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versão impressa ISSN 2359-0769versão On-line ISSN 2359-0777

Rev. Subj. vol.20 no.1 Fortaleza jan./abr. 2020

http://dx.doi.org/10.5020/23590777.rs.v20i1.e9347 

ESTUDOS TEÓRICOS

 

Uma discussão sobre relações pessoa-cultura em processos terapêutico-educacionais nos transtornos do espectro do autismo

 

A Discussion on Person-Culture Relationships in Therapeutic-Educational Processes in Autism Spectrum Disorders

 

Una Discusión sobre Relaciones Persona-Cultura en Procesos Terapéutico-Educacionales en los Trastornos del Espectro del Autismo

 

Une Discussion sur les Relations Personne-Culture dans des Processus Thérapeutiques et Éducatifs dans les Troubles du Spectre Autistique

 

 

Djalma Francisco Costa Lisboa de Freitas

Doutor em Psicologia pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-Doutorando no Departamento de Psicologia Experimental do Instituto de Psicologia da USP

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho discute o lugar de processos terapêutico-educacionais junto a pessoas diagnosticadas com transtorno do espectro do autismo (TEA). O TEA é descrito como um transtorno do desenvolvimento que afeta a interação social, a comunicação, os comportamentos e o processamento sensorial da pessoa. As reflexões presentes neste trabalho partem da discussão de como os constructos teórico-metodológicos da perspectiva evolucionista e da perspectiva da psicologia cultural podem contribuir para a compreensão acerca do desenvolvimento da pessoa diagnosticada com TEA, bem como, sobre o posicionamento de responsabilidade ética nos processos terapêuticoeducacionais com essas pessoas. Destaca-se que, ao falar de compreensão e intervenção terapêutico-educacional sobre o desenvolvimento de pessoas diagnosticadas com TEA, estão implicados processos ligados a níveis filogenéticos, ontogenéticos e sociogenéticos de seleção/variação de formas pessoais e coletivas de funcionamento na relação pessoa-cultura. Conclui-se que os mecanismos semiótico-culturais - como a saúde e educação - assumem sua posição enquanto movimentos regulatórios e de responsabilidade ética sobre as pessoas diagnosticada com TEA.

Palavras-chave: construtivismo semiótico-cultural em psicologia; interação cultural; transtorno espectro do autismo; processos terapêutico-educacionais.


ABSTRACT

This paper discusses the place of therapeutic-educational processes with people diagnosed with autism spectrum disorder (ASD). ASD is described as a developmental disorder that affects a person's social interaction, communication, behaviors, and sensory processing. The reflections present in this work start from the discussion of how the theoretical-methodological constructs from the evolutionist perspective and the semiotic-cultural constructivist perspective in psychology can contribute to the understanding about the development of the person diagnosed with ASD, as well as about the positioning of ethical responsibility in the educational therapeutic processes with these people. It is noteworthy that, when talking about understanding and therapeutic-educational intervention on the development of people diagnosed with ASD, processes linked to phylogenetic, ontogenetic and sociogenetic levels of selection/variation of personal and collective ways of functioning in the person-culture relationship are involved. It is concluded that semiotic-cultural mechanisms - such as health and education - assume their position as regulatory and ethical responsibility movements on people diagnosed with ASD..

Keywords: semiotic-cultural constructivism in psychology; cultural interaction; autism spectrum disorder; therapeutic-educational processes.


RESUMEN

Este trabajo discute el lugar de procesos terapéutico-educacionales junto a las personas diagnosticadas con trastorno del espectro del autismo (TEA). El TEA es descripto como un trastorno del desarrollo que afecta la interacción social, la comunicación, los comportamientos y el procesamiento sensorial de la persona. Las reflexiones presentes en este trabajo parten de la discusión de como los constructos teórico-metodológicos de la perspectiva evolucionista y de la perspectiva constructivista semiótico-cultural en psicología pueden contribuir para la comprensión sobre el desarrollo de la persona diagnosticada con TEA, como también posicionamiento de responsabilidad ética en los procesos terapéutico-educacionales con estas personas. Se enfoca que, al hablar de comprensión e intervención terapéutico-educacional sobre el desarrollo de persona diagnosticada con TEA, están implicados procesos relacionados a los niveles filogenéticos, ontogenéticos y socio-genéticos de selección/variación de formas personales y colectivas de funcionamiento en la relación persona-cultura. Se concluyó que los mecanismos semiótico-culturales - como la salud y educación- toman su posición mientras movimientos regulatorios y de responsabilidad ética sobre las personas diagnosticadas con TEA.

Palabras clave: constructivismo semiótico-cultural en psicología; interacción cultural; trastorno del espectro del autismo; procesos terapéutico-educacionales.


RÉSUMÉ

Cet article discute de la place des processus thérapeutiques et éducatifs auprès des personnes diagnostiquées avec un trouble du spectre autistique (TSA). Le TSA est décrit comme un trouble du développement qui affecte l'interaction sociale, la communication, les comportements et le traitement sensoriel d'une personne. Les réflexions présentes dans ce travail partent de la discussion sur la manière dont les constructions théorique e méthodologiques, du point de vue évolutif et du point de vue constructiviste sémiotique-culturel en psychologie, peuvent contribuer à la compréhension du développement de la personne diagnostiquée avec un TSA, ainsi que du positionnement de la responsabilité éthique dans les processus thérapeutique-pédagogique avec ces personnes. Il est à noter que, lorsque on parle de compréhension et d'intervention thérapeutique-éducative sur le développement des personnes diagnostiquées avec un TSA, des processus liés aux niveaux de variation phylogénétique, ontogénétique et sociogénétique de sélection/variation personnels et collectifs dans la relation personne-culture sont impliqués. On peut conclure que les mécanismes sémiotiques et culturels - tels que la santé et l'éducation - assument leur place de responsabilité réglementaire et éthique des personnes diagnostiquées avec un TSA.

Mots-clés: constructivisme sémiotique et culturel en psychologie; interaction culturelle; trouble du spectre de l'autisme; processus thérapeutiques et éducatifs.


 

 

Buscamos, neste estudo, compreender o lugar de processos terapêuticoeducacionais com pessoas diagnosticada com transtorno do espectro do autismo - TEA. Para isso, apresentamos uma visão evolucionista baseada nas perspectivas de Charles Darwin (1859) sobre seleção natural e de James Mark Baldwin (1896) acerca do que chama de seleção funcional a luz de princípios teóricometodológicos da psicologia cultural. Entendemos como processos terapêutico-educacionais, os quais, se destacam as relações pessoa-cultura, que guiam a construção, manutenção e transformação de estruturas e processos culturais na relação das pessoas em seu curso de vida. Tais relações e processos apontam para a capacidade das pessoas de, seletivamente, apreenderem aspectos, tanto do outro quanto da cultura, quando estão em relação com outras culturas ou entre diferentes gerações dentro de uma cultura (Freitas & Guimarães, 2013). Portanto, ao trabalhar com processos terapêuticoeducacionais, focalizamos nossa atenção sobre relações de (Transferência) Transmissão da Cultura como parte inerentemente articulada ao desenvolvimento e aprendizagem das pessoas e da cultura. A partir disso, apontamos questões de construção e perpetuação da cultura1 coletiva e pessoal (Valsiner, 1998 do profissional, bem como do paciente e família, que possibilitam importantes reflexões acerca de processos terapêuticoeducacionais no âmbito do quadro diagnóstico de transtorno do espectro do autismo (TEA), considerando que a presença ou não de um diagnóstico está diretamente relacionada a processos relacionais entre pessoa e cultura, de modo diferentemente válido ao que é observado em manuais biomédicos.

Partimos da perspectiva da psicologia cultural para destacar que, no processo de construção de conhecimento, é de fundamental importância que trabalhemos teórico-metodologicamente a partir de processos dialógicos, focalizando o caráter transformativo e temporário do conhecimento (Valsiner, 2012). A psicologia cultural vem, há alguns anos, se constituindo como uma perspectiva teórico-metodológica que discute a multidirecionalidade da relação pessoa-cultura, na qual cada um na relação é afetado pelo outro, promovendo, assim, uma transformação de todos os envolvidos no campo cultural de ação (Simão, 2010).

No que se refere ao TEA, tem sido compreendido, desde a ótica biomédica, como um transtorno do desenvolvimento de ordem neurobiológica e genética que afeta, em diferentes medidas e intensidades, as áreas da interação social, da comunicação, dos comportamentos e do funcionamento sensorial da pessoa (APA, 2013). Mesmo apresentando diferentes níveis de comprometimento no seu desenvolvimento, a pessoa diagnosticada com TEA tende a necessitar de intervenções terapêutico-educacionais por prazo indeterminado, devido a apresentar um quadro sintomatológico de cronicidade importante, de modo a criar condições para que elas se desenvolvam em direção ao previamente estipulado como desenvolvimento típico na cultura (Bosa, 2006; Bosa & Teixeira, 2017; Freitas, 2016; Whitman, 2015).

A partir disso, a seguir, iremos discutir o que se tem entendido acerca do desenvolvimento da pessoa diagnosticada com TEA, para que, em seguida, possamos discutir a compreensão desse transtorno à luz de uma perspectiva evolucionista articulada com a perspectiva da psicologia cultural, destacando o caráter relacional pessoa-cultura que enfatiza a função cultural, pouco privilegiada em estudos atinentes a esse transtorno. Ademais, discutiremos, como característica central nas formas de apreensão de TEA, o lugar que processos terapêuticoeducacionais com pessoas diagnosticadas com esse transtorno ocupam em face de relações pessoa-cultura. Por fim, iremos discutir teórico e metodologicamente a questão de responsabilidade ética em relações interdependentes e dialógicas incutidas em processos terapêutico-educacionais com pessoas diagnosticadas com TEA.

 

Do que Estamos Falando quando Falamos de Transtorno do Espectro do Autismo?

O termo autismo foi citado pela primeira vez por Bleuler, em 1911, para designar a 'perda de contato com a realidade', o que interferiria na comunicação dessas pessoas com os demais que o cercam (Paula, Cunha, Silva, & Teixeira, 2017). Bleuler utilizou o termo para se referir à imaginação acentuada e aos déficits em interações sociais de pessoas diagnosticadas com esquizofrenia, as quais tratava.

Em 1943, o psiquiatra austríaco Leo Kanner descreveu casos de crianças que eram portadoras de uma 'inabilidade inata para estabelecer contato afetivo e interpessoal', revelando uma falta de imaginação, tal como descrito:

A combinação de autismo extremo, obsessão, estereotipias e ecolalia trazem o quadro total nos relacionamentos com alguns fenômenos esquizofrênicos básicos. Algumas das crianças de fato foram diagnosticados com este tipo em algum momento ou outro. Mas, apesar das semelhanças notáveis, as condições diferem em muitos aspectos dos demais casos que conheço de esquizofrenia na infância (Kanner, 1943, p. 248)

Kanner se referia ao quadro descrito como autismo infantil precoce (Assumpção & Pimentel, 2000), que destacava um perfil sintomatológico composto por: 1) uma profunda dificuldade de contato com as pessoas, 2) um desejo obsessivo de preservar as coisas e as situações, 3) uma ligação especial com os objetos, 4) uma fisionomia inteligente e 5) graves alterações de linguagem, que se estendiam do mutismo a uma linguagem sem função comunicativa, refletindo as dificuldades de contato e de comunicação interpessoal.

Em 1944, o pediatra austríaco Hans Asperger descreveu casos em que crianças com inteligência normal apresentavam características semelhantes ao autismo no que diz respeito às dificuldades de comunicação social. Embora, nessa época, Kanner e Asperger não tivessem se conhecido ou trocado informações a respeito do quadro, suas caracterizações eram muito semelhantes.

Mais de 30 anos após as definições de Leo Kanner e de Hans Asperger, Ritvo e Ornitz (1976) passam a discutir o autismo como sendo um transtorno de causas cognitivas e do desenvolvimento. Nessa medida, os aspectos dimensionais do autismo passaram a fazer parte das discussões acerca desse transtorno. Lorna Wing (1988) descreve o autismo como um continnum de alterações no desenvolvimento, com início precoce, e que permanecem mais ou menos regulares ao longo da vida das pessoas diagnosticadas com esse transtorno. Foi somente em 2013, contudo, que os aspectos multidimensionais do continnum do quadro sintomatológico, assim como a descrição do autismo como transtorno do neurodesenvolvimento, ganharam espaço nas descrições de manuais biomédicos, o que ocorreu no DSM-V (APA, 2013), que classificou o autismo como transtorno de espectro (Teixeira, Carreiro, Cantiere, & Baraldi, 2017).

A mudança de nomenclatura de autismo para transtorno do espectro do autismo trouxe importantes implicações sobre a descrição do transtorno. Bosa, Backes, e Zanon (2016) destacam que as anormalidades nos TEA apresentam um perfil sintomatológico muito abrangente, o que caracteriza as diferentes intensidades e distintas manifestações de tais anormalidades.

Whitman (2015, pp. 58-59) destaca nove domínios e processos que se configuram como possibilidades abrangentes de alterações no desenvolvimento de uma pessoa diagnosticada com TEA em comparação com o que é esperado no desenvolvimento típico de uma pessoa, são eles: sensorial, motor, estimulação/ativação/emoção, cognição, interação social, linguagem/comunicação, autorregulação, problemas comportamentais e características físicas/ problemas médicos.

Os aspectos destacados por Whitman (2015, pp. 58-59) apontam para uma grande amplitude de possibilidades de alterações no desenvolvimento em comparação com o que é, convencionalmente, esperado no desenvolvimento típico de uma pessoa. Esses aspectos destacados implicam na forma de intervenção, compreensão e avaliação sobre a pessoa com hipótese diagnóstica ou diagnosticada com TEA e, portanto, sobre o desenvolvimento, considerado atípico, dessas pessoas. Torna-se necessário, com isso, um olhar acurado do profissional que se aventura a atuar de modo terapêutico-educacional com pessoas diagnosticadas com TEA. Como na cultura médica os diagnósticos são feitos a partir do que se entende, convencionalmente, por típico ou normal em comparação com rotas de desenvolvimento que se desviam desse entendimento, torna-se importante compreender a rota de desenvolvimento da pessoa diagnosticada com TEA em articulação com o que pode ser entendido como desenvolvimento típico para compreendermos o lugar de processos terapêutico-educacionais com essas pessoas.

Dessa forma, com o intuito de entendermos, de forma mais acurada, o desenvolvimento da pessoa com TEA, alguns pontos devem ser levados em consideração nesse trecho do trabalho: 1) Existem quatro principais áreas de comprometimento da pessoa diagnosticada com TEA que devem ser olhadas: a comunicação, a interação social, a alteração no processamento sensorial e os comportamentos (Whitman, 2015); 2) Essas áreas de comprometimento do TEA se desdobram em múltiplos aspectos sintomáticos, que se destacam em diferentes domínios/processos de comprometimento, e que comumente se associam à pessoa diagnosticada com TEA (Whitman, 2015); 3) Para fins terapêutico-educacionais e diagnósticos, é necessário, então, observar o desenvolvimento da pessoa em comparação com que está disposto nos manuais biomédicos a esse respeito.

Esses três pontos destacam um caminho importante de entendimento do desenvolvimento das pessoas diagnosticadas com TEA, bem como do processo terapêutico-educacional com elas. As especificidades referentes aos domínios e processos comumente associados ao quadro diagnóstico de TEA, contudo, leva-nos a buscar uma compreensão mais específica sobre o desenvolvimento dessas pessoas que, em diferentes medidas, consideram as relações com a cultura como característica indissociável nas relações que a pessoa estabelece com seu meio.

 

Uma visão Evolucionista e Semiótico-Construtivista em Psicologia Cultural sobre os TEA

A partir de discussões prévias (Freitas, 2013 acerca da relação entre a teoria evolucionista de Charles e a teoria construtivista de James Mark , destacamos pressupostos pertinentes aos processos nomeados como seleção natural e seleção funcional que apresentam um modo de funcionamento dinâmico entre os níveis de seleção e variação filogenético, ontogenético e sociogenético.

Esses níveis de seleção e variação preparam as pessoas para agir sobre o ambiente à sua volta, fazendo uso de mecanismos e ferramentas apreendidos e selecionados que favorecem sua sobrevivência. Uma vez que a pessoa sobrevive, se perpetuam, com ela e seus pares, os aprendizados, as novas estruturas e as novas funções que a possibilitaram sobreviver. Destacamos, neste ponto, a importância da herança cultural em articulação com os constructos desenvolvidos por Darwin e Baldwin. Isto é, não somente os aprendizados, as estruturas e as funções dos modos de agir sobrevivem, mas o ambiente cultural é transformado, ou seja, objetos, estratégias, ações, sentimentos e pensamentos sobre o mundo são construídos, se desenvolvem e servem de mecanismos regulatórios para as futuras e atuais gerações culturais, o que complementa o desenvolvimento de cada um dos níveis de seleção e variação.

Para Valsiner (2012), quando falamos de mecanismos regulatórios, estamos falando de hierarquização de significados definidos em um contexto e/ou definidos em campos afetivo e cognitivo difusos. Por um lado, tem-se um controle cultural hierárquico em crescente generalização na relação de desenvolvimento da cultura pessoal e, por outro lado, os modos de agir compartilhados coletivamente que atravessam as entradas sociais de regulação pessoal advindas da cultura coletiva (Mattos & Chaves, 2014). O controle cultural hierárquico aponta para relações em que ocorrem transformações na cultura pessoal e coletiva como um processo de apreensão e desenvolvimento que sempre é, e será, guia e guiada por uma ou muitas balizas2 (Valsiner, 1998) em processos afetivos e regulatórios da experiência humana.

Valsiner destaca que

(...) níveis de mediação semiótica dos processos afetivos (...), inclui, no mesmo esquema, emoções e sentimentos de diferentes graus de generalidade. O nível 0 é a antecipação fisiológica universal . (...) Com base neste nível, os organismos podem desenvolver uma "sensação de sintonia" generalizada e não mediada. (...) fenômenos do nível 1 não requerem mediação semiótica, são generalizações pré-verbais (...) A generalização pré-verbal permite ao organismo manter experiências prévias para uso posterior, mas não requerem codificação por signos. (...) No nível 2 (...) ocorre a nomeação específica das emoções presentes "na" pessoa que as experimenta em si mesmo. (...) o nível 3 descreve uma situação na qual uma pessoa, após o uso excessivo de categorias de emoção em seu próprio autodiálogo interno, chega a uma nova autorreflexão generalizada, mesmo se mal definida . (...) Finalmente, a generalização do campo de sentimentos mediado por signos pode alcançar o nível mais alto de supergeneralização: o de um estado semioticamente mediado que é, ao mesmo tempo, não diferenciado (nível 4). (2012, pp. 260-261)

Contudo processos de regulação orgânico-corporal assumem, também, um importante papel complementar ao controle cultural (Guimarães & Cravo, 2015) de regulação da cultura pessoal e coletiva.

Baseado em Whitman (2015), o TEA é um transtorno do desenvolvimento que afeta em diferentes medidas as formas de autorregulação da pessoa em níveis orgânico-corporais e semióticos. Nos baseando nas propostas advindas dos constructos teórico-metodológicos de Darwin (1859) e de Baldwin (1896), o desenvolvimento das pessoas percorrem níveis de seleção e variação que as preparam para ação sobre o ambiente à sua volta.

Na Figura 1, destacamos um esquema que pretende apontar a qualidade processual e dinâmica do desenvolvimento da pessoa e da cultura diante de diferentes e possíveis funções regulatórias que permitem, em alguma medida, a emergência de mecanismos de autorregulação.

Baldwin (1896) aponta para fatores da evolução das espécies à evolução do homem, apresentando pensamentos que destacam questões acerca da evolução dos organismos em encontro com fatores seletivos de desenvolvimento humano. Ao desenvolver sua teoria nomeada, como seleção funcional, Baldwin (1896) aponta para aspectos físicos que favorecem à sobrevivência do organismo e se constituem como parte do processo de seleção natural e de hereditariedade. Esses processos, para Baldwin, correspondem a aspectos da filogenia ligados à 'transmissão genética'.

A partir do nível de seleção/variação filogenético, emergem três processos de seleção/variação em nível ontogenético: as variações e adaptações sobre o aparelho físico do organismo advindas das condições de vida chamadas de forças físico-genéticas; as variações e adaptações decorrentes das ações espontâneas do organismo permitidas por seu aparelho congênito referente a propriedades seletivas dos sistemas neurais chamadas de forças neurogenéticas; e a grande série de adaptações e variações em nível consciente, isto é, através de uso inteligente e intencional de ações sobre o meio físico e social, portanto, na coletividade, a essas forças Baldwin deu o nome de forças psicogenéticas (Baldwin, 1896).

Cada um dos processos de seleção ontogenética descritas por Baldwin operam de forma interdependente, isto é, existem relações de dependência entre eles em termos de adaptação do(s) organismo(s) sobre o ambiente. Assim sendo, as adaptações funcionais que decorrem dos três pilares da ontogenia podem favorecer a sobrevivência do organismo a partir de sua relação com o ambiente coletivo-social - nível sociogenético de seleção/variação.

Dessa forma, a seleção filogenética aparece como aspectos congênitos e determinados. Em contrapartida, é a inteligência, parte do nível ontogenético, que torna funcional a variação e a seleção filogenética. Assim sendo, a inteligência ocupa as lacunas entre a seleção filogenética e a constante variação do ambiente e do organismo, tornando a variação ambiental pouco expressiva frente à sobrevivência e à adaptação. Assim, a superação do acaso, a partir da inteligência, do contato com o meio (imitação e observação), do reconhecimento e da capacidade de avaliar e tomar decisões, favorecem o desenvolvimento da relação pessoa-cultura.

Dessa forma, a seleção funcional pode dar à pessoa a capacidade de aumentar suas chances de sobrevivência, envolvendo seu desenvolvimento filogenético, suas ações apreendidas no nível ontogenético e, destarte, as formas coletivas de ação no nível sociogenético. Aqueles com maior capacidade de adaptação ao ambiente passam a ser objetos de seleção e selecionadores. Esse movimento traz à tona a importância da sociabilidade e suas potencialidades no processo de evolução e desenvolvimento da pessoa e da cultura.

Com isso, partindo da teoria da evolução de Darwin, em articulação com os pressupostos da seleção funcional de Baldwin, observamos cinco processos regulatórios que afetam e são afetados mutuamente pelos níveis de seleção/variação filogenético, ontogenético e sociogenético: 1) forças ambientais sobre mecanismos de regulação orgânico-corporal da pessoa; 2) regulação da pessoa sobre aspectos ambientais e orgânico-corporais; 3) regulação do ambiente social sobre possibilidades de regulação da pessoa frente às demandas orgânicocorporais e ambientais; 4) forças ambientais sobre o desenvolvimento regulatório social e 5) regulação social sobre as forças ambientais. Esses cinco processos regulatórios apresentam à pessoa limites e possibilidades de ação regulatória que incluem continuidades e descontinuidades estruturais e processuais em nível pessoal - semiótico e orgânico-corporal - e coletivo, implicadas e representadas pelo que destacamos como seleção e variação.

O princípio processual da seleção natural aponta para forças ambientais sobre mecanismos de regulação orgânico-corporal da pessoa. Tal qualidade processual possibilita a emergência, assim como é possibilitada, a partir de continuidades e descontinuidades estruturais e processuais, em níveis seletivos e variáveis de ordem filogenética, a partir dos princípios de hereditariedade e variação genética. Nesse sentido, destacam-se processos em que estão envolvidas relações semióticas de regulação, assim como relações orgânicocorporais de regulação. Portanto, processos dessa natureza emergem no âmbito das relações estabelecidas entre as forças ambientais sobre o desenvolvimento regulatório social e vice-versa, o que caracteriza seu forte vínculo com a seleção funcional e está relacionado a mecanismos de autorregulação da pessoa em nível semiótico e orgânico-corporal.

O nível de seleção e variação filogenético aponta a relação entre a seleção natural e o desenvolvimento da pessoa, na qual a seleção ocorre sobre os aspectos comuns à espécie em nível estrutural, básicos para a sobrevivência do organismo, mas que continuam, em sua maioria, ativos ao longo da trajetória de vida da pessoa como mecanismos orgânicocorporais e semióticos de regulação. Contudo a seleção natural, na evolução humana, aponta para um limite que destaca as forças ambientais sobre os mecanismos de regulação orgânico-corporal da pessoa mais propensa a atuar sobre um ambiente semelhante àquele em que a espécie evoluiu e/ou de forma desadaptada ao contexto/ambiente de vida da pessoa. Assim, a pessoa, nesse nível de desenvolvimento, pode estar mais preparada a agir sobre ambientes que, devido às construções humanas, podem não mais existir tal como eram quando a seleção filogenética aconteceu ou, ainda, os resultados da seleção filogenética podem estar desadaptados defronte as construções humanas, isto é, diante das construções culturais. Nessa direção, novas formas de evolução - desenvolvimento de estruturas e processos - emergiram ao longo do tempo para suprir essa possível limitação no processo de seleção filogenética relacionada a seleção natural.

No nível ontogenético, a regulação da pessoa, sobre aspectos ambientais e orgânico-corporais, parte de forças físico-genéticas, neurogenéticas e psicogenéticas, preparando a pessoa para uma transformação estrutural em nível orgânico e funcional. Daí emergem as qualidades de regulação da pessoa sobre o ambiente e sobre si, transformando-o e sendo transformada por ele. É, destarte, no nível ontogenético de seleção e variação que as pessoas estão mais propensas "(...) a construção e o uso de signos para regular os fenômenos psicológicos emergentes, tanto os interpessoais quanto os intrapessoais" (Valsiner, 2012, p. 55).

Assim sendo, a regulação da pessoa sobre aspectos ambientais e orgânico-corporais pode estar mais vinculada à atuação através de ações, semióticas ou não, muitas vezes aleatórias, com seus aspectos seletivos guiados pelo princípio de dor e prazer, que possibilitam a continuidade e descontinuidade de ações funcionais sobre o ambiente (Baldwin, 1896). Tal processo aparece como um limite ao nível ontogenético no desenvolvimento da pessoa.

Nesse sentido, o 'limite' ontogenético pode ser suprido por mecanismos processuais emergentes nele próprio - inteligência e hereditariedade social -, bem como pela emergência de mecanismos reguladores encontrados no nível sociogenético. Os mecanismos de regulação do ambiente social sobre possibilidades de regulação da pessoa frente às demandas orgânico-corporais e ambientais dão às pessoas a capacidade de se beneficiar de ações e constructos desenvolvidos por outras pessoas e outras gerações no seu desenvolvimento (Freitas & Guimarães, 2013), além de suprimir, em diferentes medidas, o impacto do ambiente sobre si.

A qualidade reguladora do nível de seleção/variação sociogenético somente pode operar sobre ambientes que possuam características que se assemelhem, em alguma medida, ao ambiente no qual seus mecanismos estruturais e processuais emergiram, ou seja, a partir da assunção da qualidade idiossincrática da relação pessoa-cultura, mecanismos de regulação sociogenético emergem e são construídos por pessoas específicas e dentro de um tecido cultural também específico. Isso implica considerarmos que mecanismos de regulação dessa natureza, desenvolvida por um grupo de pessoas, podem não ser eficazes, em termos regulatórios e adaptativos, para outros grupos de pessoas, o que destaca restrições ao nível sociogenético de seleção/variação e, além disso, aponta para tentativas de generalização regulatória ou de superação de restrições sobre a pessoa diagnosticada com TEA. É por esse motivo que a forma ou a capacidade de apreensão de constructos culturais e pessoais dados no desenvolvimento da pessoa diagnosticada com TEA ocorre em rotas distintas, especialmente no que se refere à capacidade de autorregulação, das apresentadas por pessoas que não são acometidas pelas manifestações sintomatológicas desse transtorno.

(...) o principal problema das crianças com autismo (...) está (...) em sua capacidade de modular ou regular (...) estimulações. (...) o que as diferencia das crianças que se desenvolvem de forma mais típica é o seu fracasso, quando se sentem incomodadas ou aborrecidas, para conseguirem readquirir o estado de calma, alerta e atenção concentrada. Esta falha poderia ser atribuída à sua incapacidade para desenvolver e/ou empregar estratégias autorreguladoras motoras (...) , cognitivas (...) eficazes. (...) Assim, é possível que as pessoas com autismo difiram das pessoas sem autismo na forma como vivenciam um estímulo, (...) na forma como reagem e lidam com um estimulo detectado, (...) ou em sua sensibilidade e estilo de enfrentamento. (Whitman, 2015, pp. 117-118)

A assumpção trazida por Whitman (2015) está vinculada ao desenvolvimento atípico atinente a forças orgânico-corporais que interferem na capacidade de relacionamento em outros níveis de seleção e variação. Obviamente, isso está implicado na forma de funcionamento das forças físico-genéticas, neurogenéticas e psicogenéticas destacadas por Baldwin (1896), que se vinculam ao nível de seleção e variação ontogenético, o qual apresenta restrições importantes vindas da formação estrutural - nível filogenético - do organismo com TEA.

Limitações dessa ordem, encontradas em pessoas diagnosticadas com TEA, trazem implicações sobre mecanismos processuais reguladores encontrados no nível sociogenético de seleção e variação, que apontam para mecanismos de regulação do ambiente social sobre possibilidades de regulação da pessoa frente às demandas orgânico-corporais e ambientais.

Destacamos, na Figura 2, com a seta vermelha, um processo no qual mecanismos de regulação orgânico-corporal da pessoa podem apresentar restrições advindas de processos de desenvolvimento em nível filogenético. Nessa medida, restrições de desenvolvimento em nível ontogenético são impostas à pessoa. Numa direção complementar das relações que se dão entre processos regulatórios entre os níveis filogenéticos e sociogenéticos - destacados pelo círculo e a seta verde, assim como os círculos e setas azuis para representar tais relações - emergem processos regulatórios que podem potencializar o desenvolvimento ontogenético -representado pela seta roxa.

Os mecanismos de adaptação coletiva construídos ao longo da construção da espécie ganham um papel proeminente na sobrevivência desse organismo e, portanto, destacam o protagonismo de profissionais e cuidadores que assumem os cuidados de pessoas diagnosticadas com TEA, isto é, destacam a importância de processos terapêutico-educacionais. Portanto, a regulação do ambiente social sobre possibilidades de regulação da pessoa frente às demandas orgânico-corporais e ambientais, e a regulação social sobre as forças ambientais, atuam de forma a maximizar as possibilidades de sobrevivência dessa pessoa. Essa atuação se dá, diretamente, sobre a regulação da pessoa sobre aspectos ambientais e orgânico-corporais, bem como sobre a ação da seleção natural. Dessa maneira, o nível de seleção e variação sociogenético pode atuar - representado pelas setas azul, verde e roxa em direção à regulação da pessoa sobre aspectos ambientais e orgânico-corporais - fornecendo ferramentas e dispositivos que garantam a sobrevivência dessa pessoa.

Portanto, destacamos que, mesmo circunscrita por restrições impostas pelo nível filogenético, o desenvolvimento ontogenético da pessoa diagnosticada com TEA é garantido, em alguma medida, pela regulação social dos impactos que essa forma humana de funcionar carrega em si. A limitação ontogenética é suprida por mecanismos processuais emergentes, principalmente nos mecanismos reguladores encontrados no nível sociogenético - em outras palavras, culturais -sobre a regulação da pessoa sobre aspectos ambientais e orgânico-corporais, bem como sobre a ação da seleção natural.

Desde os processos incutidos nos princípios da evolução das espécies (Darwin, 1859), articulados aos processos que circunscrevem os princípios da seleção funcional (Baldwin, 1896), podemos refletir sobre uma relação na qual variações possibilitam a emergência de estruturas como estados funcionais e adaptativos ao longo do tempo. Isso ocorre sobre processos de desenvolvimento humano e, portanto, atravessam relações de canalização cultural (Cabell & Valsiner, 2014) sobre o desenvolvimento da pessoa diagnosticada com TEA.

A canalização cultural (Cabell & Valsiner, 2014) e o desenvolvimento de regulação cultural (Mattos & Chaves, 2014)sobre as experiências de vida da pessoa diagnosticada com TEA são mecanismos bi e multidirecionais de desenvolvimento na relação pessoa-cultura. Contudo, podem funcionar como maneiras de impor sobre a pessoa uma forma de regulação cultural desprovida de acurácia. Algumas pessoas diagnosticadas com TEA apresentam déficits e excessos desenvolvimentais suficientemente disfuncionais que as impossibilitam de lidar com as novas demandas de vida de forma apropriada ao que a cultura envolvente circunscreve como balizas semiótico-culturais (Valsiner, 1998), isto é, tais déficits e excessos comportamentais restringem o acesso dessas pessoas a significados compartilhados entre as pessoas que guiam e regulam os modos de agir individuais e coletivos. Com isso, aquele que se submete a cuidar de modo terapêutico-educacional dessas pessoas deve estabelecer condutas que privilegiem os aspectos de responsabilidade ética do cuidado (Freitas, 2016).

Portanto, a regulação cultural assume o papel de balizas (Valsiner, 1998) frente aos processos terapêutico-educacionais diante da pessoa diagnosticada com TEA em seu processo de desenvolvimento em sua trajetória de vida. Dessa forma, pessoas que estão dentro do espectro do autismo recebem sugestões de conduta que pressupõem esforços na direção de favorecer uma maior adaptação na sociedade. Em outras palavras, favorecer maiores possibilidades de o sistema cultural mediar e guiar o desenvolvimento da cultura pessoal e coletiva da pessoa diagnosticada com TEA.

 

Implicações de Responsabilidades Éticas sobre Processo Terapêutico-Educacional junto a pessoas diagnosticadas com TEA

A partir da psicologia cultural o desenvolvimento da relação pessoa-cultura acontece de modo contínuo e dinâmico. Tais características do desenvolvimento da relação pessoa-cultura aparecem como um processo, no qual, emergem possibilidades de manutenções e/ou extinções de aspectos pessoais-culturais atrelados à relação coconstrutiva estabelecida entre os novos membros do grupo com os antigos, assim como das novas práticas e sistemas de significados com as práticas e sistemas de significados antigos.

No âmbito da apreensão de conhecimentos acerca da relação pessoa-cultura, pressupõe-se que, tanto a pessoa quanto a cultura, criam mecanismos de estabilização de ações com o objetivo de conter ou permitir dispersões em relação ao previamente estipulado como convencional na relação pessoa-cultura. A partir disso, destaca-se que, em âmbito biológico, pessoal e cultural, a variação torna-se parte fundamentalmente incutida nas relações que se estabelecem entre estruturas e processos. Contudo, tais variações são contidas sob a forma de estabilidades na relação pessoa-cultura.

Ao tratar de processos terapêutico-educacionais, as questões acerca do compartilhamento e da apreensão de conhecimentos (Freitas, 2013; ; ganham propriedades altamente relevantes, uma vez que, apontam para a capacidade das pessoas de construir, manter e transformar estruturas e processos na sua relação com a cultura, quando estão em relação com outras culturas ou entre diferentes gerações dentro de uma cultura (. Assim sendo, os membros da geração sucessora coconstroem as mensagens destinadas a eles, reestruturando suas propriedades e, com isso, apreendem um conteúdo transformado, o que pressupõe um caráter altamente transformativo e criativo na relação pessoa-cultura.

Portanto, consideramos que inevitáveis mudanças e manutenções são partes inerentes do processo de desenvolvimento da cultura pessoal e coletiva. O tecido cultural é constantemente transformado por aqueles que dele fazem parte (Boesch, 1991; Valsiner, 1998. Importante destacar que a pessoa não abandona o que foi previamente apreendido em sua história de vida, pois as utiliza como ferramentas, sabendo disso ou não, para sua adaptação frente aos contextos e relações a que se submete. Tal processo faz emergir novidades pessoais e coletivas sem excluir o antes e o depois, garantindo, com isso, o caráter relacional e interdependente entre estruturas e processos pessoais e culturais.

Em processos terapêutico-educacionais, o tecido cultural funciona como base temporária de organização para a pessoa (Valsiner, 2012), construída na ação e ideação, na relação entre as pessoas, entre significados pessoais e coletivos. Isto aponta para a perspectiva de que, nos processos de desenvolvimento da cultura pessoal e coletiva, a cultura pessoal é desenvolvida sob a canalização da cultura coletiva, assim como a cultura coletiva é, ininterruptamente, desenvolvida, perpetuada e transformada a partir da canalização da cultura pessoal (Cabell & Valsiner, 2014) .

Esse parece ser um processo inerente às relações humanas, desde a prática de avaliação à intervenção em pessoas diagnosticadas com TEA. Vale destacar, portanto, o caráter ético3 - nos termos de responsabilidade ética com o outro (Figueiredo, 2008; Simão, 2010) - em tais processos. Com isso, no processo de desenvolvimento da cultura pessoal e coletiva, emergente em processos terapêutico-educacionais, o que está em jogo é a responsabilidade ética acerca de como auxiliar no desenvolvimento desse outro que se submete ou é submetido a tal processo. As características da relação pessoa-cultura trazem implicações e questões caras àqueles que pretendem participar do processo de desenvolvimento de si, da cultura e, destarte, do outro. Ademais, fornecem subsídios para discussões importantes sobre o lugar de processos terapêutico-educacionais com a pessoa diagnosticada com TEA.

Limites culturais e pessoais implicam no desenvolvimento da relação da pessoa diagnosticada com TEA com seu sistema cultural em três caminhos multidirecionais que culminam na criação de processos terapêutico-educacionais: 1) pessoa diagnosticada com TEA favorecendo a criação de mecanismos de regulação e correspondência pessoa-cultura; 2) o sistema cultural favorecendo a criação de mecanismos de regulação e correspondência pessoa-cultura e 3) a relação pessoa diagnosticada com TEA e o sistema cultural fazendo emergir a dificuldade de a pessoa diagnosticada com TEA se adaptar ao sistema cultural, ao mesmo tempo em que emerge a dificuldade de o sistema cultural de se adaptar à pessoa diagnosticada com TEA. Todos esses aspectos refletem na criação de mecanismos de regulação e correspondência pessoa-cultura, como os processos terapêutico-educacionais.

A transformação, ou não, da pessoa pode se dar através das correspondências, convenções e/ou equivalências a ela atribuídas junto a constructos semiótico-culturais disponíveis na relação pessoa-cultura. Ao observarmos os níveis de gravidade de TEA (APA, 2013), baseados no nível de apoio que essas pessoas requerem para se adaptar à sociedade, vemos que o sistema cultural - sociogenético - é o guia - representado por setas vermelhas na Figura 3 -, o norteador da elevação, ou não, de tais níveis, bem como é o objetivo a ser alcançado em termos de amenização de comprometimentos da pessoa diagnosticada com TEA - representado por setas pretas na Figura 3.

Com base na Figura 3, observamos que os níveis de gravidade atribuídos às pessoas diagnosticadas com TEA são constructos culturais utilizados para discriminar o nível de mediação e a necessidade de regulação - apoio - que o sistema cultural deverá efetivar sobre essas pessoas, bem como o nível de comprometimento, em termos de adaptação e mediação, que essas pessoas podem possuir diante do sistema cultural.

O que se mostra importante, em termos de nos atentarmos a essa dinâmica, são os mecanismos sociogenéticos desenvolvidos para que as pessoas saiam de um nível de gravidade para alcançar o próximo, através de dispositivos culturais como educação e terapias. Destacamos que isso tem um custo, ou seja, não é gratuito ao sistema cultural, assim como não é gratuito à pessoa diagnosticada com TEA.

Para o antropólogo cultural Roy Wagner (1981), cada cultura deve ser entendida como única e constituinte na e da relação que ocupa o homem, isto é, nenhum dos que participam da relação tem privilégios existenciais em detrimento do outro, ao passo que ambos se constituem e se permitem. Assim, ao adentrar num tecido cultural que não o seu, o homem é levado a permitir uma emergência de uma nova cultura encerrada na relação entre si e o outro. Nesse tecido, ambos movimentam-se e variam-se com fins a 'aceitar' (ou não) as diferenças (variações) e encontrar (ou não) as similitudes (estabilidades). Portanto, a invenção de uma cultura implica na invenção e reinvenção de outras culturas e do próprio homem, isto é, a invenção, a manutenção e a perpetuação da cultura se configura como uma lugar, no qual os processos terapêutico-educacionais se instalam sobre pessoas diagnosticadas/diagnosticáveis com TEA - ver Figura 3.

A partir disso, podemos inferir que as pessoas diagnosticadas/diagnosticáveis com TEA apresentam comprometimentos em seu aparelho orgânico-corporal e funcional - tal como destacado na articulação entre os pressupostos de Darwin e Baldwin -, contudo a criação, a manutenção e/ou transformação desses comprometimentos ou gravidades estão diretamente vinculados à mediação, à regulação e à canalização cultural, assim como à invenção da pessoa e da cultura, ou seja, mecanismos sociogenéticos de regulação pessoal e cultural que podem proporcionar a criação cultural do lugar dos processos terapêutico-educacionais e, ademais, de quem é a pessoa com TEA.

Com isso, a transformação de estruturas pessoais e coletivas se dá através das correspondências de aspectos inerentes ao contexto, ao objeto ou ao significado a eles atribuídos, o que implica sobre a forma como o profissional significa sua ação terapêutico-educacional, bem como os pais, responsáveis e/ou cuidadores significam tais processos e o modo pelo qual o próprio paciente significa esse processo. Em outras palavras, é através de constructos culturais que pais, responsáveis e/ou cuidadores, assim como o profissional e o paciente, desenvolvem os significados daquilo que consideram como objetivos e metas, bem como os meios e os métodos para criar correspondências na relação entre pessoa e cultura.

 

Comentários Adicionais

Como destacamos ao longo deste trabalho, a partir de noções evolucionistas, construtivistas e da psicologia cultural, as forças ou pressões regulatórias do nível de seleção e variação sociogenética advindas das mediações culturais sobre o desenvolvimento e utilização de mecanismos (auto)regulatórios da pessoa atuam sem cessar sobre a pessoa diagnosticada com TEA.

Com isso, é desde os próprios movimentos regulatórios e afetivos estabelecidos entre terapeuta-paciente-cultura que o processo terapêutico-educacional com a pessoa diagnosticada com TEA se inicia e é conduzido. Dessa forma, a prioridade nos processos terapêuticoeducacionais está na relação que o ambiente social estabelece com esses mecanismos sociogenéticos - terapêutico-educacionais - de regulação.

Nesse sentido, pretendemos deixar claro que existem muitas tensões que levam o paciente a recorrer a processos terapêutico-educacionais como aqueles que possibilitarão, ou podem possibilitar, tanto a aproximação quanto o afastamento das tensões inerentes à relação estabelecida entre desenvolvimento típico e atípico. É nessa medida que esses mecanismos e ferramentas sociogenéticas assumem sua posição enquanto movimentos regulatórios sobre as pessoas diagnosticada com TEA.

Apresentamos na Figura 4 uma articulação com o diagrama proposto por Guimarães (2010) sobre elaborações semióticas recursivas eu-outro-mundo. No esquema apresentado, observamos a presença de processos afetivos, nos quais todos os envolvidos se posicionam de modo interdependente, em movimentos recursivos de afetações mútuas. Assim sendo, o envolvimento do profissional está intrinsecamente vinculado ao envolvimento do paciente no processo terapêutico-educacional. Portanto, tal envolvimento de dá, principalmente, a partir de afetações recursivas interdependentes e mútuas, tendo como balizas relacionais as possibilidades, ou não, de aproximações e afastamentos entre o que é considerado desenvolvimento típico e atípico, desde o ponto de vista do profissional, do paciente e da família, a partir de suas respectivas culturas pessoais, que estão relacionadas à cultura coletiva que os afeta de diferentes maneiras.

Essa dinâmica permite que, no encontro entre os pontos de vista e os constructos culturais, emerja um movimento recursivo, no qual o próprio processo terapêuticoeducacional fornece mecanismos de regulação a cada um dos envolvidos. De fato, o que se destaca é o pertencimento inclusivo de cada um. Portanto, traz uma responsabilidade ética importante sobre o protagonismo do profissional, do paciente e da família, assim como, sobre os mecanismos de regulação sociogenéticos em processos terapêutico-educacionais com pessoas diagnosticadas com TEA, ou seja, todos os envolvidos devem responder eticamente diante dos cuidados que se propõem a fazer e conduzir.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Djalma Francisco Costa Lisboa de Freitas
E-mail: djalmaffreitas@usp.br

Recebido em: 25/04/2019
Revisado em: 01/10/2019
Aceito em: 13/12/2019
Publicado online: 16/03/2020

 

 

1 Destaca-se, neste trabalho, a cultura como estruturas e processos em que são permitidas e restringidas construções e desenvolvimentos das pessoas (...) , além disso, considera-se que a cultura vem à existir, tão somente, na relação e interação com as pessoas, sendo, assim, recriada constantemente num processo contínuo (Wagner, 1981). Assim sendo, considera-se que o homem nasce num fenômeno cultural que forma e possibilita um enorme panorama de suas realidades sociais (...) . (Freitas, 2013)
2 "A noc
̧ão de baliza denota mediadores semióticos temporários, relativamente estáveis, que guiam as ações e movimentos humanos, do momento presente ao futuro imediato. Esses mediadores produzem restrições no campo infinito de possibilidades de agir, possibilitando o desenvolvimento do organismo concreto em uma determinada direção. As balizas podem canalizar as ações humanas, orientando alguns percursos e criando dificuldades para outros." (Guimarães, 2010, p.25)
3 "Compreendemos a ética a partir de Figueiredo (2008), que discute diferentes dimenso
̃es e formas de ética no âmbito das relações entre indivíduos. O autor afirma que o fator que as uniria teria relação com o modo de habitar o mundo, e que, num plano etimológico, ethos - o objeto da ética - refere-se tanto aos 'costumes e hábitos como à morada'". (Souza, 2018, p. 109).

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