalho "Inibição, sintoma e angústia" (1926/2014b), duas formas de inibição da ação: uma relacionada à evitação da reatualização de conflitos psíquicos, da instauração de um novo ato de recalcamento e da emissão de angústia-sinal (inibição específica); outra conexa a situações de empobrecimento de energia disponível no eu (inibição generalizada). Os autores do presente artigo buscam aprofundar a descrição do mecanismo metapsicológico do segundo tipo de inibição - ao qual propõem a designação alternativa de "inibição econômica" -, baseando-se, para isso, no modelo de trauma desenvolvido por Freud em "Além do princípio do prazer" (1920/2010c). Essa forma de inibição é uma medida emergencial do eu cuja finalidade é alterar o gerenciamento de energia em favor de tarefas psíquicas prioritárias, que demandam elevado custo energético para sua realização.

Palavras-chave: inibição; trauma; neurose de guerra; neurose traumática; melancolia; metapsicologia.


ABSTRACT

In the work "Inhibition, Symptom and Anguish" (1926/2014b), Freud described two forms of action inhibition: one related to the avoidance of the re-actualization of psychic conflicts, the establishment of a new act of repression and the emission of signal anguish ( specific inhibition); another related to situations of energy depletion available in the self (generalized inhibition). The authors of this paper seek to deepen the description of the meta-psychological mechanism of the second type of inhibition - which they propose the alternative designation of "economic inhibition" - based on Freud's trauma model in "Beyond the Principle of pleasure" (1920/2010c). This form of inhibition is an emergency measure of the self whose purpose is to alter energy management in favor of priority psychic tasks that demand a high energy cost to accomplish.

Keywords: inhibition; trauma; neurosis of war; traumatic neurosis; melancholy; meta-psychology.


RESUMEN

Freud describió, en su trabajo "Inhibición, síntoma y angustia" (1926/2014b), dos formas de inhibición de la acción: una relacionada a la evitación de la reactualización de conflictos psíquicos, de la implantación de un nuevo acto de represión y de la emisión de señal de angustia (inhibición específica); otra en conexión con situaciones de empobrecimiento de energía disponible en el yo (inhibición generalizada). Los autores de este trabajo buscan profundizar la descripción del mecanismo metapsicológico del segundo tipo de inhibición - a lo cual proponen la designación alternativa de "inhibición económica"-, basándose, para eso, en el modelo de trauma desarrollado por Freud en "Más allá del principio del placer" (1920/2010c). Esta forma de inhibición es una medida de emergencia del yo cuya finalidad es alterar la gestión de energía en favor de tareas psíquicas prioritarias, que demandan elevado coste energético para su realización.

Palabras clave: inhibición; trauma; neurosis de guerra; neurosis traumática; melancolía; metapsicología.


RÉSUMÉ

Freud a décrit dans son œuvre "Inhibition, Symptôme et Angoisse" (1926/2014b) deux catégories de l'inhibition de l'action: une liée à éviter réactualiser les conflits psychiques, de l'instauration d'un nouveau acte de répression et de l'émission de l'angoisse-signe (inhibition spécifique); l'autre liée aux situations appauvrissement de l'énergie disponible en soi (inhibition généralisée). Les auteurs du présent article cherchent approfondir la description du mécanisme métapsychologie du second type d'inhibition - auquel ils proposent la désignation alternative « inhibition économique ». À cause de cela, ils se son basés dans le modèle de traumatisme développé par Freud dans «Au delà du principe de plaisir » (1920/2010c). Cette forme d'inhibition est une mesure d'urgence chez le soi dont le but est de modifier la gestion de l'énergie en faveur de tâches psychiques prioritaires, lesquelles nécessitent un coût énergétique élevé.

Mots-clés: inhibition ; traumatisme ; névrose de guerre ; névrose traumatique ; mélancolie ; métapsychologie.


 

 

No primeiro capítulo de "Inibição, sintoma e angústia", Freud (1926/2014b) define a inibição da ação a partir de uma fórmula simples: ela consiste na restrição ou limitação (Einschränkung) de uma função do eu por parte do próprio eu, podendo ser motivada por duas situações: 1) para prevenir o acontecimento de certos eventos psíquicos que acarretam a reatualização de conflitos com as outras instâncias, a instauração de um novo recalcamento e/ou desencadeamento de angústia; ou 2) devido à depleção de energia disponível no eu (Freud, 1926/2014b). Apesar de, ao estabelecer essa definição, o desígnio de Freud fosse esclarecer em definitivo a noção, o resultado não parece ter sido bem sucedido: a temática da inibição continua a ser assunto polêmico no âmbito da teoria psicanalítica, a despeito de sua relevância crescente na clínica e cultura contemporâneas (Câmara, Herzog, Pacheco-Ferreira, & Verztman, 2015).

O objetivo do presente artigo é analisar como se dá o segundo mecanismo de inibição descrito por Freud, aquele motivado por uma situação de redução maciça de energia disponível no eu. Visto que sua margem de ação é ampla - isto é, ela afeta uma extensa parcela do funcionamento do eu, prejudicando, assim, sua capacidade de desempenhar diversas ações -, designa-se comumente por inibição geral (ou generalizada) essa forma de inibição. Longe de nos opormos a tal nomenclatura, sugerimos, no entanto, outro termo, que esperamos se justificar ao longo desta exposição: inibição econômica (Câmara, 2015).

A curta descrição que Freud (1926/2014b) fornece a propósito do funcionamento dessa forma de inibição pode ser posta em uma frase, de sua própria autoria, aliás: "quando o Eu é solicitado por uma tarefa psíquica particularmente difícil, (...) ele se empobrece de tal forma, no tocante à energia disponível, que tem de reduzir seu dispêndio em muitos lugares simultaneamente" (p. 19, grifo nosso). As tarefas que o autor oferece como exemplo são o trabalho do luto, que se desdobra logo após a constatação da perda de um objeto amado (Freud, 1917[1915]/2010a, 1926/2014b); a supressão de um afeto poderoso e incompatível através de formação reativa; e "a necessidade de refrear fantasias sexuais que emergem continuamente" (Freud, 1926/2014b, p. 19).

Uma vez que todos os procedimentos citados exigem um elevado dispêndio de energia para sua execução, a disponibilidade energética para o restante do funcionamento do eu se torna comprometida. Com vistas a aumentar a oferta de energia para a tarefa prioritária em curso, essa instância é pressionada a inibir suas atividades, "como um especulador que imobiliza seu dinheiro nos seus empreendimentos" (Freud, 1926/2014b, p. 19). Do que foi dito até aqui, depreende-se que o motor de todo esse processo está circunscrito em um registro claramente econômico, justificando a proposta de o designarmos pelo termo inibição econômica. Se essa designação, por um lado, deixa de mencionar sua margem de ação - que em termos clínicos se revela, de fato, sempre generalizada -, por outro, abre caminho para uma leitura rigorosamente metapsicológica ao realçar a configuração subjacente ao processo.

Apesar de Freud (1926/2014b) ter indicado que o estudo do mecanismo de inibição econômica (ou generalizada) pode contribuir para uma maior compreensão das patologias depressivas e, sobretudo, da melancolia, resolvemos nos ocupar com a figura da neurose traumática (Freud, 1920/2010c). Essa decisão se baseou na constatação de que os processos econômicos envolvidos em tal configuração clínica são mais bem trabalhados pela teoria freudiana do que no caso da melancolia. Não obstante, conforme procuraremos apontar, a descrição freudiana da neurose traumática se baseia, em parte, no modelo melancólico - mais especificamente, em sua vertente econômica (Câmara, 2015). Para demonstrar de que maneira o estudo da melancolia forneceu subsídios para a construção do modelo de trauma de 1920, bem como a relação entre inibição e neurose traumática, é necessário iniciar este estudo com uma contextualização histórica e clínica do quadro da neurose traumática.

 

A Neurose Traumática

A neurose traumática, descrita pela primeira vez por Oppenheim, ainda no século XIX, a propósito de quadros clínicos desencadeados por acidentes ferroviários, tornou-se o modelo para se pensar as neuroses de guerra, isto é, formas de adoecimento que surgiam em soldados que haviam participado de manobras bélicas no contexto da Primeira Guerra Mundial. Nessa época, o campo de disputa mais rumoroso dentro dos debates científicos acerca da neurose de guerra referiu-se à sua hipótese etiológica. Importa conhecermos essa discussão para entendermos de que modo Freud vai aproximar a neurose traumática do modelo melancólico, envolvendo, assim, nesse mesmo gesto, dois elementos: por um lado, a perspectiva econômica; por outro, a inibição.

No panorama retratado por Ferenczi (1919[1918]/1993), duas perspectivas colidiram frontalmente. Os organicistas (ou mecanicistas), atribuíam a causa do adoecimento a uma lesão neurológica material. Nesse caso, a comoção - efeito do choque mecânico sobre o corpo (oriundo do impacto de uma explosão, por exemplo) - provocaria uma instabilidade na composição molecular do sistema nervoso ou um esgarçamento do tecido neuronal, o que elucidaria a causa da doença (Ferenczi, 1919[1918]/1993; Freud, 1920/2010c). Tendo como principal porta-voz o já citado Oppenheim, essa concepção possuía um ponto fraco: da mesma forma que a histeria, a neurose de guerra não apresentava alterações orgânicas demonstráveis. Em termos neurológicos, os sintomas não faziam sentido, uma vez que ignoravam o funcionamento das vias nervosas1 (Ferenczi, 1916/1992).

O outro ponto de vista acerca da etiologia da neurose de guerra centrava-se em uma concepção rigorosamente psicológica. A evocação da figura da histeria como matriz explicativa dos sintomas "pseudoneurológicos" se tornou carro-chefe das críticas dirigidas à hipótese organicista. Nesse cenário de redescoberta da histeria, não tardou para Charcot e Janet serem ressuscitados pelas discussões e a hipnose e o método catártico, recolocados em uso. Contudo, longe de possuir uma unidade, a perspectiva psicogenista agregou uma série de interpretações heterogêneas e, muitas vezes, inconciliáveis entre si. Se a influência da psicanálise se fez notar em algumas das interpretações, o que se entendia por histeria não era um consenso. Alguns autores iriam depreender, mesmo, que a neurose traumática era um exemplo notável de como a primazia da sexualidade na etiologia da histeria era uma tese equivocada (Ferenczi, 1919[1918]/1993; Freud, (1919/2010b). De todo modo, além das interpretações psicogenistas, perfilaram-se algumas descrições mais atraentes, que consideravam o choque emocional como fator patogênico de primeira ordem, cujo desencadeamento se dava por consequência da irrupção repentina do medo ou de algum afeto correlato a ele, como o pavor, o terror ou o susto (Ferenczi, 1919[1918]/1993).

Em "Além do princípio do prazer", trabalho que contém uma das contribuições mais elaboradas sobre a neurose traumática no discurso freudiano, a irrupção do sentimento de terror é tida como protagonista no desencadeamento do trauma2. Não por acaso, Freud lança mão do termo Schreckneurose, "neurose de terror", como sinônimo para neurose traumática (Freud, 1920/1940, 1920/2010c). Ainda que seja possível detectar discursos de outros autores em sua concepção - tal como o papel desempenhado por esse afeto -, a leitura freudiana se revela original, possuindo um substrato irredutível em relação ao contexto em que se inseriu.

Se não há dúvida que os sintomas motores e de alteração da consciência das neuroses traumáticas se assemelham àqueles pertencentes à histeria, tal correlação não é tão significativa quanto se pode supor. O que atrai a atenção de Freud são, antes, os "sinais bastante desenvolvidos de sofrimento subjetivo, como numa hipocondria ou melancolia, e evidências de um mais amplo enfraquecimento e transtorno das funções psíquicas" (Freud, 1920/2010c, p. 168, grifo nosso). Nesse sentido, a via privilegiada pela qual a neurose traumática deve ser investigada não é a histeria, mas a melancolia e a hipocondria, quadros circunscritos ao modelo do narcisismo (Câmara, 2015). Da mesma forma, o paradigma do conflito deve ser colocado em suspensão para dar lugar ao do empobrecimento de energia. Note-se que, ao definir esses parâmetros de pesquisa, Freud se afasta, de maneira decisiva, dos discursos predominantes sobre o trauma e alicerça uma leitura particular sobre ele. Ainda que essa posição seja surpreendente, não é menos coerente: o desencantamento em relação ao fascínio dos fenômenos tidos como histéricos é a consequência necessária de uma abordagem que não esgota seu exame no registro do sintoma.

A hipótese de que o modelo do narcisismo seria mais adequado que o das neuroses de transferência para a investigação do sujeito traumatizado é declarada de maneira explícita por Freud na sua "Introdução a Psicanálise das neuroses de guerra" (1919/2010b). Segundo ele, as pesquisas psicanalíticas acerca das neuroses narcísicas, as quais se encontravam em plena expansão naquele período, fundamentariam um estofo conceitual mais adequado para a compreensão da neurose traumática. Esta, assim como a psicose e a melancolia, apresentava-se refratária ao método analítico. Da mesma forma, a teoria da libido, fundamentada a partir das neuroses de transferência, mostrava-se insuficiente para apreender o funcionamento da configuração clínica em pauta (Freud, 1919/2010b).

Apesar desses apontamentos, a dimensão do narcisismo não é desenvolvida de forma clara na circunscrição teórica do trauma em "Além do princípio do prazer". A coordenada que prevalece neste trabalho é a perspectiva energética, tendo como fenômeno clínico relacionado o já citado "amplo enfraquecimento e transtorno das funções psíquicas" (Freud, 1920/2010c, p. 168). Essa questão nos interessa sobremaneira, dado que aí se insere a participação da inibição motivada pelo registro econômico. Para investigar a forma pela qual esta se articula ao distúrbio de energia no trauma, propomos indicar, na sequência, como o modelo do trauma herda e desenvolve algumas reflexões iniciadas nas pesquisas de Freud sobre o luto e a melancolia, que haviam sido empreendidas ainda no período da guerra, e também mostrar como o trauma exigiu modificações em sua concepção de aparelho psíquico.

 

Da Melancolia ao Traumatismo

No luto e na melancolia, o empobrecimento de energia é resultado de um trabalho psíquico penoso, que exige o dispêndio maciço de energia para sua resolução: no luto, o trabalho consiste no desinvestimento do objeto perdido; na melancolia, na cicatrização da ferida aberta no eu devido a uma experiência de perda que recai sobre o próprio eu. Em ambos os casos, guardadas suas especificidades, a inibição se exprime na clínica como uma sensação de paralisia, um sentimento de impotência que interfere, até mesmo, nas ações mais banais. Algumas vezes, o sujeito pode até lutar contra esse estado de coisas; noutras vezes, ele simplesmente perde a "vontade" para tanto, desistindo de vez de agir.

Essa experiência de inibição, que amiúde marca presença nos quadros melancólicos e no processo de luto, é correlacionada ao esvaziamento de energia disponível no eu. O modo como um está relacionado ao outro não é, entretanto, objeto de investigações mais pormenorizadas. A propósito disso, Freud confessa, em "Luto e melancolia", que "falta-nos a compreensão econômica do processo" (Freud, 1917[1915]/2010a, p. 186). Mesmo no prosseguimento de sua obra, as sucessivas teorizações sobre a melancolia não privilegiarão o aspecto econômico: a maior elaboração da noção de identificação narcísica, o advento do supereu e o estabelecimento do conceito de pulsão de morte possibilitarão a ele explorar outras dimensões da melancolia, deixando em segundo plano o seu aspecto econômico (Freud, 1923/2011a). Não obstante, consideramos que o modelo da dor e do trauma, estabelecido em "Além do princípio do prazer", continuará a desdobrar a linha de pesquisa sobre o trabalho psíquico dispendido em situações de grave distúrbio de energia no psiquismo.

Com efeito, a neurose traumática também apresenta um quadro clínico marcado pelo enfraquecimento de energia e a inibição de diversas funções do eu (Ferenczi, 1919[1918]/1993; Freud, 1920/2010c). A presença desses dois elementos leva Freud a supor que, em tal entidade clínica, esteja igualmente em curso um árduo trabalho psíquico. Essa hipótese torna-se a principal coordenada para a construção de um esquema teórico que busca descrever o traumatismo em uma perspectiva metapsicológica - vale dizer, a partir, principalmente, de sua dimensão econômica (Freud, 1920/2010c). Entretanto, é importante adiantar que a tarefa imperiosa que mobiliza o aparelho psíquico nessa situação difere daquelas envolvidas no luto e na melancolia.

De fato, a exigência de trabalho motivada pelo trauma é de tal modo distinta da que ocorre naqueles que Freud se encontra conceitualmente desaparelhado para explicá-la. Uma vez que o momento traumático é definido como a invasão súbita de um excesso de energia no psiquismo (Freud, 1920/2010c, 1933/2011b), compreende-se que o repertório nocional apresentado na primeira tópica não oferece recursos para exprimir como a invasão, e a subsequente reação a ela, se dá. Por conta disso, torna-se necessária a formulação de um novo modelo, que permita a circunscrição de eventos dessa natureza, pois, à medida que se entende que o aparelho psíquico pode ser invadido por algo que excede sua capacidade de contenção, se pressupõe a fortiori as categorias espaciais de interno-externo.

Laplanche (1987) localiza justamente nesse ponto a diferença que separa o modelo introduzido em "A interpretação dos sonhos" (1900/2006a) do elaborado em "Além do princípio do prazer" (1920/2010c). No primeiro, a distinção entre o meio interno e o externo não é considerada, pois o que importa é como funciona o interior do psiquismo, este espaço que se acomoda entre o input perceptivo e o output motor (Freud, 1900/2006a). No segundo, no modelo de 1920, a preocupação de Freud é entender o que se passa na fronteira entre ambos os meios, isto é, como se dá a interface da superfície do aparelho (que abriga tanto o aparelho perceptivo quanto o motor) com o mundo externo. É importante, aliás, notar que essa superfície se tornará, em três anos, a instância psíquica do eu (Freud, 1923/2011a; Laplanche, 1987). De toda forma, a consideração sobre a maneira como o psiquismo se relaciona com o exterior se torna relevante à pesquisa psicanalítica porquanto a neurose traumática exige a problematização, ou antes, a tematização de uma externalidade que avança sobre a estrutura psíquica e que compromete sua estabilidade: "nas neuroses traumáticas e de guerra, o Eu do indivíduo se defende de um perigo que o ameaça desde fora" (Freud, 1919/2010b, p. 387).

 

O Modelo da Vesícula

Passaremos, agora, a revisitar o modelo de aparelho psíquico que busca conceber a dinâmica dos processos que ocorrem entre esse aparelho e o mundo externo. Conforme dito anteriormente, o desenvolvimento de tal modelo tornou-se necessário para se descrever o trauma como algo que vem de fora e choca ou, ainda, comove o psiquismo. Convencionou-se designar o modelo desenvolvido em "Além do princípio do prazer" como o "modelo da vesícula", uma vez que Freud nos convida a figurar o psiquismo a partir da imagem de um "organismo vivo, na sua maior simplificação, como uma indiferenciada vesícula de substância excitável" (Freud, 1920/2010c, p. 187). Tal imagem, contudo, é composta de um fundo sem o qual o modelo não encontra fechamento: "esse pequeno pedaço de substância viva flutua num mundo externo carregado de fortes energias" (Freud, 1920/2010c, p. 188). Sendo a vesícula formada por uma substância excitável, a energia advinda do exterior adquire o estatuto de estímulo, pois sua incidência afeta a mesma substância, alterando sua compleição.

Assim, o modelo de 1920 oferece palco para dois personagens: o aparelho psíquico, que encena o papel de uma forma primordial de vida, e o mundo externo, como uma disforme massa de energia. O drama que serve como fio de prumo na relação entre eles é o do aparelho psíquico como uma estrutura frágil que precisa se defender da violência intensa e cega do mundo externo. Para isso, a vesícula modifica parte de sua composição, influenciada diretamente por seu algoz: "o incessante choque dos estímulos externos na superfície da vesícula [fez com que] alterasse a sua substância até uma certa profundidade" (Freud, 1920/2010c, p. 187). Em outras palavras, a vesícula sofre diferenciações dentro de sua própria estrutura pela incidência de energia do mundo externo. Três anos depois, Freud retomará a descrição desse processo como uma hipótese genética para a constituição do eu enquanto produto diferenciado do isso (Freud, 1923/2011a). Em 1920, porém, essa narrativa expõe a maneira como a superfície da vesícula é formada. Sua importância não reside apenas no fato de explicar como o organismo sobrevive diante da massa de energia do mundo externo; ela confere também, e principalmente, subsídios para a descrição do que seja o trauma.

Dessa superfície decompõem-se duas camadas destinadas a lidar com o mundo externo. A primeira, voltada imediatamente para fora da vesícula, é denominada Reizschutz3. Representando a camada mais externa da vesícula, o Reizschutz é formado pela incidência direta das energias maciças que emanam desde fora. Como consequência, essa camada de substância, outrora viva, se torna inorgânica, isto é, perde o atributo de excitabilidade, não sendo mais passível de sofrer alterações ulteriores em decorrência do impacto de energia. À semelhança de uma casca ou do exoesqueleto de um artrópode, sua função é proteger a vesícula à medida que promove a contenção dos estímulos. Contudo, não é seu objetivo suprimi-los, mas apenas fazer "com que as energias do mundo exterior possam penetrar com uma fração de sua intensidade nas camadas adjacentes, que permaneceram vivas" (Freud, 1920/2010c, p. 188, grifo nosso).

Portanto, a finalidade do Reizschutz é proteger a vesícula do montante excessivo de energia e, ao mesmo tempo, filtrá-lo em pequenas amostras utilizáveis, cuja intensidade fracionada não acarrete o risco de produzir danos no meio interno da vesícula. Assim, as amostras são direcionadas para a camada adjacente ao escudo protetor, responsável, por sua vez, pela recepção dos estímulos filtrados. Localiza-se aí o sistema responsável pela função da consciência e da percepção, que se tornará, em ١٩٢٣, o núcleo da instância psíquica do eu. Em ١٩٢٠, porém, passa a ser a região com maior nível de excitabilidade de toda a vesícula. Apesar da relevância desse sistema, Freud afirma que a função de proteção contra os estímulos do Reizschutz é ainda mais importante. Pois, segundo ele, "a camada externa, com sua morte, preservou do mesmo destino aquelas mais profundas". E, logo em seguida, acrescenta: "pelo menos enquanto não chegam estímulos de força tal que furem a proteção" (Freud, 1920/2010c, p. ١٨٩). Essa declaração antecipa, em linhas gerais, a definição de trauma dentro do presente modelo e, do mesmo modo, figura-o como um tipo de morte - uma morte que se infiltra no psiquismo e o corrói desde dentro.

 

O Trauma

Que o Reizschutz tenha perdido a aptidão de ser alterado pelos estímulos externos (atributo de excitabilidade) não contradiz a possibilidade de ele ter sua estrutura aquebrantada pelos mesmos estímulos quando adquirem uma intensidade excessiva. Essa lógica fecha as coordenadas básicas para uma concepção sobre o trauma, haja vista Freud considerar que "o conceito de trauma exige essa referência a uma defesa contra estímulos que normalmente é eficaz" (Freud, 1920/2010c, p. 192). O início de um processo traumático é definido, portanto, como o fracasso do Reizschutz na sua função de conter o montante de energia que emana de fora. A sua estrutura é despedaçada em diversos pontos - Freud (1920/2010c) descreve "uma vasta ruptura da proteção contra estímulos" (p. 194) -, daí resultando em uma invasão incessante de energia sobre as camadas mais internas do organismo, que se acham agora perigosamente vulneráveis.

Encontra-se nessa concepção outra posição de descontinuidade de Freud em relação aos discursos sobre a neurose traumática (e de guerra) predominantes na época. Parte dele próprio a correspondência de seu modelo com a tese da comoção que, conforme já assinalado, credita a um choque mecânico a causa do trauma, por gerar um abalo físico deletério sobre o sistema nervoso (Freud, 1920/2010c). Uma vez mais, portanto, Freud se distancia das perspectivas psicogenistas, que descartavam com notável prematuridade a tese da comoção. Contudo ele se apressa a dizer que, distintamente desta última, "nós procuramos explicar seu efeito [i.e., do choque] pela ruptura da proteção [contra estímulos] para o órgão psíquico e pelas tarefas que daí resultam" (Freud, 1920/2010c, p. 194, grifo nosso).

Assim, a concepção de Freud é fabricada através da tradução da tese biológica da comoção para uma linguagem psicológica e, em sequência, da tradução desta última para uma linguagem metapsicológica4 (Laplanche, 1987). No que se refere a esse último ponto, Laplanche (1987) esclarece que Freud procura "retomar do modelo psicológico o que ele tem de menos psicológico, [ao] dar-lhe um fundamento econômico" (p. 197). Não obstante essas considerações, é lícito observar que Freud já estava em terreno conhecido ao figurar assim o trauma: encontra-se no seu "Projeto de uma psicologia" uma definição da experiência de dor que se assemelha em muitos aspectos a essa concepção (Freud, 1950[1895]/1995). Não por acaso a dor é retomada em "Além do princípio do prazer" para servir de bússola para a definição do trabalho psíquico envolvido no trauma, assim como o luto fora o ponto de partida para a investigação da melancolia (Freud, 1917[1915]/2010a, 1920/2010c).

De todo modo, o trauma não se esgota com o esgarçamento da linha de defesa representada pelo Reizschutz. Uma vez tendo isso ocorrido, o aparelho psíquico é invadido por uma quantidade massiva de estímulos exógenos. Inicia-se, em decorrência dessa inundação (Überschwemmung), a exigência de trabalho específica do trauma: paralisar a energia afluente, de forma que ela não continue se propagando no interior do psiquismo (Freud, 1920/1940). Para isso, são mobilizados contrainvestimentos que, exercendo uma pressão contrária, buscam deter a invasão de energia, expulsando-a para fora da vesícula (Freud, 1920/2010c). O embate entre a energia afluente e o contrainvestimento pode ser entendido como a soma de dois vetores de sinais opostos, um positivo e outro negativo - o segundo tentando anular ao máximo o primeiro.

A partir do momento em que são concebidas uma energia indomada que vem de fora e outra energia controlada em forma de contrainvestimento, a leitura freudiana sobre o trauma se complexifica. Introduz-se a ideia de duas apresentações de energia: a primeira, livremente móvel, que exige descarga direta; e a segunda, energia parada (ou ligada), mediada por processos psíquicos. A meta do trabalho que absorve o aparelho anímico nessa situação é transformar a energia livre em energia ligada: em outras palavras, é imobilizar a energia livre. Tal movimento, que intenta se realizar através do contrainvestimento, é chamado de ligação (Freud, 1920/2010c). A noção de ligação, de importância fundamental na trama freudiana, está presente desde os primeiros escritos de Freud. Propomos, no que segue, nos concentrar em seu sentido econômico, intensivo, energético. Frisamos, todavia, que a noção em tela mantém conexão com outros pontos, como linguagem, pensamento e alteridade (Herzog, 2003). A importância da ligação - enquanto trabalho de transformação de energia livre em energia ligada - reside no fato de que o aparelho psíquico só consegue manejar a energia, no sentido de conduzi-la ativamente à eliminação, caso esteja ligada psiquicamente. Do contrário, o aparelho se encontra em um estado de passividade ante a circulação da energia livre.

O árduo trabalho de ligação envolvido no trauma coloca em evidência um princípio de regulação do aparelho anímico que está para além do princípio do prazer, posto que seu objetivo não seja diminuir a tensão psíquica (e assim produzir sensação de prazer). Sua meta é, distintamente, dominar a energia livre ligando-a psiquicamente. Só assim são preenchidas as condições necessárias para a regência do princípio do prazer e, portanto, da descarga apropriada do quantum de energia. Nesse sentido, Freud (1920/2010c) comenta que "a ligação é um ato preparatório, que introduz e assegura o domínio do princípio do prazer" (p. 236). Podemos acrescentar, ainda, que tal movimento de ligação exige, como condição para sua consecução mesma, o consumo de energia. Enfatizemos esse detalhe: a ligação, processo essencial no manejo de quantidade excessiva de energia (livre) dentro do aparelho psíquico e ato preparatório para descarga dessa mesma energia, exige, por si mesma, o consumo de energia (ligada). Entrevê-se, nesse sentido, uma primeira aproximação entre trauma, ligação e inibição econômica: a ligação necessita de energia para sua operação; a referida forma de inibição, por sua feita, está associada a situações de redução de energia.

 

Trauma e Inibição

A escassez de energia disponível no aparelho psíquico quando da experiência do trauma não é devida, em si, à inundação de estímulos exógenos decorrente do despedaçamento do Reizschutz. O que leva a esse estado de empobrecimento é a necessidade de consumo pelo contrainvestimento na sua luta pela imobilização da energia afluente. Segundo as palavras de Freud, diante da irrupção dessa energia, "produz-se um enorme 'contrainvestimento', em favor do qual todos os demais sistemas psíquicos empobrecem, de modo que há uma extensa paralisação ou redução do funcionamento psíquico restante" (Freud, 1920/2010c, p. 192-3, grifo nosso).

A inibição econômica refere-se a esse processo de restrição do funcionamento psíquico (do eu) como forma de reconfigurar o gerenciamento de energia em favor do trabalho de ligação. Em outros termos, inibe-se uma ampla variedade de funções, a fim de que a energia por elas utilizada seja empregada no trabalho do contrainvestimento (Câmara, 2015). Duas características desta forma de inibição sobressaem na citação acima. Em primeiro lugar, a margem de atuação da inibição é ampla, de forma que seus efeitos são sentidos como generalizados ("todos os demais sistemas psíquicos empobrecem" [Freud, 1920/2010c, p. 193]). Em segundo lugar, a magnitude da limitação que ela impõe às funções do eu afetadas se dá a partir de uma lógica de gradiente - da redução relativa até a paralisação absoluta ("há uma extensa paralisação ou redução do funcionamento psíquico restante" [Freud, 1920/2010c, p. 193]).

Supõe-se que haja uma relação de "proporcionalidade" entre a exigência de consumo de energia do contrainvestimento e a extensão e magnitude da inibição: quer dizer, quanto maior o contrainvestimento, maior a necessidade de energia e maiores os efeitos de inibição do eu. Esses fatores estão correlacionados, evidentemente, com o volume de energia livre que invadiu o aparelho psíquico após a ruptura do Reizschutz. Em um cenário ideal, o contrainvestimento, enquanto vetor de oposição à profusão do estímulo traumático, teria de consumir um montante de energia equivalente ao mesmo para detê-lo. Dessa lógica entende-se a afirmação de Freud (1920/2010c) segundo a qual "um evento como o trauma externo vai gerar uma enorme perturbação no gerenciamento de energia do organismo" (p. 192).

Entretanto, dificilmente se pode imaginar que o aparelho psíquico tenha à sua disposição tamanho volume de energia para se contrapor, com uma intensidade equivalente e de forma imediata, à experiência traumática com a qual é surpreendido. Por conta desse motivo, o trabalho do trauma não se reduz à situação, mas se estende em um quadro penoso de neurose que, enquanto tal, se prolonga indefinidamente: assim como a melancolia consiste na tentativa de desinvestimento de um objeto que não se consegue perder, no trauma entra em curso um trabalho de ligação cuja energia livre não tem como ser contida. Em ambos os casos, o processo se estende ao longo do tempo. Isto significa dizer que o estado de inibição não é liquidado momentos após o choque, mas mantido de forma persistente.

É certo que há uma relação entre a inibição econômica e a exigência de energia da tarefa psíquica de ligação, entretanto a consideração de outro fator na dinâmica do trauma é essencial para se compreender com maior apuro o papel da inibição em todo o processo. O fator em pauta é o nível de preparação que o aparelho psíquico apresenta no momento imediatamente anterior à experiência traumática: quanto menos preparado o sujeito se encontra, piores são as consequências do choque (Freud, 1920/2010c). Quando preparado, o sujeito mantém um estado de expectativa (angustiada) ante a possibilidade de algo ocorrer, mesmo que ele não saiba exatamente o quê. Isto, por si só, consiste um importante fator de proteção. Quando, pelo contrário, é surpreendido por um evento que não esperava, ele é assaltado por um sentimento de terror que contribui para tornar ainda mais insuportável a violência do choque (Freud, 1920/2010c).

Freud entende que o terror [Schreck] desempenha papel decisivo no desencadeamento e desdobramento do trauma. Junto aos afetos de angústia e medo, a descrição desse sentimento representa um complemento à primeira teoria da angústia. Esta, em 1920, se encontra relativizada em decorrência da valorização do perigo externo, que passa a não ser mais necessariamente entendido como um mero produto da projeção de conflitos libidinais internos (Câmara, 2015). Segundo os referenciais estabelecidos a partir desse complemento teórico, a angústia é tida como um estado de apreensão, no qual o sujeito antecipa uma situação indeterminada de perigo e se prepara para ela. Nesse caso, o perigo não é conhecido, apesar de ser pressentido (Freud, 1920/2010c). Quando o afeto de angústia se liga a um objeto - logo, a algo conhecido -, fala-se em medo (ou temor). Por outro lado, o terror é compreendido como um negativo da angústia. Deflagra-se quando o sujeito é acometido por uma experiência de perigo para a qual não havia se preparado e sequer pressentido: "pode-se dizer, assim", reflete Freud (1917/2014a), "que o homem se protege do terror por meio da angústia" (p. 523).

Dentro desses referenciais, a angústia e o terror serão entendidos de acordo com o nível de energia investido previamente nos sistemas receptores de estímulo - que, vale lembrar, se localizam imediatamente próximos do Reizschutz e que são as primeiras camadas de substância excitável a receber os estímulos. No caso da angústia, o sobreinvestimento (Überbesetzung) de tais sistemas prepara o aparelho psíquico ao deixar de prontidão um determinado montante de energia parada (Freud, 1920/1940). Essa energia não é utilizada em nenhuma operação psíquica, de modo que seu acúmulo explica o afeto de angústia. Uma vez rompido o Reizschutz, essa energia disponível é imediatamente retirada da reserva e mobilizada para apoiar o contrainvestimento, representando uma "última linha da barreira contra estímulos" (Freud, 1920/2010c, p. 195).

Já na experiência de terror, os sistemas receptores não se encontram suficientemente investidos, por isso eles não dispõem de uma reserva de energia que possa ser rapidamente transferida para o trabalho de ligação. Como medida de emergência, o eu "tem de reduzir seu dispêndio [de energia] em muitos lugares simultaneamente, como um especulador que imobiliza seu dinheiro nos seus empreendimentos" (Freud, 1926/2014b, p. 19). Em outras palavras, o eu é forçado a submeter à inibição diversas atividades suas, possibilitando que a energia por elas utilizada seja redirecionada para a difícil tarefa na qual o aparelho psíquico agora se encontra absorvido.

Nesse sentido, a inibição se torna uma condição necessária para o aprovisionamento da energia exigida pelo contrainvestimento, uma vez que o aparelho psíquico não manteve em prontidão um estoque de energia para tanto. Note-se que, a partir dessas considerações, a inibição não é mais entendida como um efeito colateral de uma situação de empobrecimento de energia. Pelo contrário, ela é uma medida ativamente exercida pelo eu, que se vê coagido a contornar e solucionar o problema que o mobiliza. Em outras palavras, a inibição é uma ação. Uma ação exercida pelo eu contra si mesmo, cuja finalidade é limitar sua capacidade de agir para, assim, reestruturar o regime de consumo de energia a favor de uma tarefa psíquica prioritária - tarefa esta que, no caso do trauma, é a de contrainvestimento e ligação (Câmara, 2015).

A forma como se dá o mecanismo de retirada de energia de uma função do eu não é esclarecido por Freud, tampouco encontramos indicações claras a esse respeito ao longo de sua obra. Que uma ação necessite de energia para ser desempenhada é uma suposição necessária e antiga em seu discurso: no "Projeto de uma psicologia", um dos argumentos que o leva a postular que o aparelho neurônico não pode extinguir sua energia à zero, mas deixá-la em um nível tão baixo quanto possível, se baseia, justamente, em tal conjectura (Herzog, 2003). Trinta anos depois, em uma breve passagem de "O eu e o isso", essa mesma suposição é colocada de maneira sutil quando Freud versa sobre a importância funcional do eu no que se refere ao seu controle da motilidade: "em relação ao Id ele [o eu] se compara ao cavaleiro que deve pôr freios à força superior do cavalo, com a diferença de que o cavaleiro tenta fazê-lo com suas próprias forças, e o Eu, com forças emprestadas" (Freud, 1923/2011a, p. 31).

A força cedida ao eu para a regulação da ação é evidentemente fornecida pelo isso. Uma vez que a função do eu, responsável por tal regulação, é submetida à inibição pela mesma instância que a executa, a energia comumente empregada nela pode ser direcionada para a urgente tarefa de ligação. Quer dizer, uma vez que a inibição força o "desligamento" de uma função, a energia que era por ela utilizada fica, daí por diante, disponível para ser acrescentada ao trabalho exercido pelo contrainvestimento; ao mesmo tempo, o eu torna-se doravante incapaz (ou se vê dificultado) de realizar todo o repertório de ações conjugado a essa função que foi inibida (Câmara, 2015). Como, na situação de trauma, a exigência de consumo de energia é elevada, tem-se como consequência a inibição em nível generalizado das funções do eu, levando o sujeito a um sentimento de paralisia e esgotamento.

 

Especificidades da Inibição Econômica

Levando em conta o que foi exposto até aqui, consideramos legítima a proposta de designar o presente mecanismo de inibição como inibição econômica. A nosso ver, duas condições corroboram essa denominação: em primeiro lugar, a inibição é acionada em decorrência de um distúrbio de energia - mais especificamente, do empobrecimento de energia disponível no eu. Em segundo lugar, a finalidade dessa forma de inibição é a de precisamente disponibilizar, ainda que de maneira indireta, energia para a resolução do problema econômico em curso. Quer dizer, a inibição econômica é um procedimento alternativo e emergencial de remanejamento de distribuição de energia.

Conforme dito, dada a magnitude do trabalho que mobiliza o aparelho psíquico, é evidente que uma grande parcela de funções deve sofrer essa inibição - o que leva Freud justamente a designá-la como "inibição generalizada" (Freud, 1926/2014b). Ora, se consideramos problemática essa designação é porque pode haver a circunstância de o sujeito ser acometido por um processo de inibição que afeta de maneira generalizada as funções do eu, e que, não obstante, não é motivado por uma situação de empobrecimento de energia. Um exemplo é o sujeito obsessivo que se vê proibido de entrar em contato com alguma coisa e, devido a sua vocação ao deslocamento, passa a ser proibido de tocar em todas as coisas que se associam àquela primeira (Freud, 1913/2006b). A proibição se torna a tal ponto generalizada, que passa a colocar todo o seu mundo "sob um embargo da 'impossibilidade'", como bem expressa Freud em "Totem e tabu" (1913/2006b, p. 45). Nesse caso, a inibição que acomete o obsessivo não é relacionada diretamente ao empobrecimento de energia disponível, mas à necessidade de estabelecer um cordão sanitário entre ele e tudo aquilo que lhe é proibido de entrar em contato (o tabu do toque) (Freud, 1913/2006b, 1926/2014b). Assim, apesar de essa inibição possuir um efeito generalizado, ela está envolvida em um processo de defesa: em outros termos, o que está em jogo aí não é a inibição econômica, mas a "inibição específica" (ou "inibição dinâmica", segundo nossa proposta) (Câmara, 2015).

Em comparação a essa outra forma de inibição descrita por Freud, a qual é desencadeada na presença de angústia-sinal e mobilizada a fim de impedir o recrudescimento de um conflito psíquico e a instauração de um novo ato de recalcamento, a inibição econômica apresenta algumas especificidades importantes (Câmara, 2015). Em primeiro lugar, ela não é um processo de defesa per se, isto é, não opera em situações de conflito psíquico, mas tão somente em circunstâncias de súbito e massivo esvaziamento de energia disponível no eu. Tampouco a inibição econômica se relaciona com o recalque ou procura preservá-lo. Isto significa dizer que a inibição econômica não encerra atrás de si material analítico emperrado e oculto: o sentido que ela oferece à interpretação é genérico, posto não indicar muito mais que a existência de um trabalho psíquico extenuante em curso. Em outras palavras, não há um sentido que explique porque aquela função foi especificamente inibida. O único vislumbre que a inibição econômica oferece à interpretação - ou talvez ao tato do analista - é que um trabalho monumental absorve o eu, de forma que dificilmente alguma outra coisa importará ao sujeito (Câmara, 2015).

Por fim, tal tipo de inibição não se articula à angústia sinal, não sendo, desse modo, ativada quando da proximidade de uma situação de perigo. Seu desdobramento se dá, antes, em decorrência de uma situação de urgência, na qual a energia disponível no eu se encontra escassa. Nesse sentido, a inibição econômica não é uma medida de prevenção, mas de emergência. Ela não está voltada para a antecipação de um evento potencialmente futuro, mas é desencadeada por circunstâncias que ocorrem no presente imediato. A sua ação não está, enfim, condicionada ao sucesso da função antecipatória da angústia, mas precisamente no fracasso dessa função. Dessa forma, e à guisa de conclusão, acreditamos que a presença de uma dinâmica própria, bem como de suas especificidades, tornam a inibição econômica um conceito que pode auxiliar o analista na compreensão de certos processos que o analisando pode vir a manifestar (ou, supostamente, deixar de manifestar) na clínica cotidiana.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Leonardo Câmara
E-mail: lcpcamara@ufscar.br

Regina Herzog
E-mail: rherzog@globo.com

Recebido em: 09/08/2017
Revisado em: 02/08/2019
Aceito em: 20/08/2019
Publicado online: 06/02/2020

 

 

Nota sobre o artigo: Os autores receberam, para a elaboração deste artigo, auxílio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior (CAPES) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
1 Um exemplo simples: é esperado que uma lesão no hemisfério cerebral esquerdo provoque efeitos patológicos no lado inverso do corpo. Contudo, pacientes que supostamente sofreram lesões no hemisfério esquerdo apresentavam sintomas no mesmo lado esquerdo, colocando em cheque a possibilidade de se explicar a causa do sintoma em termos neurológicos.
2 Em um texto de Ferenczi publicado quatro anos antes, encontramos evidências de que Freud já considerava como um elemento importante na deflagração do trauma psíquico aquilo que viria a ser chamado de terror (Schreck). A este respeito, ver Ferenczi (1916/1992).
3 Este termo recebeu traduções distintas, como escudo protetor contra estímulos, proteção contra estímulos e pára-excitações (cf., respectivamente, Freud, 1920/2006c, 1920/2010c; Laplanche, 1987).
4 Ferenczi considerará esse procedimento um método e o designará com o termo utraquismo. Para mais informações, ver Câmara e Herzog (2014).

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