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Print version ISSN 2359-0769On-line version ISSN 2359-0777

Rev. Subj. vol.19 no.3 Fortaleza Sept./Dec. 2019

http://dx.doi.org/10.5020/23590777.rs.v19i3.e8001 

ESTUDOS TEÓRICOS

 

A fenomenologia do corpo no envelhecimento: diálogos entre Beauvoir e Merleau-Ponty

 

The phenomenology of the body in aging: dialogues between Beauvoir and Merleau-Ponty

 

La fenomenología del cuerpo en el envejecimiento: diálogos entre Beauvoir y Merleau-Ponty

 

La phénoménologie du corps dans le vieillissement dialogues entre Beauvoir et Merleau-Ponty

 

 

Rafaela de Campos DominguesI; Joanneliese de Lucas FreitasII

IPsicóloga pela Universidade Federal do Paraná
IIProfessora Associada da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Foi pesquisadora visitante (visiting research scholar) do Departamento de Antropologia da University of California Los Angeles (UCLA) em 2018. É Doutora em Psicologia e mestre em Psicologia do Desenvolvimento no contexto sociocultural pela Universidade de Brasília (UnB)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo tem o objetivo de construir uma reflexão fenomenológica acerca da corporeidade no envelhecimento por meio do diálogo das perspectivas de Beauvoir e Merleau-Ponty, partindo das obras A velhice (Beauvoir) e Fenomenologia da percepção (Merleau-Ponty). Recorreu-se, também, à novela de Beauvoir, Mal-entendido em Moscou, que ilustra as experiências de envelhecimento dos protagonistas. Beauvoir demonstra que o corpo é coadjuvante no desvelar da velhice, pois se torna objeto para o outro, delator de nosso envelhecimento. Essa perspectiva é permeada pela concepção sartreana de irrealizável, dada a impossibilidade de síntese do para-si e do em-si que constitui a existência. Contudo a filósofa ultrapassa essa perspectiva quando apresenta a experiência ambígua da senescência como um dos limites à liberdade. Beauvoir e Merleau-Ponty têm em comum a compreensão de que o corpo é condição para ser. Em diálogo com a filosofia de Merleau-Ponty, nota-se que, embora Beauvoir concorde com a reflexão sobre o corpo vivido como potência (je peux), sua perspectiva articula a ambiguidade do que um corpo pode e o que não pode. Assim, acedemos à conclusão sobre as restrições vividas, dadas não apenas pelo aspecto material do corpo que envelhece, mas especialmente pelas opressões sociais. Argumenta-se que Beauvoir abre uma dimensão ética ao pensar a velhice, adensando o problema do outro e de si, e da nossa relação com o estranho que há em nós mesmos. Nesse sentido, a obra de Beauvoir nos leva a indagar se estamos preparados para envelhecer e vivenciar nossa velhice, já que sempre a mantemos a distância, como uma estranha que desaba sobre nós.

Palavras-chave: velhice; existencialismo; corporeidade.


ABSTRACT

This article aims to build a phenomenological reflection on the embodiment in aging through the dialogue of Beauvoir and Merleau-Ponty's perspectives, starting from the works The Old Age (Beauvoir) and Phenomenology of Perception (Merleau-Ponty). We also used Beauvoir's novel, Misunderstanding in Moscow, which illustrates the aging experiences of the protagonists. Beauvoir demonstrates that the body is an adjunct in the unveiling of old age, because it becomes an object for the other, denouncing our aging. This perspective is permeated by the Sartrean conception of the unrealizable, given the impossibility of synthesizing the self and the self that constitutes existence. But the philosopher goes beyond this perspective when she presents the ambiguous experience of senescence as one of the limits to freedom. Beauvoir and Merleau-Ponty have in common the understanding that the body is a condition for being. In dialogue with Merleau-Ponty's philosophy, it is noted that although Beauvoir agrees with the reflection on the body lived as a power (je peux), his perspective articulates the ambiguity of what a body can and cannot. Thus, we conclude the lived constraints, given not only by the material aspect of the aging body but especially by social oppression. It is argued that Beauvoir opens an ethical dimension by thinking of old age, deepening the problem of the other and oneself, and our relationship with the stranger in ourselves. In this sense, Beauvoir's work leads us to wonder if we are prepared to grow old and experience our old age, since we always keep it at a distance, like a stranger that falls on us.

Keywords: old age; existentialism; corporeality.


RESUMEN

Este trabajo tiene el objetivo de construir una reflexión fenomenológica sobre la corporeidad en el envejecimiento por medio del diálogo de las perspectivas de Beauvoir y Merleau-Ponty, desde las obras La vejez (Beauvoir) y Fenomenología de la percepción (Merleau- Ponty). También se utilizó la novela de Beauvoir, Malentendido en Moscú, que ilustra las experiencias de envejecimiento de los protagonistas. Beauvoir demuestra que el cuerpo es secundario en el descubrimiento de la vejez, pues tornase objeto para el otro, delator de nuestro envejecimiento. Esta perspectiva es impregnada por la concepción sartreana de irrealizable, debido a la imposibilidad de síntesis del para-uno y del en-uno que constituye la existencia. Pero la filosofía supera esa perspectiva cuando presenta la experiencia ambigua de la senescencia como uno de los límites de la libertad. Beauvoir y Merleau-Ponty tienen en común la comprensión de que el cuerpo es condición para ser. En diálogo con la filosofía de Merleau-Ponty, se percibe que, aunque Beauvoir esté de acuerdo con la reflexión sobre el cuerpo vivido como potencia (je peux), su perspectiva articula la ambigüedad de lo que un cuerpo puede y lo que no puede. De este modo, llegamos a la conclusión sobre las restricciones vividas, dadas no solo por el aspecto material de cuerpo que envejece, pero especialmente por las opresiones sociales. Se argumenta que Beauvoir abre una dimensión ética al pensar en la vejez, pesando el problema del otro y de uno, y de nuestra relación con el raro que hay en nosotros. En este sentido, la obra de Beauvoir nos lleva a preguntar si estamos listos para envejecer y vivir nuestra vejez, ya que la mantenemos siempre lejos, como una vía que se derrumba sobre nosotros.

Palabras clave: vejez; existencialismo; corporeidad.


RÉSUMÉ

Cet article vise à construire une réflexion phénoménologique sur le vieillissement corporel à partir du dialogue des perspectives de Beauvoir et de Merleau-Ponty, au moyend des travaux Old Age (Beauvoir) et Phénoménologie de la Perception (Merleau-Ponty). On a aussi utilisé le roman «Incompréhension à Moscou» de Beauvoir, qui illustre les expériences de vieillissement des protagonistes. Beauvoir démontre que le corps a un rôle de soutien au dévoilement de la vieillesse, car il devient un objet pour l'autre, c'est-à-dire, le dénonciateur de notre vieillissement. Cette conception est imprégnée par la conception sartrienne de l'irréalisable, à cause de l'impossibilité de synthétiser le moi et le moi qui constitue l'existence. Cependant, la philosophe dépasse cette perspective lorsqu'elle présente l'expérience ambiguë de la sénescence comme l'une des limites à la liberté. Beauvoir et Merleau-Ponty ont en commun la compréhension dont le corps est une condition pour y être. En dialoguant avec la philosophie de Merleau-Ponty, il est noté que bien que Beauvoir soit d'accord avec la réflexion sur le corps vécu comme un pouvoir («je peux» ), sa perspective articule l'ambiguïté de ce qu'un corps peut et de ce qu'il ne peut pas. Ainsi, on peut conclure sur les contraintes rencontrées, données non seulement par l'aspect matériel du corps vieillissant, mais surtout par les oppressions sociales. On comprend que Beauvoir ouvre une dimension éthique lorsqu'elle pense à la vieillesse, en ajoutant le problème de l'autre et de soi-même et de notre relation avec l'étranger qu'il y a en nous. En ce sens, le travail de Beauvoir nous amène à la demande: «sommes-nous prêts à vieillir et à faire l'expérience de notre vieil âge, puisque nous le tenons toujours à distance, comme un étranger qui tombe sur nous?»..

Mots-clés: vieillesse ; existentialisme ; corporéité.


 

 

Já na década de 1970, Simone de Beauvoir denunciou os tabus atribuídos à velhice. Ao escrever a obra A velhice (1970), a filósofa buscou romper com a conspiração de silêncio que circundava os velhos não só de sua época, mas também os de outrora, e que ainda circunda os velhos de hoje. Esta obra está dividida em dois volumes. No primeiro, intitulado A Realidade Incômoda, a autora faz um resgate histórico sobre a condição do velho em diferentes sociedades, buscando contribuições da biologia, antropologia, história e sociologia para a compreensão da velhice, que neste volume é apresentada como um objeto para o pensar. Como o próprio subtítulo já denota, a velhice é tratada como vergonhosa e indecente ao longo de toda história e, a despeito de ser inerente à condição humana, é constantemente tomada na impessoalidade, ou seja, vivemos como se envelhecer somente dissesse respeito ao outro. A velhice é, denuncia Beauvoir, uma realidade tão incômoda a ponto de não nos reconhecermos na pessoa velha.

A autora destaca a indefinição do início da velhice, pois ela varia de acordo com a época e o local, além de estar fortemente atrelada às condições materiais da sociedade. No Brasil, a definição de velhice parte de uma demarcação cronológica. De acordo com a Política Nacional do Idoso (Lei nº 8.842, 1994) e com o Estatuto do Idoso (Lei n° 10.741, 2003), é considerada idosa a pessoa com 60 anos ou mais. O segmento populacional brasileiro que mais aumenta é o de idosos, devendo atingir 73,5 milhões em 2060, o correspondente a 33,7% da população, com destaque para a feminização do envelhecimento, tendo sido observada uma crescente concentração de mulheres nesse grupo etário (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 2015). O crescimento da população idosa, entretanto, não é um fenômeno exclusivo do Brasil, sendo uma tendência mundial. Nunca antes na história da humanidade se viveu tanto e pela primeira vez é possível ter uma expectativa de vida para além dos 60 anos (Organização Mundial da Saúde [OMS], 2015). Assim, o crescente envelhecimento populacional aponta para a necessidade de se colocar em pauta a velhice e a condição do velho em nossa sociedade.

Segundo Beauvoir (1970), o fenômeno da velhice abarca três dimensões, todas interdependentes: a biológica, a psicológica e a existencial. É a essa dimensão existencial que é dado enfoque no segundo volume, intitulado As Relações com o Mundo. Nesse volume, a despeito da diversidade do fenômeno e de suas características trans-históricas, Beauvoir busca elucidar o que é mais próprio do envelhecer, assim como compreender como o velho vive a sua velhice, independente de gênero. Para isso, a autora realiza uma minuciosa análise fenomenológica que descreve o avanço dos anos e as novas vivências do corpo e sua imagem, engendradas pelo tempo e pela história na sua relação com os outros e com o mundo, assumindo, desta feita, o ponto de vista do velho como sujeito que experiencia o envelhecer. Embora a autora não abandone o seu viés de gênero, podemos depreender que sua tese aqui é a de que mulheres e idosos compartilham o fato de serem percebidos socialmente como objetos. Além disso, em sua análise, ambos têm seu corpo vivido como experiência imediata da impossibilidade, sendo que, entre os idosos, essa experiência é limitada não apenas pelas opressões e determinações sociais e culturais, mas também se mostra pelo fato de na senectude estarem tocados pela irreversibilidade do tempo (Cataldi, 2001). Assim, Beauvoir realiza uma fenomenologia do envelhecer a partir da profunda reflexão de sua duplicidade: o do ser tomado como objeto (volume I) e o da experiência subjetiva de ser velho (volume II).

Dada a complexidade de se pensar fenomenologicamente a velhice, este artigo tem como tema central uma de suas dimensões: a corporeidade atrelada à senescência. Evidentemente, frente a tal complexidade, não é possível abordá-la somente a partir desse ponto, sendo imprescindível tatear a temporalidade e a alteridade no que diz respeito ao corpo no envelhecimento. De outro modo, estaríamos dividindo e alienando a própria experiência em sua totalidade. Segundo Miller (2001), o envelhecimento "é de particular interesse para a fenomenologia do corpo porque envelhecer, obviamente, é um processo que todos os seres humanos experienciam. Como criaturas encarnadas, todos envelhecemos" (p. 129). Desse modo, uma fenomenologia do envelhecimento é sempre uma fenomenologia do corpo (Blessmann, 2004; Miller, 2001), sendo a corporeidade, desse ponto de vista, uma espécie de universal.

Desse modo, este artigo tem como objetivo construir uma reflexão fenomenológica sobre a questão do corpo no envelhecimento, tendo como ponto de partida o segundo volume da obra A velhice de Simone de Beauvoir (1970), As Relações com o Mundo, que será tomado em diálogo com Maurice Merleau-Ponty (1999), especialmente no que concerne ao tema da corporeidade em seu livro Fenomenologia da Percepção. Tal como defendido pela literatura (Cataldi, 2001; Heinämaa, 2014; McWeeny, 2017; Miller, 2001), entendemos que as perspectivas de Merleau-Ponty e Beauvoir sobre o corpo e a corporeidade se constituem como continuidade à perspectiva husserliana de corpo e dialogam entre si, caminhando a partir de um mesmo solo em suas análises fenomenológicas, a saber: o fundamento de que o corpo é a base para Ser (Cataldi, 2001). Além das obras citadas, recorremos à novela de Beauvoir (2016), Mal-entendido em Moscou, que ilustra as experiências de envelhecimento dos protagonistas. Nessa novela, a escritora narra a viagem até Moscou de um casal de aposentados, Nicole e André, para visitar Macha, filha do primeiro matrimônio de André. Beauvoir se debruça sobre a condição de sexagenários das personagens e nos apresenta o drama de se perceber adentrando essa fase da vida que chega sem pedir licença. Ao escrever a novela, a autora dá vez às perspectivas feminina e masculina acerca do envelhecer, sempre em contraste com a presença jovial de Macha e de outros jovens que figuram nos cenários da trama.

 

Conservar-se Jovem: Afastar a Velhice do Corpo

Em sua obra A velhice, Beauvoir traz diversas vezes experiências pessoais para ilustrar o processo de envelhecimento e as atribuições que o delineiam. Acerca do horror ao ser denominada como uma velha, Beauvoir (1970) relata: "Aos 50 anos, estremeci ao ouvir uma estudante americana repetir a exclamação de uma colega: 'Mas, então, Simone de Beauvoir é uma velha!'. A tradição sobrecarregou esta palavra de um sentido pejorativo e ela soa como um insulto" (p. 12).

De acordo com Sibilia (2011), a velhice assumiu novos tabus, os quais acabaram por converter essa etapa da vida em um estado corporal que remete à vergonha, que deve ser ocultado, e assim, nos é negado o direito de ser velho. As rugas evidenciam o fracasso em permanecer jovem e tornam-se condenáveis e indecentes. Tampouco a palavra velhice é permitida. Frequentemente encontramos termos alternativos para denotá-la, como "terceira idade" ou, ainda, "melhor idade" (Neri, 2013; Sibilia, 2011).

Nem mesmo Simone de Beauvoir escapou do que Sibilia (2011) chama de moral da pele lisa. Em 2008, a revista Le Nouvel Observateur, em comemoração ao centenário do nascimento da filósofa, publicou uma foto sua tirada em 1952, durante uma visita ao amante americano, na qual ela aparece com as costas nuas, saindo do banho. A foto retirada sem seu consentimento causou inquietação e indignação, pois "o foco da tormenta apontou para o procedimento técnico a que fora submetida a imagem em questão: certos traços do corpo fotografado tinham sido retocados com ferramentas digitais" (Sibilia, 2011, p. 100). Na época em que a foto foi tirada, Beauvoir tinha 40 anos. Assim, pode-se observar que a menor evidência da senescência que ronda nosso corpo deve ser ocultada, tirada do jogo da vida.

A negação da velhice não está presente somente no campo midiático. Esse afastamento também contorna o modo como recebemos a sua chegada: com espanto e com horror, devido especialmente ao modo pejorativo que a velhice é entendida socialmente. Nunca nos vemos como velhos. A velhice é vivida na juventude como uma realidade anunciada, mas nunca presente.

A rejeição da velhice é vivida pelos personagens da novela em diversos momentos. Quando André pensa sobre sua condição: "mas o que nos resta em nossa velhice? Ele tocou a gengiva. Pouco sensível. Mas ainda assim sensível. Se o dentista não conseguisse salvar o dente que sustentava sua ponte, a única solução seria uma dentadura: que horror!" (Beauvoir, 2016, p. 70). E, no seguinte trecho:

E ninguém tinha a mesma idade que os dois. Como todos eram jovens! Ele fora. . . . por um instante ele pensou: é um sonho, vou acordar, pego de volta meu corpo, tenho vinte anos. Não. Um adulto, homem de idade, quase um idoso. Ele os olhava com um espanto invejoso: por que não sou mais um deles? Como isso pôde acontecer comigo? (p. 87)

É interessante o pensamento de André quando rodeado por diversos jovens, que lhe lançam à sua condição de velho: deseja acordar do pesadelo que é a velhice e recuperar o corpo que verdadeiramente lhe pertence, aquele de quando era jovem, o corpo de seus 20 anos! Por que não aceitar essa corporeidade envelhecida? Por que é horrenda a possibilidade de substituição de alguns dentes por uma prótese? Porque, em nossa sociedade, envelhecer é feio, é obsceno (Sibilia, 2011).

Enquanto observa André, Nicole percebe traços senis que lhe indignam, não só a sua velhice causa repulsa, mas também a de seu marido:

Havia algo de senil na maneira como André tentava conversar em russo com Macha . . . às vezes André tocava na bochecha com um medo e um ar preocupado. Nicole tinha vontade de gritar: "Não somos tão velhos assim, ainda não, não!". (Beauvoir, 2016, p. 113)

Em outro momento, Nicole expõe o contraste entre a juventude e a velhice, sendo a primeira tida como positiva, enquanto a segunda é adjetivada negativamente:

Diziam isto constantemente: a senhora tem um ar jovem, vocês são jovens. Elogios ambíguos que anunciam futuros penosos. Manter a vitalidade, a alegria e a presença de espírito é continuar jovem. Logo, são próprios da velhice a rotina, a melancolia, a caduquice. Dizem: a velhice não existe, não é nada; ou então: é muito bonita, muito tocante; mas, quando a encontram, fantasiam-na em palavras mentirosas. (Beauvoir, 2016, p. 58)

A autora observa que a reação das pessoas quando não se resignam à condição imposta, tanto pelo tempo transcorrido quanto pelos outros, é a de que não basta apenas viver, há que se lutar contra a velhice. Assim, "esta deterioração é fatal, ninguém lhe escapa. Muitos fatores, entretanto, atuam para torná-la mais lenta ou mais acelerada, parcial ou total e, também, para que sua influência seja mais ou menos acentuada no conjunto da existência" (Beauvoir, 2016, p. 29). O ideal de perfeição do corpo, de jovialidade, representados pelas mais diversas mídias ao tomar o corpo do velho como objeto, institucionaliza os diferentes discursos sobre o corpo e, como bem denuncia Beauvoir, nos afasta da possibilidade de viver a velhice. Como afirma Debert (2011), "é a materialidade do corpo envelhecido que se transforma em norma, pela qual o corpo vivido é julgado e suas possibilidades são restringidas" (p. 80). Não é permitido ao idoso viver a sua senescência de acordo com sua própria experiência, tampouco é possível atingir as atribuições que lhe vêm de fora. Não nos reconhecemos em nós mesmos, não nos reconhecemos na pessoa velha, escapamos de nós e estranhamos nosso próprio corpo.

Na concepção beauvoiriana sobre o envelhecimento, o outro aparece como delator dos anos transcorridos, evidentes nesse corpo-objeto: "como em nós, o velho é o outro, a revelação de nossa idade vem, normalmente dos outros" (Beauvoir, 1970, p. 12). Quando a filósofa afirma que "só nos detemos diante de nosso reflexo no espelho para aí descobrir nossa idade quando já temos motivos para interrogá-lo" (Beauvoir, 1970, p. 12), pode-se depreender daí que a formulação desses motivos já vem impregnada por uma concepção que não advém, fundamentalmente, da ordem da experiência pré-reflexiva, de um corpo-sujeito, mas sim de uma denúncia terceira. Isso é evidenciado em um exemplo em que a autora apresenta o relato do jornalista francês Léautaud acerca de seu envelhecimento:

Isto o torna ainda mais irritado quando as reações dos outros o fazem tomar pé na realidade. Tinha 70 anos quando, no metrô, ao se pôr em movimento a composição, uma jovem perdeu o equilíbrio e exclamou: "Oh! Desculpe, vovô! Quase caí em cima do senhor!". Escreveu enfurecido: "Ora, bolas! Será que minha idade está assim tão marcada em meu rosto? Como nos enxergamos mal a nós mesmos!" (Beauvoir, 1970, p. 74).

Ao tocar nessas questões, Beauvoir (1970) dimensiona a corporeidade e a velhice como problema político e eminentemente ético, pois, ao denunciar a marginalização sofrida pelo idoso em nossa sociedade, coloca em relevo o seu caráter de alteridade. E ela o faz por meio de uma fenomenologia do corpo. Isto é, como alteridade, o idoso passa a figurar como um problema ético: como lidamos com o que consideramos diverso? Qual o lugar do diferente? E ainda: como eu posso me situar no lugar do outro, ou melhor, em um lugar de outro eu mesmo, uma vez que, certamente, como corporeidade, envelheço? Com essa perspectiva, Beauvoir não está mais simplesmente afirmando com Sartre que o outro é aquele que me objetifica, mas dimensionando e adensando o problema quando pensa em experiências concretas como gênero e velhice, alcançando a descrição de uma das facetas do ser-velho em nossa sociedade. Aceitar o velho implica aceitar a própria velhice. Aceitar a própria velhice implica aceitar o velho como sujeito, com todas suas diferenças e peculiaridades, mesmo que difíceis e desafiadoras do status quo.

 

O Envelhecimento e o Estranhamento de Si

A linha histórica traçada por Beauvoir em sua obra A velhice (1970) mostra a ambivalência do ser-velho que, segundo a filósofa, transita entre a sabedoria e a decrepitude. A autora demonstra a forma estereotipada pela qual a velhice é tratada na maioria das sociedades ocidentais, como entender que a brancura dos cabelos está intimamente associada à neve, à frieza do inverno, em contraposição ao calor da juventude. Beauvoir atribui esses estereótipos, em parte, às modificações biológicas ocorridas no organismo dos velhos e, em parte, à interpretação social dessas transformações. Essa visão negativa sobre a velhice ainda persiste nos dias atuais, uma vez que a própria palavra "velhice" carrega consigo uma importante conotação negativa, comumente associada ao declínio, à perda biológica, doença e morte (Argimon, Lindern, Ecker, Pizzinato, & Torres, 2011; Caradec, 2016; OMS, 2015; Torres, Camargo, Bousfield, & Silva, 2015).

A velhice é certa - desde que não sejamos afligidos por um fim precoce - e configura, juntamente com a morte, uma certeza sobre a vida. As involuções sofridas pelo organismo humano devido à passagem do tempo constituem uma verdade universal e inevitável, pois dado certo número de anos, a atividade dos sujeitos é reduzida e, não raro, sua capacidade cognitiva é prejudicada, além de mudar o modo como o sujeito coloca-se no mundo (Beauvoir, 1970). Nesse sentido, como aponta a autora, mudar configura a lei da vida. Portanto, não cabe aqui negar as transformações biológicas de nosso corpo, visto que estamos em um permanente processo de transformação desde a hora de nossa concepção, mas compreender como essas mudanças são vividas, especialmente durante a senescência.

Para a Beauvoir (1970), a velhice é vivida, sobretudo, no corpo situado no mundo. Como afirma, toda a condição humana pode ser encarada de dois modos: em sua exterioridade, pela forma como se apresenta ao outro em sua objetividade, e em sua interioridade, de acordo com o modo pelo qual é assumida subjetivamente. Assim, "para os demais, o velho constitui objeto de um conhecimento; para si mesmo ele possui de seu próprio estado, uma experiência vivida" (Beauvoir, 1970, p. 14).

Beauvoir (1970) enfatiza a complexidade da velhice, em suas diversas facetas: biológica, psicológica, cultural e existencial. A autora afirma não ser possível conceber aspectos fisiológicos e psicológicos de forma separada, uma vez que são interdependentes e, nesse sentido, alega que a velhice pertence ao domínio do psicossomático. Entretanto, o psíquico, de acordo com Beauvoir (1970), só pode ser compreendido por meio da situação existencial, a qual "tem repercussões no organismo e vice-versa: o relacionamento com o tempo é sentido de maneira diferente, segundo esteja o corpo mais ou menos alquebrado" (p. 13). Sabermo-nos com 60 anos, por exemplo, é anterior à experiência dos 60 anos, dos sinais dados por nosso corpo envelhecido e, nesse sentido, "é preciso já estar consciente da própria idade para decifrá-la no corpo" (Beauvoir, 1970, p. 9).

Para a autora, não é propriamente - ou isoladamente - o corpo que nos revela a chegada da velhice. Se assim o fosse, tratar-se-ia de um determinismo biológico, mas uma vez que sabemos que ela nos habita, é uma certa inquietação que nos aflige que marca essa chegada. Porém isso não é suficiente. Como compreendemos, enfim, que a velhice está à espreita? O que vejo quando olho no espelho? Uma imagem perturbadora de mim que coincide com as expectativas e interpretações sociais sobre o que é ser velho, mas não necessariamente coincide com a minha experiência subjetiva. Enquanto somos ser-para-outro, até mesmo a inquietação que advém do contraste com a nossa imagem é contornada pelo olhar de outrem. Essa dupla experiência marca uma clivagem na vivência do idoso, entre o olhar externo e a experiência subjetiva, entre o em-si e o para-si, colocando em relevo a pergunta: como posso ter me tornado outro(a) enquanto continuo sendo eu mesmo(a)? (Miller, 2001). Como veremos, a corporeidade, assim como o modo pelo qual Beauvoir articula para-si e em-si, nos permite revelar essa experiência ambígua, marcadamente vivida na senescência. De fato, o aspecto decisivo de sua compreensão fenomenológica da corporeidade não é apenas o destaque do olhar de denúncia da própria velhice pelo outro, mas uma tensão disruptiva entre a experiência vivida de si e a perspectiva objetificante do outro e suas imagens: envelhecer é vacilar na ambígua experiência entre o para-si e o em-si, diante da temporalidade que nos atravessa.

 

O Caráter Irrealizável da Velhice: A Descoberta de Si como Outro

Alinhada ao pensamento sartreano, Beauvoir (1970) concebe a velhice como um irrealizável, não sendo de imediato acessível ao velho que se entende ainda jovem. Para Sartre (2015):

Minha beleza, minha feiura ou a insignificância de minhas feições são captadas pelo outro em sua plena concretitude, e é esta concretitude que a linguagem do outro irá me indicar: a ela dirigir-me-ei no vazio. Portanto, de modo algum se trata de uma abstração, mas sim de um conjunto de estruturas, algumas das quais são abstratas, mas cuja totalidade é um concreto absoluto; um conjunto que, simplesmente, me é indicado como algo que me escapa por princípio. Tal conjunto, com efeito, é aquilo que sou; mas como observamos no início de nossa segunda parte, o Para-si não pode ser nada. Para-mim, eu não sou professor ou garçom, assim como tampouco sou bonito ou feio, judeu ou ariano, espiritual, vulgar ou distinto. Vamos chamar de irrealizáveis tais características. (p. 646).

Segundo esse fragmento, aquilo que é irrealizável, fala da dimensão do que sou que se apresenta aos olhos do outro, mas que é inalcançável para mim mesmo: eu como objeto. Para o pensamento sartreano, a elaboração de um conceito objetivo sobre mim só é possível por meio do outro e isso também é aplicado ao conhecimento que tenho de meu corpo (Perdigão, 1995). Ou nas palavras de Dastur (2011):

É uma experiência passiva, e não ativa, a experiência de se tornar um objeto para o outro. Mas ao me tornar um objeto para o outro, permaneço sujeito, porque permaneço consciente de ser visto pelo outro. Eu estou experimentando meu tornar-se um objeto para o outro através do fato de que ele está olhando para mim, de modo que o meu tornar-se um objeto permanece minha própria experiência. (p. 168).

Eu sou captado pelo outro como coisa situada no mundo exterior e, justamente por isso, é uma apreensão de mim que me escapa, visto que não posso conceber meu corpo como fora de mim, nem posso conceber a mim como um em-si, pois eu sou meu corpo. Dessa forma, de acordo com Sartre (2015), o irrealizável apresenta-se como um limite dado aprioristicamente e, assim, o outro assume um papel que limita as minhas possibilidades, me contorna e faz de mim coisa, algo dado, acabado e finito, sedimenta a minha totalização-em-curso.

O outro me define, me vê sob a égide do em-si, que não posso realizar, visto que o para-si é o inacabamento, o que não é, mas que pode vir-a-ser. Em outras palavras, o para-si é abertura para o mundo e se dá sempre como movimento em sua direção. É nesse sentido que Beauvoir (1970) afirma que não podemos ter uma experiência interior completa da velhice, pois a concepção que tenho de minha própria velhice - ou a experiência inacabada de minha jovialidade - é sempre desafiada pelo olhar objetificador do outro. Essa experiência, contudo, está intimamente vinculada ao envelhecimento do corpo e à sua inevitável deterioração. Como aponta Beauvoir (1970): "devemos assumir uma realidade que é inegavelmente nós mesmos embora nos atinja de fora e permaneça para nós inatingível" (p. 15). E, por assim dizer, é contraditória à experiência que tenho de mim - a qual me garante certa permanência - e a evidência objetiva de minha metamorfose que, uma vez concebida em exterioridade, me é fornecida por intermédio do olhar do outro.

Visto isso, destaca-se a importância da alteridade para o desvelar não apenas da velhice, mas da própria experiência de ser-velho. Para Beauvoir, a alteridade instaura uma duplicidade entre a experiência subjetiva de uma constância identitária de si experimentada pelo idoso, e a perspectiva objetiva do outro sobre seu declínio (Beauvoir, 1970; Miller, 2001). É aqui que percebemos uma perspectiva que se aproxima daquela de Merleau-Ponty (1999): ambos entendem o corpo como transcendente para o sujeito e objeto imanente para o outro. Essa é uma compreensão que retira o envelhecer do âmbito individual e destaca o fato de que se tornar um velho interfere diretamente com as conexões habituais vividas no mundo e com suas apreensões. A diferença é que, para Beauvoir, o outro se me apresenta no mundo, enquanto que, para Merleau-Ponty, o outro é abertura de mundo, mas se apresenta na própria experiência de si.

Esse confronto com o outro, que é revelador da senescência, é situado no mundo e se encontra no âmago da experiência pré-reflexiva que o velho tem de si, vacilando entre história e atualidade. Tornar-se velho interfere na conexão direta com o mundo e sua apreensão. Esse confronto é claramente vivido por Nicole quando, ao chegar de viagem, Macha pede para que ela lhe entregue a bolsa: "Isso era normal também. Mas, quando um homem leva suas malas, é porque você é uma mulher; se é uma mulher quem as leva, é porque ela é mais jovem que você, e você se sente uma idosa" (Beauvoir, 2016, p. 15). Ou ainda:

. . . Macha dizia: a senhora é jovem, mas pegou Nicole pelo braço. No fundo, era por causa dela que, desde a chegada, Nicole sentia o peso de sua idade. Dava-se conta de que conservava a imagem que tinha de si mesma aos quarenta anos: ela se reconhecia nesta jovem e vigorosa mulher; principalmente porque Macha era cheia de experiências e autoridade, tão madura quanto Nicole: duas semelhantes. E depois, de repente, um gesto, uma inflexão de voz ou uma atenção lhe lembravam de uma diferença de vinte anos entre as duas - que estava com sessenta anos. (Beauvoir, 1970, pp. 58-59).

A protagonista se percebia como uma mulher de 40 anos mesmo já tendo vivido por seis décadas: a despeito da metamorfose de seu corpo, vivia como se tivesse escapado das garras do tempo. A presença jovem de Macha e o modo pelo qual trata Nicole, ainda que com zelo e cuidado despendidos aos velhos, já que estes são tidos como seres frágeis, sinaliza que a protagonista já está envolta pelos braços da velhice, e mais: transforma suas relações.

A autora é enfática ao falar sobre o status do idoso em nossa sociedade, uma vez que designa-se o velho por meio dos costumes, das atitudes daqueles que o cercam ou mesmo pelo próprio vocabulário e, então, ele se vê convocado a assumir essas caracterizações, o que pode ser feito de várias maneiras, contudo nenhuma delas coincidirá com o que é vivido por ele. O outro coloca em xeque a percepção que tenho de mim e me convoca a um novo lugar. Há um momento na novela de Beauvoir que é descrito o dia em que esse embate fez com que, de certa maneira, Nicole perdesse seu corpo tal como idealizado:

Os flocos brancos voltejavam em torno de Nicole, entravam em seu nariz, em sua boca, grudavam nos seus cabelos, deixavam-na atordoada. E voltejavam no interior da biblioteca, prendendo-se aos seus cabelos nesta tarde em que ela havia, de certa forma, dito adeus ao seu corpo. Antes, percebera alguns sinais. Nos espelhos e nas fotografias seu reflexo havia perdido o frescor: mas ela ainda se reconhecia. Quando conversava com amigos, eles eram homens e ela se sentia mulher. E então aquele rapaz desconhecido - tão lindo - chegara com André; ele a cumprimentou com um aperto de mão em uma cortesia distraída, e algo mudou. Para Nicole, ele era um macho, jovem atraente; para ele, ela era tão assexuada quanto uma velha de oitenta anos. Nunca mais se recuperou daquele olhar; havia parado de coincidir com seu corpo: era um despojo estrangeiro, uma fantasia desoladora. (Beauvoir, 2016, p. 72)

O encontro com o outro me interpela acerca do que eu sou e pode me levar a uma crise de identidade: passamos a nos sentirmos velhos por meio dos outros, sem mesmo, necessariamente, termos experimentado intensas modificações no corpo, pois "interiormente ele (o velho) não adere ao rótulo que lhe aplicam: não sabe mais quem é" (Beauvoir, 1970, p. 17). Por meio das situações vividas pela protagonista, pode-se firmar o caráter irrealizável da velhice: Nicole, sexagenária, que ao ser tratada diversas vezes como tal - segundo a concepção social acerca da velhice -, vive seu corpo como um estrangeiro, visto não encontrar nele aquilo que lhe é designado pelo outro, não sendo capaz de realizar essa velhice. Nicole não se vê como uma velha. Ela vê a si mesma como sempre se percebeu ao longo da vida, sem graves modificações, como a Nicole de 40 anos, e não descobre em si mesma as características que são normalmente atribuídas às pessoas idosas. Há aqui um descompasso entre a experiência da protagonista e a sua objetividade corporal, denunciada por Macha e por um amigo de André. É justamente nesse ponto que a sua velhice se faz irrealizável.

Perdigão (1995), em uma nota de rodapé, apresenta a fala de Sartre em sua última entrevista, na qual afirma: "Não sinto minha velhice. A velhice é uma realidade minha que os outros sentem. Os outros é que são a minha velhice" (p. 144). Partindo dessa reflexão sobre o caráter irrealizável da velhice é que podemos afirmar que em nós, o velho é o outro, mas Simone vai mais longe: "em mim, o idoso é o outro, isto é, aquele que sou para os outros: e este outro sou eu" (Beauvoir, 1970, p. 8). O outro está em mim, esse estranho sou eu mesmo e aceitá-lo é em última instância, aceitar-me. Fica claro aqui que o pensamento sartreano permeia a concepção de Beauvoir sobre a velhice, entretanto sua perspectiva sobre o corpo e a velhice e sua fenomenologia estão além da concepção sartreana, como já denotado, não podendo ela ser entendida como sua mera seguidora. Outro aspecto que Beauvoir avança diz respeito à possibilidade de compreender, por meio do envelhecer e sua temporalidade, a facticidade que no envelhecimento se contrapõe à liberdade do para-si, desafiando-a. E não é apenas de Sartre que a autora se diferencia. Embora dê continuidade ao estudo da corporeidade iniciado em Husserl e continuado por Merleau-Ponty, nota-se que, em relação ao primeiro, ela retira o problema do campo epistemológico, colocando-o no plano ético, da alteridade, de nossa conexão e interferências mútuas e, com relação ao segundo, se diferencia inserindo a análise do corpo vivido de forma radical no campo social, enfatizando não o que pode um corpo, mas o que não pode.

 

Corpo Situado: O Tempo e o Outro no Envelhecimento

Em um primeiro momento, de acordo com o modo como são estabelecidas culturalmente as fases da vida, é compreensível contemplar a velhice como um somatório, uma sucessão das experiências passadas até o ponto que se encontra o idoso. Contudo, alerta-nos Beauvoir (1970), a despeito dessa compreensão, a velhice não constitui uma soma da vida. De acordo com a filósofa, uma vez existência, somos tempo. Em suas palavras: "existir consiste em temporalizar" (Beauvoir, 1970, p. 98).

O tempo aparece na velhice delineado por duas faces: uma delas se mostra como um horizonte de infinitas possibilidades, ao passo que a outra o limita, mostrando-lhe a face da finitude que se aproxima. Assim, "num só gesto, o tempo nos oferece e nos arrebata o mundo" (Beauvoir, 1970, p. 120). A que deve ser atribuída essa face arrebatadora do tempo? Da infância à adultez, encontramo-nos voltados para o futuro e, assim, vamos deslizando pelos dias, como afirma Beauvoir. Dessa forma, nos perdemos no mar da temporalidade e nos banhamos nas águas da eternidade, uma vez que encontramos à nossa frente todo um oceano de porvir. Assim:

A diferença radical entre a óptica do velho e a da criança ou do adolescente está na descoberta feita pelo primeiro de sua finitude, ignorada no começo da vida: naquela época, ele avistava a sua frente possibilidades tão múltiplas e tão vagas que estas chegavam a lhe afigurar ilimitadas: o futuro para onde as projetava dilatava-se até o infinito para as escolher. (Beauvoir, 1970, p. 116)

Desse modo, para a autora, liberdade e facticidade se articulam na velhice: o estreitamento do porvir, fenomenologicamente evidente neste corpo situado no mundo, a facticidade restringindo a liberdade e anunciando a finitude. A constrição do tempo aparece na seguinte reflexão de Nicole: "A rapidez com que os anos se passaram era angustiante. Quantas vezes ainda teria três anos para viver?" (Beauvoir, 2016, p. 22). André também se angustia ao pensar sobre o decorrer de seus anos: "E eis que a vida se fechava ao seu redor; nem o passado nem o futuro lhe ofereciam mais um álibi. [...] O espanto é se ver definido, acabado, feito" (p. 36). Mas o que quer dizer acabado e feito nessa passagem? A autora existencialista afirma que, além da vivência do estreitamento do porvir, para o velho - que possui poucos anos para viver - já não há tempo para se engajar em novos projetos e continuar tecendo a trama de sua vida. O velho vê-se, então, cristalizado pelo seu passado, acabado e feito, desprovido de um horizonte, sem ter a mesma oportunidade pertencente aos jovens: a de refazer sua existência (Beauvoir, 1970). Envelhecer é um dos limites à liberdade mais importantes, de uma forma que tal como revelada por Beauvoir, segundo Miller (2001), Sartre jamais imaginara. De acordo com interpretação de Miller, Beauvoir ultrapassa as contribuições sartreanas especialmente em dois pontos: primeiro, combinando o em-si e o para-si de um modo particularmente claro e, segundo, identificando um desafio à transcendência do para-si pela facticidade do envelhecimento, apontando certas "resistências" à liberdade. O corpo-objeto, à medida que envelhece, sempre nos escapa, pois permanece enquanto um passado que toca o presente e ofusca o corpo envelhecido, vivido, o qual pode ser atualizado ao ser posto em questão por intermédio de outrem, não como vergonha, mas como vislumbre da própria finitude. A passagem do tempo nos surpreende ao ser revelada nossa senescência, pois "esta transformação é gradual, mal nos damos conta dela" (Beauvoir, 1970, p. 11). Por outro lado, cabe aqui ressaltar outra perspectiva dessa relação. Para a autora, é o jogo entre ver e ser visto que permite que o encontro com o outro seja revelador dessa velhice que pincela meu corpo e que permanecia desconhecida para mim. Beauvoir relata em A velhice uma situação vivida por ela e por outros colegas: "Ficamos atônitos; nunca nos havia ocorrido que a Sra. Lamaire fosse uma senhora idosa: mas era ela. Um olhar estranho a havia metamorfoseado em uma outra pessoa. Pressenti que também a mim o tempo iria pregar estranhas peças" (Beauvoir, 1970, p. 13). O olhar estrangeiro que me atinge abarca a condição natural de meu ser: sou visto pelo outro, como também o vejo (Perdigão, 1995). Ao lançar meu olhar em direção ao outro, o capto como um em-si, transformando-o em objeto e revelo ao para-si sua objetividade que lhe escapa.

Ao encontrar alguém, percebo que sua face foi tocada pelo tempo e seu corpo esculpido de acordo com o transcorrer dos anos - o vejo tal qual aparece a mim em sua exterioridade: observo os sulcos que delineiam seu rosto, os fios brancos que se destacam em seu cabelo. Contemplo sua face envelhecida. Nesse sentido, a percepção da passagem do tempo que vejo no corpo do outro denuncia a ação temporal sobre mim, pois, na medida em que posso apreendê-lo como velho, vejo-me sob o olhar de um outro que também me apreende em minha exterioridade e passo a me indagar sobre a forma como o outro me vê (Renaud, 2013), ou seja, começo a perceber que, assim como o outro é para mim este velho, também eu posso o ser: "Todos nós já fizemos a seguinte experiência: encontrar alguém que mal conseguimos reconhecer e que nos encara perplexos; ficamos a nos dizer: como ele mudou! Como devo ter mudado!" (Beauvoir, 1970, p. 14). Este corpo que percebe e é percebido é ponto comum das perspectivas de Beauvoir e Sartre e, também, de Merleau-Ponty. Esse é um aspecto que também Sartre já destacara. Entretanto em Sartre encontramos um corpo que se define e se caracteriza, em última análise, por leis puramente objetivas, tanto na relação com o outro como consigo mesmo, mantendo em última análise uma perspectiva subjetivista da consciência (Dastur, 2011; Hoffman, 2012).

Por outro lado, para Merleau-Ponty (1999), não sou apenas pura consciência, puro sujeito, nem tampouco é meu corpo coisa no mundo, parte extra partes, mas um corpo entrelaçado com o mundo, uma subjetividade encarnada. Há aqui uma consequência para a relação com o outro e para a experiência do corpo próprio, pois o outro nunca se apresenta para mim clara e distintamente como alteridade, ele não está diante de mim como seu corpo está, mas ao meu lado partilhando o mundo e a condição de ser. Ser esse corpo que é expressão, mas também objeto, é uma experiência que se apresenta ambiguamente como potência e restrição dada na sua própria condição de materialidade ou, nas palavras de Merleau-Ponty (1999), o corpo é um "eu posso" ("je peux"). Embora a perspectiva de corporeidade em Beauvoir aponte também para a compreensão da corporeidade como condição para a transcendência, assim como em Merleau-Ponty, e não mais apenas como objeto resultante de variações puramente objetivas, o corpo envelhecido (assim como o corpo sexuado e atravessado pelo gênero) é um corpo que não se apresenta como um "eu posso". A condição de possibilidade do ser em Beauvoir é compreendida estruturalmente no seio da cultura, pois ser mulher ou ser velho interfere diretamente na conexão com o mundo e na sua apreensão pré-reflexiva. E embora a biologia não seja um destino, negar o envelhecimento e suas modificações em nosso modo de ser e de se colocar no mundo é um prejuízo do nosso tempo.

 

Beauvoir e Merleau-Ponty: Uma Fenomenologia da Corporeidade Situada

Perante todas as características outorgadas aos idosos - das quais muitas assumem caráter pejorativo - é compreensível que não nos reconheçamos na pessoa velha. Como afirma Beauvoir (1970), é com grande dificuldade que assumimos a nossa velhice, visto que sempre a tomamos como uma estranha. Assim, quando esta se faz presente, somos levados a nos indagar: "então ter-me-ei tornado uma outra, embora permaneça eu mesma?" (Beauvoir, 1970, p. 8).

Em um primeiro momento pode parecer que Beauvoir coloca a corporeidade em segundo plano, priorizando o ser-para-outro, ou seja, o conhecimento do corpo por meio de uma objetividade dada pelo olhar estrangeiro, em detrimento do contato pré-reflexivo com o mundo. Beauvoir e Merleau-Ponty, não obstante, compartilham a perspectiva de que somos um corpo situado e marcado pela ambiguidade e que o corpo é meio transcendente de compreensão e alcance do mundo (Cataldi, 2001). Isso quer dizer que não é possível mais restringir a análise beauvoiriana à compreensão de um corpo definido por leis objetivas e que não faz parte da experiência da consciência. A pergunta que nos resta é: se somos esse corpo envelhecido, como é possível que a velhice que nele habita não nos seja dada também diretamente por meio dessa corporeidade metamorfoseada pelo tempo? Segundo Cataldi (2001), a resposta está no caráter ambíguo da corporeidade, não apenas expresso pelo conflito entre o para-si e o em-si, mas em sua derivação do corpo enquanto potência e restrição, ponto de contato entre os autores. A diferença é que a interpretação de Beauvoir alcança uma dimensão ética e política que não está presente no pensamento de Merleau-Ponty sobre a corporeidade. Sua maneira de pensar descreve fenomenologicamente a dialética corpo e mundo, mostrando como a socialização age no corpo como potência, ou seja, demonstra como, simultaneamente, temos e não temos acesso a esse corpo e, por meio dele, atravessados pelo mundo e pelo outro, temos e não temos acesso ao mundo - ao mesmo tempo (Cataldi, 2001).

De acordo com Merleau-Ponty (1999, pp. 207-208), "eu não estou diante de meu corpo, estou em meu corpo, ou antes, sou meu corpo. Portanto, nem suas variações nem seu invariante podem ser expressamente postos". Nesse sentido, sou, antes de qualquer conhecimento a priori, esse corpo que se apresenta. É justamente nesse ponto que as concepções de Sartre e de Beauvoir sobre o corpo diferem da perspectiva de Merleau-Ponty, o qual afirma que a percepção do mundo não advém de um sistema objetivo que compõe o corpo, mas sim, da "capacidade de nosso corpo de compreender o campo perceptivo em termos de normas e significados pré-objetivos" (Hoffman, 2012, p. 239). Além disso, a perspectiva de Beauvoir se afasta dos dois autores, pois a autora discute especificamente como a socialização age sobre o corpo, embora seja fenomenologicamente compreendido como potência, como anteriormente dito. Para ela, a corporeidade vive por meio das opressões sociais certas restrições, o que faz com que sua filosofia historicize o sujeito corporificado.

Retornando à questão da velhice: para além da relação com o outro, é também a partir da experiência pré-reflexiva do corpo que reconhecemos o envelhecimento que nos habita. Embora essa perspectiva não seja a mais evidente de início no pensamento beauvoiriano, é possível depreender de suas reflexões que ela aprofunda o problema da ambiguidade da experiência do corpo no mundo, colocando em relevo o fato de que, simultaneamente, temos e não temos acesso a nossas possibilidades corporais à medida que historiciza a vivência corporal e a tematiza a partir da concretitude do problema de gênero e da senescência. Tomemos como exemplo alguns trechos de Mal-entendido em Moscou. Nesse texto, nota-se claramente como o corpo vivido é uma importante dimensão na experiência da velhice, demonstrando também sua proximidade e sua diferença com a fenomenologia de Merleau-Ponty.

Ao viajar de trem, a protagonista Nicole experiencia uma inquietação proporcionada pela velhice que a espreita: "talvez eu tenha envelhecido demais nestes últimos três anos, disse Nicole a si mesma: já não suporto tão bem o desconforto. E isso só vai piorar. 'Estamos na flor da última idade', dizia André. Estranha flor: de cardos" (Beauvoir, 2016, p. 58). É interessante a metáfora utilizada pela protagonista, pois demonstra a difícil experiência da transformação do corpo. Essa compreensão de Nicole em relação ao seu envelhecimento advém propriamente de sua experiência corporificada, pois, ao viajar, percebe-se menos tolerante a incômodos e, sendo assim, pensar a velhice como uma estranha flor de cardos significa pensar as dificuldades impostas por essa nova condição, uma vez que essa flor possui espinhos em sua estrutura. Dessa forma, Nicole constata seu envelhecimento por meio desse corpo espinhoso que já não suporta desconfortos.

Em outro momento, ao aborrecer-se por conta de um desentendimento com seu marido, Nicole sai para caminhar e, assim, acalmar os ânimos para que pudesse pensar. Porém não contava que isso fosse se tornar algo dificultoso:

Ela não suportava mais ficar dentro deste quarto. Passou uma água no rosto e desceu para a rua. Caminhar: fizera isso várias vezes para acalmar os medos, a raiva, para afastar certas imagens. Só que não tinha mais vinte anos, nem mesmo cinquenta, e o cansaço a pegou rapidamente. Ela se sentou no banco de uma pracinha, em frente ao lago onde nadava um cisne. (Beauvoir, 2016, p. 106).

As metáforas e vivências de Nicole e André nos mostram que não é somente o outro o responsável pela atualização do corpo do velho, mas também essa experiência de alteridade de si que se apresenta na vivência do envelhecer. A experiência primeira a partir do contato originário com o mundo também é capaz de trazer à tona a sua forma atual. Em outras palavras, a corporeidade do velho é vivida em uma forma habitual, que é posta em questão pela atualidade de seu corpo na medida em que se engaja no mundo. O que Beauvoir nos faz perceber é a força da alteridade inserida nessa experiência. Em relação a essas diferentes formas da corporeidade, a habitual e a atual, afirma Merleau-Ponty (1999):

Nosso corpo comporta como que duas camadas distintas, a do corpo habitual e a do corpo atual. Na primeira, figuram os gestos de manuseio que desapareceram da segunda, e a questão de saber como posso sentir-me provido de um membro que de fato não tenho mais redunda em saber como o corpo habitual pode aparecer como fiador do corpo atual. (pp. 122-123).

Visto isso, pode-se dizer que Nicole vive seu corpo em sua forma habitual: sempre caminhava para esclarecer as ideias, por que agora haveria de não caminhar? Continuava sendo a Nicole de sempre! Entretanto é convocada a atualizar experiência de seu corpo quando o cansaço pesa sobre si. Não, não é mais uma mulher de 20, tampouco de 50 anos. Nicole vive uma inadequação consigo mesma: quem ela era, já que não podia mais se engajar em projetos anteriormente tão conhecidos e íntimos? E, como em um ato que transcende a própria liberdade, dirigindo-se intencionalmente aos obstáculos que se apresentam no mundo vivido, como modo de tornar-se o que se é, se abre a possibilidade de seguir adiante: "e eis que, quanto menos se reconhecia em seu corpo, mais se sentia obrigada a se ocupar com ele" (Beauvoir, 2016, p. 26); "As duas imagens que ela tem de sua vida, do passado, do presente, não se ajustam. Há um erro em algum lugar" (Beauvoir, 2016, p. 114). Quem ela era? Quem pode ser, para além das determinações sociais do ser velho, mas sendo sua própria velhice?

Nicole é agora um corpo envelhecido, que faz com que tenha de assumir novas formas de se posicionar no mundo. Assim sendo, por que continuamos um empreendimento que já não nos é possível? De acordo com Merleau-Ponty (1999), não é preciso ter um conhecimento claro sobre nosso corpo, basta o termos à disposição. Nossa experiência não nos vem da ordem "eu penso...", mas sim da "eu posso...". Para Nicole, era possível caminhar o tempo que fosse necessário para acalmar-se, mas é na medida em que o faz que se depara com as limitações da senescência que enceta em seu corpo, o que aponta para a perspectiva beauvoiriana de que a vivência corporal se situa complexamente entre biologia, cultura e existência, mas não pode ser entendida como uma determinação de nenhuma dessas dimensões. O erro, apontado por Nicole, consiste em não mais se empenhar da mesma forma em seus projetos justamente por ter à sua disposição um corpo que já não é mais o mesmo, já tão modelado pela ação do tempo. O hábito surge para Beauvoir como limitador, signo desse passado que se cristalizou. A corporeidade, no pensamento merleau-pontiano, é por outro lado, gênese de sentido:

é a descoberta em nível pré-objetivo, em que o corpo, longe de ser meramente um "centro de referência" vaziamente indicado pelo mundo em conformidade com leis estritamente objetivas, aparece ele mesmo como um movimento de ultrapassagem e transcendência que organiza o mundo por meio de suas "avaliações espontâneas". (Hoffman, 2012, p. 242).

Partindo da perspectiva merleau-pontiana de que "o corpo é o veículo do ser-no-mundo" (Merleau-Ponty, 1999, p. 122), pode-se entender a proposta de Beauvoir (1970) em relação ao estranhamento do corpo envelhecido e a realização da opressão e do limite. A velhice não só me é dada como um irrealizável, tornando-se estranha em meu corpo, me obrigando a um lugar na sociedade onde não me reconheço, como também é tida desse modo, por conta mesmo desse corpo envelhecido que, em sua forma desenhada pelo transcorrer dos anos, fornece novos pontos de vista sobre si e sobre o mundo. O que nos mostra Beauvoir é que, simultaneamente, temos e não temos acesso a nossas habilidades corporais (Cataldi, 2001).

Ademais, a velhice não parece alheia somente aos que já compõe o bojo dos sexagenários, mas também àqueles que trilham o caminho do tempo, em direção a ela. Dificilmente nos imaginamos velhos quando ainda não o somos. Ora, é claro que existe a velhice, mas eu hei de ser um velho um dia? Dado o caráter irrealizável da velhice, Beauvoir (1970) assevera que não raro pensamos que conosco será diferente.

Mas de onde vem tamanha dificuldade em nos reconhecermos no velho? Enquanto banhados pela juventude, temos pela frente um tempo que nos parece infinito. Voltamo-nos inteiramente para o futuro, deslizamos de ano para ano, sem nos darmos conta de nossa metamorfose pessoal (Beauvoir, 1970). Esse corpo que - salvo em casos de graves lesões - não cessa meus projetos, mas modifica-os, não fornece meios de me perceber enquanto uma pessoa que envelhece a cada dia e caminha para a velhice.

O medo de envelhecer é sentido mais fortemente por aqueles que estão distantes da faixa etária considerada dos idosos - acima dos 60 anos. Por outro lado, é interessante o fato de que esse sentimento diminui quando já se encontram na velhice (Goldenberg, 2013), ou seja, o que antes era uma forte inquietação, agora se manifesta em meu corpo. O irrealizável, então, se faz realizável na medida em que experiencio a velhice como parte do que sou, do meu modo de ser-no-mundo, como potência e restrição. Com o avanço dos anos, aquilo que era apavorante torna-se algo propriamente meu, pois sou eu que vivo esse corpo, com suas limitações e possibilidades, é com esse corpo envelhecido que me lanço no mundo e, portanto, como provoca Goldenberg, velho não é somente o outro, velho sou eu. Mas, certamente, foi necessário que nossa população envelhecesse para que estivesse em nosso horizonte essa possibilidade de reivindicarmos a velhice como nossa, pois ser velho na atualidade implica em uma multiplicidade de experiências que não se enquadram mais na imagem típica de um "velhinho" na frente da televisão ou da "vovozinha" fazendo crochê. Estas já são formas ultrapassadas de conceber a velhice (OMS, 2015), compreendendo que a corporeidade envelhecida é capaz de fornecer novos sentidos.

Como demonstram Beauvoir (1970) e Merleau-Ponty (1999), o corpo é o meu ponto de vista sobre o mundo, ou melhor, é justamente por causa dele que tenho um ponto de vista. Advém disso o embaraço em nos projetarmos na pessoa velha: aos 20, 30, ou mesmo aos 40 anos, meu corpo não tem relações com as limitações impostas pela senescência - nem tampouco pelo bizarro imposto pela cultura atual. Daí o estranhamento: sempre mantivemos a velhice a distância, como uma possibilidade que cabe somente ao outro e, quando desaba sobre nós, paramos de coincidir com nós mesmos e vivemos nosso corpo como um estrangeiro. Cabe, enfim, a cada um se reconquistar em sua própria liberdade diante e, justamente devido aos obstáculos que se nos apresentam.

 

Considerações Finais

Ao entrar em contato com a obra A velhice de Beauvoir, podemos ver a denúncia que a autora faz da condição do velho na sociedade ocidental, tal como já havia feito em relação à mulher em seu ensaio feminista O segundo sexo (Beauvoir, 2014). Pode-se notar, a partir dessas obras, a preocupação da autora em situar histórica e culturalmente a problemática a ser tratada, sem perder de vista a própria experiência vivida daqueles que pretende deixar em evidência em suas análises.

Cruel: esta é a palavra que se apresenta quando se lê A velhice. Beauvoir não poupa fôlego para demonstrar o descaso da sociedade para com os velhos e a sua objetificação. Não é por acaso que a compreensão de que "o velho é o outro" é um ponto fundamental em seu ensaio. Ser o outro quer dizer ser algo que não cabe a mim definir, mas sim ser constituído por meio de uma alteridade que me oprime e restringe minha possibilidade de transcendência. Ser outro é ser imanência, é o irrealizável como afirmava Sartre. Por outro lado, embora a questão do outro seja realçada por Beauvoir em sua análise sobre a velhice, podendo ser entendida em um primeiro momento como uma continuação do pensamento sartreano, sua obra fornece pontos de reflexão que nos guiam a uma diferenciação de Sartre e a um diálogo com a fenomenologia de Merleau-Ponty, principalmente no que diz respeito à corporeidade. Entretanto, a despeito dos pontos convergentes e divergentes entre os autores, podemos afirmar que Beauvoir ultrapassa a filosofia de ambos ao colocar a questão da velhice num campo ético e histórico-cultural.

A autora demonstra, ao longo de sua obra, a duplicidade do envelhecer, que não parte apenas de um conflito irreconciliável entre o em-si e o para-si, mas sim de uma ambiguidade que possibilita ao velho a experiência de transitar entre esses modos de ser. À medida que sou ser-para-o-outro, sou apreendida como um objeto em minha exterioridade, tal como me apresento aos seus olhos. Por outro lado, a experiência que tenho de meu próprio envelhecer não coincide necessariamente com esse olhar estrangeiro, pois, enquanto corpo-sujeito sou capaz de atribuir outros sentidos à corporeidade envelhecida e vivenciá-la de outros modos.

Tocar e ser tocado, olhar e ser visto, pares ambíguos que constituem nossos modos de apreensão do mundo. Envelhecer não é uma experiência unidirecional, em que é preciso negar uma de suas facetas para vivenciá-la verdadeiramente. Beauvoir nos mostra justamente o oposto. O fenômeno do envelhecimento fornece meios de experienciar a ambiguidade a tal ponto que, diante de tantas metamorfoses, nos questionamos quem somos, embora permaneçamos nós mesmos. Nesse sentido, envelhecer é estar em uma constante tensão entre meu corpo habitual e atual, sendo também confrontado com o olhar objetificador do outro e com o estranho que nos habita. E mais, é estar situado diante de uma cultura que, tal como já evidenciado pela autora em relação à mulher, coloca barreiras e cerceia a possibilidade de vivenciarmos quem somos, destacando nossa corporeidade não apenas como fonte de sentido, mas como ponto de cerceamento de possibilidades.

Diante do exposto, podemos afirmar que corporeidade, para Beauvoir, é condição para o existir, tal como para Merleau-Ponty. Ambos os autores destacam a ambiguidade de ser sujeito e objeto ao mesmo tempo, mas Beauvoir destaca as experiências de ter e não ter acesso ao mundo e a si, e da corporeidade não apenas como eu posso, mas também como experiência de ser atravessada pela opressão e, portanto, engessamento e impossibilidade.

A radicalidade das reflexões de Beauvoir impõe uma reflexão ética sobre o divergente, as diferenças e a alteridade: aceitar o velho com sua diferença implica aceitar a própria condição de envelhecer. Assim, o trabalho de Beauvoir destaca-se pela possibilidade de pensar e colocar em evidência o corpo, a alteridade e a temporalidade de forma situada e contextualizada na cultura e na história, para a compreensão de fenômenos humanos fundamentais, como a velhice.

 

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Endereço para correspondência:
Rafaela de Campos Domingues
E-mail: rafaelacdom@gmail.com

Joanneliese de Lucas Freitas
E-mail: joanneliese@gmail.com

Recebido em: 28/05/2018
Revisado em: 16/06/2019
Aceito em: 08/07/2019
Publicado online: 06/02/2020

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