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Revista Subjetividades

versão impressa ISSN 2359-0769versão On-line ISSN 2359-0777

Rev. Subj. vol.20 no.1 Fortaleza jan./abr. 2020

http://dx.doi.org/10.5020/23590777.rs.v20i1.e9164 

RELATOS DE PESQUISA

 

Percepções dos profissionais da saúde sobre a morte de pacientes

 

Perceptions of Health Professionals about the Death of Patients

 

Percepciones de los Profesionales de la Salud sobre la Muerte de Pacientes

 

Perceptions des Professionnels de la Santé concernant des Décès des Patients

 

 

Daniela Trevisan MonteiroI; Jussara Maria Rosa MendesII; Carmem Lúcia Colomé BeckIII

IPós-Doutoranda em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Doutora em Psicologia Social e Institucional, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
IIPós-Doutorado em Serviço Social pela Universität Kassel, República Federal da Alemanha. Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Política Social e Serviço Social do Instituto de Psicologia/ UFRGS. Docente credenciada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional do Instituto de Psicologia/ UFRGS. Professora Adjunto do curso de Serviço Social da UFRGS
IIIDoutora em Filosofia da Enfermagem pela Universidade Federal de Santa Catarina. Atualmente é Professora Titular da Universidade Federal de Santa Maria. Docente Permanente do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da UFSM. É avaliadora dos Cursos de Enfermagem do INEP/ MEC

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente estudo objetivou conhecer as percepções dos profissionais da saúde sobre a morte de pacientes. Realizou-se um estudo descritivo e exploratório de cunho qualitativo. A coleta de dados foi realizada através de entrevistas semiestruturadas e observações. Foram entrevistados dezessete profissionais, médicos e enfermeiros, que trabalham na unidade de pronto socorro em um hospital de ensino do Rio Grande do Sul. Os dados obtidos foram submetidos à triangulação a partir da análise de conteúdo. Os resultados mostraram que são utilizadas estratégias defensivas para o enfrentamento de situações consideradas estressantes. Ademais, os sentimentos suscitados não são elaborados pelos profissionais. Concluiu-se que são utilizadas estratégias defensivas quando ocorre a morte de pacientes, mas isso não diminui o sofrimento dos profissionais, por isso é importante que a morte seja tema de formação inicial e continuada entre os profissionais da saúde.

Palavras-chave: morte; atitude frente à morte; pessoal de saúde; serviço hospitalar de emergência.


ABSTRACT

The present study aimed to know the perceptions of health professionals about the death of patients. A descriptive and exploratory qualitative study was carried out. Data collection was carried out through semi-structured interviews and observations. Seventeen doctors and nurses, who work in the emergency department at a teaching hospital in Rio Grande do Sul, were interviewed. The data obtained were submitted to triangulation based on content analysis. The results showed that defensive strategies are used to face situations considered stressful. Furthermore, the feelings raised are not elaborated by the professionals. It was concluded that defensive strategies are used when the death of patients occurs, but this does not reduce the suffering of professionals, so it is important that death is a topic of initial and continuing training among health professionals.

Keywords: death; attitude towards death; health personnel; emergency hospital service.


RESUMEN

El objetivo de este estudio fue conocer las percepciones de los profesionales de la salud sobre la muerte de pacientes. Fue realizado un estudio descriptivo y exploratorio del tipo cualitativo. La recogida de datos se realizo por medio de entrevistas semiestructuradas y observaciones. Fueron entrevistados diecisiete profesionales, médicos y enfermeros, que trabajan en la unidad de emergencia en un hospital de enseñanza del Rio Grande do Sul. Los datos obtenidos fueron sometidos a la triangulación a partir del análisis de contenido. Los resultados indicaron que son utilizadas estrategias defensivas para el enfrentamiento de situaciones consideradas estresantes. Además, los sentimientos suscitados no son elaborados por los profesionales. Se concluyó que son utilizadas estrategias defensivas cuando ocurre la muerte de paciente, pero eso no disminuye el sufrimiento de los profesionales, por eso es importante que la muerte sea tema de formación inicial y continuada entre los profesionales de la salud.

Palabras clave: muerte; actitud ante la muerte; personal de la salud; servicio hospitalar de emergencia.


RÉSUMÉ

La présente étude a eu le but de connaître les perceptions des professionnels de la santé concernant des décès des patients. Une étude qualitative descriptive et exploratoire a été réalisée. La collecte des données a été réalisée à travers des entretiens semi-structurés et des observations. Dix-sept professionnels, parmi eux, des médecins et des infirmières, qui travaillent aux urgences d'un hôpital universitaire de Rio Grande do Sul, ont été interrogés. Les données obtenues ont été soumises à une triangulation basée sur une analyse de contenu. Les résultats ont montré que des stratégies défensives sont utilisées pour faire face à des situations considérées comme stressantes. De plus, les sentiments suscités ne sont pas élaborés par les professionnels. Il a été conclu que des stratégies défensives sont utilisées des patients sont décédés, mais cela ne réduit pas la souffrance des professionnels. Il est, donc, important que la mort soit un thème pendant la formation initiale et continuée chez les professionnels de la santé.

Mots-clés: décès; deuil; professionnels de santé; service hospitalier urgences.


 

 

Os profissionais da saúde, médicos e enfermeiros, vivem um cotidiano permeado por um conjunto de angústias e obstáculos (Campos, 2011). Essas vivências podem tanto ocorrer no sentido de aliviar a dor dos pacientes e salvar vidas, considerando o trabalho como fonte de prazer e favorecendo o equilíbrio psíquico, quanto apresentar rotineiramente sofrimentos, medos, conflitos, tensões, disputa pelo poder, ansiedade e estresse, convivência com a vida e morte, o que pode resultar em sofrimento para o profissional (Martins, Robazzi, & Bobroff, 2010). Condições insatisfatórias aumentam o descompasso entre o humano e o desumano. Geralmente, a equipe está sobrecarregada por diferentes fatores: complexidade das tarefas realizadas, número insuficiente de profissionais, mudanças nas escalas de plantão, grande número de pacientes nas unidades, entre outros (Kovács, 2010).

O profissional da saúde está em contato direto com o sofrimento e vive conflitos sobre como se posicionar frente à dor que, por vezes, não consegue controlar através de medicamentos. Esse convívio com a dor, a perda e a morte remete o profissional à vivência de fragilidade, vulnerabilidade, medos e incertezas (Kovács, 2010). A morte demarca os limites do saber e da ação dos profissionais, desencadeando vivências emocionais negativas ligadas à frustração narcísica, ameaçadora da realização profissional, sendo vista como fracasso, derrota, vergonha, ruptura biográfica, entre outros significados negativos (Santos & Hormanez, 2013). Além disso, se a morte acontece de forma brusca e/ou inesperada, há uma potencialidade de desorganização, paralisação e impotência. As mortes inesperadas são mais complicadas por sua característica de ruptura brusca e pela falta de preparação das pessoas diante da perda (Kovács, 1992).

Quando o doente se aproxima da morte, os profissionais se sentem despreparados para cuidar do sofrimento do paciente e de sua família (Borges & Mendes, 2012). O estudante de medicina é preparado para curar e salvar vidas, dificultando a proximidade humana com a finitude (Santos, Aoki, & Oliveira-Cardoso, 2013). A grande resistência a assuntos relativos à morte na sociedade ocidental e a ampla cultura de negação da morte por todos, incluindo pacientes e familiares, são fatores que favorecem repercussões negativas nesses trabalhadores (Magalhães & Melo, 2015). O consumismo, o culto ao corpo, o progresso, a valorização da juventude e a negação da velhice, entre outros, induzem ao "esquecimento" de que a morte existe, retirando a possibilidade de diálogo sobre o fim da vida. Nos hospitais, a morte é afastada e escondida e, quando ocorre, é puramente técnica (Azevedo, Araújo, Novais, Silva, & Passos, 2016), sem reconhecimento desta como um processo inerente à vida. Esse interdito frente à morte evidencia a necessidade de suporte psicológico aos trabalhadores, em seu local de trabalho, e a abordagem na formação acadêmica e educação permanente em relação ao processo de morte e morrer (Bordignon, Ferraz, Beck, Amestoy, & Trindade, 2015).

Além disso, na organização hospitalar, a morte ainda não possui seu lugar. Fala-se que o paciente foi a óbito, expurgou, mas nunca que o paciente morreu. Porém, ela está lá, silenciada, o que pode aumentar a angústia dos profissionais da saúde, que vivenciam a morte no seu cotidiano. Nos hospitais, há um silêncio sobre a morte que coincide com o fato de percebê-la como fracasso dos profissionais da saúde, que criam vínculos com alguns pacientes e, quando a morte acontece, precisam lidar com a sensação de fracasso e impotência, e iniciam um processo de luto que não é reconhecido ou autorizado (Kovács, 2010).

Nesse contexto de negação da morte, os profissionais podem desenvolver diferentes estratégias defensivas que os auxiliam a fugir da ansiedade, culpa, dúvida e incerteza. As estratégias defensivas são meios de sobrevivência psíquica que não extinguem, mas tamponam o sofrimento, levando a escapes ou ao transbordamento de emoções que interferem na relação com o paciente (Kovács, 2010). Logo, a morte não é vivenciada pelos profissionais como fenômeno natural, e sim acompanhada de diferentes dificuldades que aludem que o sofrimento resultante do contato com a morte e o morrer devem ser velados e silenciados (Santos et al., 2013).

Assim, nessa guerra imaginária entre vida e morte, o paciente em final de vida pode tornar-se símbolo de uma derrota, o que gera desconforto ao médico que tem como intuito restituir-lhe a condição de saúde (Santos et al., 2013). Movidos pelo desejo de salvar e prolongar a vida, médicos, familiares e até mesmo o próprio paciente podem prolongar o processo de morte e apenas acrescentar sofrimento (Hossne & Pessini, 2014). São vidas prolongadas graças ao desenvolvimento de aparelhos médicos e tecnologias duras que trazem à tona a desumanização medicalizada (Drane, 2014). O prolongamento da vida não é garantia de qualidade e, por isso, não se pode justificar a ausência sobre a discussão da morte e do paradigma do cuidar na formação dos profissionais da saúde (Borges & Mendes, 2012).

O presente estudo faz parte de uma pesquisa de doutorado que teve como objetivo geral descortinar o interdito sobre a morte e o morrer, as percepções, os significados, os sentimentos e dificuldades atribuídos pelos profissionais da saúde sobre o cuidado de pacientes em processo de morte e morrer. Dentro da perspectiva da morte na unidade de prontosocorro, o estudo aqui apresentado consistiu em conhecer as percepções dos profissionais da saúde sobre a morte de pacientes.

 

Método

Caracterização e Delineamento do Estudo

Apresenta-se uma pesquisa descritiva e exploratória, de cunho qualitativo, no intuito de compreender um processo a partir de como o objeto de estudo acontece e se manifesta. Pode-se inferir que o método qualitativo privilegia os sujeitos sociais que detêm os atributos que o investigador pretende conhecer e permite reconhecer a subjetividade e o simbólico como partes integrantes da realidade social. Para o tema proposto, é o apropriado, pois os fenômenos a serem estudados não são redutíveis a uma experiência biológica. Assim, a pesquisa qualitativa propõe o entendimento dos significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes; dos processos e fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis (Minayo, 2008).

Cenário do Estudo

O hospital no qual foi realizada a pesquisa caracteriza-se como um hospital de ensino, geral, público, de nível terciário, que atendendo somente pelo Sistema Único de Saúde (SUS). A pesquisa foi realizada a partir de um prévio consentimento institucional, e aconteceu na unidade de prontosocorro (PS). A unidade de pronto-socorro, escolha do estudo, conta com o limite aproximado de 30 leitos de urgência e emergência e em torno de 20 macas de observação. Os médicos e enfermeiros dessa unidade trabalham sempre com superlotação, sendo matéria constante na mídia o número excessivo de pacientes internados. Nesse processo, os pacientes e seus acompanhantes ficam alocados nos corredores, em macas, excluindo-se qualquer privacidade. A unidade de prontosocorro é dividida em quatro áreas: clínica, traumatologia, cirurgia e pediatria. A área delimitada na pesquisa foi a clínica, pois durante a inserção inicial da pesquisadora percebeuse que esse setor é o que recebe os pacientes que depois serão encaminhados para as especialidades de traumatologia e cirurgia ou para outras unidades do hospital.

Participantes do Estudo

A amostra desta pesquisa constituiu-se em médicos e enfermeiros da unidade de pronto-socorro. Nesta, há um total de 40 profissionais, 13 médicos e 27 enfermeiros. Alguns dos profissionais convidados para a entrevista, mesmo depois do aceite, não conseguiram participar. Isso pode ter acontecido devido às características próprias do setor do pronto-socorro, bem como ter relação com a organização do trabalho. Outros negaram a participação desde o início, dando como causa a alta carga de trabalho e o pouco tempo. Com relação aos médicos, foram entrevistados sete homens e uma mulher, com idades de 27 a 52 anos, que trabalham nos diferentes turnos em escala de plantão. Entre os enfermeiros, participaram sete mulheres e dois homens, com idades de 33 a 42 anos, e apenas dois trabalham no turno noturno. Para explicar a caracterização dos participantes, segue o quadro representativo.

 

Quadro 1

 

Dentro da grande pesquisa realizada pelos autores sobre o tema da morte, o número de participantes foi resultado da busca de uma amostra homogênea. Realizando-se a entrevista com oito médicos e nove enfermeiros em cada unidade pesquisada. Logo, os participantes, na unidade de pronto-socorro, foram convidados aleatoriamente, nos diferentes turnos de trabalho (diurno e noturno), tendo em vista o mesmo número de profissionais já entrevistados em outra unidade. Portanto, totalizaram-se dezessete entrevistas e dois meses de observação na unidade de pronto-socorro.

Critérios de Inclusão e Exclusão

Optou-se pela exclusão dos médicos residentes, visto que passam apenas dois meses da residência no prontosocorro. O pouco tempo de experiência no setor poderia apresentar informações superficiais em relação ao tema. Portanto, incluíram-se profissionais com maior tempo de experiência e que passaram por situações de atendimento em que o paciente acabou morrendo.

Instrumentos de Coleta de Dados

Foram utilizados dois instrumentos na coleta de dados: a observação sistemática e a entrevista semiestruturada. A observação sistemática utiliza instrumentos para a coleta de dados ou fenômenos observados para responder aos propósitos pré-estabelecidos. Na observação sistemática, o observador sabe o que procura e o que merece maior importância em cada situação (Marconi & Lakatos, 2007).

A observação iniciou com a familiarização na unidade e findou após todas as entrevistas individuais. Foi realizada em agosto e estendeu-se até outubro de 2016. Ocorreu em dois turnos, diurno e noturno, e em diferentes horários. Nas anotações em diário de campo foram registrados por escrito os eventos pertinentes em relação ao tema, bem como as manifestações (verbais, ações e atitudes) observadas nos participantes.

Quanto à entrevista semiestruturada, Minayo (2008) afirma que parte da elaboração de um roteiro, que difere do sentido tradicional do questionário, pois visa apreender o ponto de vista dos atores sociais previstos no objetivo da pesquisa. Logo, os principais pontos que foram utilizados nas entrevistas com os profissionais da saúde foram: Condições de vida (família, convívio atual, moradia); Trajetória profissional e repercussões na saúde; Atividades cotidianas na instituição hospitalar, conhecimento do processo de trabalho, controle sobre o trabalho, natureza e conteúdo das tarefas; Organização do trabalho (horários, ritmos, exigências físicas e mentais); Comunicação e relacionamentos interpessoais; Significados atribuídos frente à morte e ao morrer; Vivências no processo de morte e morrer; Relação com o paciente terminal; Relação com a família do paciente terminal; Dificuldades e facilidades no trabalho frente à morte e ao morrer; Saúde mental, percepção do trabalhador entre seu trabalho e algum possível sintoma psíquico.

Procedimentos de Coleta de Dados

Para que os dados pudessem ser coletados, primeiramente o projeto foi encaminhado ao comitê de ética e pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, aprovado sob o número CAAE 52749816.2.0000.5334. Depois foi realizada a apresentação da pesquisa para os chefes da unidade de prontosocorro para a aprovação setorial. Em seguida, o projeto foi encaminhado ao Gabinete de Estudos e Projetos da instituição na qual foi realizada a coleta. Após todos os trâmites serem contemplados e o projeto receber parecer favorável, iniciou-se a coleta dos dados.

Procedimentos se Análise e Interpretação dos Dados

As narrativas das entrevistas foram transcritas para serem percebidas as falas mais significativas, seja por sua repetição, por sua carga emocional, seja pelo grau de congruência ou contradição das narrativas. A partir das entrevistas se formaram as categorias para a análise de dados. O eixo norteador foi a análise de conteúdo, com foco na análise categorial, pois utiliza procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens (Bardin, 2009). Dessa forma, as informações das duas fontes foram integradas por meio da referida técnica de análise.

O processo de categorização partiu de uma pré-análise realizada a partir da leitura flutuante de todas as entrevistas, previamente transcritas, sendo mantido o áudio para informação paralinguística. A seguir, as falas foram divididas levando-se em consideração as colocações mais repetitivas e emergentes dos discursos dos entrevistados. Dentro do tema proposto, falas relevantes também foram destacadas, mesmo não havendo repetições. Dessa forma, os achados brutos foram tratados de maneira a serem significativos e válidos, para então realizarem-se as inferências e adiantar as interpretações conforme os objetivos previstos e as descobertas inesperadas (Bardin, 2009). A partir daí, foram estabelecidas as categorias que apresentaram maior sentido na construção do discurso das entrevistas e do tema proposto.

Considerações e Aspectos Éticos

Foram seguidas as recomendações éticas da Resolução nº 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde (2016), que prescreve a ética nas pesquisas com seres humanos. O sigilo dos participantes foi e será mantido nas futuras publicações através da utilização da sigla de sua profissão (M para médico(a) e E para enfermeiro(a)) e número da entrevista, seguidas da sigla da unidade em que trabalha (PS para prontosocorro).

 

Resultados e Discussão

A seguir apresentam-se as categorias referentes à análise dos dados no setor do prontosocorro, são elas: Modos de enfrentamento frente à morte de pacientes; Os sentimentos frente à morte de pacientes: desafios aos profissionais. Na primeira categoria, é abordada a banalização da morte no processo de trabalho dos profissionais devido a suas vivências cotidianas. O prontosocorro é apresentado como uma unidade que distancia a vivência real da morte de pacientes, sendo comum a utilização de estratégias defensivas entre os profissionais. São apresentados relatos sobre suas percepções nessas situações. A segunda categoria reflete os sentimentos dos profissionais frente a mortes esperadas e inesperadas. A idade em que o paciente morre também é apontada, pelos profissionais, como fator de maior sofrimento, bem como o lidar com as famílias nessas duas situações.

Modos de Dnfrentamento frente à Morte de Pacientes

As vivências cotidianas dos profissionais podem ocasionar certo distanciamento em relação aos pacientes em processo de morte. A banalização da ideia de que o sofrimento e a morte são constitutivos da dinâmica do trabalho contribuem para uma desvalorização das marcas desenvolvidas no decorrer do tempo pelas situações-limite nas relações de cuidado (Santos & Moreira, 2014). Isso pode estar relacionado com a utilização de estratégias de defesa para se proteger do sofrimento que uma aproximação maior poderia causar, como exemplificam as falas:

Só que a gente acaba acostumando, vamos dizer assim, com essa parte da morte. Acaba se tornando quase que normal aqui, para nós aqui dentro, porque está na nossa rotina. A gente lida com a morte todo o dia, né? Então a gente tem que aprender a trabalhar com ela, mas, claro, não é a mesma coisa, por exemplo, que uma situação que fosse com um ente querido da gente, um familiar, alguma coisa assim; se torna uma repercussão diferente. (E16, PS)

É que prontosocorro a gente se defende muito. Em prontosocorro a gente se defende bastante, e a gente consegue se defender bastante. Então teu vínculo é pequeno, teu convívio é curto, tu consegue não entrar muito assim, tu entendeu. [...] Prontosocorro pode ser muito ruim, muito triste, mas é aquilo ali, está bem encaixotadinho, entendeu? E eu vou embora, deixei a família sofrendo aqui e vou embora, faço questão de ir embora, de depurar aquilo e acabou, eu não me grudei muito naquilo. (M9, PS)

A morte no prontosocorro torna-se um acontecimento comum aos profissionais, no entanto essa banalização da morte pode estar ligada a estratégias de defesa, como muito bem ressaltado na segunda fala. A proteção dos profissionais contra o sofrimento e o adoecimento psíquico que a dor e a morte do outro podem causar emerge na forma de estratégias defensivas que podem estar escondidas em diferentes roupagens. Portanto, a banalização da morte, a falta de tempo para a reflexão e o trabalho voltado apenas à quantidade de procedimentos que precisam ser realizados podem ser formas de defesa dos profissionais para não entrar em contato com essas situações que colocam em pauta a própria vulnerabilidade frente à morte e ao morrer.

O trabalho, então, vai se articular em torno de situações objetivas, tornando a morte invisível no ambiente hospitalar. Se investir em afeto e criar laços são geradores de sofrimento, o profissional vai utilizar-se de estratégias defensivas para lidar com a carga psíquica, por exemplo, distanciando o afeto do trabalho e focando-se nas atividades técnicas (Miorin et al., 2016). É uma forma de se proteger contra as tensões e conflitos que emergem no contato com a morte e seu estigma, buscando mascará-los. Isso causa certo distanciamento emocional do doente e da sua família. Além disso, as expressões dos sentimentos dos profissionais e sua sensibilização diante da situação dos pacientes não são bem vistas pela equipe como um todo, que organiza sua rotina no intuito de maximizar a utilização de recursos técnicos, silenciando a expressão emocional dos profissionais, dos doentes e de seus familiares (Monteiro, Magalhães, Carneiro, & Machado, 2016).

O distanciamento oriundo das estratégias defensivas pode resultar em atendimentos muito técnicos, voltados apenas à questão biológica da doença, excluindo-se a dimensão psicossocial e espiritual do paciente e impossibilitando um cuidado mais humanizado. O cuidado deve ser pautado no respeito aos valores humanos, dentro das circunstâncias em que se encontra cada paciente no seu momento de internação (Santos et al., 2018). Nesse sentido, o cuidado responde a uma assistência humanizada e contempla as necessidades específicas dos sujeitos em seus aspectos pessoais, sociais e espirituais. Deixa de ser puramente técnico e assistencial, possibilitando suporte e abrangendo o paciente integralmente nas dimensões que contemplam as suas necessidades (Silva, Silva, Almeida, & Araújo, 2014).

Entende-se o quanto pode ser difícil para o profissional realizar cuidados diários de pessoas que estão morrendo. As estratégias defensivas são necessárias para protegê-los dessa situação sem profundos prejuízos a sua saúde mental. No entanto utilizá-las massivamente pode ter um efeito contrário ao que se espera. Considerar que o cuidado ao outro pode ocorrer sempre dentro de uma dimensão técnica, suprimindo os sentimentos que podem emergir em situações estressantes, com dilemas éticos ou em mortes prematuras, não permite que o profissional lide e elabore essas situações cotidianas de maneira mais eficaz. Dessa forma, suprimir os sentimentos por muito tempo, sem nunca elaborá-los no processo de trabalho, pode ser uma fonte de prejuízo à saúde mental em longo prazo. Poderá ocasionar doenças que poderiam ser evitadas através da reflexão e do compartilhamento de sentimentos com a equipe ou outro profissional apto a trabalhar com esse tema. Destarte, as estratégias defensivas possuem um papel paradoxal: são positivas quando protegem o sujeito contra o sofrimento oriundo das situações de trabalho geradoras de conflito, mantendo o equilíbrio psíquico e impedindo o adoecimento; porém são negativas quando imobilizam o trabalhador. Com o passar do tempo essa forma de proteção pode esgotar-se, podendo aumentar o risco de adoecimento do trabalhador (Mendes, 2007). Assim, poder se relacionar sem a utilização de estratégias de defesa, utilizadas maciçamente, não é desproteger os profissionais nessas situações, mas permitir o encontro límpido entre os atores dessas circunstâncias, colaborando para uma relação mais simétrica, na qual profissionais e pacientes/familiares serão beneficiados.

Os Sentimentos frente à Morte de Pacientes: Desafios aos Profissionais

Mesmo com um maior distanciamento, quando a morte é inesperada há sofrimento entre os profissionais. O "normal" culturalmente aceito são as pessoas mais velhas morrerem primeiro, filhos perderem os pais. Quando acontece o contrário, as pessoas em volta não se sentem preparadas para esse tipo de perda, sejam os familiares, sejam os próprios profissionais que lidam com o paciente que está morrendo, como se observa nas falas:

Eu acho que, dos nossos conflitos, lidar com a morte, eu não sei, eu já tenho quatorze anos formada, então eu já vi bastante gente morrer. [...] Quando a gente vê um idoso morrer, é menos doloroso do que quando a gente vê pessoas jovens, né?! Então, às vezes, a gente tem um baque, principalmente quando é jovem, quando é criança. A gente já chorou todo mundo abraçado aqui, já chorei abraçado com familiar, mas como a grande maioria dos pacientes que a gente pega são idosos, parece que até isso é menos doloroso, se torna um pouco menos doloroso. [...] Por exemplo, que esses dias a gente perdeu uma criança de dois anos, por um trauma, então esse dia foi bem complicado, a gente chorou muito, a gente passou um dia muito mal aqui, foi um plantão muito ruim, aí foi bem complicado. (E13, PS)

Se é um paciente que a gente já sabe que vai falecer, para nós assim, é como um familiar, né?! Digamos a gente já sabe que vai falecer, é uma coisa que realmente a gente já está preparado, só está esperando a hora. E o procedimento é tentar aliviar o sofrimento naquela dor na última hora, entrar com medicamentos que aliviam o sofrimento dele nas últimas horas de vida, nos últimos dias de vida. Esse tipo de paciente, a gente já espera, para nós, assim, é uma coisa normal, isso acontece todos os dias... De terça para quarta, por exemplo, perdemos dois pacientes também, nessa mesma situação, né?! (E16, PS)

Tem uns pacientes que a gente já sabe que vai evoluir para óbito, então a família também, dependendo muito da família, às vezes que está preparada, por exemplo, esse paciente que foi a óbito ali, a família já sabia, que é um paciente idoso, né?! É um paciente que já tem toda uma história de tratamento, que ia evoluir para óbito, né?! Não tinha o que fazer, então não tem aquele... é uma coisa mais tranquila da gente trabalhar isso, né?! Diferente de você pegar um acidente e, às vezes, é um jovem, mesmo que não seja tão jovem, mas é uma perda trágica, e você vê a família desesperada. (E11, PS)

Na primeira fala apresentada percebe-se uma contradição quando a enfermeira fala sobre a morte como rotina, como algo normal em quatorze anos de profissão, em contrapartida ela fala como algo que gera sofrimento. Quando o paciente é idoso, ela ressalta que é menos doloroso, mas está implícito que também existe uma dor por essa perda, levando a crer que a morte não é tão natural como relatado. Parece que os sentimentos frente aos pacientes em iminência de morte precisam ser representados dentro do que é aceito pela equipe como um todo, e também do que é aceito socialmente. Se a equipe entende a morte enquanto parte da rotina, então todos os profissionais precisam ter esse mesmo significado. Se o profissional possui uma postura diferente, ele pode ser excluído pela equipe.

Durante a pesquisa, algumas perguntas foram feitas pelos profissionais nesse sentido, como: posso chorar pelo paciente? Posso abraçar o paciente? Alguns colegas da equipe prontamente respondiam: "eu abraço e não estou nem aí". Mas há uma dúvida de modo geral de até onde o profissional pode sofrer pelo paciente ou junto com seus familiares. A morte, mesmo quando rotina, não é percebida como algo natural. O que está em frente ao profissional é outra pessoa, em sofrimento, que diante de sua morte confronta a finitude do próprio profissional. Frente a isso, sofrer pelo paciente ou por outras situações que corroboram no ambiente hospitalar fazem retornar o humanismo retirado dessa instituição através das ciências positivistas e, consequentemente, da formação voltada apenas ao biológico e à cura das doenças.

Saber que o paciente vai morrer, como exposto na segunda fala pelo enfermeiro, é diferente de não se permitir sofrer por essa morte ou, pelo menos, sentir a perda do paciente e elaborar esse acontecimento da melhor forma possível, para estar preparado emocionalmente para a próxima morte que virá. O luto dos profissionais pela perda de seus pacientes precisa ser permitido socialmente e entre eles próprios como forma de reflexão sobre a vida pessoal e profissional, fortalecendo um trabalho mais humanizado para todos os envolvidos.

A terceira fala traz o fato da família não estar preparada para a morte, como acontece nos casos de acidentes automobilísticos e de suicídio. São mortes que envolvem separações abruptas e inesperadas, não permitindo um tempo de preparação para a perda, o que pode provocar a desorganização, paralisação e impotência da família, dificultando o processo de elaboração do luto (Tome, Popim, & Dell'Acqua, 2011). Nesses casos, o profissional precisa lidar com seus próprios sentimentos frente à perda e com os sentimentos dessa família que apresenta intenso sofrimento. São situações que exigem maior esforço psicológico e são consideradas estressantes para os profissionais que não sabem que atitudes tomar frente ao familiar que se comporta de maneira desesperada no ambiente hospitalar. Muitas vezes, o profissional se retira e não atende a essa demanda, que é vista como inapropriada.

Para além de um julgamento aos profissionais, é preciso compreender o quanto a morte impacta cada um, como a enfermeira ressalta na fala: "na hora, assim, às vezes você se coloca no lugar do familiar, às vezes dá vontade de chorar, mas você procura sair de perto" (E11, PS). Ela sente vontade de chorar quando percebe o sofrimento dos familiares. O contato com o familiar que perdeu seu ente querido traz ansiedade aos profissionais. Por esse motivo, quando a situação se mostra muito dolorosa, eles possuem dificuldades em oferecer cuidado, mesmo reconhecendo-o como necessário (Tome et al., 2011). O processo de morte e morrer ocasionam desgaste emocional para todos os envolvidos, sejam familiares, sejam profissionais, interligados nessa experiência vivenciada num entrelaçamento de que a morte do outro faz menção à morte de si, o que pode desencadear comportamentos de distanciamento da pessoa que morre (Silva et al., 2013). Por ser um tabu, torna-se difícil a reflexão sobre a morte de pacientes, como colocado anteriormente. Em contrapartida, o distanciamento nessas situações permite que o ambiente hospitalar se apresente frio e nada acolhedor.

As circunstâncias com mortes abruptas ou casos infrequentes também podem impactar os profissionais. O "fator surpresa" pode ser meio de sofrimento, pois não permite uma preparação prévia, tanto em relação ao luto antecipatório quanto nos casos em que há uma piora inesperada na evolução do paciente. É um momento tão chocante para os profissionais que as estratégias defensivas utilizadas rotineiramente não dão conta de abrandar a angústia desencadeada com o acontecimento, como demonstram as falas:

Mas quando é uma coisa assim, súbita (), aguda e o paciente acaba falecendo, aí acho que não tem quem não fique sensibilizado, ainda mais quando chega a hora mais difícil que é comunicar aos familiares o acontecido. Infelizmente, às vezes a gente se coloca no próprio (), poderia ser um familiar da gente que poderia estar ali. (M10, PS)

Geralmente o que abate mais a gente é quanto tem aquela surpresa, que a gente não sabe, que a gente não espera que vá, né?! Em princípio, a gente não espera, mas a gente sabe que é grave, a gente vê que o risco de parar é grande, e de não conseguir voltar é bem grande, então a gente já tem uma noção relacionado a essa parte, então a gente já vai mais preparado, do que uma situação daquilo ali, né?! Não estava nem um pouco preparado, então é difícil de aceitar, principalmente quando envolve uma criança, né, pequena e tal. (E16, PS)

A situação citada na segunda fala versa sobre o atropelamento e morte súbita de uma criança de dois anos, ocorrida durante a coleta de dados dessa pesquisa. O acontecimento desestruturou a equipe como um todo de tal forma que a continuidade do trabalho no decorrer do dia ficou prejudicada. Por mais que profissionais que atuam em prontosocorro se sintam preparados para a dinâmica peculiar de urgência e emergência, situações atípicas e inesperadas causam sofrimento e refletem no trabalho. Continuar as atividades após esse embate, sem um momento de reflexão ou um tempo para absorção do acontecimento, apenas evidenciou com maior clareza o sofrimento dos profissionais causado pela morte da criança e pelo desespero da família. A morte infantil toca a todos de maneira singular e exige um espaço de reflexão e elaboração da perda. Não há como manter um trabalho de qualidade aos outros pacientes no momento em que a equipe apresenta intenso sofrimento. A melhor opção, nesses casos, é buscar estratégias que possam aliviar o sofrimento desses trabalhadores. Uma possibilidade é adotar alternativa de rodízio, oferecendo tempos diferenciados para que possam se recompor, consolar-se, unir-se e ter forças para voltar ao trabalho em equipe.

Os casos de morte abrupta e inesperada no prontosocorro foram considerados, pelos participantes, como os mais difíceis de aceitar, e os sentimentos nomeados por eles nesses casos foram de profunda tristeza, incapacidade e frustração, como revelam as próximas falas. Portanto, é nessas situações que os profissionais demandam maior atenção psicológica, devido aos sentimentos que emergem, como se percebe nas falas: "às vezes, é tristeza, né?! E acho que é assim quando você se sente assim incapaz, que você não consegue além disso, né?! Que você tem limitação e que você não consegue reverter aquela situação" (E11, PS); "tipo assim, tu tenta (...) parou o paciente, tu tenta reanimar e não consegue. Às vezes, pacientes jovens. Tu te sente, muitas vezes, frustrado por não ter conseguido, né?!" (E14, PS); "muitas vezes, é um sentimento de derrota, né, porque a gente não conseguiu. [...] Outras vezes, é o sentimento de impotência que não tem o que fazer mesmo" (M14, PS).

O tempo de serviço poderia apontar a utilização de estratégias de defesa e, consequentemente, um distanciamento do sofrimento frente à morte, porém não foi o que se observou. Esse sentimento independe do tempo de formação e pode estar mais relacionado com os valores e crenças depositados sobre a morte. Cada profissional possui um comportamento frente à morte, alguns se envolvem enquanto outros se distanciam (Tamada, Dalaneza, Bonini, & Melo, 2017). Em geral, por ser preparado para a manutenção da vida, o despreparo leva o profissional a afastar-se da situação (Azevedo et al., 2016). Contudo, por mais que os profissionais lidem com a morte cotidianamente, eles não conseguem familiarizar-se com ela. O confronto com a morte traz sentimentos de fracasso, culpa e impotência, e cada profissional sentirá essas situações como mais ou menos dolorosas. Os sentimentos e comportamentos dependerão de diferentes variáveis, como a idade da pessoa, algum traço do paciente que lembra alguém próximo ou a revolta pela não reversão da doença (Vicensi, 2016).

Apesar de a morte fazer parte do cotidiano hospitalar, ainda é um acontecimento permeado de desconfortos, estranheza, angústias e outros diferentes sentimentos (Santana, Pessini, & Sá, 2017). A formação do médico reforça a atenção voltada à cura da doença, e não ao cuidado do paciente, o que pode auxiliar tanto no estranhamento da morte, quando o outro é visto através da impotência sentida pelo médico, quanto nas estratégias de distanciamento no cuidado ao paciente em fim de vida.

Quando os médicos citam que precisam compreender que a morte faz parte da profissão, há uma dificuldade de aceitação que traz consigo o sentimento de impotência. Há um duelo entre a morte e o profissional que quer curar o paciente, ao invés de cuidar deste. Os que buscam uma atitude humanizada com o paciente conseguem compreender que precisam buscar ajuda e conforto para si, pois a morte é inerente à profissão (Tamada et al., 2017). Cabe salientar que o profissional precisa buscar meios que o auxilie na reflexão sobre a perda de pacientes, significando a morte de forma pessoal e profissional. A construção desse significado pode ajudar na reestruturação emocional do profissional e, consequentemente, no trabalho com pacientes em iminência de morte.

Além de a formação médica ser voltada à cura das pessoas, há a representação social que reforça esse estigma. A morte não é aceita pelas pessoas, não é entendida e é rejeitada pela sociedade. Não se recebe uma educação para a morte com a ideia de que um dia se morrerá, nem se prepara o profissional para conviver com ela (Azevedo et al., 2016). Ninguém vai ao médico para ser ajudado a morrer, mas para realizar um tratamento e se curar. O médico, então, toma esse lugar onipotente erroneamente, pois a medicina ainda não possui todas as respostas que conduzam à cura das doenças. A representação social vinculada à formação positivista cria esse engodo de salvação que apenas irá ser a fonte de frustração quando acontece a morte de pacientes, como abrange a fala:

Inicialmente, junto à família, é aquele sentimento de pesar (...) Mas, em segundo, surge um sentimento de frustração, para ver que, na nossa profissão, a gente ainda não consegue resolver tudo da maneira que a gente gostaria que evoluísse. A gente sempre imagina, eu principalmente quando criança, quando eu decidi fazer medicina, eu imaginava que eu ia salvar todo mundo, e depois, quando tu vê, tu começa se chocar com a realidade que não é assim. As pessoas não vão melhorar das suas doenças e depois morrer lá, só bem velhinhos, com 90 ou 100 anos. Os pacientes morrem antes, em qualquer idade, e tu não consegue evitar esse desfecho. Por mais avançada que a medicina esteja, ainda a luta contra a morte está muito longe da gente conseguir superar. (M10, PS)

O sofrimento na perda de pacientes é algo citado pela maioria dos profissionais. No prontosocorro, a vinculação com os pacientes, principalmente quando em morte agudas, é frágil ou inexiste. A falta de vínculo é um fator facilitador na elaboração da perda. Por não conhecer o paciente e seus familiares mais intimamente, ou não passar muito tempo com estes, a morte, quando acontece, é mais bem aceita. Muitas vezes, a relação entre profissionais e pacientes/familiares não passa de um atendimento, o que direciona a atitudes mais técnicas e menos afetuosas.

A relação aqui no prontosocorro é muito temporária, eles ficam umas 4 a 6 horas conosco, lá na frente sendo avaliados, fazendo exames, e depois a gente define se eles vão ser transferidos para outra unidade; se eles vão internar, eles internam por uma equipe, eles não ficam conosco da equipe de atendimento, então eles passam algumas horas por nós somente, a gente não cria vínculo com esses pacientes. (M12, PS)

Entretanto, diferente do ideal, no prontosocorro muitos pacientes ficam internados por mais tempo devido à falta de leitos nas outras unidades hospitalares. O maior contato com pacientes internados no hospital pesquisado fica a cargo dos enfermeiros e técnicos de enfermagem. Há o médico responsável, que atua em regime de plantão, e os médicos residentes, que passam apenas dois meses no setor, ou seja, a cada dois meses a equipe de médicos residentes é trocada, enquanto há pacientes que ficam internados por mais tempo. A facilidade de acesso dos pacientes aos profissionais de enfermagem colabora com que se sintam mais próximos desses profissionais e permite a expressão das suas necessidades (Simões, Otani, & Siqueira, 2015), evidenciando maior possibilidade de se estabelecer vínculo, diferente da relação com os médicos, que se reduz a poucos atendimentos, o que explicita a fala a seguir:

Assim, ficam, tem pacientes que ficam quatro meses aqui, teve já que foi a óbito com quatro meses aqui, fica muito tempo, só que eu gosto desses pacientes entubados, e gosto do atendimento de emergência, apesar de ser o mais estressante e o mais cansativo que tem assim. (E15, PS)

O tempo maior de internação colabora para uma relação mais próxima com o profissional da enfermagem, mas, consequentemente, pode ocasionar maior sofrimento quando da piora ou morte do paciente. Uma relação mais próxima favorece a identificação e compreensão das dúvidas, anseios, medos e fatores que causam ansiedade e desconforto ao paciente, tornando a assistência mais adequada e humanizada (Carvalho, Santos, Silva,, & Carvalho, 2015). Uma maior interação entre profissional e paciente vai se formando através do diálogo (Azevedo et al., 2016), contudo, na maioria dos casos, a relação desenvolvida é relacionada a um lado mais objetivo e/ou técnico, ou seja, voltado ao conhecimento da doença do paciente, e um vínculo afetivo é evitado.

Alguns têm vínculo sim, conforme a gente tem tempo, né?! Às vezes, a gente não tem tempo de entender os pacientes, né, de compreender. [...] Esse vínculo com os pacientes a gente procura focar acerca do problema em si. Não muito voltado pelo aspecto pessoal, né?! [...] Por que daí a gente começa gerar um vínculo afetivo com os pacientes muito forte, né?! Então esse apego pode se tornar um pouco difícil depois. É melhor se apegar mais assim no foco do tratamento do paciente, no problema que ele tem, para tentar melhorar aquilo ali. (E16, PS)

O vínculo entre profissional e paciente é atravessado por afetos e subjetividades (Silva, Silveira, Pontes, & Vieira, 2015). No prontosocorro percebeu-se o distanciamento do estabelecimento do vínculo, mesmo que, por vezes, esse aconteça. Essa resposta evasiva a uma proximidade maior com o paciente é justificada pelos profissionais devido à superlotação do setor, à rotatividade de pacientes e à quantidade de tarefas a serem realizadas. No entanto, é preciso considerar que, quando há afeto, há sentimentos envolvidos, e um vínculo afetivo com pacientes com grande possibilidade de morte perturbaria o equilíbrio psíquico estabelecido pelo profissional através do uso de estratégias de defesa, como o distanciamento e a racionalização. Além disso, quanto mais intenso o vínculo com o paciente, maior o sentimento de impotência e sentimentos de fracasso, como se a morte sobrepujasse a dedicação da equipe (Tamada et al., 2017). A não vinculação com o paciente traz alívio ao profissional que se concentra apenas nos procedimentos e se defende da vinculação afetiva (Miorin et al., 2016). Logo, os profissionais consideram que focar apenas na doença, e não no doente, os protegeria de um maior sofrimento.

O número de pacientes hospitalizados em processo de morte demanda maior proximidade com o profissional, o que exige preparo técnico e emocional (Azevedo et al., 2016) para enfrentar esses momentos. O preparo emocional, na maioria das vezes, não ocorre, por esse motivo o distanciamento pode ser preferido em detrimento a uma relação muito próxima com o paciente. A fala a seguir expõe que existe um sentimento diferenciado quando acontece a morte de um paciente, principalmente quando já está internado há mais tempo.

Não é o mesmo plantão quando tem um óbito, parece que ficou alguma coisa, não sei te explicar o que, mas fica. Principalmente aquele paciente que ficou ali um tempo, porque tu lutou por ele e não conseguiu que ele saísse. (E13, PS)

Não se pode negar, com as falas apresentadas, que há um desconforto perante a morte de pacientes. Alguns profissionais se distanciam, enquanto outros atuam de forma mais técnica. Nos dois casos, não se permitem refletir sobre a ocorrência de morte de pacientes. O prontosocorro mostra-se um setor propício para esses comportamentos, auxiliando na negação dos profissionais frente à morte. Ademais, tanto a formação quanto a instituição hospitalar alimentam esses comportamentos em prol de uma dinâmica que visa à cura de pacientes, desencadeando sentimentos de despreparo, fracasso e sofrimento. Disso decorre um cuidado em saúde pouco humanizado aos pacientes em fim de vida, limitando o cuidado a ações técnicas, favoráveis ao esquecimento do lugar do outro (Lima & Freire, 2016).

Quando a morte ocorre, já está destituída de seu significado. Porém, frente à morte e ao morrer, o profissional precisa cultivar formas mais humanas de oferecer dignidade ao paciente e sua família. A manutenção da integridade na relação é fortificada quando o profissional privilegia o doente sobre sua doença (Tamada et al., 2017). Para tanto, é preciso que o profissional busque diferentes aprendizados e se permita refletir sobre a morte de seus pacientes. Se o profissional não tiver refletido sobre suas questões sobre a morte, não tiver se especializado ou buscado ajuda sobre o assunto, o atendimento frente ao paciente que chega ao prontosocorro em processo de morte dificilmente irá mudar. Serão replicados comportamentos anteriores e utilizadas as mesmas estratégias de defesa, muitas vezes de forma maciça, para maior proteção do profissional. Agora, se o profissional conseguiu, em sua formação continuada e de forma pessoal, se instrumentar e compreender suas dificuldades, ele terá outros aparatos que possibilitam a mudança de comportamento. Isso tornando seu atendimento mais próximo e, consequentemente, humanizado, diminuindo seu sofrimento nessas situações.

 

Considerações Finais

No prontosocorro os profissionais estão sobrecarregados devido à superlotação e às condições físicas do local, o que afasta o lugar da morte e a reflexão quando ocorre a perda de pacientes. O vínculo frágil ou inexistente é um fator facilitador na elaboração da perda. O sofrimento acontece quando ocorrem mortes inesperadas, relacionadas a acidentes com crianças ou jovens, perdas que desestruturam a equipe enquanto um todo e prejudicam o trabalho que precisa ser realizado a posteriori. Surge a culpa devido à morte, como se cada atendimento em emergência fosse uma guerra e o profissional precisasse sair vitorioso, mas, ao contrário, entra em contato com o sofrimento pela perda e com a impossibilidade de salvar a todos, o que traz a inexorabilidade da morte e a divergência com a formação acadêmica.

Em virtude dos achados menciona-se a importância de que a morte seja tema de formação inicial e continuada entre todos os profissionais da saúde e que a instituição possa demandar um olhar diferenciado aos seus colaboradores, a fim de melhorar a saúde mental desses através de modificações na organização do trabalho. É importante considerar a formação continuada dos profissionais para perceber seus interesses em determinada área de atendimento, de modo a priorizar a identificação dos profissionais com seu setor de trabalho, enaltecer suas habilidades e facilidades, colaborar em sua satisfação de trabalho e diminuir seu sofrimento.

Este estudo limitou-se a unidade de prontosocorro e foi realizado apenas com médicos e enfermeiros. Dada a complexidade da questão apresentada neste estudo, sugere-se que pesquisas posteriores sejam realizadas a fim de contemplar diferentes profissionais da saúde e diferentes unidades hospitalares, abrangendo as demandas apresentadas pelos profissionais frente ao desafio diário de trabalhar com a morte de pacientes.

 

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Endereço para correspondência:
Daniela Trevisan Monteiro
E-mail: daniela.trevisan.monteiro@gmail.com

Jussara Maria Rosa Mendes
E-mail: jussaramaria.mendes@gmail.com

Carmem Lúcia Colomé Beck
E-mail: carmembeck@gmail.com

Recebido em: 19/03/2019
Revisado em: 30/07/2019
Aceito em: 17/12/2019
Publicado online: 12/03/2020

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