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Revista Subjetividades

versión impresa ISSN 2359-0769versión On-line ISSN 2359-0777

Rev. Subj. vol.20 no.1 Fortaleza ene./abr. 2020

http://dx.doi.org/10.5020/23590777.rs.v20i1.e8815 

ESTUDOS TEÓRICOS

 

A clínica dos sofrimentos narcísico-identitários e seus dispositivos clínicos

 

The Clinic of Identifying Sufferings and its Clinical Devices

 

La Clínica del Sufrimiento Narcísico-Identitário y sus Dispositivos Clínicos

 

La Clinique des Souffrances Narcissique-Identitaires et ses Dispositifs Cliniques

 

 

Natália de Oliveira de Paula CidadeI; Silvia Maria Abu-Jamra ZornigII

IDoutoranda em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio
IIMembro psicanalista da Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle. Doutora em Psicologia Clinica PUC-Rio. Professora do Programa de Pós-Graduação e Graduação em Psicologia Clinica da PUC-Rio

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo visa a apresentar algumas modificações possíveis no dispositivo analítico à luz das problemáticas trazidas à clínica contemporânea pelos sofrimentos narcísico-identitários. Esses quadros clínicos têm como particularidade falhas sofridas nos primórdios da constituição psíquica, em contextos anteriores à aquisição da linguagem verbal e à possibilidade de inscrevê-las psiquicamente no campo da representação. Nesses casos, outros elementos, para além da dimensão verbal, estarão presentes no setting analítico, fazendo com que o trabalho de interpretação dos conflitos e defesas possa ser acrescido de diferentes dispositivos clínicos e modos de escuta. A partir das características apresentadas pelos sofrimentos narcísico-identitários, nos propomos a refletir acerca de três dispositivos clínicos que podem complementar o enquadre psicanalítico clássico na direção de possíveis extensões do método psicanalítico nesses quadros: a construção, a transferência paradoxal e a "sobrevivência" do analista. Essa extensão dos dispositivos analíticos abre caminho para pensar a intersubjetividade como momento instaurador da subjetividade, destacando sua importância na clínica, uma vez que esse processo passa necessariamente por um momento essencial de relação com outro fundamental, que deve auxiliar no reconhecimento de si e no processo de subjetivação.

Palavras-chave: clínica psicanalítica; sofrimentos narcísico-identitários; intersubjetividade.


ABSTRACT

This article aims to present some possible changes in the analytical device in light of the problems brought to the contemporary clinic by narcissistic-identity sufferings. These clinical pictures have as particularities flaws suffered at the beginning of the psychic constitution, in contexts before the acquisition of verbal language and the possibility of psychically inscribing them in the field of representation. In these cases, other elements, in addition to the verbal dimension, will be present in the analytical setting, making the work of interpreting conflicts and defenses to be added by different clinical devices and ways of listening. Based on the characteristics presented by narcissistic-identity sufferings, we propose to reflect on three clinical devices that can complement the classic psychoanalytic framework in the direction of possible extensions of the psychoanalytic method in these frames: the construction, the paradoxical transfer and the "survival" of the analyst. This extension of the analytical devices opens the way to think of intersubjectivity as an instigator of subjectivity, highlighting its importance in the clinic, since this process necessarily goes through an essential moment of relationship with another fundamental one, which should help in the recognition of oneself and the subjectivation process.

Keywords: psychoanalytic clinic; narcissistic-identity sufferings; intersubjectivity.


RESUMEN

El presente artículo tiene el objetivo de presentar algunos cambios posibles en el dispositivo analítico a la luz de las problemáticas traídas a la clínica contemporánea por los sufrimientos narcísicos-identitários. Estos cuadros clínicos tienen como particularidades fallos sufridos en el principio de la constitución psíquica, en contextos anteriores a la adquisición del lenguaje verbal y a la posibilidad de inscribirlas psíquicamente en el campo de la representación. En estos casos, otros elementos, para más allá de la dimensión verbal, estarán presentes en el setting analítico, haciendo con que el trabajo de interpretación de los conflictos y defensas pueda ser añadido de distintos dispositivos clínicos y modos de escucha. A partir de las características presentadas por los sufrimientos narcísico-identitários, proponemos reflexionar sobre tres dispositivos clínicos que pueden complementar el recuadro psicoanalítico clásico en la dirección de posibles extensiones del método psicoanalítico en estos cuadros: la construcción, la transferencia paradójica y la "supervivencia" del analista. Esta extensión de los dispositivos analíticos abre camino para pensar la intersubjetividad como momento instaurador de la subjetividad, enfocando su importancia en la clínica, una vez que este proceso pasa necesariamente por un momento esencial de relación con un otro fundamental, que debe auxiliar en el reconocimiento de uno y en el proceso de subjetivación.

Palabras clave: clínica psicoanalítica; sufrimientos narcísico-identitários; intersubjetividad.


RÉSUMÉ

Cet article vise à présenter quelques modifications possibles du dispositif analytique en relation avec les problèmes apportés à la clinique contemporaine par les souffrances identitaires-narcissiques. Ces tableaux cliniques ont leurs défauts particuliers à l'aube de la constitution psychique, dans des contextes antérieurs à l'acquisition du langage verbal et à la possibilité de les inscrire psychiquement dans les domaines de la représentation. Dans ces cas, des éléments autres que la dimension verbale seront présents dans le cadre analytique, d'une manière que le travail d'interprétation des conflits et des défenses peut être ajouté à différents dispositifs cliniques et modes d'écoute. D'après les caractéristiques présentées par les souffrances identitaires- narcissiques, nous proposons de réfléchir sur trois dispositifs cliniques qui peuvent compléter le cadre psychanalytique classique, vers des extensions possibles de la méthode psychanalytique : la construction, le transfert paradoxal et la «survie» de l'analyste. Cette extension des dispositifs analytiques ouvre la voie à la réflexion sur l'intersubjectivité en tant qu'un moment qui établit la subjectivité, soulignant son importance dans la clinique, puisque ce processus passe nécessairement par un moment essentiel de relation avec un autre fondamental, qui doit aider dans la reconnaissance de soi et dans le processus de subjectivation.

Mots-clés: clinique psychanalytique; souffrances identitaires-narcissiques; l'intersubjectivité.


 

 

Os sofrimentos narcísico-identitários são uma classificação psicopatológica proposta por Roussillon (1999) que visa a combinar em um modelo único diferentes formas de psicopatologias que possuem como questão central a temática do narcisismo. O autor busca extrair de quadros clínicos variados uma sequência unívoca de processos psíquicos que estariam na base desses sofrimentos. De acordo com ele, os pacientes teriam como foco questões anteriores a uma problemática edípica (calcada no conflito psíquico em torno das diferenças sexual e geracional e no recalcamento como defesa principal), ao mesmo tempo em que se aproximariam de questões relativas às noções de construção da identidade e da diferenciação eu/não eu, ambas relacionadas ao processo de constituição narcísica. Essas questões de ordem narcísica se colocam atreladas ao terreno da intersubjetividade, uma vez que o caminho de descoberta de si mesmo como sujeito passa, ao mesmo tempo, pela descoberta do outro enquanto objeto.

O presente artigo tem como base as contribuições de Roussillon, psicanalista francês contemporâneo, no que diz respeito ao uso de dispositivos clínicos complementares ao trabalho de interpretação mediado pela associatividade verbal com o intuito de auxiliar pacientes nos quais a problemática narcísica se encontra em primeiro plano. O autor faz parte de um grupo atual de pesquisadores da psicanálise francesa que propõe conjugar a teoria pulsional freudiana com uma releitura de autores da psicanálise inglesa, especialmente a obra de Klein e Winnicott.

Esse grupo de autores da psicanálise francesa considera que questões de ordem narcísica se encontram atreladas ao terreno da intersubjetividade, uma vez que o caminho de descoberta de si mesmo como sujeito passa, ao mesmo tempo, pela descoberta do outro enquanto objeto. Golse e Roussillon (2010) ressaltam que a sobrevivência do sujeito depende diretamente dos cuidados realizados por outro sujeito, que exerce uma função materna. Contudo esse outro sujeito não deve ser inicialmente percebido como totalmente diferenciado do próprio sujeito, operação que protege o bebê do contato inicial com o não eu ameaçador.

O acesso à intersubjetividade não ocorre de forma "tudo ou nada", mas sim como um gradiente dinâmico e progressivo composto por oscilações entre momentos nos quais o bebê se sente indiferenciado da mãe e outros, fugidios e breves inicialmente, e ganhando mais consistência ao longo do tempo, momentos intersubjetivos nos quais o bebê suporta a vivência da mãe como diferenciada dele. A qualidade da presença materna nos momentos de iniciais de constituição psíquica do bebê serão fundamentais para a construção de suas bases narcísicas.

Nos casos descritos por Roussillon (1999) como sofrimentos narcísico-identitários, o problema reside nesses primórdios da subjetivação, nos quais o par intersubjetivo mãebebê sofre interferências que culminam no aparecimento precoce do outro enquanto sujeito, antes do bebê ter capacidades elaborativas para lidar com a noção de alteridade. Esses quadros clínicos têm como particularidade falhas sofridas nos primórdios da constituição psíquica, em contextos anteriores à aquisição da linguagem verbal e à possibilidade de inscrevê-las psiquicamente no campo da representação, levando a consequências clínicas distintas daquelas referentes aos quadros de neurose.

Nesses casos, outros elementos, que não passam necessariamente pela associatividade verbal do paciente, estarão presentes no setting analítico, fazendo com que o trabalho de interpretação dos conflitos e defesas possa ser acrescido de diferentes dispositivos clínicos e modos de escuta. Partindo das particularidades apresentadas pelos sofrimentos narcísico-identitários, nos propomos a refletir acerca de algumas ferramentas clínicas que podem complementar o enquadre psicanalítico clássico, na direção de possíveis extensões do método psicanalítico.

A questão da extensão da psicanálise apresenta, de acordo com Roussillon (2011a), dois aspectos fundamentais: a ampliação da escuta para além da linguagem verbal e a inclusão de novos dispositivos clínicos na direção da simbolização. No que diz respeito ao primeiro aspecto, remetemos o leitor à noção de polifonias: a ampliação da escuta analítica na direção de elementos que vão além das palavras, de forma que processos de simbolização mais arcaicos surgem dotados de outras vozes, como tentativa de ampliar teoricamente os alcances da simbolização e da representação (Cidade & Zornig, 2019). Já o segundo aspecto proposto por Roussillon (2011a) acerca da extensão da psicanálise é o tema que gostaríamos de abordar no presente artigo.

 

Os Sofrimentos Narcísico-Identitários

Considerando os casos de sofrimentos narcísico-identitários, Roussillon (2012) destaca dois elementos fundamentais para pensarmos essas formas de organização psíquica: em primeiro lugar, a questão do traumatismo e, em decorrência desta, o mecanismo da clivagem. O autor propõe que os sofrimentos narcísico-identitários teriam modelos de funcionamento fundados sob a hipótese de uma organização defensiva contra os efeitos do que chamou de traumatismo primário.

Com o intuito de diferenciar a problemática narcísico-identitária da neurótica, Roussillon (1999) nos apresenta o conceito e faz uma diferenciação do conceito de trauma que permeia o início da obra freudiana, na forma "clássica" de tratamento psicanalítico, renomeando-o de traumatismo secundário. Conforme destacado por Cidade e Zornig (2016), enquanto o traumatismo primário tem suas origens em traumas relativos à dimensão pré-verbal dos primórdios da vida psíquica, no traumatismo secundário temos notícias do trauma segundo o modelo implícito da neurose, no qual o psiquismo é assaltado por um conflito e recalca um dos elementos desse conflito com o intuito de lidar com o desprazer gerado. Tal conflito faz referência a um acontecimento do passado e tem sua origem associada à sexualidade infantil. O trauma secundário teria sido recalcado junto com qualquer representação que tivesse envolvimento com ele.

Nesse sentido, Roussillon (1999) ressalta que a situação subjetiva que teria levado ao traumatismo secundário pôde ser experienciada, representada e, posteriormente, recalcada pelo sujeito. Assim, teria havido um processamento do ocorrido, de forma que a situação pôde ser vivenciada, mesmo carregada de um alto nível de sofrimento psíquico. Considerando que teria havido algum nível de processamento da situação traumática, o autor optou por renomear esse traumatismo como secundário, uma vez que ele estaria associado a um segundo tempo, no qual a experiência precisou ser recalcada por conter algum tipo de ameaça ao psiquismo.

Já o traumatismo primário, termo cunhado por Roussillon (1999, teria suas origens em traumas advindos de momentos mais precoces de organização egoica, nos quais o sujeito ainda não estaria dotado de capacidade representativa e/ou ferramentas para elaborar os ocorridos. Seriam tempos anteriores à aquisição da linguagem pela criança. Para a elaboração desse conceito, destacamos as duas contribuições teóricas principais utilizadas pelo autor.

A primeira contribuição diz respeito às modificações teóricas propostas anteriormente por Freud em "Além do princípio do prazer" (Freud, 1920/1996c). A partir da virada teórica de 1920 e do aparecimento do conceito de pulsão de morte, Freud concebe uma nova ideia de trauma, relacionada a um excesso pulsional que não pode ser contido ou representado. Nesse momento da teoria freudiana, o trauma passa a ser compreendido como algo que escapa à representação e ao sexual, conjugando-se a uma ameaça real de vida da qual não se pôde proteger ou intuir. Haveria, na realidade, um sentimento de ameaça à própria vida e um ego que não estaria preparado para lidar com o acontecimento impensável. A questão estaria mais próxima ao desamparo inicial da vida (Freud, 1926/1996d) do que ao sexual propriamente dito.

Dando prosseguimento à terceira contribuição que levou ao conceito de traumatismo primário, Roussillon (1999) utiliza-se das fases winnicottianas que formam uma experiência subjetiva e que narram uma espécie de graduação traumática. Winnicott (1967/1975b) nos apresenta três momentos de formação da experiência subjetiva que levam em conta o fator temporal de resposta da mãe/ambiente às necessidades do bebê. Exemplifica sua contribuição da seguinte maneira: o sentimento de que a mãe existe para o bebê quando esta se encontra fora de seu campo de percepção equivale ao tempo X; se a mãe permanece fora pelo tempo de X+Y, o bebê fica aflito, mas ainda consegue se recuperar a partir do retorno da mãe real para a cena; se a mãe se ausenta temporalmente por X+Y+Z, o estado do bebê não pode mais ser corrigido pelo retorno da mãe, resultando em falhas graves na constituição psíquica do bebê.

A terceira fase proposta por Winnicott (1967/1975b), o momento X+Y+Z, corresponderia a um tempo maior do que a capacidade do bebê de suportar a ausência da mãe, culminando em falhas da ordem do traumático. Haveria uma ruptura na continuidade do ser do bebê, levando a uma organização defensiva contra o caos da desintegração e gerando sentimentos de desamparo e de falta do objeto de forma quase insuportável. Nesse momento, o desaparecimento do objeto leva à sensação de aniquilamento de si mesmo, uma vez que o bebê só sente que existe amparado pela presença da mãe. Roussillon (1999)localiza na fase Z o surgimento do estado de traumatismo primário, espécie de degeneração de um estado extremo de falta marcado por uma insuficiência de resposta objetal.

Nesse sentido, podemos pensar que o sofrimento psíquico encontra-se em primeiro plano, originando as chamadas agonias impensáveis de Winnicott (1974/1994), exemplificadas como o retorno a um estado não integrado que teria como consequência o sentimento de "cair para sempre" e a perda da capacidade de se relacionar com objetos, entre outros. No momento inicial da vida, destacam Fuchs e Peixoto Junior (2014), as falhas não seriam atribuídas a uma externalidade (à mãe ou ao ambiente), mas apenas sentidas pelo bebê como ameaças à existência do eu.

Como consequência do traumatismo primário, Roussillon (2015) destaca a prevalência da clivagem egoica como defesa primordial relacionada aos sofrimentos narcísicoidentitários. Segundo o autor, haveria duas possibilidades de apresentação desse mecanismo de defesa: a clivagem do eu e a clivagem feita ao eu. Na primeira, tal como Freud a descreve em "A divisão do ego no processo de defesa" (1940/1996f), o ego do sujeito se divide diante de duas cadeias representativas incompatíveis entre si, de modo a coexistirem dentro do ego duas atitudes psíquicas diferentes para com a realidade exterior: uma leva em conta a realidade; enquanto a outra a nega, colocando em seu lugar um produto do desejo. As duas atitudes coexistem sem haver influência recíproca, contudo o sujeito vivenciou o ocorrido e pode vir a se reconhecer como autor (mesmo que inconsciente) dessa ação.

No que concerne à segunda possibilidade, à clivagem feita ao ego, a saída para o impasse é paradoxal: o sujeito se retira da experiência subjetiva como um todo com o intuito de sobreviver e se poda de parte de sua subjetividade, não havendo uma autoria reconhecida. O paradoxo está justamente nessa retirada do indivíduo, que é exatamente o que permite que ele sobreviva a partir de uma saída subjetiva dele mesmo. A subjetividade se dilacera entre uma parte representada e uma parte não representada da experiência. Na clivagem feita ao eu, o sujeito não pode retornar à cena ou se colocar como autor, uma vez que ele não experienciou o ocorrido. Tendo em vista que nenhuma solução satisfatória parece disponível devido à fragilidade egoica, a esperança encontra-se desaparecida (Roussillon, 1999).

A clivagem e o traumatismo primário marcam uma particularidade no campo da análise dos sofrimentos narcísico-identitários, uma vez que isso que ficou "dentro/fora" do sujeito retorna novamente por vias diferentes do retorno do recalcado. A saída do traumatismo primário pela via da clivagem egoica não apaga a experiência como um todo. Possuindo como ferramenta a compulsão à repetição, a parte clivada tende a retornar, ameaçando tanto a subjetividade quanto o ego através de uma reatualização da experiência traumática. Contudo o retorno do material clivado não surge de forma representada: manifesta-se de diferentes maneiras, podendo surgir no corpo ou via ato. É da ordem da apresentação, da mostração.

Roussillon (2006b) destaca que, nesses quadros, o sujeito está marcado por uma "não apropriação" (non-approprié) de sua própria história, aproveitando o duplo sentido francês das palavras. "Não apropriação" no sentido daquilo de que não pudemos nos apropriar do que vivemos e daquilo que não é apropriado às nossas necessidades psíquicas. A ausência de um processo satisfatório do trabalho de simbolização bloqueia a integração das experiências subjetivas, de forma que o sujeito não se reconhece como habitado por tais vivências e, devido a isso, todo seu processo de subjetivação encontra-se entravado.

Os sofrimentos narcísico-identitários abrem espaço para pensarmos, em consonância com Urribarri (2012), em uma "heteromorfia da associatividade", fazendo com que os analistas possam revisitar o enquadre clássico, sustentado prioritariamente pela linguagem verbal, propondo possíveis extensões do método psicanalítico e novos tipos de dispositivos oferecidos a estes analisandos. A clínica apresentada a partir dos quadros em questão foge à questão da representação, da neurose e do recalcamento como defesa primordial. Trata-se de falhas que não remetem a elementos perdidos que podem ser rememorados pela associação livre e pela palavra, mas apontam para um vazio e buracos psíquicos deixados por um desencontro inicial. Dessa forma, a clínica de sofrimentos narcísico-identitários faz com que o analista precise lançar mão de ferramentas diferentes e complementares às conhecidas pelo enquadre clássico da psicanálise, tais como a interpretação e a associação livre, uma vez que suas questões não passam apenas pelo campo do verbal.

Nessa direção, destacamos três eixos temáticos que contêm dispositivos clínicos que podem auxiliar nas particularidades dessa clínica: a construção, a transferência paradoxal e a sobrevivência do analista. Por uma questão meramente didática, visando uma melhor compreensão do leitor, optamos por separá-los em tópicos, porém os temas encontram-se entrelaçados, de forma que um não subsiste sem o outro. Não há um encadeamento temporal do tripé, mas o aparecimento e a necessidade de se trabalhar simultaneamente com as problemáticas em questão.

 

Construções em Análise

Ao partirmos do pressuposto de que na clínica de sofrimentos narcísico-identitários o que acomete o sujeito é uma não integração de sua história, o trabalho do analista vai incluir uma dimensão de historicizar com o paciente esses primórdios vivenciados por ele, de forma que possa se apropriar daquilo que lhe aconteceu. Mais do que ter acesso à consciência, tornar-se sujeito passa por um processo de apropriação subjetiva do que lhe ocorreu, integrando elementos que o afrontam e esse processo se encontra entravado nos casos de sofrimentos narcísico-identitários.

No que concerne à apropriação subjetiva, é importante ressaltar que nem sempre o trabalho do analista será o de auxiliar o paciente a tornar conteúdos conscientes. Considerando os casos de sofrimentos narcísico-identitários, percebemos que o sentido nem sempre estará "escondido" em algum lugar do inconsciente do paciente, aguardando para ser encontrado. Algumas vezes, ele precisa ser construído gradualmente no processo de análise com a ajuda do analista. O sentido, nesse caso, se torna mais produzido do que revelado, abrindo caminho para outro tipo de trabalho psicanalítico que difere da interpretação clássica: o da construção (Roussillon, 2011a).

Freud faz alusão a essa ferramenta técnica em alguns textos, porém só a esquematiza em um de seus últimos artigos: "Construções em análise" (1937/1996e). Partindo do pressuposto de que a tarefa do paciente é recordar elementos recalcados, Freud aponta que a tarefa do analista é a de completar aquilo que foi esquecido pelo paciente e que não pode ser rememorado - seja por estar muito próximo do núcleo inconsciente, seja porque a experiência não foi registrada de forma passível de reprodução em uma narrativa em palavras. Portanto, a tarefa do analista é auxiliar a construir o que ficou para trás e não pode ser diretamente resgatado.

No referido texto, Freud traça uma analogia entre o analista que se utiliza da construção e o arqueólogo. Ambos se assemelham, visto que trabalham reconstruindo um material a partir de fragmentos que encontram no presente, mas que, outrora, pertenceram a uma história bastante antiga. No trabalho de construção, os elementos encontram-se preservados em algum nível de registro psíquico - mesmo o que parece esquecido está enterrado e inacessível justamente por ter se inscrito de outra forma. A estrutura psíquica não é vítima de uma destruição total, uma vez que deixa marcas que tendem a retornar.

Dessa forma, pode-se pensar que a construção diz respeito a um preenchimento de lacunas na memória do paciente, realizado em conjunto com o analista, aproximando-se de algum acontecimento ou evento arcaico de sua história que não aparece como rememoração ou por associação livre. Pode ser acessado apenas através de restos e sobras, "fisgados" por um ouvido atento. A construção diz respeito a essa costura realizada entre elementos apresentados pelo paciente e elementos que podemos apenas inferir de sua história prévia.

Para além das questões estruturais da construção, faz-se necessário compreender que, independentemente de seu conteúdo estar correto ou não, o importante é que ela faça o sujeito caminhar na direção do questionamento. No referido artigo, Freud nos alerta, ainda, sobre os perigos da sugestão diante de um "sim" alienado do paciente, que aceita a construção sem dela se apropriar. Existiriam formas mais fidedignas de confirmação, tais como responder com uma associação em sequência ou um estranhamento - "Nunca pensei sobre isso!". Até mesmo uma negação inicial diante do estranhamento da hipótese sugerida pelo analista pode abrir caminho para a apropriação subjetiva no decorrer do trabalho clínico.

Nessa direção, podemos pensar que o trabalho analítico de construção se configura como um dos dispositivos possíveis que abre caminho para a retomada dos processos de simbolização nos casos de sofrimentos narcísico-identitários. Esse caminho contará com a participação de ambos: paciente e analista. A construção pode ser proposta pelo analista, baseada no que escutou e no que "não estava lá" para ser ouvido, mas precisará de uma aceitação (ou não) e de uma apropriação da mesma pelo paciente. O trabalho de simbolização será concebido nessa relação de intersubjetividade, sendo ambos peças indispensáveis para esse processo.

Apesar de percorrer todo esse processo rumo à simbolização, não há garantias de que o fruto desse trabalho será imediatamente integrado à subjetividade. Destacamos, com base em Roussillon (2011a), que existem formas alienadas de simbolização, que não trabalham a favor da integração. Assim, o que nos dará notícias de que o processo de apropriação subjetiva está caminhando na direção da simbolização é a presença de formas de negatividade no setting. Já que o trabalho será realizado a quatro mãos, faz-se necessário que o paciente não receba de imediato a construção vinda do terapeuta, mas que possa negá-la e/ou digeri-la primeiro. Para que a apropriação subjetiva não seja alienada, será necessário que ela "morra" fora para "nascer" dentro de si.

Mais do que uma preocupação em confirmar ou refutar a construção que surge na análise, é importante que ela possa ser questionada, que não seja aceita sem que antes marque uma diferença, abra espaço para uma lacuna diferenciadora, assim como nos processos de simbolização primária. A diferença desempenhará um papel essencial para que a construção auxilie a abrir questões, fazendo deslizar a associatividade. A própria situação analítica será modificada, tornando-se uma situação simbolizadora por excelência. O setting materializa as condições através das quais a atividade de simbolizar se torna possível. Dessa forma, a apropriação subjetiva trabalha no sentido da simbolização, de forma que ela retoma o processo de simbolizar a própria atividade de simbolização.

 

A Transferência Paradoxal

O segundo dispositivo clínico possível a ser oferecido nos casos de sofrimentos narcísico-identitários é o da transferência paradoxal. Esse termo foi cunhado por Didier Anzieu (1975) com base nas teorias da comunicação paradoxal da Escola de Palo Alto. Ele faz referência a modalidades distintas de transferência e contratransferência encontradas pelo autor na clínica com pacientes que apresentavam falhas narcísicas mais graves e se afastavam do campo da neurose.

O autor aponta que esse tipo de transferência teria relação com um longo período da infância no qual a criança teria sido submetida a recorrentes momentos de comunicações paradoxais advindas dos pais, culminando em um trauma que afetaria seu desenvolvimento psíquico. Diferentemente da lógica do conflito psíquico, na qual o sujeito recebe ordens de diferentes instâncias psíquicas e se encontra preso nos domínios da contradição, o que está em jogo na lógica do paradoxo é a presença de dois enunciados antagonistas que operam sucessivamente (e não simultaneamente).

Roussillon (2006a toma como norte os trabalhos de Anzieu sobre a lógica do paradoxo e a transferência paradoxal, associando-os à clínica de sofrimentos narcísicoidentitários. É importante ressaltar que o conceito de transferência paradoxal tem como base a transferência clássica freudiana e é proposta pelo autor como um complemento a esta no campo dos sofrimentos narcísico-identitários. O autor aponta que ambas as transferências ocorrem na clínica, contudo devemos ficar atentos aos conteúdos não verbais que surgem em massa nesses quadros clínicos através da modalidade paradoxal da transferência.

Retomando Freud (1912/1996a, 1915/1996b), o conceito de transferência consiste em uma compilação dos primeiros anos da vida erótica e das pré-condições amorosas do sujeito, composto de características sempre repetitivas de protótipos infantis. Esses elementos seriam constantemente repetidos no decorrer de sua vida, contudo não seriam percebidos conscientemente pelos pacientes, de forma a serem direcionados para outras figuras. Esses sentimentos acabariam escoando para o analista através do campo transferencial.

Diferentemente do campo da neurose, no qual o paciente nos mostra por metáfora ou deslocamentos da linguagem verbal elementos que ele mesmo não ouve de si, nos quadros de sofrimento narcísico-identitários há uma forma paradoxal dessa dialética intersubjetiva. No lugar de colocar em palavras aquilo que o paciente "não sabe que sabe de si", ele faz o analista sentir, ver ou escutar uma parte de sua história que não pôde ser integrada. Ele só pode ter notícias do que lhe aconteceu através dos efeitos indiretos que observa nos outros.

Nesses quadros, deparamo-nos com uma problemática relacionada aos primórdios da constituição psíquica que diz respeito à dificuldade do sujeito em ligar-se ao objeto primordial, tanto quanto em diferenciar-se dele. Trata-se de uma característica marcante: a dupla ameaça no encontro com os objetos. Se, por um lado, os objetos se encontram muito próximos do sujeito, são considerados intrusivos; se, por outro lado, os objetos se afastam dele, essa ação é sentida pelo sujeito como um abandono do objeto.

Essa problemática tende a tornar-se uma difícil tarefa para o analista, uma vez que vai envolver o manejo da transferência paradoxal como parte do trabalho da dupla. Nas palavras de Roussillon (2013a), "em primeiro lugar, toda interpretação é intrusiva e, em segundo, toda não interpretação é 'abandonante'. É a questão da transferência paradoxal e temos aqui toda a dificuldade do trabalho clínico" (p. 68). Nessa modalidade de transferência, o analista é posto à prova, de forma que seu manejo precisa ser bastante cauteloso. Ele se encontra diante de um impasse e precisará agir de maneira a não invadir nem abandonar o paciente.

Como uma saída possível diante do impasse, Roussillon (2010) utiliza como exemplo uma forma adaptada do jogo de esconde-esconde, típico de crianças pequenas. O discurso do paciente tem um valor de proteção para ele, impedindo a intrusão do analista, porém o mantém perdido em relação à intensidade de suas defesas e em relação a si próprio. A clínica dos sofrimentos narcísico-identitários é uma clínica do sujeito perdido, de forma que uma das tarefas possíveis para o analista é a de procurá-lo, assim como no jogo de esconde-esconde. "Em primeiro lugar, não abandono porque eu procuro e, em segundo lugar, não invado porque eu não acho!" (Roussillon, 2013a, p. 69).

Podemos pensar nessa espécie de "jogo transferencial" como um modelo possível de trabalho na clínica de sofrimentos narcísico-identitários. No lugar de "encontrar" o paciente com interpretações que podem ser sentidas pelo outro como uma invasão ou uma intrusão de si, afastando o analista e o trabalho da dupla, podemos fazer uso da construção como uma cocriação do par analítico - desde que seja apropriada pelo paciente antes de ser aceita, de forma não alienada. Propondo conteúdos para os espaços vazios do paciente, o analista também não o abandona, de forma que a relação se mantém e o trabalho de ambos pode continuar.

Em momentos mais críticos, afirma Roussillon (2014a), o paciente pode se retirar de si e ser invadido pelo objeto, de forma que o analista encontra um cenário bastante diferente do habitual. O paciente se modifica: sua voz está diferente, seus gestos, seus movimentos, toda a sua linguagem verbal e mimo-gesto-postural encontra-se dominada pelo objeto intrusivo. É o objeto incorporado que se apresenta diante do analista. E se este ocupa todo o espaço, o sujeito vai se refugiar no analista, de forma que o paciente nos faz sentir formas disfarçadas do que o objeto o fez viver. Esse cenário caracteriza uma particularidade da transferência paradoxal: ela ocorre por inversão (ou retorno).

O analista é colocado no lugar do sujeito e o sujeito é colocado no lugar do objeto. Há uma inversão de quem sente/vê/ouve o quê. Nesse sentido, o trabalho psíquico do analista se complexifica e encontra-se bastante dificultado, uma vez que precisa levar em conta dados acrescidos à sua escuta verbal. Não é mais possível ouvir o paciente como se ele fosse sempre portador de seus próprios processos. É preciso abrir espaço para ouvir os processos com os quais ele foi confrontado e o que vem do encontro com o objeto primordial, a forma como este recepcionou os conteúdos que vieram do paciente, e ainda ter notícias da relação inicial que permeou ambos. O objeto também passa a habitar as sessões, através do que sentimos do paciente, e precisa ser considerado na dinâmica transferencial.

Nesse tipo particular de transferência, observamos que o mundo psíquico do paciente encontra-se mais dominado pela compulsão à repetição do que apresentando diferentes possibilidades de escolha. Não há, majoritariamente, deslizamento associativo entre termos e elementos, entre palavras e frases, mas fixação e repetição dos mesmos elementos, apontando para uma dinâmica que inclui o analista como depositário de algo que, na verdade, pertence ao paciente. O analista funciona como o "espelho do negativo de si", recebendo elementos que o próprio paciente não pôde sentir, ver ou ouvir sobre si próprio (Roussillon, 1999).

Pensando acerca da reflexividade, evocamos o artigo "O papel de espelho da mãe e da família no desenvolvimento infantil" de Winnicott (1967/1975c), no qual o autor desenvolve a ideia do rosto materno funcionando como um espelho que refletiria o próprio bebê. Nessa direção, podemos nos questionar sobre o funcionamento do analista diante da nova modalidade transferencial proposta. Partindo da premissa winnicottiana de que o bebê se constitui narcisicamente a partir de seu próprio reflexo no rosto da mãe, podemos pensar na necessidade, em determinados casos, de que o analista reflita para o paciente aspectos que o paciente ainda não consegue ver no momento (Roussillon, 2013a).

Winnicott (1967/1975c) já nos alertava que a análise de casos graves diz respeito a devolver no paciente aquilo que o mesmo traz, assim como a mãe que reflete para o bebê sua subjetividade. A função de espelho do rosto da mãe é uma das mais importantes experiências de constituição narcísica, e cabe ao analista, ao recepcionar os conteúdos diversos, "refleti-los" para o paciente, assim como a mãe deveria refletir o bebê nos primórdios da subjetividade. É a partir de sua visão refletida no rosto da mãe que a criança se descobre e realiza suas identificações, assim como o paciente poderá se encontrar no reflexo de si fornecido pelo analista.

Na direção do trabalho rumo à apropriação subjetiva, proposta por Roussillon (2013b), será necessário que o paciente consiga integrar os vividos de seus primórdios em três vertentes, que correspondem às três formas de comunicação pulsionais: sentir (representaçãoafeto); ver (representaçãocoisa); e ouvir (representaçãopalavra). O analista deve ser capaz de recepcionar essas três modalidades a partir da transferência paradoxal. Enquanto o paciente não sabe o que lhe aconteceu, é o analista quem sente, vê e ouve aquilo que pertence à história pessoal do paciente. A partir daí, será possível começar a devolver a história para seu dono oficial.

Ressaltamos, com Roussillon (1999), que os elementos que retornam através da transferência paradoxal possuem o registro e a linguagem da época na qual foram registrados, ou seja, uma linguagem predominantemente não verbal (linguagem do afeto ou dos representantescoisa). Esse tipo de lembrança conserva seu estado em identidade de percepção, só podendo ser acessada enquanto retorno alucinatório do evento traumático. O caráter de seu aparecimento é sempre atual, como que fazendo parte do momento presente. Na transferência paradoxal, os elementos voltam como se tivessem ficado congelados no tempo, à espera de uma convocação. O que retorna são fragmentos de uma época primeva que se encontravam clivados, que não puderam ser integrados à história própria do paciente, os quais serão sentidos pelo analista.

Diante das características destacadas, a situação transferencial nos quadros de sofrimento narcísico-identitário torna-se mais complexa, uma vez que conjuga elementos da transferência clássica com o manejo da transferência paradoxal. Nessa direção, ao mesmo tempo em que somos aconselhados por Roussillon (2011a) a não buscar ativamente as experiências clivadas dos pacientes, apenas deixá-las retornar, ele também nos diz que é necessário estar atento a elas, para não deixá-las escapar caso apareçam. É preciso que o analista possa perceber esses pequenos atos furtivos, ouvir o inaudível (Green, 1975/1988), escutar as polifonias, pois é esse momento de acolhimento das outras linguagens enquanto mensagens que vai permitir algum contato possível com o paciente, que faz o trabalho que lhe é possível, isto é, deixar aparecer esses gestos furtivos, fornecer sinais. Cabe ao analista costurar, com o paciente, uma amarração do vínculo que começa a se estabelecer.

 

A "Sobrevivência" do Analista

Somado aos dois itens anteriores do tripé, a construção e a transferência paradoxal, que constituem um complemento à direção de trabalho para o analista diante dos casos de sofrimentos narcísico-identitários, deparamos-nos com a tarefa de "sobreviver" à destrutividade que vem do paciente. Para melhor compreender esse terceiro movimento, tomaremos como base em Winnicott a ideia de sobrevivência do objeto a partir de seu uso, explorando e aprofundando seu pensamento a partir das contribuições de Roussillon.

Evocando Winnicott (1969/1975d) e seu conceito de "uso do objeto", encontramos a ideia de sobrevivência do objeto vinculada ao momento de concepção da realidade externa e de diferenciação ego/objeto. Um objeto concreto começa a ser percebido objetivamente e faz parte de um movimento intersubjetivo, cuja existência do outro já pode ser reconhecida. Para chegar ao uso do objeto, faz-se necessária a destruição da percepção subjetiva do objeto, difícil etapa de renúncia de uma onipotência projetiva do bebê/sujeito. É somente através da destruição que o objeto passa a ser objetivamente percebido, ou seja, o objeto passa a existir fora do eu e a fazer parte de uma realidade compartilhada.

Contudo, com base na visão de Roussillon (2006a), para que o objeto seja efetivamente encontrado será necessário que algumas condições sejam satisfeitas: o objeto precisa permanecer vivo e criativo, não retaliando o ataque, para que o bebê/sujeito perceba que o objeto existe fora dele, independente de sua criação psíquica. É importante ressaltar que, para ser encontrado, o objeto precisa ser atingido ao mesmo tempo em que continua permanente e estável. O bebê/sujeito precisa saber que conseguiu impactar o objeto, que seus ataques de fato aconteceram, mas que não o destruíram. Dessa forma, o objeto pode ser descoberto como outro-sujeito, possuindo desejos e impulsos próprios que independem de sua onipotência infantil.

Pensando acerca dos motivos que levam o sujeito a voltar sua destrutividade para o objeto, Roussillon (2011a) nos apresenta uma passagem de um modelo winnicottiano do "encontrado/criado" para o modelo que ele chamou de "destruído/encontrado". Ambos se constituem enquanto paradoxos, já que possuem, ao mesmo tempo, características excludentes. Mas enquanto o primeiro momento coincide com o que Winnicott chamou de momento de ilusão, o segundo corresponde a um momento no qual o objeto deve ser destruído (se deixar atingir) e, simultaneamente, não destruído (sobreviver ao ataque) para que possa ser encontrado objetivamente.

Segundo Winnicott (1953/1975a), para que o momento da ilusão-desilusão seja satisfatório, será necessário que, de início, a mãe se adapte ativamente às necessidades do bebê e, aos poucos, de acordo com a possibilidade do bebê tolerar frustrações, vá se desadaptando gradativamente. A adaptação inicial ao bebê dá a ele a ilusão de que o ambiente é criado e controlado de forma onipotente por ele.

Ao longo da desadaptação gradual da mãe ao seu bebê, uma série de falhas será introduzida entre o que o bebê espera encontrar e o que realmente é oferecido a ele. Essas falhas vão gradualmente minando a experiência de ilusão, caminhando rumo à desilusão do processo do encontrado/criado. O desencontro mobiliza impulsos destrutivos no bebê, que começa a sentir raiva do entorno - dele mesmo e do ambiente, ainda não diferenciados -, uma vez que tem a impressão de que perdeu a capacidade onipotente de criar o encontrado. Desse ponto em diante, a resposta do objeto será fundamental, instaurando diferentes vivências possíveis desse momento na criança.

De acordo com Roussillon (2006a), a continuação do momento rumo ao modelo destruído/encontrado vai depender de como o sentimento de culpa em relação à desadaptação e às falhas vai ser administrado pela mãe. O objeto pode se afastar e aparecer para o bebê como tendo sido destruído, não mais respondendo de forma viva e criativa, ou a mãe pode compreender que a desadaptação gradual às necessidades do bebê faz parte do desenvolvimento, não sentindo tanta culpa em relação às faltas que advirão, de modo que as respostas maternas não se alterarão e a mãe será sentida como sobrevivente da destruição. Só aí a mãe é descoberta como independente dos desejos e fantasias do bebê, constituindo-se enquanto outro-sujeito. A partir daí, a criança poderá desenhar uma distinção entre a ilusão de ter destruído o objeto na fantasia e o objeto externo e real, que independe de sua onipotência e sobrevive a seus ataques enfurecidos.

O importante a ser sublinhado é que a partir do modelo encontrado/criado encontramos espaço para o impacto - organizador ou desorganizador - da resposta do objeto. Ressalta-se a maneira pela qual o objeto primordial respondeu à destrutividade do sujeito. A resposta do objeto aos impulsos do bebê passa a contar, pois estrutura a futura instauração dos processos de simbolização do sujeito. O processo que Roussillon (2011a) chamou de destruído/encontrado é um pré-requisito para o processo de diferenciação. Para que se iniciem os processos de simbolização, faz-se necessário criar uma diferença entre o objeto em si e aquilo que se guarda dele. É preciso que haja uma lacuna diferenciadora entre a experiência em si e o sentimento de ter experimentado tal vivência, pois o que leva à simbolização é a não identificação com esse vivido, a não equivalência idêntica das experiências.

O problema relativo aos sofrimentos narcísico-identitários, e que se faz presente na clínica mais frequentemente, diz respeito aos casos nos quais esse processo de diferenciação não ocorreu de forma minimamente satisfatória, fazendo com que o objeto não possa ser representado, uma vez que não pode ser perdido. Se não há diferenciação, o objeto primordial fica confundido com o sujeito e o analista também não é reconhecido como outrosujeito, não podendo ser usado como objeto.

Podemos pensar, com Winnicott (1969/1975d), que é a partir da destruição que chegamos à criação da realidade, de forma que o conceito de destruição torna-se complementar ao de criatividade. Para criarmos algo, é necessário destruir primeiro. E, portanto, nas palavras do autor: "sem a experiência da destrutividade máxima (objeto não protegido), o sujeito jamais coloca o analista para fora de si e, portanto, não pode mais do que experimentar uma espécie de auto-análise, usando o analista como projeção de uma parte do eu (self)" (p. 127).

Com esses pacientes, podemos imaginar um começo no qual o objeto materno não teria sobrevivido aos ataques destrutivos do bebê, deixando como rastro um bloqueio no uso potencial da destrutividade como elemento criador do mundo. Dessa forma, o analista, posteriormente, não pode ser encarado como outro, como diferente, sem poder ser usado como objeto.

Se o objeto primordial não sobreviveu, nos diz Roussillon (2006a), será como se ele não tivesse existido, levantando a hipótese de um autoengendramento. O sujeito sofrerá consequências por não acreditar na materialidade do objeto, que o auxiliou, mesmo que de forma insatisfatória, e o concebeu. Já o analista sabe que houve objeto e que este existiu enquanto "objeto-que-não-sobreviveu", tendo notícias da história pregressa e do sentimento frágil e ambíguo da onipotência do sujeito.

Baseado na teoria winnicottiana, Roussillon (2006a) nos diz que a clínica dos sofrimentos narcísico-identitários deve voltar-se para um trabalho de reconstrução das particularidades do objeto que existiu de fato, mesmo não reconhecido inicialmente pelo sujeito. Devemos nos debruçar sobre o sentimento de não sobrevivência do objeto primário e os efeitos dessa suposta destruição sobre o psiquismo do sujeito. Novamente, ressaltamos a ideia de que a clínica dos sofrimentos narcísico-identitários é uma clínica da construção, uma vez que é impossível acessar e/ou rememorar exatamente os eventos ocorridos nos primórdios da vida psíquica do bebê.

Nessa direção, será necessário que o analista realize com o paciente um trabalho de reconstrução desse objeto materno que não sobreviveu aos ataques iniciais. O objeto originário deve poder ser evocado em análise, não como objeto subjetivo, mas levando em consideração a realidade do objeto e do alcance de suas respostas.

Nesse sentido, uma importante tarefa da clínica de sofrimentos narcísico-identitários será a de permitir que a experiência do destruído/encontrado possa ocorrer no momento presente, isto é, através das diferentes modalidades de transferência próprias dessa clínica. É estritamente necessário que o analista sobreviva aos ataques advindos do paciente, para que possa transformar-se em objeto externo, real e vivo. Assim como o objeto primordial, o analista deve poder ser atingido pela destrutividade do paciente e sobreviver, mantendo-se vivo e criativo, e fornecendo ao paciente outra qualidade de resposta objetal.

Apenas quando a experiência do "paradoxo" da destrutividade originária pode ser suficientemente reatualizada e elaborada é que uma segunda fase do trabalho analítico se inicia, indo na direção de um trabalho mais clássico de interpretação. Só aí o paciente conseguirá usar o analista, caminhando rumo a um trabalho de integração desses vividos que se encontram além do campo da representação.

 

Rumo à Apropriação Subjetiva

Conforme sublinhado anteriormente, a clínica dos sofrimentos narcísico-identitários abre espaço para pensarmos sobre uma possível extensão da psicanálise e a inclusão de novos dispositivos clínicos na direção da simbolização. O trabalho do analista, dentro desse enquadre específico, diz respeito a auxiliar o paciente a retomar seus processos de simbolização que ficaram entravados por uma ausência de resposta objetal ou por uma resposta insuficiente fornecida pelo objeto nos primórdios da constituição psíquica, uma vez que esses pacientes sofrem de problemas relativos aos processos de subjetivação.

A subjetivação pode ser entendida como um caminho de descoberta de si mesmo como sujeito, ao mesmo tempo em que se descobre o outro enquanto objeto e também outro sujeito (Golse & Roussillon, 2010). Nesse sentido, tornar-se sujeito envolve, necessariamente, a relação com outro fundamental, que deve auxiliar no reconhecimento de si e na diferenciação do outro. A essa operação, Roussillon (2011b) dá o nome de "apropriação subjetiva". Esse processo requer algum grau de representação e simbolização, de forma que, ao haver falhas nesses processos iniciais, o trabalho do analista será orientado na direção de compor esse par intersubjetivo, auxiliando na retomada dos processos de simbolização.

Roussillon (2006b) aponta que, no início do processo de subjetivação, será necessário que haja a transformação de uma vivência passiva do sujeito em uma vivência ativa, na qual ele se transformará em sujeito ativo. O autor faz uma diferenciação entre os termos eu-sujeito (moi-sujet) e eu-objeto (moi-objet) para se referir ao status alcançado pelo eu nos processos iniciais de apropriação de si. Primeiramente, o eu será tomado pelo outro como objeto, de forma que a experiência será vivida por ele de forma passiva. Em um segundo momento, quando já puder haver alguma apropriação do que lhe ocorreu, o eu encontra-se ativo e toma a experiência já com algum grau de propriedade, podendo começar a se constituir enquanto eusujeito.

O fenômeno da apropriação subjetiva não pode ser compreendido como sempre equivalente a um trabalho psíquico realizado na direção da simbolização. Com base nas contribuições de Roussillon (2005, nos propomos a pensar nas engrenagens do processo de apropriação subjetiva. Para que este seja realizado na direção da simbolização, faz-se necessário que seus elementos sejam integrados progressivamente, levando em consideração cada parte em sua singularidade. Os elementos da experiência subjetiva precisam ser descondensados aos poucos e explorados detalhadamente em cada fragmento, pois só então poderão ser contidos e integrados na trama psíquica do sujeito. Porém essa forma de apropriação só ocorre diante de outro que possa auxiliá-lo a refletir sobre o que o aflige. É necessário que haja outro disposto a receber e conter esses elementos entravados, seja ao longo da primeira infância, com a relação mãe-bebê, seja na clínica dos sofrimentos narcísico-identitários, a posteriori. A partir do encontro com outro receptivo, a simbolização torna-se intersubjetiva: essa operação supõe a existência de outro sujeito e sua implicação nesse processo.

A resposta fornecida pelo objeto será de exímia importância ao longo de todo esse percurso. Ela torna possível um trabalho de reflexão, de devolução do que está sendo recebido. Para que essa forma de resposta espelhada seja também afetiva, auxiliando as modificações rumo à apropriação subjetiva, será preciso encontrar uma sintonia fina que gere um compartilhamento afetivo entre ambos. Esse movimento será condição de possibilidade para que o trabalho de simbolização aconteça. Dessa forma, a clínica dos sofrimentos narcísico-identitários e suas particularidades colocam em cena dispositivos complementares à técnica clássica que podem ser importantes ferramentas de trabalho na direção de auxiliar os pacientes a caminhar rumo à apropriação subjetiva.

 

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Endereço para correspondência:
Natália de Oliveira de Paula Cidade
E-mail: nataliaopcidade@gmail.com

Silvia Maria Abu-Jamra Zornig
E-mail: silvia.zornig@terra.com.br

Recebido em: 27/12/2018
Revisado em: 03/05/2020
Aceito em: 04/05/2020
Publicado online: 03/08/2020

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