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Revista Subjetividades

versão impressa ISSN 2359-0769versão On-line ISSN 2359-0777

Rev. Subj. vol.20 no.1 Fortaleza jan./abr. 2020

http://dx.doi.org/10.5020/23590777.rs.v20i1.e8507 

ESTUDOS TEÓRICOS

 

Políticas de solidão demasiadamente cotidianas

 

Politics of Solitude in Daily Life

 

Políticas de Soledad Demasiadamente Cotidianas

 

Des Politiques de la Solitude Excessivement Quotidiennes

 

 

Luís Felipe PariseI; Simone Mainieri PaulonII

IMestre pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFGRS). Especialista em Saúde da Família e Comunidade pelo Programa de Residência Integrada em Saúde com Ênfase em Atenção Básica e Saúde da Família e Comunidade do Grupo Hospitalar Conceição (GHC)
IIDoutorado em Psicologia Clínica (PUC-SP) e Pós-Doutorado no PPG de Psicologia UFRN. Professora Associada da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Integra o corpo docente do PPG de Psicologia Institucional da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Compõe o Grupo de Trabalho "Políticas de Subjetivação e Invenção do Cotidiano" da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia (ANPEPP)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo tem por objetivo problematizar as políticas de solidão do contemporâneo. Para tanto, debruça-se sobre algumas linhas de composição dos dispositivos que operam na transição da sociedade disciplinar para a sociedade de controle. Os campos problemáticos são, principalmente: a constituição das cidades modernas; o desenvolvimento do liberalismo econômico e o governo de individualização. Utiliza-se a metodologia genealógica para elucidar aspectos da problemática em questão. Encerra-se com uma reflexão sustentada nos modos de existir solitário, à luz das leituras de Deleuze e Foucault. Evoca-se uma solidão fundamental, conceito-chave para se perspectivar a experiência urbana solitária para além da lógica do individualismo.

Palavras-chave: solidão; psicologia clínica; processos de subjetivação contemporâneos; filosofia política.


ABSTRACT

This article aims to problematize the solitude's politics of the contemporary. Therefore, it focuses on lines that composes some apparatus that operate in the shift from disciplinary society to control society. The problematic fields are mainly: the establishment of modern cities; the development of liberalism and the individualization's government. Genealogical method is applied to clarify aspects of the problematic in question. It closes with a reflection on the ways of solitary existence, in the light of Deleuze and Foucault's readings. It evokes a fundamental solitude: key-concept to inquire the solitary experience beyond the logic of individualism.

Keywords: loneliness; clinical psychology; contemporary subjectivation's processes, political philosophy.


RESUMEN

Este trabajo tiene el objetivo de problematizar las políticas de soledad del contemporáneo. Para eso, se inclina sobre algunas líneas de composición de los dispositivos que operan en la transición de la sociedad disciplinar para la sociedad de control. Los campos problemáticos son, principalmente: la constitución de las ciudades modernas; el desarrollo del liberalismo económico y el gobierno de individualización. Se utiliza la metodología genealógica para elucidar aspectos de la problemática en cuestión. Se concluye con una reflexión basada en los modos de existir solitario, a la luz de las lecturas de Deleuze y Foucault. Se evoca una soledad fundamental, concepto-clave para proyectar la experiencia urbana solitaria para allá de la lógica del individualismo.

Palabras clave: soledad; psicología clínica; procesos de subjetivación contemporáneos; filosofía política.


RÉSUMÉ

Cet article vise à discuter des politiques de la solitude dans la contemporainété. À cette fin, il se concentre sur certaines lignes de composition des dispositifs qui opèrent dans la zone de transition entre la société disciplinaire et la société de contrôle. Les domaines problématiques sont principalement: la constitution des villes modernes; le développement du libéralisme économique et le gouvernement par l'individualisation. La méthodologie généalogique est utilisée pour élucider certains aspects du problème en question. Finalement, l'article présente une réflexion soutenue sur les manières solitaires d'exister, à la lumière des lectures de Deleuze et Foucault. Une solitude fondamentale est évoquée, un concept clé pour regarder l'expérience urbaine solitaire au-delà de la logique de l'individualisme.

Mots-clés: solitude, psychologie clinique, processus de subjectivation contemporain, philosophie politique.


 

 

Solidão e Genealogia: Apresentação do Campo Problemático

Hoje solitários, vocês que vivem separados, vocês serão um dia um povo. Aqueles que se designaram a si mesmos formarão um dia um povo designado - e é desse povo que nascerá a existência que ultrapassa o homem.

Nietzsche

A produção do fenômeno da solidão, na atualidade, agrega um conjunto de forças e processos de natureza heterogênea, cuja complexidade demanda a conjugação de aspectos econômicos, jurídicos, burocráticos, biológicos, psicológicos, filosóficos e estéticos, entre outros. Não é pretensão deste artigo abranger todas essas relações em seus entrecruzamentos, nem promulgar universais que viriam a abarcar e definir o que é a política de solidão. Antes, são problemáticas que propulsionam o pesquisar, afirmações que intentam produzir operações de abertura para que novos elementos se aglutinem.

O que sustenta essas afirmações é o perspectivismo de Nietzsche (1873/2013), que, nas palavras de Deleuze (2013, p. 40), é assim definido: "trata-se não de uma variação da verdade de acordo com um sujeito, mas da condição sob a qual a verdade de uma variação aparece ao sujeito". Foucault (1997), nessa mesma direção, destaca a figura do escavador, em Nietzsche, como sendo aquele que se utiliza da interpretação para trazer à superfície qualquer pretensa profundidade. É a tentativa de aclarar o jogo de forças existente entre o que se encontra na profundidade e na superfície, para demonstrar a sua relação como dobra de subjetivação, ou seja, a infinita brincadeira intercambiante das variáveis históricas e sociais dos regimes de poder e saber. "É por isso que Nietzsche não acredita nos grandes acontecimentos ruidosos, mas na pluralidade silenciosa dos sentidos de cada acontecimento. Não existe um acontecimento, um fenômeno, uma palavra ou pensamento cujo sentido não seja múltiplo" (Deleuze, 1985, p.9).

Assim, toma-se a cidade não meramente como um vetor espacial ou ponto georeferencial, mas sim como parte de uma máquina composta por diversas engrenagens que exercem ativamente a fabricação de determinados modos de viver a experiência do urbano. Nessa direção, há a condução do pensamento de Foucault (2008b) nas linhas que seguem. São pistas que o autor oferece para o entendimento do complexo jogo político em que estamos imersos. Em seu método genealógico, propunha a afirmação da heterogeneidade dos processos no campo problemático sobre o qual se debruçava em suas pesquisas. Em contraponto ao pensamento dialético hegeliano, que polariza e reduz a realidade a díades que tendem à síntese na unidade, a heterogeneidade da genealogia é a afirmação de termos que necessariamente não se excluem. É o estabelecimento de alianças e pontos de convergência entre termos ou, ainda, é a afirmação de relações entre campos que aparentemente não são à primeira vista relacionáveis. Pela própria característica do pensamento, os grandes termos duais, costumeiramente, tornam inteligíveis os processos, mas os dissolvem diante de um olhar mais atento. O método genealógico, portanto, sustenta-se na disparidade entre termos, mas que,, em determinados pontos se encontram:

(...) como uma multiplicidade de processos muitas vezes mínimos, de origens diferentes, de localizações esparsas, que se recordam, se repetem ou se imitam, apoiam-se uns sobre os outros, distinguem-se segundo seu campo de aplicação, entram em convergência e esboçam aos poucos a fachada de um método geral (Foucault, 2009, p. 134)

Assim, os esforços que aqui se seguem buscam delinear os imbricados agenciamentos entre três linhas: o individualismo, o mercado e a cidade. Outros estratos também compõem e perpassarão tangencialmente a discussão. Optou-se deliberadamente por acentuar a relação entre essas três linhas, mas muitas outras se agregam, de relevante privilégio, sobre o processo de entendimento da solidão. Contudo a exposição dessas relações empreende outros tempos.

 

O Individualismo, o Mercado e a Cidade: Forças Políticas Contemporâneas

As aglomerações urbanas se tornaram o epicentro de produção de modelos hegemônicos da vida contemporânea. Os dados são lançados em direções imprevisíveis na tentativa de massificar a produção de subjetividade. Nunca são suficientemente bemsucedidas as tentativas de captura dessas linhas, porque elas contêm uma inventividade que também escapa ao jogo que as produz. Massa de indivíduos solitários que se empreendem incessantemente em busca da glorificação ou, simplesmente, da fuga da miséria; a destruição criativa de uma máquina de exploração e a busca pela imortalidade são os meios do capitalismo. Comporta e agrega tudo sobre si, desde que colocado sobre a base do lucro. Nos seus movimentos de ave de rapina, concede toda a liberdade ao indivíduo, desde que este seja livre para o consumo. Deleuze (2013, p. 227) adverte: "no capitalismo, só uma coisa é universal, o mercado. Não existe Estado universal, justamente porque existe um mercado universal cujas sedes são os Estados, as Bolsas". Estamos aí, na política contemporânea, situados na região fronteiriça entre as sociedades disciplinares e as sociedades de controle, em que os dispositivos da primeira ganham cada vez menos intensidade, enquanto que, os da segunda, estão em plena criação e implementação.

Comecemos pelos dispositivos disciplinares. Eles são caracterizados em função de seu direcionamento. Neles, as relações de poder se estendem de maneira difusa e funcional sob todo o corpo político. É pelo adensamento da população e da circulação de riquezas, dois fatores preponderantes, que se constituíra a necessidade de coordenar a multiplicidade das forças dessa população no interior dos Estados-nação. O poder disciplinar visa os corpos em sua produtividade, buscando dirigir os movimentos, tempos, ações de cada um. Propõe-se o estabelecimento de normas e desvios, exercidos através de fiscalizações, observações, exames. Produz o esquadrinhamento de cada indivíduo em relação aos outros em suas características próprias, "mecanismos [que] o torna tanto mais obediente quanto é mais útil, e inversamente" (Foucault, 2009, p.133).

Nesse sentido, o liberalismo é o que colocará a questão da liberdade, de modo que, a partir da arte de governar, se fabriquem determinados tipos de liberdade. Na mesma medida em que oferece a produção de condições para o exercício de determinadas liberdades, destrói outras composições que a liberdade poderia assumir. Por exemplo, tem-se a necessidade de sustentar o mercado e criar compradores por mecanismos de assistência, de legislações que visem limitar o monopólio, da constituição de uma massa de trabalhadores, a fim de ocupar qualificadamente cargos do sistema produtivo, bem como, politicamente, desarmar belicamente essa massa. Todo um jogo de interações que se estabelece para a produção de condições propícias ao fortalecimento econômico de certos segmentos estrategicamente posicionados. "O liberalismo não é o que aceita a liberdade. O liberalismo é o que se propõe a fabricá-la a cada instante, suscitá-la e produzi-la com, bem entendido, todo um conjunto de injunções, de problemas de custo que essa fabricação levanta" (Foucault, 2008a, p. 88).

O princípio de cálculo de custo para a fabricação da liberdade será justamente a segurança. Aqui, a noção de perigo se torna central nas disposições de governamentalidade. Um cálculo de modo que as liberdades individuais não venham a ferir os interesses de todos, equivalendo também o inverso. Os interesses de mercado das empresas e os interesses dos trabalhadores não devem se sobrepor uns aos outros igualmente. É também um jogo instável entre a liberdade e segurança que a economia de poder no liberalismo provoca. Condição limiar de perigo que coloca em jogo toda uma série de relações sob o lema de "viver perigosamente". Os indivíduos sujeitados pelo liberalismo terão como experiência a sensação de perigo iminente em uma série de aspectos de sua vida cotidiana. O século XIX inaugurará as campanhas higienistas de saúde, o surgimento da literatura policial como gênero literário, o aparecimento das caixas econômicas para melhor salvaguardar o futuro financeiro e, até mesmo, a vigilância sobre as práticas sexuais da era vitoriana. "Não há liberalismo sem cultura do perigo" (Foucault, 2008a, p. 91).

Também, paradoxalmente, o período das liberdades individuais produziu um exponencial acréscimo dos mecanismos de controle e coerção. O modelo panóptico de Bentham se difunde como modo de governo enquanto "um dispositivo funcional que deve melhorar o exercício do poder, tornando-o mais rápido, mais leve, mais eficaz, um desenho de coerções sutis para uma sociedade que está por vir" (Foucault, 2009, p. 198). Isso ocorre porque a tarefa do governo se reduzirá, em uma primeira instância, à atividade de vigilância, ou seja, assegurar que determinadas liberdades e comportamentos de indivíduos e coletividades possam, de fato, se efetuar dessa sociedade que está por vir. Aos desviantes que as questões de tratamento se colocam como foco de governo (Foucault, 2008a).

Prenúncio da governamentalidade e da sociedade de controle, o panóptico dispunha de elementos que terão seus prolongamentos nos dispositivos subsequentes: 1- não mais focados na vigilância dos perigos, sua função se volta para aprimorar a utilidade dos indivíduos; 2 - volatizados para além das instituições fechadas, tornando-se processos de controle cada vez mais flexíveis; 3 - o Estado assume papel fundamental na coordenação e amplificação dos dispositivos de controle. "Deve ser como um olhar sem rosto que transforme todo o corpo social em um campo de percepção: milhares de olhos postados em toda parte, atenções móveis e sempre alerta, uma longa rede hierarquizada" Foucault, 2009, p. 2002).

Deleuze exemplifica, pela problemática das relações com o dinheiro, o modo de operação dessas configurações das relações de poder. Ele utiliza-se das figuras da toupeira monetária para se referir à lógica disciplinar e e da figura da serpente anelada para introduzir o novo modo de subjetivação característico das sociedades de controle. A primeira corresponde à lógica de acumulação, ao lastro ouro, à detenção dos meios de produção; enquanto a segunda se compõe do fluxo constante voltado para a sobreprodução. Esse modo já está direcionado para a venda e para o mercado, tendo o marketing como "instrumento de controle social, e forma a raça impudente de nossos senhores. O controle é de curto prazo e de rotação rápida, mas também contínuo e ilimitado (...)" (Deleuze, 2013, p. 228).

Marx (1867, citado por Harvey, 2012), em sua análise da constituição do capitalismo, dispõe, como parte importante deste, a ascensão dos valores burgueses e seu modo de produção econômica como intrinsecamente ligado à sensação fugidia, à insegurança que os modernos experienciam. Isso ocorre porque nenhum valor secular anterior escapa de questionamento. É através da monetarização de quase todas as mercadorias que também se produzirá uma forma de medida. As trocas e as relações entre coisas terão, agora, essa nova medida para a modernidade, unificando determinados processos e solapando outros. A monetarização também se tornou uma niveladora radical das distinções sociais. A garantia sobre a propriedade privada e a divisão social e técnica do trabalho são fatores que permitiram a acumulação de extenso capital, bem como vertiginoso crescimento econômico.

O senso de familiaridade, identidade com os locais, vem se modificando. O que antes era uma maior proximidade com as histórias de vida dos vizinhos, prestadores de serviço e todas as problemáticas suscitadas pelo gregarismo, o individualismo desloca para certa impessoalidade e cava uma interioridade. O dinheiro e o sistema de propriedade privada vêm a acelerar e mediar as relações dos citadinos. Paradoxalmente, ao mesmo tempo, nas sociedades de controle, "os indivíduos tornam-se 'dividuais', divisíveis, e as massas tornam-se amostras, dados, mercados ou 'bancos". O que não resta dúvida é que a forma de expressão mais pungente é o dinheiro em flutuação nos mercados especulativos. "O homem não é mais o homem confinado, mas o homem endividado" (Deleuze, 2013, p. 226/228).

Sob o signo da moratória ilimitada, o homem endividado tem acesso a condições básicas de vida a partir da aquisição de dívidas e a responsabilidade moral de honrá-las, velha tecnologia de dominação que elenca culpa e castigo naqueles faltosos a suas obrigações. "Atualmente, a generalidade crescente de endividamento marca um retorno a relações de servidão que remontam a outro tempo. E mesmo assim, muita coisa mudou" (Negri & Hardt, 2014, p. 26).

É bem um outro polo de Estado que surge, e que se pode definir sumariamente. A esfera pública não caracteriza mais a natureza objetiva da propriedade, mas é antes o meio comum de uma apropriação que se tornou privada; entra-se, assim, nos mistos público-privado que constituem o mundo moderno. O laço se torna pessoal; relações pessoais de dependência, ao mesmo tempo entre proprietários (contratos) e entre propriedades e proprietários (convenções), duplicam ou substituem as relações comunitárias e de função; mesmo a escravidão não define mais a disposição pública do trabalhador comunal, mas a propriedade privada que se exerce sobre trabalhadores individuais. (Deleuze & Guattari, 1997, p. 148)

Distanciado da fábrica, o indivíduo-empresa da sociedade de controle se vê cada vez mais responsável pela própria produção e engajamento. O capitalismo financeiro se nutre dessa especulação, dessas dívidas. É uma nova forma de exploração, voltada ao tempo de vida do empreendedor, ao ponto de quase ser indiscernível trabalho e vida. "A empresa introduz o tempo todo uma rivalidade inexpiável em sã emulação, excelente motivação que contrapõe os indivíduos entre si e atravessa cada um, dividindo-o em si mesmo" (Deleuze, 2013, p. 225).

Enquanto mutação dos mecanismos de mercado, anos de 1971, houve a desvinculação entre o dólar e o lastro ouro, seguida de três movimentos operacionais no campo econômico: a desregulamentação, a desintermediação e a descompartimentalização. A desregulamentação tornava os sistemas de câmbio livres do controle estatal, que culminou, em 1990, no mercado único de capitais e, em 1997, permitiu que "os agentes financeiros se instalassem onde quer que desejassem para fazer concorrência aos intermediários locais" (Passet, 2002, p. 122). A desintermediação possibilitou que houvesse financiamento direto às empresas e aos Estados mediante a emissão de títulos ou ações no mercado financeiro. A descompartimentalização foi "a supressão das fronteiras que delimitavam, no interior dos mercados, os diferentes meios materiais ou compartimentos da especulação" (Passet, 2002, p. 124). Em termos práticos, uma mesma pessoa jurídica ou física poderia atuar nos mercados de câmbio, mercado financeiro, adquirir títulos de dívida pública etc. Os três procedimentos favorecendo as unidades-empresas privadas.

Toda uma dinâmica de aceleração dos fluxos de mercado, que permite o rápido deslocamento de ativos, conforme assegurada uma maior lucratividade. O mercado e a vida cotidiana das populações se tornaram muito mais instáveis com a variabilidade e rapidez com que se estruturam e desestruturam os sistemas econômicos sob a égide da especulação. É a garantia progressiva da consolidação do indivíduo neoliberal e seus rendimentos econômicos assegurados. Todo um conjunto de mecanismos jurídicos, administrativos e informacionais, entre outros, é acionado para assegurar os interesses privados em detrimento de proteções sociais, impostos ou qualquer aspecto público (Passet, 2002).

É o zênite da produção de um novo modelo de homo oeconomicus, forjado a partir da perspectiva neoliberal, não mais vinculado ao sistema de trocas ou de consumo, mas sim ao sistema empresarial e produtivo. Ao governo neoliberal, sob regência de um Estado de Direito, caberá a organização e a vigilância das regras do jogo concorrencial entre os agentes reais que, no caso, são as empresas nas mais variadas configurações. As empresas, por sua vez, não se restringirão às instituições propriamente ditas, mas se constituirão por certa maneira de operar no campo econômico, à medida que optam por planos e projetos de modo concorrencial. Como consequência, amplia-se a superfície de atritos entre os corpos empresariais, que podem ser tanto um indivíduo como coletivos ou instituições. Nesse sentido, salienta-se o intervencionismo judiciário como árbitro do jogo de interesses (Foucault, 2008a).

As políticas sociais não são diferentes. O neoliberalismo coloca uma política social sob uma perspectiva privatizada, na qual o mercado regula os meios ligados à subsistência, de modo que serão os indivíduos e sua reserva de capital que poderão pensar em questões como a própria velhice e a doença. O mercado proverá, em termos econômicos, se necessário, a distribuição do máximo, direcionando parte aos mínimos, mas jamais visando à igualdade. Na racionalidade neoliberal, as políticas sociais têm o intuito de prover a desigualdade do neoliberalismo, sem jamais compensar o crescimento econômico. Mais precisamente: "(...) o governo neoliberal não tem de corrigir os efeitos destruidores do mercado sobre a sociedade. (...) no fundo, ele tem de intervir nessa sociedade para que os mecanismos concorrenciais, a cada instante e em cada espessura social, possam ter o papel de reguladores (...)" (Foucault, 2008a, p. 199).

Esse homem-empresa que está sendo, agora, fabricado pelo neoliberalismo, terá com o trabalho uma relação de utilidade; de modo que seu corpo e sua força de trabalho serão tratados enquanto capital diretamente associado ao próprio corpo. O capital que no corpo reside é uma máquina de produção nessa perspectiva. Uma máquina competente, dotada de aptidão para a realização de tarefas designadas, ou um capital que é capaz de acumular e gerar fluxos de renda num futuro. A capacidade produtiva de um determinado corpo oscila entre os fluxos de renda conforme seus ciclos vitais, tendendo à obsolescência.

É o oposto da perspectiva da economia clássica, sociológica e psicológica em que o homem é transformado em máquina. Esta é, para Foucault (2008a), a sociedade organizada a partir de unidades-empresa, princípio de racionalização da sociedade e da economia no regime neoliberal. Como problemática que se apresenta a partir dessas concepções, há a questão dos investimentos. Entre os campos, estão aqueles vinculados à vida e sua manutenção, como as questões de saúde, de reprodução, de educação. Toda uma série de metodologias para a reprodução de um capital humano mais elevado de produção em sistemas de investimento e crédito.

Nesse sentido, o que se produziu no contemporâneo em relação ao espaço urbano é o seu progressivo adensamento também em torno dessa unidade-empresa. Isto se deu tanto pela redução do espaço de habitação das residências como pela disponibilidade de diferentes composições de vida no fluxo dos meios de comunicação ao ampliar o acesso aos espaços mediante a relação digital (sem esquecer, claro, da massiva monetarização). "A operação em processo na nossa atualidade corresponde ao conceito de contração: a sobreposição dos espaços que se colocam virtualmente, de modo intensivo, disponíveis uns sobre os outros, ocupando o mesmo lugar" (Costa & Fonseca, 2013, p. 26). Igualmente, a rua e os espaços públicos se tornarão cada vez mais hostis aos habitantes do urbano.

O ponto que converge igualmente para a criação e sobreposição do espaço privado frente ao público é a personalização de certa identidade ou de um intimismo personalista aos habitantes da cidade, que vão se mesclando ao consumo de massa. Este é um modo de subjetivação já observado ao final do século XIX, que foi crescendo em intensidade e se atualizando nos movimentos do capitalismo. Resulta, então, em certa fragmentação de um grande projeto de ideal de cidade, que afirma seu lugar nos estilhaços que mesclam referências históricas a atuais agrupados, semelhante ao procedimento de colagem, condensando tradição popular, novas tarefas funcionais, tecnologias e novos materiais (Harvey, 2012). Serão os fluxos mercadológicos a imperar doravante. "Assiste-se à passagem da cidade planejada, para a cidade negociada, (...) da tentativa de centralização no Estado se passa para a dispersão em projetos privados delegados então (plano e execução) a uma série de empresas, imobiliárias e empreiteiras" (Costa & Fonseca, 2013, p. 26). É a transição da gestão dos espaços públicos pelo Estado para o recrudescimento da interioridade dos espaços protegidos. A garantia de segurança em relação à multidão citadina é simbolicamente representada pelas grades dos condomínios privativos ou, até mesmo, os shoppings, que proliferarão pelas cidades na certeza de oferecer segregação e, ao mesmo tempo,exclusividade às classes. O cidadão tem em vista de suas ações seu próprio bem-estar integrado à relação com a cidade. Já o indivíduo está preocupado antes com suas garantias de liberdade individual. O poder público tem por função a garantia dos direitos humanos prevalentemente individualizados. Com efeito, a ascensão do individualismo tem produzido o declínio da perspectiva cidadã em que demais modos de vida sejam abarcados pelo poder público visando à pluralidade do comum. São os indivíduos-empresa e seus interesses privados a ocupar o espaço público.

Nas palavras de Benjamin (1987, p. 169): "No interior dos grandes períodos históricos, a forma de percepção das coletividades humanas se transforma ao mesmo tempo que seu modo de existência". Isso ocorre porque o engendramento dos novos meios de produção de subjetividade, em função do triunfo do modo de vida burguês sobre os demais, permitiu o apogeu do gênero romântico e da preponderância de informações de verificação imediata e em proximidade nas mídias de massa. Ainda no século XIX, já há certo rompimento com a oralidade da sabedoria geracional dos aglomerados gregários em uma vida que se produzia pela continuidade dessas experiências.

O que toma corpo a seguir é uma relativa impessoalidade da multidão, que configuraria diferentes formas relacionais entre os citadinos. A experiência da multidão dissonante viria, então, a produzir no indivíduo, que ali se fabricava pelo auge da sociedade disciplinar, a experiência de perda de modos mais coletivos de produção. Fortemente reduzido ao espaço privado, o indivíduo envergaria suas energias no cultivo do espaço de interioridade. Os espaços arquitetônicos passam, também, a privilegiar o que está contido em seu interior. Os móveis burgueses e a sua personalização, a utilização do aço e do vidro, o senso de identidade. Walter Benjamin elucida, alegoricamente, o tecido de veludo, que se permite deixar marcas, como ícone desse momento histórico. É o indivíduo burguês que encontra necessidade de criar um território que seja seu diante da ascensão da interioridade. O recurso tardio do homem moderno se centrará na hipervalorização de um eu (Gagnebin, 2011).

Para delinear esse espaço de interioridade cavado ao longo do período moderno e subsequentemente, duas noções conceituais são necessárias para melhor substanciar a discussão. Embora muitos outros elementos se integrem, serão negligenciados. A primeira provém da filosofia empirista de Hume, que exerceu forte influência em todo o pensamento do liberalismo e neoliberalismo. O filósofo introduziu a noção de que há uma vontade imediata e interior, denominada interesse (Foucault, 2008a, p. 372). O que posteriormente desencadeará a concepção utilitarista de sujeito. Uma representação dotada de baixo limiar de vontade de potência, justamente por ser a criação do "sujeito neutro, dotado de livre-arbítrio, ao qual atribuímos o poder de agir e de se conter" na concepção de Nietzsche (Deleuze, 1985, p. 37).

A segunda noção de transformação do pensamento ocidental ganhou forma através do Romantismo, do século XIX, pela noção de interiorização, acompanhada da noção de influência. Essa concepção de um "sopro para dentro" contida na palavra "influência" trouxe consigo o raciocínio de causa e efeito ao campo das ciências humanas. A forma-homem, que a partir do Iluminismo assumirá o lugar da antiga forma-Deus, passará a congregar saberes que estabeleçam linhas que propunham uma racionalidade daquilo que compõe essa forma. Todo um conjunto de experimentos e crenças que produzirão um espaço de interioridade no homem (Henz, 2007).

Já mais próximo da atualidade, Virilio (1993, p. 9) questiona "em que momento a cidade nos faz face?", discorrendo, em seguida, a respeito da transformação desSa perspectiva de olhar rumo ao pós-modernismo. Não são mais as muralhas ou os arcos de entrada que demarcam seus limites. As modificações nos transportes já transformaram substancialmente os seus pontos de conexão entre periferia e centro, campo e cidade, borrando os limites objetivos. A crescente utilização das tecnologias digitais, viriam a compor um novo borramento para esses limites, ao ponto de as noções de distância e velocidade protagonizarem o quase desaparecimento do primeiro e o protagonismo do segundo. "A partir daí o espaço construído participa de uma topologia eletrônica na qual o enquadramento do ponto de vista e a trama da imagem digital renovam a noção do setor urbano" (Virilio, 1993, p. 10).

Assim, os séculos derradeiros, XX e XXI, foram marcados pela crise da formahomem, pelo abandono da ideia de aperfeiçoamento e progresso com que a civilização e as forças do homem pudessem produzir. Como efeitos contingentes, têm-se, nas linhas hegemônicas, um recrudescimento de um hedonismo imediatista, ao mesmo tempo em que ocorre um reforço do individualismo através do homem-empresa e um niilismo ressentido. Várias formas coabitando a produzir modos de subjetivação. Dentre elas, há também uma forma de neonarcisismo, como conceituado por Orlandi (2003). O núcleo desse modo de subjetivação está centrado em um eu, uma relação consigo, que busca ser bajulado, visto, noticiado, cuidado, compreendido, aplaudido e valorizado como se sua existência, por si só, já garantisse todos os louros. Não é mais Narciso apaixonado por si diante de sua própria imagem e identidade refletida na água, é agora talvez "a ilusão de não se ter qualquer poder, ou de se ter um poder absoluto de controle sobre a multiplicidade de suas exposições" (Orlandi, 2003, p. 12).

Consubstancialmente, a crise das narrativas estaria diretamente relacionada às transformações ligadas à temporalidade e espacialidade. Walter Benjamin, ao distinguir o conceito de experiência e vivência, tem como suporte a produção de subjetividade nas metrópoles nascentes do final do século XIX. Crise também na produção do espaço. O citadino desses contextos urbanos intensificou as narrativas de si enquanto indivíduo autônomo dotado de uma interioridade. Ao final do século XX, essas narrativas se transpuseram para a superfície das telas dos aparelhos eletrônicos. Agora, elementos como a instantaneidade e o excesso de informação vêm a suplantar as novas narrativas, adquirindo outra multiplicidade de composições. Por vezes, as narrativas são compartilhadas, esquecidas ou restritas à experiência do indivíduo. Informações são unificadas e difundidas por algoritmos de seleção, ao mesmo tempo em que brechas são produzidas e enunciações minoritárias são amplificadas. Também aí se vê a produção do fenômeno de pós-verdade, quando as mídias de massa perdem o monopólio de produção de informação, quando se restringe o acesso pelos filtros, na intenção de controlar o descontrole e reestabelecer o monopólio. Incorre-se na produção de bolhas de informação, ao mesmo tempo em que se permite a difusão de novas narrativas pela produção de séries, filmes, memes, vídeos editados em câmeras de celular. Congregados de múltiplos fins também são criados por conexões virtuais, seja para reproduzir a lógica neoliberal, seja para articular sua resistência. Uma proximidade, às vezes, maior que com os membros do bairro onde se mora. Ainda assim, são delicadas quaisquer uma dessas afirmações por restringir a multiplicidade de efeitos produzidos por essas relações. Fato é que as dimensões de concepção do espaço relacionam-se diretamente com as experiências ou vivências em uma cidade.

A partir desse governo da individualização, extraem-se conceitos da dialética indivíduo-sociedade. Tem-se toda a produção de entendimentos e conjugação de sensibilidades em torno dessas duas entidades abstratas. O que cabe ao início do século XXI talvez sejam os sintomas ligados a características ensimesmadas, dado o contexto maciço de individualização, tais como: a manutenção da relação com o suporte emocional; o excessivo narcisismo e a preservação de um ideal de eu; a melancolia carregada de ressentimentos e pressões de desempenho; as crises agudas de angústia sem motivos aparentes; os delírios paranoicos de perseguição diante de olhares estranhos; e a competitividade exacerbada por um utilitarismo nas relações. Esses sintomas demonstram o corpo imbricado com os processos sociais que ocorrem neste momento histórico.

Em meio às transformações do tempo e espaço, há aqueles que ainda buscam o último reduto do ideal de uma boa sociedade na noção de comunidade, que está circunscrita a uma boa vizinhança, com boas regras de convívio, de modo que semelhantes possam conviver na mais bela harmonia. Vende-se, então, condomínios fechados com segurança particular, câmeras de vigilância e arame farpado sob muros altos. É venda casada de segurança com paranoia e medo. O forasteiro é quem é o culpado por todo o mal que ameaça esse mundo harmônico. Os perigos rondam além dos muros (Bauman, 2001).

O saudosismo de uma comunidade contida nos preâmbulos da história que hoje se encontra perdida é um dos grandes mitos mremonta desde que se faz história. Uma comunidade fundada na crença de que um agrupamento de pessoas compartilhava de uma identidade e laços de amor, demasiada herança cristã para os românticos modernos. Talvez a comunidade nunca tenha existido, conforme Nancy (1986, citado por Pelbart, 2003) supõe:

Quem diz sociedade já diz perda ou degradação de uma intimidade comunitária, de tal maneira que a comunidade é aquilo que a sociedade destruiu. É assim que teria nascido o solitário, aquele que no interior da sociedade desejaria ser cidadão de uma comunidade livre e soberana, precisamente aquela comunidade que a sociedade arruinou.

Talvez existissem laços compostos a partir de sistemas de crenças, relações com a morte e o morrer, organizações do trabalho coletivo, ao mesmo tempo em que eram traçados limites bem definidos do que viria ou não a compor esse agrupamento. A sociedade não sucedeu a comunidade. Ela foi uma invenção, assim como a comunidade. Além disso, qualquer desejo de fusão unitária configura em empobrecimento da vida. Seguindo os passos de Blanchot, Pelbart (2003) afirma: "Na comunidade já não se trata de uma relação do Mesmo com o Mesmo, mas de uma relação na qual intervém o Outro, e ele é sempre irredutível, sempre em dissimetria, ele introduz a dissimetria" (p. 34).

A tentativa até aqui empreendida foi trazer à luz algumas possíveis relações entre processos contemporâneos que hoje deslocam os sujeitos numa experiência privatizante, exploram e expandem dimensões de interioridade, conjugam desagregações de uma ação pública, interpondo muros e, ao mesmo tempo, buscam o direcionamento e o excesso do sistema econômico-libinal desse mesmo corpo individualizado. Esse conjunto de dispositivos que tentam marcar os corpos e suas almas na cotidianidade de suas vidas, sujeitando-os a uma vida individualizada, cerrada em si mesmo, delineia uma clausura política a qual estamos todos sujeitos, submersos que estamos ao fluxo da cidade. Temos, então, a cultura do perigo enquanto um imbricado jogo de liberdade de mercado, em que se privatizam os ganhos, centrando no indivíduo ou na unidade familiar boa parte das garantias sociais.

É através do endividamento desse sujeito individualizado que se produz o acesso a bens e condições básicas de vida. Ainda, responsabiliza-o na mesma medida em que o isola. Uma sujeição "que categoriza o indivíduo, marca-o em sua própria identidade, impõe-lhe uma lei de verdade, que devemos reconhecer e que os outros tem de reconhecer nele" (Foucault, 1995, p. 235). O que se faz possível a partir desse lugar em que as tramas de poder subjugam nossos corpos ao viver solitário?

 

Solidão: Modo de Existir e Resistir

Ao conceituar e analisar os embates entre os regimes de saber e poder da atualidade, Foucault (1995) destaca também algumas formas específicas de luta. Dentre elas, encontra-se a que coloca em questão o estatuto do indivíduo. Essa forma de luta opera de dois modos: afirma o direito de ser diferente, buscando meios de assegurar essa diferença do indivíduo, ao mesmo tempo em que luta contra as forças que convocam à fragmentação os indivíduos, reiterando a relação com os outros a partir de sua base comunitária e recusando as determinações que fixam identidades sob o regime individualista. "Essas lutas não são exatamente nem a favor nem contra o 'indivíduo'; mais que isto, são batalhas contra o 'governo da individualização" (p. 235).

Deleuze (2005, p. 113) também assinala nessa mesma direção:

A luta por uma subjetividade moderna passa por uma resistência às duas formas atuais de sujeição, uma que consiste em nos individualizar de acordo com as exigências do poder, outra que consiste em ligar cada indivíduo a uma identidade sabida e conhecida, bem determinada de uma vez por todas. A luta pela subjetividade se apresenta então como direito à diferença e direito à variação, à metamorfose.

O corpo humano é um sistema aberto que se encontra em constante relação de troca com o que o circunda. Seja microscopicamente, de modoe invisível ao olho nu, por meio das pequenas células que se desprendem do nosso corpo a cada segundo para que possíveis novas células venham a substituí-las, seja por grandes transformações do pensamento sempre que somos forçados a pensar e criar novas atualizações para aquilo que a sensibilidade nos apresenta em nossa alma. A vida e sua virulência operam em contágio, afirmavam Deleuze e Guattari (1995); incessantes contatos a que nosso corpo está submetido nas mais diferentes ordens. "Qualquer corpo vive como um produto arbitrário das forças que o compõem. O corpo é fenômeno múltiplo, sendo composto por uma pluralidade de forças irredutíveis; a sua unidade é a de um fenômeno múltiplo" (Deleuze, 1985, p. 63).

É nas imbricadas formações de saber-poder que o corpo assumirá finalidades produtivas no sistema capitalista. A força a ser aplicada sobre ele será calculada, organizada, administrada. Uma microfísica do poder que perpassa as máquinas imperiais do Estado, sem, no entanto, se reduzir a eles. São tecnologias políticas do corpo. "Esse poder se exerce mais que se possui, que não é 'privilégio' adquirido ou conservado da classe dominante, mas o efeito de conjunto de suas posições estratégicas" (Foucault, 2009, p. ٢٩). O corpo é onde são aplicadas e investidas essas tecnologias de poder, passando através dele, do mesmo modo que é a partir daí que se produzem resistências, no mesmo ponto em que as relações de poder se aplicam.

Não é à toa que se erigiram e ainda se criam os mais variados dispositivos para compor uma relativa estabilidade, feitos em harmonia desarmônica, para lidar com o incompreensível funcionamento da natureza e a ameaça de aniquilação pela morte absoluta, tarefa sempre incessante dos corpos humanos quando se deseja a manutenção da sobrevivência. Talvez a grande cruzada ocidental seja o desejo de se fechar o corpo, tapar seus poros e suas trocas, móveis, contudo, por excelência. A diferença se produz, então, por essas fissuras, por aquilo que irresistivelmente escapa pelas brechas que a vida abre.

"Meu corpo, topia implacável" (Foucault, 2013, p.7). Dele nasce tudo, é a primeira e última instância produtora de todas as utopias. Essas como sendo o "lugar fora de todos os lugares" (p. 8). Pelo corpo, passam e se reproduzem os dispositivos, ao mesmo tempo que se produzem novas aberturas com o Fora. O corpo se encontra sujeito a constantes relações, a se criar e desmanchar, independente do quanto solitariamente "isolado" um corpo pode estar. São trocas biomoleculares, luminosidades penetrando no espaço do olho, cheiros e barulhos nem sempre conhecidos, lembranças marcantes a invadir o presente. Tempo e espaço a configurar a experiência.

Quando caminha o citadino, às vezes perdido de si e de suas relações, buscando algo que justifique seu levantar matutino e enfrentar o dia que não termina, pode se deparar com o inesperado artista de rua a bradar que a vida pode ser melhor vivida. Outras vezes, encontra em qualquer esquina o homem-empresa seguro do que é necessário para salvar a humanidade dessa miséria que a cidade também apresenta ao menor esforço individual. Comporta, também, o olhar da criança que busca no jogo de futebol o desejo de conseguir fazer um gol e poder contar a sua mãe seu grande feito quando ela retornar do trabalho, como um jeito de honrar a saudade. É a multiplicidade que uma cidade comporta em suas muitas camadas.

Vive-se, morre-se, ama-se em um espaço quadriculado, recortado, matizado, com zonas claras e sombras, diferenças de níveis, degraus de escada, vãos, relevos, regiões duras e outras quebradiças, penetráveis, porosas. Há regiões de passagem, ruas, trens, metrôs, cinemas, praias, hotéis, e há regiões fechadas de repouso e moradia. Ora, entre todos esses lugares que se distinguem uns dos outros, há os que são absolutamente diferentes: lugares que se opõem a todos os outros, destinados, de certo modo, a apagá-los, neutralizá-los ou purificá-los. São como contraespaços (Foucault, 2013, p. 19/20)

Esses contraespaços a que Foucault refere são composições possíveis, lugares que todas as sociedades vêm a produzir, brechas que permitem a suspensão das concreções a que estamos sujeitos em cada momento histórico. Diferente das utopias que são desprovidas de lugar, salvo na virtualidade das almas, esses contraespaços são antes heterotopias, porque estão inscritos no real. Podem estar materializados na temporalidade de uma festa ou em um jardim simétrico, em museus ou bibliotecas, no percurso de um navio, evanescentes por natureza. Característica pétrea: "elas são a contestação de todos os outros espaços" (Foucault, 2013, p. 28).

Salutares ao grande projeto da Jerusalém Celestial, são lugares que qualificam uma política inteiramente outra. Talvez os solitários sejam capazes de vivenciarem heterotopias no campo social. Solitários que se encontram fixados em determinados diagramas de poder, mas que ao mesmo tempo, por seu corpo e experiência escapem para espaços utópicos e heterotópicos. "Essa luta, peça de resistência da história social ao ver de Foucault, não tem uma lógica temporal necessária" (Harvey, 2012, p. 196/197).

É então através da ética do cuidado de si que se apresenta a possibilidade de dobrar as forças que operam a subjetivação. São os rasgos que são possíveis de se produzir a partir de regras facultativas do homem livre, em que há "uma relação da força consigo, um poder de se afetar a si mesmo, um afeto de si por si" (Deleuze, 2005, p. ١٠٨). É a constituição de um território em que a vida enquanto diferenciação se torna possível, fuga da trama de concreções do poder e do saber, produção de diferença ainda que se sofra novas capturas. "Trata-se da constituição de modos de existência, ou invenção de possibilidades de vida que também dizem respeito à morte, a nossas relações com a morte: não a existência como sujeito, mas como obra de arte" (Deleuze, 2013, p. 120). Daí decorre a possibilidade de uma relação ético-estética com os processos de subjetivação através da criação de uma vida que se inventa na própria relação com o saber e o poder. A respeito dos processos de subjetivação Deleuze (2013, p. 193) assinala que "nada têm a ver com a 'vida privada', mas designam a operação pela qual indivíduos e comunidades se constituem como sujeitos, à margem dos saberes constituídos e dos poderes estabelecidos, podendo dar lugar a novos saberes e poderes".

Quem (se) subjetiva, estes são os nobres, aqueles que dizem, segundo Nietzsche, "nós, os bons..."; porém, noutras condições, são os excluídos, os ruins, os pecadores, ou bem os eremitas ou bem as comunidades monásticas, ou bem os hereges. (...) produções de subjetividade que escapam dos poderes e saberes de um dispositivo, para se reinvestirem nos de um outro, sob outras formas a nascer. (Deleuze, 2016, p. 362/363)

Se é pela via da comunicação e do marketing que avançam os dispositivos da sociedade de controle, quando se manipula os signos, engendrando-os ao desejo, tendo por finalidade o consumo e o lucro, são através dos dispositivos de comunicação que o controle também opera, degenerando-os. O que Deleuze nos propõe é que criemos "vacúolos de não-comunicação, interruptores, para escapar ao controle" (Deleuze, 2013, p. 221). Talvez essa tarefa também seja dos "solitários", em um certo distanciamento dos dispositivos que nos obrigam a falar, para que os devires e possibilidade de acontecimentalização tenham passagem.

Ainda, de outro modo, o eu é o contrário do fluxo. É um reflexo que estabelece um sujeito. O eu individual ou coletivo torna-se reflexo, ao passar a estabelecer relações lógicas consolidando sujeito e objeto. O nascimento do juízo assim se dá, quando se tem necessidade de um eu. Isso porque "um eu é algo feito para ser dado ou tomado, que deseja amar ou ser amado, é uma alegoria, uma imagem, um Sujeito, não uma verdadeira relação" (Deleuze, 2005, p. 70). Diferente do eu, a alma é o fluxo. São relações de força que expressam o combate das forças inerente à vida. "O combate-entre é o processo pelo qual uma força se enriquece ao se apossar de outras forças somando-se a elas num novo conjunto, num devir" (Deleuze, 1997, p. 170), composição de forças que nos atravessa quando se está no mundo e já distanciados do tribunal do juízo e da destruição da guerra final. Lawrence, pela leitura de Deleuze (1997, p. 71), não concebia essa experimentação sem antes atingir uma solidão fundamental, perfeita e acabada. Só aí é que "tem-se a parte inalienável da alma, quando se deixa de ser um eu: é preciso conquistar essa parte eminentemente fluente, vibrante, lutadora".

Neste contexto de pluralidade de forças e demandas por reinvenções de resistências, o ato de ensimesmar-se não é algo que se deva desprezar. É também, em alguma medida, acessar e produzir a virtualização pela atividade de ruminação que Nietzsche propõe (Deleuze, 1985). É estar consigo próprio a fim de interpretar e avaliar as forças que nos passam para, então, criar o novo na passagem do devir, o ato de liberação que permite a fuga das concreções dos gregarismos. Não se pode pensar livremente em rebanho. São necessários ares solitários para possamos nos distinguir daquilo que não mais nos serve através do que nos é imposto pela moral. Nesse sentido, Deleuze (2013) se referia a Godard enquanto um solitário. Do estilo de vida que criou para si, o cineasta se clausura povoado, "uma solidão múltipla, criativa" (p. 53). É esse distanciamento, semelhante à figura do Zaratustra em Nietzsche, que possibilita a passagem de devires a produzir a gagueira e a estrangeiridade na própria língua, beatitude do ato de criação.

 

Considerações Finais

O que nos constitui é um complexo jogo de relações em que se imbricam nas mais diferentes composições, entre camadas de estratificação, diagramas de poder e a passagem de singularidades. Cada momento histórico produzirá variações no agenciamento dessas linhas de força: incorporará a criação de novas, o esvanecimento de outras e a manutenção das demais. "Tudo é político, mas toda política é ao mesmo tempo macropolítica e micropolítica" (Deleuze & Guattari, 1996, p. 99).

Ao alvorecer do século XIX, a biologia floresce como ciência em suas micropartículas, o campo econômico passa a entender as relações de produção a partir de suas condições, da mesma forma que estabelece a disparidade entre essas condições, e a linguagem começa a gaguejar. A forma homem está diante de sua finitude, o que, para o século XVII, foi o problema do infinito da forma-Deus (Deleuze, 2005). Deleuze, então, pergunta: Com quais forças do Fora irá se relacionar o homem? Com quais se relaciona neste instante?

Talvez a condição de indivíduo seja o modo de subjetivação hegemônico desse período de transição entre as sociedades disciplinares e as sociedades de controle. As técnicas de individualização das sociedades disciplinares ainda se encontram vigentes, enquanto que os dispositivos de controle seguem sua experimentação e aprimoramento. Talvez, em um futuro próximo, os corpos solitários dos indivíduos, por mutação do capitalismo, tornem-se apenas divíduos, em suas múltiplas formas de segmentação numéricas, biomoleculares, nanotecnológicas, cifras monetárias.

Talvez não escaparemos de uma certa solidão, engendrados que estamos, por enquanto, a seguir os fluxos de produção de capital e do seu regime de individualização e dividuação. A própria captura do desejo passa por nós, ocidentais. Somos o capitalismo e seu regime de destruição criativa. Somos muitas histórias de aniquilação do outro enquanto diferença para erigir a Jerusalém Celestial, o grande projeto ocidental da comunidade perfeita dos justos e bons. Comunidade que só existe, de fato, enquanto dissimetria entre aqueles que a compõem. Se for para se viver em uma comunidade una, tomada de niilismo e aniquilação da diferença, a vida da alma solitária oferece maiores possibilidades de composição de mundo. Deleuze e Guattari (1996, p. 15) nos acompanham quando conclamam que "há sempre um coletivo, mesmo se se está sozinho".

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Luís Felipe Parise
E-mail: luisfelipeparise@gmail.com

Simone Mainieri Paulon
E-mail: simonepaulon@gmail.com

Recebido em: 12/10/2018
Revisado em: 02/05/2020
Aceito em: 20/05/2020
Publicado online: 21/08/2020

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