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Print version ISSN 2359-0769On-line version ISSN 2359-0777

Rev. Subj. vol.19 no.3 Fortaleza Sept./Dec. 2019

http://dx.doi.org/10.5020/23590777.rs.v19i3.e8267 

ESTUDOS TEÓRICOS

 

Wo es war, soll ich werden: traduções e consequências teóricas

 

Wo es war, soll ich werden: translations and theoretical consequences

 

Wo es war, soll ich werden: traducciones y consecuencias teoricas

 

Wo es war, soll ich werden: traductions et conséquences théoriques

 

 

Juliana BartijottoI; Leda Verdiani TfouniII; Paula ChiarettiIII

IPsicanalista. Psicóloga clínica. Doutorado em andamento pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras (FFCLRP - USP), Doutorado-Sanduíche (Université Paris 8 - França) financiado pela CAPES
IIProfessora Titular sênior da Universidade de São Paulo em Ribeirão Preto. Doutora em Ciências (Linguística) pela Universidade Estadual de Campinas IEL). Livre-docente e Associada pela Universidade de São Paulo
IIICoordenadora do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem, da Universidade do Vale do Sapucaí (PPGCL Univás). Mestrado e Doutorado em Ciências, pelo Programa de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo busca compreender os desdobramentos que uma análise discursiva do enunciado freudiano Wo Es war, soll Ich werden e de suas diferentes traduções produzem no campo teórico da Psicanálise. Para tanto, tomamos o enunciado como uma máxima que possui características linguísticas (semânticas e sintáticas) que não são indiferentes à produção de sentido. Buscamos demonstrar de que modo diferentes interpretações, com consequências teóricas distintas, se produzem na obra freudiana, especialmente no que diz respeito à constituição do sujeito a partir da linguagem, quando esse enunciado é traduzido para o português e para o francês.

Palavras-chave: psicanálise; tradução; sujeito.


ABSTRACT

The present article seeks to understand the unfolding that a discursive analysis of the Freudian utterance Wo Es war, soll Ich werden, and their different translations produce in the theoretical field of Psychoanalysis. Therefore, we take the utterance as a maxim that has linguistic characteristics (semantic and syntactic) that are not indifferent to the production of meaning. We seek to demonstrate how different interpretations, with distinct theoretical consequences, are produced in Freud's work, especially concerning the constitution of the subject from language, when this utterance is translated into Portuguese and French.

Keywords: psychoanalysis; translation; subject.


RESUMEN

Este trabajo busca comprender los desdoblamiento que un análisis discursivo del enunciado freudiano Wo Es war, soll Ich werden y de sus distintas traducciones producen en el campo teórico del Psicoanálisis. Pata eso, tomamos el enunciado como una máxima que posee características lingüísticas (semánticas y sintácticas) que no son indiferentes a la producción de sentido. Buscamos demostrar de qué modo distintas interpretaciones, con consecuencias teóricas distintas, son producidas en la obra freudiana, especialmente en relación a la constitución del sujeto a partir del lenguaje, cuando ese enunciado es traducido para el portugués y para el francés.

Palabras clave: psicoanálisis; traducción; sujeto.


RÉSUMÉ

Le présent article cherche à comprendre les conséquences d'une analyse discursive de l'énoncé freudien «Wo s war, soll Ich werden» et ses différentes traductions dans le domaine théorique de la psychanalyse. Par conséquent, on prend l'énoncé comme une maxime qui possède des caractéristiques linguistiques (sémantiques et syntaxiques) qui ne sont pas indifférentes à la production de sens. Nous cherchons à montrer comment différentes interprétations, avec des conséquences théoriques distinctes, sont produites dans le travail de Freud, notamment en ce qui concerne la constitution du sujet à partir de la langue, lorsque cet énoncé est traduit en portugais et en français.

Mots-clés: psychanalyse ;traduction ; sujet.


 

 

O ensino de Lacan é marcado, fundamentalmente, pela sua afirmação da necessidade de um retorno à obra de Freud. De modo geral, esse retorno pode ser entendido de duas maneiras: o retorno aos conceitos freudianos e suas consequências na prática da Psicanálise e, mais especificamente, um retorno à letra freudiana. Observa-se que esse segundo modo de compreender o "retorno" à obra de Freud implica a consideração da língua em sua materialidade específica, dos significantes e suas associações. A partir daí, a língua e seu funcionamento passam a ser o suporte daquilo que pode produzir um saber.

Um saber está numa relação com a verdade que, para Lacan (1979/2003), somente pode ser semidita. Considerando o lugar que o autor atribui ao significante na produção de um saber e as consequências que a tomada da letra freudiana de maneira não fiel à sua escrita pode ter na prática analítica, o presente artigo tem como objetivo analisar a máxima de Freud (1933/2010a) "Wo Es war, soll Ich werden", que é formulada na conferência A dissecção da personalidade psíquica. Busca-se uma análise refinada, investigando as diversas traduções da máxima, como um discurso com o objetivo de compreender os efeitos de sentido que essas traduções produzem. Privilegiamos, ainda, as interpretações e o caminho que Lacan realizou em seus comentários sobre essa máxima, uma vez que esse psicanalista empreendeu em sua obra um trabalho de retorno à letra freudiana.

Na conferência em questão, Freud tentava descrever o funcionamento do aparelho psíquico e suas divisões. Ali, ele afirma que os sintomas são derivados do reprimido, são seus representantes diante do Eu, e que esse reprimido seria "terra estrangeira, terra estrangeira interior" para o Eu. Por outro lado, o Eu é, em sua essência, sujeito, mas que pode facilmente ser transformado em objeto para si mesmo, podendo observar-se e criticar-se, por exemplo. Assim, Freud (1933/2010a) revela uma divisão do Eu, que podemos tomar como uma primeira consequência teórica da máxima que buscamos abordar neste trabalho. Nesse momento de seu ensino, o autor (1923/2010b) propunha uma tripartição do aparelho psíquico (Isso, Eu e Supereu). No sentido descritivo, o Isso e o Supereu seriam inconscientes, já o Eu seria parte inconsciente e parte pré-consciente, e apenas uma pequena parte do Eu, aquela que é própria das percepções, seria consciente. Essa tripartição não se pautava na topografia do psiquismo, mas, sim, num funcionamento dinâmico e econômico, como veremos mais adiante.

A divisão do Eu foi objeto de pesquisa de Freud durante toda a sua obra, sendo com frequência retificada. Assim, diante das versões que provocam equívocos1 dos conceitos de Eu e de Isso e suas possíveis relações, este artigo visa realizar uma análise discursiva do enunciado Wo Es war, soll Ich werden, digamos, uma máxima freudiana, levando em consideração as diversas traduções e a problematização levantada por Lacan ao longo de seu ensino.

 

Sobre as Traduções

A tradução da máxima freudiana do original alemão para o português na versão da editora Companhia das Letras é: "Onde era Id, há de ser Eu" (Freud, 1933/2010a, p. 159). A versão publicada pela editora Imago, feita a partir do inglês2, e não diretamente do alemão, é: "Onde estava o id, ali estará o ego" (Freud, 1933/1996, p. 84). No entanto, traduzindo palavra por palavra do alemão:

1.wo - onde

2.Es - Isso

3.war - estava, era

4.soll - devo, deve

5.Ich -Eu

6.werden - advir, tornar-se

Quando se trata de tradução, sabe-se que são várias as possibilidades e que a formulação final dependerá da língua para a qual se traduz, da cultura, da ideologia e do próprio tradutor. A tradução palavra por palavra não somente não é desejável, como, com frequência, resulta em uma formulação que não faz sentido na língua-alvo, a língua de chegada, qualquer que seja a língua-fonte, a língua de partida a ser traduzida, já que cada língua apresenta especificidades sintáticas e semânticas. Buscando, portanto, realizar uma tradução que conserve o sentido que a máxima produzira no alemão, tradutores e autores propõem diferentes formulações. Garcia-Roza (2009), por exemplo, traduz por "ali onde se estava, ali como sujeito venho a ser". Já Tavares (2010)lista outras formulações possíveis a essa tradução: "onde estava isso, deve advir eu"; "onde isso estava, devo tornar-me" (p. 8), destacando que, no enunciado formulado por Freud, não há o artigo definido que encontramos na tradução "Lá onde o Isso era, o Eu deve advir" e que, originalmente, Es e Ich são grafados com letras maiúsculas (Eu, Isso), o que não é feito na tradução.

Assim, inicialmente, poderíamos nos perguntar o que a grafia em letra maiúscula da inicial dessas palavras (Ich e Es) indicia. Uma primeira hipótese é a de que essa diferenciação indiciada pela grafia exclui uma equivalência entre Ich e ich, ou seja, não se trataria de uma mesma coisa. Para compreender essa opção, podemos, em um primeiro momento, buscar entender seu funcionamento no nível gramatical, perguntando-nos se não estaríamos diante de um processo de substantivação, visto que são escritos com letra maiúscula, dos pronomes es e ich. Isto porque, na língua alemã, todo substantivo próprio ou comum é escrito com letra maiúscula. Sabemos que o processo de substantivação está presente na formação de palavras, o que nos leva a um segundo nível de análise, o qual parte da questão: o que essa passagem do pronome para o substantivo indiciaria? Ou ainda: o que seriam os substantivos Eu e Isso, esse processo descrito por Freud (1933/2010a, 1923/2010b, 1920/2010c), que tem como resultado ou efeito a formação de uma (nova) palavra (e com ela um efeito de referente)? Podemos, ainda, nos perguntar se, nesse processo de substantivação ao qual o autor recorre, estaríamos diante da tentativa de nomear algo cuja existência não parece estar previamente representada no léxico da língua alemã. Ao mesmo tempo, como o processo de substantivação parece nos indicar algo do funcionamento dessa construção freudiana, seria preciso investigar, a partir de sua obra, a que se referem Eu e Isso.

Para buscar explicitar essas diferentes opções de tradução e suas consequências, retomamos, também, as traduções do mesmo enunciado para a língua francesa, já que Lacan se serve dessas diferentes traduções para apontar de que modo o privilégio da letra freudiana produz consequências teóricas. Na tentativa de compreender as consequências dessas traduções, apresentamos algumas delas conforme as elenca Valas (2015):

1.Le moi doit déloger le ça

2.Où était le ça, le Moidoit advenir;

3.Là où était le ça, Je dois advenir;

4.Où c'était, Jedois advenir;

5.Là où était du ça, doit advenir du moi;

6.Le ça doit devenir le moi.

Nota-se, na série acima, que Ich ora é traduzido por moi, ora por Je. Essas duas possibilidades serão tomadas por Lacan (1955/1998b) a fim de diferenciar o Eu como sujeito e o eu como objeto, seguindo o que Freud (1923/2010b), ao postular sua segunda tópica, já afirmava a respeito do Eu poder ser tanto sujeito quando objeto de investimento libidinal: "O Eu é a parte do Id modificada pela influência direta do mundo externo, sob mediação do Pcp-Cs como que um prosseguimento da diferenciação da superfície" (1923/2010b, p. 22). Isto é, estaríamos diante de uma clivagem fundamental que tem como lugar de funcionamento o Eu. Divisão essa do Eu (ego) entre sujeito e objeto, também abordada em A dissecção da Personalidade Psíquica (Freud, 1933/2010a), em que o autor escreve:

Queremos fazer do Eu, o nosso próprio Eu, o objeto de nossa pesquisa. Mas pode-se fazer isso? Afinal, o Eu é sujeito por excelência, como pode tornar-se objeto? Ora, não tenha dúvida de que isso é possível. O Eu pode tomar a si mesmo por objeto, tratar a si mesmo como os outros objetos, observar-se, criticar-se, e fazer sabe Deus o que mais consigo mesmo. Nisso uma parte do eu contrapõe-se ao resto. Portanto, o Eu é divisível, ele se divide durante várias de suas funções, ao menos provisoriamente (p. 140).

Assim, podemos nos perguntar: no enunciado em questão (wo Es war, soll Ich werden), Freud se referia ao Eu como objeto (moi como Lacan formula) ou ao Eu como sujeito (Je)? A nosso ver, trata-se tanto do Je quanto do moi, pois, apesar de o Eu ser dividido, em termos de investimento libidinal, o sujeito e o objeto emergem ao mesmo tempo.

É imprescindível, ainda, para compreender os efeitos que as diferentes formulações produzem, recorrer ao momento em que Freud formulou a máxima e aos comentários que Lacan fez ao problematizá-lo. Trata-se do momento em que Freud estava desenvolvendo o conceito da divisão da personalidade ou, ainda, da clivagem do Eu [das Ich]. Anteriormente, nos textos Além do princípio do prazer, de 1920, e O Eu e o Id, de 1923, ele alega que o aparelho psíquico era regido, basicamente, por duas pulsões (a de vida e a de morte) e que o Eu seria uma parte transformada do Isso. Assim, divide o aparelho psíquico entre Isso, Eu e Supereu, cada qual com sua função específica, correspondendo às três instâncias psíquicas em que se divide o aparelho mental, ainda que não possamos afirmar que se configure como um agrupamento harmônico.

Freud afirma que o Eu precisa se submeter a três senhores: o Isso, o Supereu e o mundo externo, sendo que o objetivo da Psicanálise seria dar mais independência ao Eu, ampliando seu campo de percepção e organização, de maneira a poder se assenhorear de novas partes do Isso. É nesse contexto que o autor afirma, segundo tradução da Imago: "Onde estava o id, ali estará o ego. É uma obra de cultura - não diferente da drenagem do Zuider Zee" (Freud, 1933/1996, p. 84). Ou ainda, de acordo com a primeira tradução direta do original em alemão para a língua portuguesa, feita por Paulo César de Souza e publicada pela editora Companhia das Letras: "Onde era Id, há de ser Eu. É uma obra cultural como o aterro do Zuydersee, digamos" (Freud, 1933/2010a, p. 160).

Podemos compreender que a referência ao aterro, à drenagem, retiraria o Eu de qualquer registro relacionado à natureza ou a uma essência. Sua gênese se afasta, assim, do funcionamento relacionado ao imprinting ou ao instinto, entendidos como predisposições inatas pautadas de modo especial por mecanismos genéticos. Ao contrário, trata-se de um processo cuja causa não se encontraria prevista no desenvolvimento natural do ser: "uma obra de cultura", ou seja, o sujeito somente poderia constituir-se a partir de algo que não diz respeito à natureza, mas sim a isso que, na obra de Lacan, aparece como função simbólica, por sua vez, relacionada à linguagem.

Essa presença fundamental da linguagem na constituição do sujeito é tratada por Lacan por meio do recurso à função do significante. Assim, a fórmula lacaniana "um significante representa o sujeito para outro significante" (Lacan, 1960/1998f, p. 833, p. 854) poderia ser considerada uma consequência teórica da releitura da fórmula freudiana feita por Lacan. A seguir, descreveremos o funcionamento linguístico e os efeitos de sentido do discurso da máxima freudiana em análise.

 

Sobre o Funcionamento Linguístico

Seguimos, aqui, pressupostos teóricos de Reboul (1975) e nos aproximamos da máxima de Freud (Wo Es war, soll Ich werden) como um genérico discursivo. Para Tfouni (2010), as fórmulas do tipo genérico discursivo têm como particularidade uma estrutura sintática com sujeito indeterminado, o que lhe atribuiria uma característica de genérico, daí sua importância para este trabalho. Diante dessa perspectiva, poderíamos dizer que esse enunciado se configura como um genérico discursivo? Acrescenta Tfouni (2010) que a função dos genéricos discursivos é "transportar sistemas de valores e crenças, de cultura para cultura, de geração para geração. A aparente descontextualização é enganosa, visto que eles se prestam ao uso em inúmeros contextos" (p. 80). Para Pêcheux (1975/1988), um genérico pode ser um acontecimento discursivo sobre outro acontecimento, como se observa no enunciado "On a gagné [ganhamos]" (Pêcheux, 1983/2002), proferido pelos cidadãos na ocasião da vitória de Mitterrand nas eleições francesas de 1981 e analisado pelo autor em O discurso: Estrutura ou acontecimento? Esse mesmo enunciado remeteria a uma memória discursiva: aquela relacionada à vitória de equipes em jogos esportivos. Assim, estaríamos diante de um ponto no qual um mesmo enunciado se desloca de um contexto histórico (no caso, do esporte) para outro diferente (a política). Um enunciado de um campo semântico é retomado e atualizado em outro, permitindo que uma série de deslocamentos se efetue a partir de então. Quer dizer, a vitória de Mitterrand e a consequente derrota de seus adversários criariam analogias a uma partida esportiva.

Chemama (2002), falando sobre os provérbios (que são um tipo de genérico) na experiência psicanalítica, afirma que "(...) só se pode dar conta da experiência do real na forma proverbial" (p. 25), pois, ao usar essas fórmulas encapsuladas, o sujeito se anula enquanto locutor e se refugia, por meio da língua, no grande Outro irredutível. É, portanto, o registro do Outro na sua relação com o sujeito que os genéricos indiciam, sua anterioridade na constituição do sujeito.

Pelo fato de tentar instituir uma verdade universal, as fórmulas genéricas funcionariam como indeterminadoras, o que, ainda segundo Chemama (2002), permitiria que o sujeito pudesse "(...) romper a barreira da relação imaginária do eu, que impedia que o inconsciente se manifestasse (...) para que isto ocorra, é preciso ir além do eu, e também do você: é preciso romper a relação dual" (p. 39).

Considerando, portanto, a relação dual, a presença do Outro na constituição do sujeito e de seu discurso, podemos buscar compreender qual alteridade seria indiciada linguisticamente por esse enunciado. A que Outro é preciso recorrer, a que rede de memória é preciso se filiar, para que esse enunciado produza sentidos? De que alteridade se trata?

Lacan (1957/1998d), em A instância da letra no inconsciente, ao pensar a alteridade, pergunta: "(...) qual é, pois, esse outro a quem sou mais apegado do que a mim, já que, no seio mais consentido de minha identidade comigo mesmo, é ele que me agita?" (p. 528). Essa pergunta nos permite compreender que não se trata de uma alteridade simples (outro em mim mesmo ou em um semelhante), mas daquilo que, em seguida, Lacan (1957/1998d, p. 529) chama de "grau secundário de alteridade" que podemos entender como sendo aquela referente ao Outro (grande Outro), que se encontraria em uma posição de mediação tanto no desdobramento do sujeito com ele mesmo quanto com o seu semelhante.

A consequência que observamos, a partir disso, é a de que, na máxima freudiana Wo Es war, soll Ich werden, não estaríamos diante de uma simples narrativa, referente a uma ordem temporal, sequencial de acontecimentos que justificassem o "surgimento" ou a "produção" de algo, no caso do Ich, ou diante de algo que existia e deixa de existir, o Es. Ao contrário, e seguindo no texto freudiano o que antecede e sucede a fórmula, estamos diante de uma especificidade referente ao próprio conceito de sujeito na Psicanálise, que não existe explicitamente na obra de Freud, mas que é proposto por Lacan ao conceber uma alteridade absoluta e constitutiva que é o Outro.

Para Lacan (1956/1998c), grande parte da força da máxima freudiana adviria de sua concisão e sua formulação. A fim de manter esse caráter significante da fórmula, ele se veria obrigado a consentir, "contrariando os princípios de economia significativa que devem dominar uma tradução" (p. 418), em forçar as formas significantes na tradução para o francês para que tivessem o mesmo peso daquelas apresentadas por Freud no alemão. Chega, então, ao que chama de uma "indulgência" frente à

[...] tradução inicial por soi [si] que foi dada à palavra Es, não parecendo muito mais adequada o ça [isso] que lhe foi preferido, não sem motivo, já que é ao das alemão de was ist das? [que é isso?] que ela responda das ist, c'est [isso é] (Lacan, 1956/1998c, p. 418).

Desse modo, o c' é elidido, soando como o verbo s'être (ser-se), s'est, considerado por Haroldo de Campos (1995, p. 184) um "verbo reflexivo inusitado", que permitiria exprimir "(...) o modo da subjetividade absoluta, tal como Freud propriamente a descobriu em sua excentricidade radical" (Lacan, 1956/1998c, p. 419). A tradução a partir da língua alemã proposta por Lacan é: "Là où fut ça, il me faut advenir". A versão em português do texto lacaniano é: "(...) ali onde isso era, (...) ali onde se era (...), é meu dever que eu venha a ser" (p. 419).

Ainda sobre essa discussão, referente aos termos e suas traduções e ao modo como operam nas línguas nas quais se inscrevem, podemos tomar em consideração o uso do verbo modal sollen e os tempos verbais das traduções da fórmula feitas por Lacan (c'était e fut).

Voltemos nossa atenção para a estrutura sintática do enunciado Wo Es war, soll Ich werden. Temos aí uma fórmula, ou genérico, cujo enunciador é indeterminado (ou seja: qualquer um, e todos, podem dizer isso). O enunciado se compõe de duas orações. A primeira (wo Es war) tem o verbo no indicativo imperfeito (war) e Es na posição de sujeito sintático de war. Há também um advérbio de lugar (wo), indicando uma especificidade temporal ou localizacional para o Es. A segunda oração (soll Ich werden) traz o Ich como sujeito sintático de soll, e este, por sua vez, como verbo modal que requer um verbo complementar no infinitivo (werden). O soll está no indicativo presente. Segue-se, daí, uma relação de temporalidade entre a primeira oração e a segunda, sendo que o evento ou estado de coisas descrito por esta ocorreria depois da primeira. Assim, a configuração dos tempos verbais funciona como um indício de que o Es antecede o Ich no tempo, ou seja: primeiro veio o Es; depois, o Ich.

Vale destacar que não há conectivo entre as duas orações; elas são coordenadas assindéticas, sem conectivo. Poderíamos, no entanto, a partir do que colocamos anteriormente, supor que se trataria de um período composto por coordenação, criando o efeito de uma conclusão - por meio do acréscimo da conjunção conclusiva logo, por exemplo. Nesse caso, além da relação de temporalidade, de continuidade, teríamos a de necessidade, sendo esta produzida pelo sentido de conclusão. Como se sabe, a conjunção logo é o conectivo por excelência do raciocínio lógico-dedutivo (silogismo). Não há a possibilidade de inversão entre as duas orações em função da especificidade do funcionamento sintático tanto dos tempos verbais quanto da relação de necessidade lógica entre a primeira e a segunda.

Para apreender melhor a questão da necessidade lógica, voltaremos nossa atenção para soll (infinitivo: sollen). Esse é um verbo modal e pertence à categoria modalidade. As modalidades linguísticas, também consideradas discursivas, servem para explicitar a atitude do falante em relação a um estado de coisas expresso pelo enunciado. Fernandes (2011) comenta o tratamento dado por Ducrot ao tema:

(...) o conceito de modalidade, assim como todo conceito, é opositivo, e, portanto, se há modal, há não modal. No tratamento da modalidade, o autor recorre à oposição tradicional que existe, no pensamento ocidental, entre objetivo e subjetivo, entre a descrição das coisas e a tomada de posição em relação a essas coisas ou em relação à própria descrição dada. Nessa perspectiva, o aspecto não modal equivaleria à descrição das coisas, às informações sobre elas, à informação objetiva; o aspecto modal, por outro lado, corresponderia às tomadas de posição, às atitudes morais, intelectuais e afetivas expressas ao longo do discurso (Fernandes, 2011, p. 160).

No estudo das modalidades, é usual que se utilizem as categorias da lógica aristotélica: aléticas, epistêmicas e deônticas, as quais atribuem às proposições valores como de certeza/incerteza, probabilidade, possibilidade, pressuposição, necessidade, obrigação, permissão, proibição, entre outros. Tais estudos remontam à antiguidade clássica. Os lógicos formais se ocuparam de elaborar um sistema que expressasse um raciocínio válido, fixando, assim, regras abstratas que determinavam relações de inconsistência, incompatibilidade, contradição e oposição.

De acordo com uma breve abordagem da categoria discursiva modalidade, tem-se, assim, o quadrado lógico que estabelece as modalidades tradicionalmente reconhecidas: as aléticas, ou aristotélicas, que se referem às noções de verdade e/ou falsidade das proposições, podendo os enunciados de uma ciência ser necessariamente ou possivelmente verdadeiros. As modalidades aléticas são aquelas que exprimem linguisticamente a possibilidade, ou a necessidade. Ainda segundo Fernandes (2011), esse gesto levou à desconsideração da verdade como absoluta, relativizando-a como necessária ou possível. A partir daí, os lógicos estabeleceram dois eixos conceituais adicionais: as modalidades epistêmicas (do eixo da crença e do conhecimento) e as modalidades deônticas, do eixo da conduta.

Linguisticamente, os significantes usados para exprimir as modalidades aléticas seriam, por exemplo, "é possível que" e "é necessário que". Já as epistêmicas seriam expressas por perífrase como: "eu acho que"; "eu duvido que"; "eu acredito que". As deônticas, que exprimem o permitido e o proibido, poderiam materializar-se como: "é certo que"; "é proibido que". Há, no entanto, por se tratar de línguas naturais, e, portanto, sujeitas à arbitrariedade do signo e ao equívoco, casos em que as modalidades parecem se sobrepor, engendrando a polissemia. Um desses casos, que nos interessa de modo específico, é o verbo dever, por ser equivalente, em português, ao sollen do alemão.

Em português, o verbo dever tem vários sentidos. Um primeiro tem relação com alguma dívida a ser saldada (por exemplo, em Devo um mês de aluguel). Nesse caso, é importante discutir o sentido de "dever" relacionado ao de "valor", e também sua transitividade: Eu devo algo (ou uma quantia) a alguém.

Em seu segundo sentido - como verbo modal - "dever" pode indicar possibilidade: Ele deve chegar hoje (no sentido epistêmico); necessidade: Todos devem abandonar suas casas (no sentido alético); ou dever, obrigação, proibição: Não se deve jogar lixo na estrada (no sentido deôntico).

Considerando o enunciado Ele deve vir, podemos retomar as possíveis paráfrases propostas por Guimarães (1979): É necessário que ele venha; Ele tem obrigação de vir; É possível que ele venha; É provável que ele venha; É certo que ele virá. No caso da fórmula Wo Es war, soll Ich werden, qual leitura deveria ser realizada? Sabemos que se trata aí da relação entre Es e Ich, do ponto de vista de antecedência (sentido marcado pelo verbo war, no imperfeito), e que a relação entre o que era e o que advém é dada pelo soll. Há, no entanto, uma ambiguidade possível presente no significante soll, que tanto pode estar na primeira pessoa (Eu devo) como na terceira do singular (Deve eu). No primeiro caso, o sujeito seria Ich; no segundo, haveria um sujeito indeterminado (próprio dos genéricos, aliás). Não se trata, pensamos, de que o Eu seja o sujeito, como algumas traduções propõem (Eu devo advir). Propomos, assim, a tradução Onde era Isso, deve advir Eu, na qual Eu não é o sujeito da frase, visto que o verbo estaria na terceira pessoa. Esse Eu, ao contrário, funciona aí como objeto direto que complementa o sentido do verbo "advir". A título de ilustração compare-se com: Onde era botão, deve advir flor. Nessa tradução, soll (deve) tem um sentido alético, ou seja, exprime uma necessidade lógica, algo da ordem de um imperativo categórico kantiano. Não se trata, portanto, de uma leitura epistêmica (É certo que deve advir eu), nem deôntica (Eu tenho/tem obrigação de advir).

Confirmamos essa proposta com Lacan (1957/1998d, p. 416, 417, 418) : "[...] soll, c'est un devoir au sens moral qui là s'annonce". (...) car ce Je qui doit advenir là où c'était. (...) lá où c'était, il me faut advenir" (Lacan, 1998a, p. 417-18, 528, 675, 815-17, 830, 856, 878-80).

Apoiamo-nos também em Garcia-Roza (2009, p. 209, grifos do autor):

Dessa forma, a frase nos surge como uma máxima análoga ao imperativo moral de Kant. Não é de substâncias que Freud está falando. Não se trata de transformação ou substituição de uma substância (o id/Es) por outra (o ego/Ich). Aquilo de que Freud nos fala é de diferentes sujeitos e do modo de ser da subjetividade; mais do que uma descrição tópica, Freud assinala com ela uma exigência: a exigência da verdade. Essa verdade é desconhecida pelo Eu, sujeito do enunciado que ao mesmo tempo em que enuncia se renuncia. Tal como no exemplo do escravo-mensageiro que trazia sob sua cabeleira o decreto que o condenava à morte, gravado em seu couro cabeludo. Ali onde se estava, ali como sujeito devo vir a ser.

Dunker (2012) também problematiza a tradução da máxima ao constatar que o verbo sollen quer dizer "dever" em português, ressaltando, no entanto, que, no alemão, há duas palavras que exprimem o sentido de dever: konnen e durfen. O durfen exprime um poder-dever e o konnen um poder-intransitivo e as duas se opõem ao dever (sollen). Konnen teria um sentido superegóico e o durfen, não. Diante disso, o autor propõe a seguinte tradução, que levaria em consideração o ensino de Lacan: "onde estava eu, com meu eu, onde eu era, com minha posição de sujeito, deve (no sentido inverso ao poder-dever) aparecer a palavra (ça parle) e o dizer (discurso sem palavras)" (Dunker, 2012, p. 100).

Lacan, ao longo de seu ensino, problematiza e se apropria da máxima freudiana, ou seja, empreende várias versões, interpretações e deslocamentos. É disso que trataremos na seção seguinte.

 

Os Deslocamentos da Máxima no Ensino de Lacan

Vimos que Lacan (1998a) traduziu o enunciado de Freud para o francês da seguinte forma: "là où c'était, il me faut advenir" (p. 417-18, 528, 675, 815-17, 830, 856, 878-80). Para compreender as diferentes consequências teóricas que o enunciado é capaz de produzir, abordaremos momentos da obra de Lacan em que o autor comenta e retoma tal enunciado, além de se apropriar dele a fim de formalizar conceitos tais como: sujeito, significante, Outro, metáfora paterna, mais-gozar, ato analítico.

Iniciamos pelo texto A coisa freudiana, no qual Lacan afirma que o enunciado em questão é uma "fórmula em que a estruturação significante mostra com clareza sua prevalência" (Lacan, 1956/1998c, p. 418). Apesar disso, para Campos (1995, p. 183), Lacan acaba fugindo "à concisão lapidar do adágio freudiano e à sua cadência quase talismânica". A dificuldade da tradução se deveria, portanto, em grande parte, à concisão da fórmula freudiana. A crítica realizada por Lacan à tradução por "là où c'était, il me faut advenir" se refere ao fato de que Freud, ao não usar o artigo das antes de Es e Ich, teria dado uma ênfase particular a essas palavras. O psicanalista diferencia, assim, tomando como índice essa ausência do artigo das, esses dois pronomes (Es e Ich) das instâncias usualmente designadas por das Es e das Ich e formuladas há mais de dez anos por Freud. Conclui, então, que é no lugar (Wo) em que o Es, sujeito desprovido de artigo objetivante, era (war) que devo (soll), no sentido moral, eu (Ich) tornar-me (werden). Para Lacan (1956/1998c), não se trata aqui de advir, nem mesmo de sobrevir, mas de um "vir à luz, desse lugar mesmo como lugar de ser" (Lacan, 1956/1998c, p. 418).

Em uma nota de rodapé do texto A direção do tratamento e os princípios de seu poder, Lacan (1958/1998e) propõe que o enunciado freudiano (Wo Es war, soll Ich werden) pode ser traduzido por: "Le Moi doit déloger le Ça" (Lacan, 1966, p. 585).3

Consideramos possível aproximar a frase freudiana ao ensino de Lacan (1957-1958/1999) por meio da operação da metáfora paterna. Expliquemos. Para o autor, em seu Seminário, livro 5: Formações do inconsciente, o pai, no complexo, não é objeto real (mesmo que tenha que intervir como tal para dar corpo à castração). Também não é um objeto ideal, mas, sim, um lugar simbólico, na medida em que o pai é uma metáfora. Uma metáfora é uma operação na qual um significante é substituído por outro significante. Isso é o pai no complexo. "A função do pai no complexo de Édipo é ser um significante que substitui o primeiro significante introduzido na simbolização, o significante materno" (Lacan, 1957-1958/1999, p. 180). Pai deve substituir mãe; trata-se, portanto, de lugares e de significantes. Na máxima, o S1 equivaleria ao Es, e o S2 ao Ich, ou seja, onde estava S1 (desejo da mãe), deve advir S2 (Nome-do-Pai).

No Seminário, livro 6: O desejo e sua interpretação, Lacan (1958-1959/2015) indica que o Eu da frase (Ich) não é o moi (eu), ou seja, o eu especular. Esse Ich ocupa o lugar de sujeito do enunciado. "Lá onde Isso era, lá onde Isso fala", esse lugar é onde está o desejo inconsciente, "Lá Eu devo me designar", "Lá 'Eu devo ser', este Eu que é o alvo, o fim, o termo da análise antes que ele se nomeie, antes que ele se forme, antes que ele se articule, a supor que ele nunca o faça. Pois, na máxima freudiana, este "soll Ich werden, este deve ser este 'devo-Eu advir' é o sujeito de um advir, de um dever que lhe é proposto" (p. 401).

Em Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiana, Lacan (1960/1998f) afirma que se trata de uma sentença que cumpre um imperativo. Então, "(...) lá onde isso era, estava no instante exato, lá onde isso era, estava um pouquinho entre a extinção que ainda brilha e a eclosão que tropeça, [Eu] posso vir a sê-lo, por desaparecer de meu dito" (p. 816). É uma enunciação que se denuncia, enunciado que renuncia ao próprio enunciado, não restando senão um vestígio daquilo que é preciso existir para cair do ser. Nesse momento, o autor retoma a questão da relação do sujeito com o significante por meio da consideração de uma " (...) enunciação com que o ser estremece, pela vacilação que lhe retorna de seu próprio enunciado" (Lacan, 1960/1998f, p. 816).

No Seminário, livro 9: A identificação, Lacan (1961-1963/2009), ao falar da posição do sujeito, retoma, mais uma vez, a fórmula de Freud. O autor discorre sobre o momento da entrada do sujeito na estrutura de linguagem. Na relação do sujeito com os significantes, ou seja, com o discurso do Outro, o sujeito se projeta no discurso do Outro pelo fato de engajar, na sua fala, algo que subsiste à medida que o sujeito, ao avançar nesse rumo (do discurso), precisa de um trabalho "de reviramento de sua posição para se apreender ali" (Lacan, 1961-1963/2009, p. 117). Neste instante, o autor afirma que na constituição do sujeito não há outra passagem senão pelo campo do Outro (cadeia de significantes). Trata-se, assim, de um paradoxo a relação entre o sujeito e o Outro, lugar de tensão em que é criado o desejo. Em função desses pressupostos Lacan reformula a máxima do seguinte modo: "Là ou c'était - la chose, Je dois advenir" (Lacan, 1961-1962, p. 109) (Tradução: "Onde estava a Coisa, eu [Je] devo advir" (Lacan, 1961-1963/2009, p. 226), onde a Coisa equivale a Es ou ao traço unário, e o Je corresponderia ao sujeito do desejo).

No texto A ciência e a verdade, Lacan, (1966/1998h) assegura a divisão do sujeito entre saber e verdade e, mais uma vez, traduz o enunciado de Freud: "Lá onde isso estava, lá, como sujeito, devo [eu] advir". É no lugar do Outro que o sujeito se encontrará, no lugar em que era Isso (não se sabe o que foi, não se tem acesso, algo da ordem do impossível). Assim é preciso (deve-se) assumir um lugar, mais precisamente, o lugar de sujeito do desejo. O autor chama, ainda, a atenção para a inversão presente em soll Ich, uma inversão que "faz brotar o paradoxo de um imperativo que me pressiona a assumir minha própria causalidade" (Lacan, 1966/1998h, p. 879), ainda que não seja a causa de si mesmo. No entanto, conforme discussão acima a respeito do verbo soll, pode-se entender que a expressão soll Ich não se configura como uma inversão na qual Ich seria o sujeito de soll. De modo distinto, entendemos que soll estaria na terceira pessoa, e não na primeira, e que, portanto, Ich seria um objeto direto de werden ("deve advir Eu" e não "Eu devo advir").

Ainda no texto citado acima, Lacan (1966/1998h), retoma a fórmula de Descartes ("Penso, logo, sou") a fim de revelar uma escolha a ser feita, a escolha pelo advir da fórmula que quer dizer de uma forma de separar-se do Outro - entendida aqui como uma torção no processo de alienação do sujeito aos significantes cedidos pelo Outro (Lacan, 1960/1998g). A partir do cogito cartesiano é preciso considerar que "o pensamento só funda o ser ao se vincular à fala, onde toda a operação toca na essência da linguagem" (Lacan, 1966/1998h, p. 879). O sujeito é efeito da linguagem. Assim, Lacan concebe uma escolha não pensada na qual o sujeito existia onde não pensava, e pensava onde não existia. Lacan (1966-1967/2011) desmonta a fórmula cartesiana, o que resulta em outra forma de articular o ser e o pensamento: eu sou onde não penso e penso onde não sou. A partir daí, o autor pode tratar da divisão do sujeito e dos processos de alienação e separação do sujeito ao Outro.

No Seminário, livro 17: Avesso da Psicanálise, Lacan (1969-1970/1992), ao formalizar o discurso do analista, afirma que o analista está no lugar de objeto a e, ao metaforizar a fórmula de Freud, diz o seguinte: "é lá onde estava o mais-gozar, o gozar do outro, que eu, na medida em que profiro o ato analítico, devo advir" (p. 50). Desse modo, o autor transporta a máxima freudiana à prática da psicanálise. A nosso ver, Lacan faz transposições no momento em que deixa vazio os lugares do Es e do Ich na frase freudiana, tornando possível substituir Es e Ich por outros conceitos. Propomos as consequentes substituições possíveis tomando como referência as discussões realizadas:

1.Onde estava o desejo materno, deve advir a metáfora paterna;

2.Onde estava o gozo, deve advir o desejo.

3.Onde estava o psicanalisante, deve advir o psicanalista;

Esses deslocamentos e essas possíveis substituições, ao contrário de resolver, acentuam o paradoxo dessa máxima.

 

Considerações Finais

Vimos, neste artigo, que, para além da descrição da máxima de acordo com a primeira tópica, Freud marca uma exigência de verdade que é sempre desconhecida pelo Eu. Tal afirmativa leva-nos à postulação da existência de um sujeito do inconsciente e à elucidação de sua relação com a enunciação.

A máxima poderia, assim, ser considerada uma síntese da construção do sujeito no processo psicanalítico - esse sujeito que é o ser humano submetido às leis da linguagem. Lacan (1964-1965/1985) busca articular o que compreende sobre a linguagem a partir da figura do Outro, cuja função é comandar, através dos significantes, aquilo que se presentifica no campo do sujeito, isto é, o campo desse vivo onde um ser falante emerge. Entenda-se o Es como esse vivo, e esse sujeito que tem que (soll) aparecer como o Ich. Trata-se, em síntese, do acesso ao Simbólico, à linguagem e da sua função na constituição do sujeito.

Para Milner (2014, p. 12), Es war é um modo de dizer a língua, que, por sua vez, é sempre em terceira pessoa, dessubjetivada. Em um momento decisivo e fugaz é que parte do Es se torna Ich. Não se trata mais de um predicativo que qualifica a subjetividade, mas do lugar-tenente a partir do qual o sujeito se anuncia, renunciando assim, pela via do recalque, à sobredeterminação que lhe permite advir enquanto Eu. A presença do Outro, ou das leis da linguagem, é, nesse sentido, necessária à constituição do sujeito, mas, ao mesmo tempo, não a garante, como na psicose.

Assim, a análise discursiva do enunciado freudiano Wo Es war, soll Ich werden não somente nos permite compreender alguns desdobramentos teóricos que a sua formulação e a sua tradução produzem no campo da psicanálise, como também nos dá provas do modo como o encadeamento significante produz um saber que não se fecha.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Juliana Bartijotto
E-mail: jubartijotto@gmail.com

Leda Verdiani Tfouni
E-mail: lvtfouni@usp.br

Paula Chiaretti
E-mail: chiaretti.paula@gmail.com

Recebido em: 08/08/2018
Revisado em: 27/04/2019
Aceito em: 21/05/2019
Publicado online: 28/02/2020

 

 

1 O equívoco teórico mais importante é supor que o Eu deva ser fortalecido em detrimento do Isso, ou seja, como se fosse possível, através do reforçamento do Eu, eliminar as paixões do Isso.
2 Na versão inglesa, o enunciado foi traduzido como "Where the Id was, there the Ego shall be".
3 Tradução em português: O Eu deve desalojar o Isso (Lacan, 1958/1998e, p. 591).

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