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Revista Subjetividades

Print version ISSN 2359-0769On-line version ISSN 2359-0777

Rev. Subj. vol.20 no.1 Fortaleza Jan./Apr. 2020

http://dx.doi.org/10.5020/23590777.rs.v20i1.e7365 

ESTUDOS TEÓRICOS

 

Um corpo que arde: corporeidade e produção de subjetividade em Clarice Lispector

 

A Body that Burns: Corporeality and Production of Subjectivity in Clarice Lispector

 

Un Cuerpo que Arde: Corporeidad y Producción de Subjetividad en Clarice Lispector

 

Un Corp qui Brûle : Corporéité et Production de Subjectivité chez Clarice Lispector

 

 

Giovanna Bucioli PojarI; Fabio Scorsolini-CominII

IPsicóloga pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro
IIProfessor do Departamento de Enfermagem Psiquiátrica e Ciências Humanas e do Programa de Pós-graduação em Enfermagem Psiquiátrica da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (EERP-USP). Psicólogo, Mestre e Doutor em Psicologia pela Universidade de São Paulo (USP)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este estudo tem como tema a corporeidade, entendendo a experiência do ser no mundo e sua subjetivação a partir do corpo. Procura investigar como a corporeidade aparece na obra de Clarice Lispector a partir da análise de dois de seus contos: Amor, do livro Laços de família, e Melhor do que arder, de A via crucis do corpo. A análise foi empreendida a partir da literatura sobre corporeidade, notadamente os estudos de Merleau-Ponty e de Foucault. Os contos levantam a questão do sujeito corpóreo, não cartesiano, valorizando o importante papel da corporeidade nos processos de subjetivação, que não se manifestam a partir de uma "consciência interior", mas no próprio corpo, proporcionando uma reflexão acerca das práticas e da ideia de sujeito adotadas pela Psicologia.

Palavras-chave: Clarice Lispector; corporeidade; corpo; subjetividade.


ABSTRACT

This study has as its theme corporeity, understanding the experience of being in the world and its subjectivation from the body. It seeks to investigate how corporeity appears in Clarice Lispector's work from the analysis of two of her short stories: Amor, from the book Laços de Família, and Melhor do que arder, from A via crucis do corpo. The analysis was taken from the literature on corporeity, notably the studies by Merleau-Ponty and Foucault. The tales raise the issue of the corporeal subject, not Cartesian, valuing the important role of corporeity in the processes of subjectivation, which do not manifest themselves from an "inner consciousness", but in the body itself, providing a reflection on the practices and the idea of subjects adopted by Psychology.

Keywords: Clarice Lispector; corporeality; body; subjectivity.


RESUMEN

Este estudio tiene como tema la corporeidad, entendiendo la experiencia de ser en el mundo y su subjetivación desde el cuerpo. Busca investigar cómo aparece la corporeidad en el trabajo de Clarice Lispector a partir del análisis de dos de sus cuentos: "Amor", del libro Laços de Família (en portugués), y "Mejor que arder", de A Via Crucis do Corpo (en portugués). El análisis se realizó a partir de la literatura sobre corporeidad, en particular los estudios de Merleau-Ponty y Foucault. Los cuentos plantean la cuestión del sujeto corporal, no cartesiano, valorando el importante papel de la corporeidad en los procesos de subjetivación, que no se manifiestan a partir de una "conciencia interna", sino en el cuerpo mismo, proporcionando una reflexión sobre las prácticas y la idea de persona adoptada por la Psicología.

Palabras clave: Clarice Lispector; corporeidad; cuerpo; subjetividad.


RÉSUMÉ

Cette étude a pour thème la corporéité, en comprenant de l'expérience de l'être dans le monde et sa subjectivation à partir du corps. On cherche à étudier comment la corporéité apparaît dans l'œuvre de Clarice Lispector à partir de l'analyse de deux de ses contes : Amour, extrait du livre Liens de Famille et Mieux que de brûler, dans Passion des corps. L'analyse a été réalisée à partir de la littérature sur la corporéité, notamment les études de Merleau-Ponty et Foucault. Les contes mettent en relief la question du sujet corporel, non cartésien. Ils valorisent le rôle important de la corporéité dans les processus de subjectivation, c'est-à-dire, ceux qui ne se manifestent pas à partir d'une « conscience intérieure », mais dans le corps lui-même. Cela fournisse une réflexion sur les pratiques et l'idée adoptées par la Psychologie.

Mots-clés: Clarice Lispector ; corporéité ; corps ; subjectivité.


 

 

A questão do corpo e das suas relações com a mente/psique representa um tema complexo nos campos da filosofia, da psicologia e também das ciências biomédicas, em que diferentes saberes e tradições muitas vezes se confrontam na busca por uma inteligibilidade (Scorsolini-Comin & Amorim, 2008). Ao analisar a história da filosofia no ocidente, percebe-se que o ser humano sempre foi compreendido, basicamente, sob as perspectivas da mente e do corpo como entidades distintas, ressaltando a importância da mente frente ao corpo (Santos & Terra Nova, 2014). O caráter histórico-ideológico atravessa os conceitos operados pela ciência, o que se exemplifica pelo entendimento acerca do corpo herdado da modernidade, embasado em áreas como a anatomia, a fisiologia e a medicina. Segundo Fensterseifer (2006), o pensamento cartesiano destaca o papel secundário do corpo, considerando que a essência consiste no pensamento, que não necessita de um suporte material. Assim, promover-se-ia uma cisão entre corpo e mente.

Rehfeld (2004) recupera uma longa história na tentativa de situar a noção de corporeidade, mencionando autores como Platão, que propunha a separação entre corpo e alma, e Descartes, que destacava a separação entre objetividade e subjetividade. Na constituição de uma Psicologia científica, tais concepções dualistas mostram-se evidentes desde o final do século XIX, demarcando tais pressupostos nos modos de se conduzir estudos, na construção de práticas profissionais e, até mesmo, nos embates epistemológicos travados por importantes autores que se dedicaram a pensar a dimensão da corporeidade, entre eles, Merleau-Ponty (1945/2006) e Foucault (1976/2014), destacados no presente estudo.

Assim, compreende-se que a relação mente-corpo foi e tem sido concebida de forma dicotômica. Trata-se da dicotomia cartesiana - a qual sustenta uma concepção dualista e nega que a alma racional dê vida ao corpo, afirmando que ele seria uma máquina -, que marcou profundamente o pensamento ocidental e as concepções e os saberes científicos contemporâneos (Scorsolini-Comin & Amorim, 2008). Com a modernidade, desenvolveu-se um conjunto de procedimentos e valores sobre a educação do corpo. O corpo humano aparece na linha de frente do pensamento moderno, não como corpo completo, mas como pedaço ou ruptura. No século XX, houve uma intensificação do movimento já estabelecido no sentido de comprovar que o corpo não era apenas a massa anatômica já conhecida, mas também uma entidade psicológica. O corpo passou a ser considerado um elemento fragmentado (Silva, 2014). Ressalta-se que o dualismo cartesiano nega a concepção de corpo vivo, afirmando que ele é uma máquina. Dessa forma, corpo e alma são substâncias diferentes, uma extensa, outra pensante (Scorsolini-Comin & Amorim, 2008).

Contemporaneamente, há um consenso que busca a superação da visão cartesiana de sujeito, que separa mente e corpo. Mostra ser necessário discutir o corpo, que, muitas vezes, fica em segundo plano, em detrimento de uma consciência pretensiosamente superior. É importante colocar em pauta e compreendê-lo para além do corpo-máquina, mas como conjunto de significações, como organismo vivo, ativo, sexuado, e também como realidade política. É importante ressaltar o papel do corpo na constituição da subjetividade, ou seja, como lugar de subjetivação, o que, muitas vezes, de acordo com Fensterseifer (2006), é negligenciado pelos saberes científicos, já que o modelo mecanicista marca profundamente o campo das ciências, principalmente das ciências da saúde, por conta do pressuposto de que mente e corpo atuam de forma isolada, centrando-se na dimensão anatomofisiológica do corpo e atribuindo-lhe um caráter de neutralidade.

Tal mudança de paradigma se propõe, também, a gerar mudanças nas práticas científicas e a pensar o ser como um todo, não dividido entre corpo e mente, e, no que se refere às práticas psicológicas, a importância do corpo na formação, na subjetivação e na identificação dos sujeitos. Essas práticas envolvem não apenas os protocolos para a realização de pesquisas, como também a atuação de profissionais no campo da saúde. A experiência do adoecimento, por exemplo, deixa de ser algo a ser isolado e combatido, passando a ser compreendida como um processo vivencial, em que não apenas os aspectos biológicos possuem relevância e devem ser tratados, mas a percepção da pessoa adoecida, as relações estabelecidas, em uma proposta de corporeidade que ultrapassa os limites de uma lógica cartesiana pura. Quando integramos corpo e mente, ou, em outras palavras, os aspectos biológicos e experienciais do adoecer, operamos dentro de uma inteligibilidade que integraliza o cuidado, combatendo a fragmentação das práticas em saúde.

 

Percepção e Subjetivação

Na contramão das concepções dualistas, a fenomenologia de Merleau-Ponty (1945/2006) coloca em suspenso as afirmações da atitude natural e procura realizar uma descrição direta da experiência tal como ela é. A partir do pensamento desse autor, concebe-se o corpo como um nó de significações vivas, que se interpreta a si mesmo, a partir da sua percepção do mundo. Trata o corpo como um sistema de potências motoras e perceptivas, não como um objeto para um "eu penso", mas como um conjunto de significações que caminha para o equilíbrio. Portanto, na sua abordagem fenomenológica, não se concebe mais um sujeito humano completo e realizado no "interior" de sua consciência, e que procura, depois, expressar-se por meio de signos ou símbolos. Ao contrário, compreende-se a subjetividade humana instalada no corpo, não mais na transcendência de um eu interior pensante: é a subjetividade como corporeidade comportamental, que acontece expressando-se, comunicando-se por meio do corpo e na realidade concreta do mundo.

A esse movimento expressivo e comunicativo - fora do qual não há "consciência humana", tampouco "corpo humano" - denomina-se subjetivação. A consciência é assumida, então, como expressão corporal, destacando o corpo como presença humana, que se distingue das localizações apenas espaciais dos objetos, já que é, para além disso, a orientação em direção ao mundo e às pessoas, uma necessidade fundamental (Dentz, 2008). Nessa acepção, a consciência refere-se a um corpo, e não a uma cognição, a um pensamento. A consciência envolve um corpo prenhe de significados e que os produz constantemente a partir dos processos de subjetivação.

Em Fenomenologia da percepção, Merleau-Ponty (1945/2006) apresenta uma crítica à compreensão positivista da percepção, para o qual ela é o ato pelo qual a consciência apreende um dado objeto, utilizando as sensações como instrumento. Para a construção da sua crítica, Merleau-Ponty faz uma revisão do conceito de sensação e de sua relação com o corpo e com o movimento (Nóbrega, 2008). Merleau-Ponty afirma que a sensação é intencional porque, a partir dela, certo ritmo de existência se encontra no sensível. Ela não se trata de uma invasão do sensível naquele que a sente, já que a percepção ocorre de forma subjetiva: é o olhar que subtende a cor e o movimento da mão que subtende a forma do objeto, e, nessa troca entre sensível e sujeito da sensação, não se pode afirmar que um aja e o outro não, ou que um dê sentido ao outro, mas que se trata de uma relação de troca e de movimento.

Ao descrever a experiência perceptiva, Merleau-Ponty (1945/2006) afirma que algo se percebe no sujeito, ou seja, não é o sujeito que percebe algo. O sujeito da sensação não é nem um pensador que nota uma qualidade, nem um meio inerte que é afetado por ela. É, na verdade, uma potência que co-nasce em um certo meio de existência ou que se sincroniza com ele:

Pela sensação, eu apreendo, à margem de minha vida pessoal e de meus atos próprios, uma vida de consciência dada da qual eles emergem, a vida de meus olhos, de minhas mãos, de meus ouvidos, que são tantos Eus naturais [...] Experimento a sensação como modalidade de uma existência geral, já consagrada a um mundo físico, e que crepita através de mim sem que eu seja seu autor. (Merleau-Ponty, 1945/2006, p. 291)

A distinção entre os sentidos e a intelecção justifica a distinção entre os diferentes sentidos, de acordo com Merleau-Ponty (1945/2006). O intelectualismo não trata dos sentidos porque, em sua concepção, sensações e sentidos só aparecem quando se retorna ao ato concreto de conhecimento para analisá-los. Dessa forma, os sentidos não existiriam, mas apenas a consciência. O intelectualismo se nega a colocar em questão a contribuição dos sentidos na experiência do espaço, apesar de todos os sentidos serem espaciais.

Compreende-se a sensação, dessa forma, não como um estado, uma qualidade, ou uma consciência, como a definiu o empirismo e o intelectualismo, mas como um movimento. A percepção está relacionada à atitude corpórea. Essa afirmação contrapõe a noção empirista de que a percepção é distinta da sensação e que se relaciona com ela por meio da causalidade estímulo-resposta. Na compreensão fenomenológica da percepção, a apreensão dos sentidos se faz pelo corpo, que não é mero instrumento a serviço da consciência, mas, ao contrário, é a própria consciência no corpo, contrariando a dicotomia cartesiana. Trata-se de uma expressão criadora a partir dos diferentes olhares sobre o mundo (Nóbrega, 2008).

A fenomenologia defende o caráter intersubjetivo da experiência humana e da formação do eu, entendendo que toda forma de conhecimento de si mesmo e do outro ocorre, necessariamente, por via intersubjetiva, atribuindo ao corpo a mesma capacidade intencional atribuída à consciência, ou seja, a intencionalidade não mais como uma faculdade não corporal ou puramente intelectual. Percepção e ação passam a ser entendidas como um conjunto de atividades indissociáveis, no qual compreende-se a percepção como um fenômeno diretamente ligado à ação corporal e como o mais fundamental aspecto da subjetividade humana (Salem & Coelho, 2010). Há, dessa forma, a alteração do conceito de subjetividade, que não se compreende mais como consciência-conhecimento, mas como subjetividade dinâmica, ação, fazer, expressar-se. Assim, não há mais que se perguntar a respeito de uma intenção ou consciência dirigindo gestos e ações, mas o próprio gesto, a própria ação ou o próprio comportamento é o sujeito todo (Dentz, 2008).

Merleau-Ponty (1945/2006) descreve a função do corpo-próprio, mostrando que os sentidos corporais não são canais de passagem de imagens do mundo para uma instância "superior" decodificadora ou instrumentos para captar o objeto em função de uma consciência-conhecimento "interior", mas os sentidos e o corpo são meios de o sujeito ser sensível ao mundo, ou seja, são o próprio sujeito. O filósofo afirma que não é ao objeto físico que o corpo pode ser comparado, mas à obra de arte, pois em ambos não se pode distinguir a expressão do expressado, e o sentido só é acessível por um contato direto. Assim, são um nó de significações vivas, não a lei de um certo número de termos co-variantes.

 

Linguagem, Corpo e Obra

Merleau-Ponty (1945/2006) procura afastar também o binarismo de pensamento e linguagem, rejeitando a ideia de signo como indicativo, índice ou comentário da experiência real, já que, para ele, tal como o corpo exprime o espírito, a fala exprime o pensamento. O filósofo trabalha com o conceito de expressão primordial, aquela em que o signo não está ligado a significações anteriores e na qual o sujeito rompe e reinventa a linguagem já préestabelecida. Assim, a fala, apesar de expressar sentidos adquiridos ou já constituídos, pode se inovar, criando novos sentidos e constituindo uma linguagem nova. Se, por um lado, a linguagem antecede a fala, por outro, é recriada constantemente por ela. A concepção de uma expressão primordial, elaborada por Merleau-Ponty, é percebida, muitas vezes, na relação com a linguagem que se expressa na literatura. Nela, as significações criam uma pluralidade de sentidos que sempre ultrapassam os significantes e, a partir de um código de expressão já dado, o artista consegue produzir novas significações (Dinis, 2003).

Esse novo olhar da fenomenologia acerca da corporeidade, de acordo com Scorsolini-Comin e Santos (2010), atravessa os modos de perceber e de conceber o corpo na sociedade atual. Essa concepção fenomenológica de corporeidade pode ser vislumbrada em muitas obras da literatura que destacam o papel do corpo como veículo condutor e produtor de sentidos e significações. É o caso da obra da escritora Clarice Lispector, que vem sendo cada vez mais investigada no campo da psicologia (Scorsolini-Comin, 2019; Scorsolini-Comin & Silva, 2018). A autora, nascida em 1920, na Ucrânia, imigrou para o Brasil ainda com meses de vida, falecendo em 1977. Embora não possamos considerar que Clarice é uma autora estritamente alinhada à fenomonelogia, destaca-se que suas obras abordam não somente o corpo físico e dividido (mente-corpo), mas também o corpo como um veículo ativo, carregado de significados que são construídos ao longo das narrativas (Scorsolini-Comin & Santos, 2010).

A literatura de Clarice Lispector persiste em seus motivos primeiros, fiel a um dado de experiência intensa, tratando da angústia que emerge da fala e que desmonta antigos sistemas de sentidos já pré-estabelecidos, e anunciando, assim, um novo vir-a-ser, que se vislumbra em privilegiados instantes da vida e em corpos vivos (Gotlib, 1995). Muito da sua obra ficcional é reflexo de sua trajetória e de sua experiência, e ela mesma já fez apelos para ser percebida como simplesmente uma pessoa, e abominou o caráter profissional mecanicista do fazer literário, por conta do pavor do automatismo. No entanto nunca perdeu a noção de seu valor como experiência estética humana, o que é refletido em sua obra, nas experiências e sensações de suas personagens. Os traços de originalidade e de imprevisibilidade são características fundamentais suas, destacando-se pela observação profunda que surpreendia seu interlocutor, colocando em pauta questões que estariam cobertas (Gotlib, 1995).

Na escrita clariceana, o corpo, em vez de ser máquina, é um sopro de vida pulsional e criadora que só tem sentido porque ele encarna todos os órgãos de sentidos, todas as sensações, emoções e sentimentos possíveis de seres vividos. Na obra de Clarice Lispector (2016), o corpo toca e também é tocado; é sentido na relação do sujeito da percepção com o mundo. Até mesmo quando a ausência de alguém é expressada na obra, o corpo também sente a si mesmo: sente a falta de toque, a falta de sensação e o vazio provocado pelo desejo que o outro alimenta, ou seja, o que sente revela-se como parte da vida (Fonseca, 2009).

Nessa perspectiva, a obra de Clarice Lispector apresenta pontos de conexão com as concepções de corpo trabalhadas por Merleau-Ponty (1945/2006), na medida em que trata do sensível, das sensações e do corpo em relação com o mundo (Scorsolini-Comin & Santos, 2010). É notável a convergência do pensamento de Merleau-Ponty com as situações ficcionais de Clarice. Em ambos, a busca essencial é a do encontro corporal com o mundo como forma de encontro com a identidade do próprio ser (Pozenato, 2010).

 

Psicologia e Literatura

De acordo com Leite (2002), a obra de arte maior, na qual podemos incluir a literatura, sempre inclui uma visão de mundo que, embora possa ser discutida ou negada, faz parte integrante de seu sentido. Esse posicionamento mostra-se fundamental para os estudos que buscam traçar paralelos e aproximações entre as obras literárias e as ideias psicológicas, tanto na tentativa de identificar como a ciência psicológica pode emergir em uma narrativa literária como na de que a literatura possa se apresentar como um campo reflexivo que pode se beneficiar do diálogo com a psicologia.

Dessa forma, o estudo aqui empreendido, ao tratar do diálogo entre psicologia e literatura, considera que, apesar das diferenças epistemológicas e metodológicas entre esses campos do saber, ambos procuram abordar e compreender o ser humano frente à sua constituição existencial e social. Pode-se inferir que a obra de arte se relaciona constantemente com o sujeito: o sujeito receptor, que percebe a obra, a maneja, a incorpora e é transformado por ela; e o sujeito artista, criador, idealizador da obra, que lapida as emoções e os sentimentos. O artista apropria-se das tensões e das experiências do sujeito com a realidade e as transforma na manifestação artística. Pode-se entender essas questões como processos psicológicos envolvidos na recepção e na criação da obra de arte. Vale ressaltar que o leitor, por meio das diferentes interpretações e leituras, também cria, imagina e elabora, estimulando, assim, um pensamento produtivo e criador, semelhante ao artista em seu processo de criação (Baiocchi & Niebielski, 2009).

Além disso, Leite (2002) ressalta que, se todo comportamento resulta da interação organismo-ambiente, a psicologia deve demonstrar que o pensamento produtivo não escapa a essa determinação. Faz-se necessário demonstrar que a criação literária pode ser estudada com os recursos da psicologia. Observa-se, também, que, na obra literária, embora a personagem seja criada pelo ficcionista, nela se percebe uma realidade indiscutível e, nesse caso, não é a psicologia que esclarece a literatura, mas a literatura é que pode auxiliar a psicologia em sua busca de critérios para descrever a individualidade. A partir desse panorama, o objetivo do presente estudo é investigar como a corporeidade emerge na obra de Clarice Lispector (2016), a partir da análise de dois de seus contos.

 

Método

Trata-se de um estudo teórico, de caráter qualitativo e de análise documental. A pesquisa documental vale-se de materiais que não receberam ainda um tratamento analítico, ou que podem ser reelaborados de acordo com os objetivos da pesquisa. Os documentos são utilizados como fontes de informações, de indicações e de esclarecimentos que empregam seu conteúdo para elucidar determinadas questões e servir de prova para outras, de acordo com o interesse do pesquisador (Sá-Silva, Almeida, & Guindani, 2009).

Utilizou-se como corpus a obra Todos os contos (2016), volume lançado pela editora Rocco e organizado por Benjamin Moser, que reúne todos os contos publicados por Clarice Lispector. Foram selecionados dois contos dessa coletânea, que foram analisados à luz das teorias acerca da corporeidade, fazendo uma articulação entre as obras e as teorias adotadas: Amor, presente originalmente no livro Laços de família, publicado em 1960, e Melhor do que arder, do livro A via crucis do corpo, publicado em 1974.

A opção por Clarice Lispector (2016) ocorreu na medida em que, em quase toda sua obra, encontram-se referências à corporeidade. As personagens clariceanas estão, geralmente, mergulhadas no mundo cotidiano e, a partir da sua percepção, são levadas a olhar para si mesmas, para o próprio corpo e para outra realidade que muito se aproxima da experiência sensível, descrita por Merleau-Ponty (1945/2006). Tal experiência é considerada um "momento epifânico" das personagens. A revelação do mundo sensível apenas ocorre porque o momento da percepção permite a troca de posições e o intercâmbio entre observador e coisa observada (Dinis, 2003).

Observa-se, também, que há nos textos de Lispector (2016) muito de uma representação da identidade da mulher, que se manifesta através do corpo e dos papéis pré-estabelecidos para ele, que convergem para o plano mais amplo da identidade do ser humano. O mundo da casa, da mulher e do "cuidar" são temas recorrentes nas suas ficções, que, a partir da literatura, contribuem para a reflexão da mulher sobre sua condição, lançando mão de uma nova apresentação dela (Góis, 2007). Uma imagem que é reiterada na sua obra é a da mulher que tem sede de ser gente e que se percebe à míngua, levada por um estado de amor positivo e virtual, porém frustrado, impossível, negativo. A escrita clariceana nasce de uma certa inquietação e explode, subvertendo valores convencionais, visando a buscar novos sentidos (Gotlib, 1995). Em suas narrativas, são expressadas experiências sensíveis, havendo uma redisposição dos enredos, dos signos, dos gêneros literários e das configurações entre autora e personagem. Os lugares do feminino e da mulher são redimensionados e as narrativas são marcadas pelos sinais de redescobrimento de um lado selvagem, que tenta suportar a dor e o sofrimento, exprimindo-os em sensações e desejos (Silva & Nascimento, 2014).

Nos dois contos selecionados para análise, as personagens principais são mulheres que vivem e cumprem, perante à sociedade e para si mesmas, seus papéis sociais relacionados ao gênero. Esses textos convergem ao criarem personagens que sofrem por conta de seus corpos pulsantes, sexuais e desejosos, que, inscritos na categoria de gênero, são objetos de saber/poder e de proibição. A escolha desses contos, portanto, deveu-se pelo fato de tratarem do corpo sensível, sexuado, feminino, apresentando a experiência da percepção e da autorrevelação das personagens, que, a partir dos seus corpos sentidos e vividos, se redescobrem, subjetivam-se e vão até a fronteira de si mesmas para, então, poderem se perceber outras.

 

Resultados e Discussão

Em ambos os contos, foram identificados pontos de convergência entre as concepções de corpo e de corporeidade e a abordagem fenomenológica acerca desses temas. São apresentadas as experiências de mergulho das protagonistas em si mesmas, a partir das percepções e das sensações de seus corpos, e tal mergulho leva a uma desordem para que haja uma redescoberta de si mesmas como mulheres, como seres, como corpos.

Primeiro Conto: Amor (Lispector, 2016)

Neste conto, a personagem principal, Ana, parece acreditar e solidamente cumprir seu papel como mulher, cuidando da casa e dos filhos. Em certo momento de recusa a esse posicionamento, quando todos haviam saído de casa, a personagem podia entrar em contato com algumas de suas percepções. Esse momento é denominado pela narradora como sendo "perigoso": "certa hora da tarde era mais perigosa" (Lispector, 2016, p. 145). Para tentar escapar dos perigos advindos da solidão, toma um bonde para fazer compras e, então, vê em um ponto, parado, um homem cego, mascando chicletes. É aí que ocorre a epifania, pois Ana se vê refletida no cego: ela também não vê o mundo. O conto mostra a oposição entre o mundo bem ordenado do cotidiano e o mundo do selvagem, demonstrado na saturação do corpo pela percepção das coisas que é experienciada por Ana no Jardim Botânico.

Desde o início do texto, percebe-se o trabalho doméstico de Ana como o centro que possibilita um sentido à sua existência. É isso que lhe confere segurança, pois seu mundo existe à medida que produz o que é palpável:

No fundo, Ana sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das coisas. E um lar perplexamente lhe dera. Por caminhos tortos, viera a cair num destino de mulher, com a surpresa de nele caber como se o tivesse inventado. (Lispector, 2016, p. 146)

Mas a segurança da protagonista é abalada quando a casa está vazia e não há mais afazeres, pois, nessas horas, Ana estava dada às sensações e à apreensão do mundo e de si mesma por meio do seu corpo e da sua percepção, dos quais buscava manter distância ocupando-se em seu papel estabelecido de mãe e de esposa. Para evitar lidar com as sensações, com o corpo e, também, com o desejo, Ana, por vezes, saía de casa para fazer compras ou levar objetos para consertar. Em uma dessas vezes, a visão do cego mascando chicletes causa-lhe uma crise que não pode ser explicada senão pelo próprio corpo.

Esse encontro permitiu à protagonista uma visão de si e do mundo: ela não percebe o mundo e tem o corpo rígido e fechado para cumprir suas funções pré-estabelecidas e seu papel social. Ao descer do bonde, ela vai ao Jardim Botânico, tentando acalmar sua perturbação. É aí que Ana vivencia a saturação do seu corpo por meio da percepção. Ela percebe tudo à sua volta a partir das sensações. A náusea que ela sente, provocada pela saturação do corpo, aponta para um novo estado de consciência, em que a percepção do corpo próprio abre caminho para a descoberta de uma outra identidade:

Inquieta, olhou em torno. Os ramos se balançavam, as sombras vacilavam no chão. Um pardal ciscava na terra. E de repente, com mal-estar, pareceu-lhe ter caído numa emboscada. Fazia-se no Jardim Botânico um trabalho secreto do qual ela começava a se aperceber. (Lispector, 2016, p. 150)

Aqui, pode-se fazer um paralelo entre a experiência vivenciada por Ana no Jardim Botânico e a concepção de percepção de Merleau-Ponty (1945/2006) visto que ele rompe com a noção de corpo-objeto e com as noções clássicas de sensação e dos órgãos dos sentidos como receptores passivos. Merleau-Ponty reforça a teoria da percepção fundada na experiência do sujeito encarnado, do sujeito que olha, sente e, nessa experiência do corpo fenomenal, reconhece o espaço como expressivo e simbólico, assim como acontece com a protagonista no conto, para a qual, a partir da sua percepção, o "mundo se torna de novo um mal-estar" (Merleau-Ponty, 1945/2006, p. 148), e a marca de sua crise se manifesta "no prazer intenso com que olhava agora as coisas, sofrendo espantada" (p. 149). Observa-se no conto, assim como na teoria, que, por meio da experiência corpórea e da percepção, acontece uma comunicação entre os sentidos.

O conto dá a ideia de que Ana vivia uma vida boa, já que "os filhos eram bons, a cozinha era espaçosa" (Lispector, 2016, p. 145). Põe em questão como se constrói uma identidade de mulher, salientando as questões não apenas da corporeidade e do corpo como agentes vivos e ativos, mas também o quão difícil é viver, se encaixar, estar no mundo em um corpo de mulher e como a subjetivação se constrói nesse corpo. A construção de uma identidade feminina relaciona-se intimamente com outros aspectos da cultura, como a cidadania, o casamento, a maternidade, as relações familiares e o trabalho (Nascimento, 2003). Assim, o posicionamento feminino não se revela apenas a partir do desejo dessa mulher, mas em função das respostas a diversas exigências provenientes de seu meio social e cultural. A questão do casamento, por exemplo: para essa mulher, o que poderia significar o matrimônio? De que modo os seus desejos pessoais poderiam ser acolhidos dentro de uma estrutura conjugal em que a mulher deveria servir e cuidar do esposo, com pouco ou nenhum espaço para a vivência da própria subjetividade?

O narrador deste conto de Clarice Lispector (2016) expressa a ideia de que Ana viera a cair em um destino de mulher, com a surpresa de se encaixar nele perfeitamente e, com marido e filhos verdadeiros, ela descobre que também sem a felicidade se vivia. Para ter uma vida adulta e se encaixar no corpo de mulher, a protagonista teve que deixar para trás uma juventude com tamanha exaltação e felicidade insuportável que, agora, até lhe parecia estranha. No entanto, ao se deparar com o homem cego mascando chicletes, e depois da experiência corpórea e sensorial que tivera no Jardim Botânico, Ana tem um epifania: ela desperta para o mundo, para as sensações e para a consciência do próprio corpo, e reflete sobre sua identidade; então, sua alma bate no peito e, "por um instante a vida sadia que levara até agora pareceu-lhe um modo moralmente louco de viver" (Lispector, 2016, p. 152). Nessa epifania, Ana questiona o papel social que tem que cumprir como mulher, olha para si mesma, se percebe e se enche "com a pior vontade de viver" (Lispector, 2016, p. 153), diferentemente do que vivia até então.

A partir dos estudos de Foucault (1976/2014) acerca da sexualidade, apreende-se que ela, ao contrário de ser um fenômeno biologicamente natural, é profundamente suscetível às influências culturais e sociais, caracterizando, portanto, um produto dessas forças históricas. As concepções de corpo e de sexualidade se construíram - e ainda se constroem - a partir dos sistemas de valores de cada sociedade. São a cultura e a sociedade que designam se determinadas práticas e condutas sexuais são apropriadas, saudáveis ou morais. Percebe-se que a protagonista do conto é bem ajustada ao seu papel social e às práticas e às condutas que lhes são impostas, vivendo uma vida estável e infeliz. Sua única precaução é tomar cuidado com a hora perigosa da tarde, quando está sozinha e não há mais serviço a ser feito. Esta hora pode-se inferir como o momento em que Ana teria de lidar sozinha consigo mesma, com seu corpo e com sua identidade. Ao estar sozinha, não é mais útil para a família, não tendo de cumprir seu papel de esposa e de mãe nem de carregar o seu corpo de mulher: Ana é apenas seu corpo, vivo, sexuado e sensível. O medo que a protagonista sente da hora perigosa da tarde pode tanto dizer respeito aos perigos desse encontro consigo mesma, sem máscaras e sem amarras e, a partir disso, redescobrir sua identidade, quanto ao medo do próprio corpo, ativo e sexuado, ao medo do desejo, ao medo de não cumprir seu papel perante a cultura e a sociedade, ou ao medo de ser inadequada, inapropriada ou imoral.

Ao identificar o corpo como ser sexuado, Merleau-Ponty (1945/2006) afirma que, nos sujeitos, há um modo de percepção que apenas se revela na relação com outras realidades sensíveis. Ao manter contato com outras pessoas e com o mundo, o corpo encontra na alteridade um prolongamento familiar de suas próprias intenções. O contato com a alteridade corresponde a um dos modos pelos quais o ser toma posse e interage com o meio, o que implica compreender a inteligência não como um mecanismo isolado, mas como presente em todo o corpo.

Para Merleau-Ponty, na sexualidade, impera uma compreensão que não necessariamente faz parte da consciência e do entendimento, mas que, como desejo, liga cegamente um corpo a outro. É por meio da sexualidade que as relações do sujeito com o mundo se tornam claras; ela é a relação entre pensamentos contraditórios e inseparáveis: é a tensão de uma existência em direção a uma outra existência que a nega e sem a qual, todavia, ela não se sustenta; é a própria dialética (Warmling, 2016). Pode-se afirmar que o que Ana temia na hora perigosa da tarde acaba lhe acontecendo, pois, por meio do seu corpo - vivo e sexuado -, ela interage com o mundo, se percebe e percebe o outro de forma diferente. Ana entra em contato com a alteridade e, por meio também da sua sexualidade, passa a compreender o que não fazia parte de seu entendimento, e questiona sua própria existência, sua identidade e seu corpo. Apesar da epifania, no final do conto, Ana retorna ao seu destino de mulher e, "se atravessara o amor e o inferno, penteava-se agora diante do espelho, por um instante sem nenhum mundo no coração. Antes de se deitar, como se apagasse uma vela, soprou a pequena flama do dia" (Lispector, 2016, p. 155).

Segundo Conto: Melhor do que Arder (Lispector, 2016)

O conto gira em torno de Madre Clara - ou apenas Clara, em última instância - e suas inquietações. É descrita como alta, forte, cabeluda, de buço escuro e olhos profundos e negros. Filha de portugueses, entrou no convento por imposição da família. Cumpria suas obrigações, mas estava cansada de viver só entre mulheres. A questão principal da personagem do conto é que ela arde. Tem desejo, tanto que tudo à sua volta a faz lembrar dele, a tal ponto que, até mesmo o corpo seminu de Cristo faz o corpo de Clara arder. Foi aconselhada a mortificar o corpo, mas continuava a sentir desejo. Passou a viver chorando e a comer pouco; implorou ajuda ao padre, que lhe aconselhou que é melhor não casar, no entanto é melhor casar do que arder. Clara sai do convento, casa-se com um português, tem uma ardente lua de mel em Lisboa: "Volta grávida, satisfeita e alegre" (Lispector, 2016, p. 582). O conto termina com o relato de que ambos tiveram quatro filhos, todos homens, todos cabeludos.

Novamente, a narrativa ficcional de Clarice Lispector (2016) vai ao encontro da noção de corporeidade assumida no presente estudo. Clara, antes de ser madre, é uma mulher, humana, um corpo que vive e arde. O conto ressalta a ideia de que somos corpos sexuados, quebrando a ideia de um corpo sacro e sem desejo, em posição semelhante às ideias de Foucault (1976/2014) e de Merleau-Ponty (1945/2006). Se, para o primeiro, o corpo é uma peça na trama de articulações de saberes/poderes, para o segundo, o corpo é ponto de apoio de percepções e de sensações na expressão da existência do indivíduo, sendo o corpo o próprio ser (Silveira & Furlan, 2005).

O conto expõe o corpo de Madre Clara sob o saber/poder da Igreja, porque, além de mulher, é freira. Por meio dos discursos sobre o corpo, a Igreja proíbe e utiliza esses discursos para ter controle sobre a sexualidade e sobre os corpos, portanto, sobre os seres. Seu corpo, para a Igreja e para a sociedade, deve ser santo, tão santo que quase não deveria existir e aparecer. No entanto seu corpo salta aos olhos e aos sentidos, despertando olhares e sensações que ultrapassam a noção de corpo casto e ascético esperada para uma freira: "Era alta, forte e cabeluda. Madre Clara tinha buço profundo e olhos profundos, negros" (Lispector, 2016, p. 582). Aqui a autora revela uma freira que fugia ao estereótipo construído para essas religiosas. Pelo contrário, a personagem tinha justamente um corpo forte, visível, que pulsa e arde.

A dimensão existencial do fenômeno sexual é resgatada por Merleau-Ponty (1945/2006) a partir da apreensão originária dos sentidos do corpo. A correlação entre existência e sexualidade é intrínseca. Entende-se, então, o caráter relacional da sexualidade como manifestação entre corpos no mundo, o que não reduz essas corporeidades a meros objetos que se remetem entre si, mas inserindo-as em uma complexidade mundana no processo descritivo da existência. Nesse sentido, a sexualidade brota do corpo como um encaminhamento prévio de estímulos eróticos e como expressão da própria existência (Silveira & Furlan, 2005). No conto, o corpo de Clara arde, como um corpo vivo que é, e a amiga e o padre lhes aconselham que mortifique o seu corpo, no entanto o padre também arde ao imaginar as pernas de Clara e também mortifica o próprio corpo, podendo se pensar, então, na mortificação do próprio ser como corpo, de como esse ser existe e se subjetiva a partir desse corpo e da relação desse corpo com o mundo:

- Mortifique o corpo. [...] Mas na hora em que o padre lhe tocava a boca para dar a hóstia tinha que se controlar para não morder a mão do padre. Este percebia, nada dizia. Havia entre ambos um pacto mudo. Ambos se mortificavam. Não podia mais ver o corpo quase nu de Cristo. [...] Um dia, na hora do almoço, começou a chorar. Não explicou por que a ninguém. Nem ela sabia por que chorava. E daí em diante vivia chorando. (Lispector, 2016, p. 582-583)

O conto aborda também a questão do corpo feminino, especificamente dentro da Igreja. Nessa instituição, a mulher deve ter um papel primordial na edificação moral dos corpos sociais, colocando-se dentro da família como a esposa e a mãe educadora e exemplar. O conto destaca a organização de um tipo de exercício de poder sobre as mulheres, em específico na instituição religiosa, descrevendo a formação e a subjetivação de um sujeito feminino nas frestas do catolicismo e concebendo um tipo peculiar que permanece nas formas de subjetivação das mulheres da atualidade (Pires, 2014).

Ao mortificar o seu corpo, negando-lhe seu caráter intrínseco - a sexualidade -, Clara padece. Não come mais e continua engordando, as olheiras são profundas, e só chora, o tempo todo, mesmo sem saber o porquê. Para Merleau-Ponty (1945/2006), a experiência sexual promove a existência, ou seja, é também a partir do reconhecimento encarnado da sexualidade que se pode existir como sujeito e como corpo. Essa existência parece ser negada à Clara.

Clara não suporta mortificar o seu corpo, pois ele arde. Recorre ao padre, que a aconselha: "É melhor não casar. Mas é melhor casar do que arder" (Lispector, 2016, p. 583). Ela, então, sai do convento, vai morar em um pensionato, passa a costurar seus próprios vestidos - "de manga comprida, sem decote, abaixo do joelho" (Lispector, 2016, p. 583) - e reza para que alguma coisa boa lhe aconteça em forma de homem. Percebe-se que Clara, assim como Ana, de Amor (Lispector, 2016), mesmo após passarem por uma experiência corpórea e perceptiva - Ana com a saturação do corpo por meio da percepção no Jardim Botânico, e Clara, percebendo-se como corpo sexuado, corpo que arde -, no final dos contos, ainda se encaixam em papeis sociais esperados e em corpos de mulher consentidos. Clara, apesar de arder, acata o conselho do padre e, para poder existir como corpo sexuado, casa-se virgem. Depois de chorar muito no convento, Clara consegue se perceber satisfeita e alegre ao voltar da lua de mel, grávida. Para Foucault (1976/2014), três eixos constituem a sexualidade nas sociedades modernas: a formação dos saberes que a ela se referem; os sistemas de poder que regulam suas práticas; e as formas pelas quais os indivíduos podem e devem se reconhecer como sujeitos de sua sexualidade. No conto, a formação dos saberes e os sistemas de poder que regulam a sexualidade estão representados pela Igreja. A partir disso, Clara, dentro do convento, tem uma crise ao se reconhecer como sujeito sexuado: seu corpo arde, de forma insuportável. No entanto os sistemas de saber/poder que regulam sua sexualidade influenciam as formas como sujeitos lidam com ela e com o próprio corpo, influenciando, assim, sua subjetivação.

Síntese Integradora dos Contos

Ambos os contos vão na contramão da ideia de sujeito cartesiano. As epifanias das personagens ocorrem sempre em primeira instância, no corpo e na sua relação com o meio e os outros. Os corpos das personagens são corpos vivos e, a partir da percepção e da interação com o mundo, se subjetivam. A subjetividade é trabalhada nos contos como corporeidade comportamental, que acontece na comunicação do corpo com o mundo. Os dois contos também apresentam as ideias de corpo sexuado e da relação intrínseca entre sexualidade e existência. Também trabalham a particularidade da subjetivação que ocorre no corpo da mulher. Ambos desenvolvem uma narrativa sobre os papéis sociais e o lugar da mulher na sociedade e, assim, demonstram como pode ser doloroso tentar caber em um corpo de mulher.

Nos contos, assim como para Merleau-Ponty (1945/2006), não é considerada a ideia de uma alma ou de uma instância superior. Ao contrário, os sentidos aparecem como aparelhos para captar o objeto. Os sentidos e o próprio corpo são, então, interpretados como meio de o sujeito ser sensível ao mundo. O sujeito aparece, tanto nos contos quanto na perspectiva de Merleau-Ponty, como corpo que conduz o mundo e tem consciência de si mesmo, do mundo, das coisas e do outro (Dentz, 2008). Nos contos, também a epifania das personagens ocorre por meio da percepção e do corpo. A percepção é compreendida como atitude corpórea. O sujeito é corporal. Assim, não se distingue sujeito e corpo, mas valoriza-se a relação entre organismo e ambiente e o papel fundamental assumido pela corporeidade nos processos de subjetivação. A apreensão dos sentidos se faz por meio do corpo, que não é mero instrumento a serviço da consciência; ao contrário, aparece como a própria consciência no corpo, contrapondo-se ao dualismo cartesiano (Merleau-Ponty (1945/2006).

Os contos apresentam corpos sexuados de mulheres. Nesse sentido, vão ao encontro das ideias de Foucault (1976/2014), que afirma ser a sexualidade constituída nas sociedades modernas a partir da formação dos saberes e dos poderes que regulam suas práticas e das formas por meio das quais os indivíduos se reconhecem como sujeitos de sua sexualidade. As narrativas abordam temas como a sexualidade e o corpo das mulheres, como elas se subjetivam e vivenciam sua sexualidade e como cumprem um papel imposto pela sociedade. Nelas, apreende-se que a sexualidade, ao contrário de ser um fenômeno natural, é suscetível às influências culturais e sociais, caracterizando um produto de forças sociais e históricas. Os contos enfatizam como é difícil as mulheres se encaixarem num corpo de mulher, questionando o controle das sexualidades e dos corpos que são exercidos na sociedade e os papéis que elas devem cumprir para caber nesse corpo.

Um ponto de destaque é que a obra de Clarice Lispector (2016), ao trabalhar com as questões do corpo e da sexualidade, apresenta uma particularidade, pois discute a especificidade do corpo da mulher. A questão da identidade é por ela posta acima da diferença de gênero, para situar-se como questão do ser humano. Porém, ao escolher mulheres para protagonizar as aventuras da descoberta da própria identidade, denuncia as dicotomias mente/corpo e homem/mulher, e mostra como elas levam a transformar o corpo e a sexualidade em objetos de poder (Pozenato, 2010).

Em Foucault (1976/2014), a sexualidade caracteriza-se como produto de um complexo conjunto de processos sociais, culturais e históricos. Portanto, é uma construção social que engloba o conjunto dos efeitos produzidos nos corpos, nos comportamentos e nas relações sociais. Ao longo da história, a atividade sexual foi objeto de preocupação moral e, como tal, submetida aos dispositivos de controle das práticas e dos comportamentos sexuais. Para Foucault, três eixos constituem a sexualidade nas sociedades modernas: a formação dos saberes que a ela se referem, os sistemas de poder que regulam suas práticas e as formas pelas quais os indivíduos podem e devem se reconhecer como sujeitos de sua sexualidade. Neste sentido, afirma que:

Não devemos enganar-nos: sob a grande série das oposições binárias (corpo-alma, carne-espírito, instinto-razão, pulsões-consciência) que pareciam referir o sexo a uma pura mecânica sem razão, o Ocidente conseguiu, não somente e nem tanto, anexar o sexo a um campo de racionalidade, o que sem dúvida nada teria de extraordinário, tanto nos habituamos, desde os gregos, a esse tipo de "conquista"; mas sobretudo colocar-nos, inteiros - nós, nosso corpo, nossa alma, nossa individualidade, nossa história -, sob o signo de uma lógica da concupiscência e do desejo. (Foucault, 1976/2014, p. 86)

Assim, ressalta-se a convergência entre as ideias de Foucault (1976/2014) e a escritura de Clarice Lispector (2016), tendo em vista que ambas denunciam o tipo de percepção que separa o ser humano do mundo, o homem da mulher e o ser humano de si mesmo (Pozenato, 2010). Em sua obra, Clarice apresenta a mulher, seus papéis sociais e sua relação com o corpo e a sexualidade, demonstrando, nas suas narrativas, que a percepção de seu corpo causa epifania nas personagens, que, ao tomarem consciência dessa lógica de poder e de aprisionamento de seus corpos, redescobrem sua própria identidade.

Analisando a relação do corpo com o mundo, os contos aqui discutidos também convergem com as concepções fenomenológicas acerca da corporeidade. Merleau-Ponty (1945/2006) aponta para a sexualidade como forma de comércio do corpo com seus objetos de desejo, ou seja, também como uma forma de compreensão, capaz de nos revelar a gênese do ser. De acordo com o filósofo, é refletindo sobre a experiência corporal da sexualidade que se pode chegar a compreender a existência como um todo. Indo ao encontro da perspectiva fenomenológica, as situações ficcionais de Clarice Lispector (2016) abrem caminhos para a redescoberta do corpo e da sexualidade e de si mesmo a partir da experiência corpórea (Pozenato, 2010).

Merleau-Ponty (1945/2006) destaca que, para por em evidência a gênese do ser, é preciso considerar os afetos, compreendendo como os objetos e os seres podem existir a partir do desejo ou do amor. O corpo é capaz de transformar ideias em coisas; se ele é capaz de simbolizar a existência, é porque a realiza: é a sua atualidade. O filósofo concebe o corpo como ser sexuado. Assim como um movimento do corpo é percebido sem se tomar consciência expressa dele, também é a sexualidade, sem ser o objeto de um ato de consciência expresso, pode motivar as formas privilegiadas da experiência. Considerada como atmosfera ambígua, a sexualidade é coextensiva à vida.

 

Considerações Finais

Ambos os contos analisados abordam a corporeidade a partir de uma concepção diferente do sujeito cartesiano, em que não há a dicotomia mente-corpo: ao contrário, há um corpo que é o próprio ser e a consciência. A noção de corpo apresentada nas obras de Clarice Lispector não é mais um conjunto de órgãos, mas corpo vivido e sensível, indo ao encontro das ideias de teóricos da corporeidade, como Merleau-Ponty, que combate a crença de que a consciência seja portadora da faculdade de julgar e explicar, e volta-se, antes, para o corpo como veículo do ser no mundo, priorizando a percepção para descrever os fenômenos vividos. Apreende-se que a construção de um sujeito e de sua subjetivação, nos contos, vão na contramão de concepções dualistas.

A psicologia, muitas vezes, concebeu um sujeito dividido e se esqueceu do corpo. É mister repensar como ocorrem os processos de subjetivação e a importância do corpo como o próprio ser que vive, interage e percebe o mundo por meio dos sentidos. As narrativas de Clarice Lispector empregadas neste estudo também propõem pensar que, se a subjetivação ocorre por meio do corpo, como, então, ocorre no corpo da mulher, pensando em corpos e sexualidades aprisionados pelos sistemas de valores da sociedade e pelos papéis que é obrigada a cumprir para se encaixar em seu corpo? Clarice Lispector corporifica tal questionamento, cravando-o nos contos aqui analisados, em um movimento que também busca a abertura para outras contribuições e perspectivas vindouras.

 

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Endereço para correspondência:
Giovanna Bucioli Pojar
E-mail: gi.bucioli@gmail.com

Fabio Scorsolini-Comin
E-mail: fabioscorsolini@gmail.com

Recebido em: 26/12/2017
Revisado em: 27/09/2019
Aceito em: 26/10/2019
Publicado online: 12/03/2020

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