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Revista Subjetividades

versión impresa ISSN 2359-0769versión On-line ISSN 2359-0777

Rev. Subj. vol.20 no.2 Fortaleza mayo/ago. 2020

http://dx.doi.org/10.5020/23590777.rs.v20i2.e8988 

RELATOS DE PESQUISA

 

A Fruição Estética Na Obra De Freud

 

Aesthetic Enjoyment in Freud's Work

 

El Disfrute Estético en la Obra de Freud

 

Plaisir Esthétique dans l'œuvre de Freud

 

 

Diego Bertanha NovaisI; Érico Bruno Viana CamposII; Fátima Siqueira CaropresoIII

IPsicólogo pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)
IIProfessor do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UNESP. Doutor em Psicologia pela Universidade de São Paulo (USP)
IIIProfessora do Departamento de Psicologia e dos Programas de Pós-Graduação em Psicologia e em Filosofia da Universidade Federal de Juiz de Fora. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPQ

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo tem como objetivo expor as concepções de Sigmund Freud sobre a fruição estética. Ele parte da hipótese de que há dois posicionamentos básicos a respeito do tema na obra do autor: um referente à obra de arte como fonte de prazer e outro vinculado à produção de inquietação. De acordo com Freud, o prazer produzido pela obra de arte seria fruto de uma descarga energética, que permitiria uma suspensão temporária da repressão e a realização disfarçada de um desejo inconsciente. Já a inquietação seria produzida quando a obra de arte manifestasse certos elementos vinculados ao reprimido ou remetesse a formas de pensamento já superadas ao longo do desenvolvimento psíquico. Concluímos que, em ambos os casos, a fruição estética estaria relacionada com a evocação de representações inconscientes reprimidas. No entanto, a determinação dos afetos suscitados no espectador também seria influenciada pela manipulação exercida pelo artista, a partir da aplicação de sua técnica.

Palavras-chave: psicanálise; Freud, Sigmund (1856-1939); fruição estética; inquietação.


ABSTRACT

This article aims to expose Sigmund Freud's conceptions about aesthetic enjoyment. He starts from the hypothesis that there are two basic positions regarding the theme in the author's work: one referring to the work of art as a source of pleasure and the other linked to the production of restlessness. According to Freud, the pleasure produced by the work of art would be the result of an energy discharge, which would allow a temporary suspension of repression and the realization disguised as an unconscious desire. The restlessness, on the other hand, would be produced when the work of art manifested certain elements linked to the repressed or referred to forms of thought already overcome during the psychic development. We conclude that, in both cases, aesthetic enjoyment would be related to the evocation of repressed unconscious representations. However, the determination of the affections raised in the viewer would also be influenced by the manipulation exercised by the artist, from the application of his technique.

Keywords: psychoanalysis; Freud, Sigmund (1856-1939); aesthetic enjoyment; restlessness.


RESUMEN

El presente trabajo tiene el objetivo de exponer las concepciones de Sigmund Freud sobre el disfrute estético. Él parte de la hipótesis de que hay dos posicionamientos básicos a respecto del tema en la obra del autor: uno con relación a la obra de arte como fuente de placer y otro vinculado a la producción de inquietud. De acuerdo con Freud, el placer producido por la obra de arte sería fruto de una descarga energética, que permitiría una suspensión temporaria de la represión y la realización disfrazada de un deseo inconsciente. Ya la inquietud sería producida cuando la obra de arte presentase ciertos elementos vinculados al reprimido o remitiera a formas de pensamiento ya superadas a lo largo del desarrollo psíquico. Concluimos que, en ambos los casos, el disfrute estético estaría relacionado con la evocación de representaciones inconscientes reprimidas. Sin embargo, la determinación de los afectos suscitados en el espectador también sería influenciada por la manipulación ejercida por el artista, a partir de la aplicación de su técnica.

Palabras clave: psicoanálisis; Freud, Sigmund (1856-1939); disfrute estético; inquietud.


RÉSUMÉ

Cet article vise à exposer les conceptions de Sigmund Freud sur le plaisir esthétique. Il part de l'hypothèse qu'il existe deux positions de base sur le thème de l'œuvre de l'auteur: la première fait référence à l'œuvre d'art comme source de plaisir et une deuxième liée à la production de l'agitation. Selon Freud, le plaisir produit par l'œuvre d'art serait le résultat d'une décharge d'énergie, qui permettrait une suspension temporaire du refoulement et la réalisation déguisée d'un désir inconscient. L'agitation, en revanche, se produirait lorsque l'œuvre d'art manifestait certains éléments liés aux refoulements ou quand ils s'agissait des formes de pensée déjà surmontées au cours du développement psychique. Nous concluons que, dans les deux cas, la jouissance esthétique est liée à l'évocation de représentations inconscientes refoulées. Cependant, la détermination des affections soulevées chez le spectateur serait également influencée par la manipulation exercée par l'artiste, à partir de l'application de sa technique.

Mots-clés: psychanalyse ; Freud ; plaisir esthétique ; agitation.


 

 

A arte é um dos objetos sobre o qual Freud se debruçou ao longo de sua obra. Embora tenha dedicado vários trabalhos ao tema, o autor (Freud, 1913/2012b, 1924/2011) deixou claro que a psicanálise não poderia fornecer uma explicação completa do fenômeno artístico e delimitou claramente quais as contribuições que a psicanálise poderia dar ao campo e o que estaria fora de sua alçada. Um dos aspectos ao qual a psicanálise poderia fornecer algum esclarecimento seria o efeito que a obra de arte produz no espectador, ou seja, o fenômeno da fruição estética.

Paviani (1973) argumenta que o termo "estética" é um vocábulo ambíguo. O termo Aisthesis, originalmente, na Grécia clássica, significava ouvir, chegando aos romanos com o significado "sentir". Entre os próprios gregos, o verbo aisthánomai admite uma acepção de entendimento intelectual. Dessa forma, pode-se designar com o termo designa "tanto uma ciência das imagens ou sensações (estéticas), como também uma filosofia do fenômeno artístico" (Paviani, 1973, p. 47). Embora os estudos estéticos estejam presentes desde a Antiguidade, só passam a ser assim designados no meio do século XVIII, a partir do trabalho de Alexander Baumgarten, que define o campo como uma ciência do conhecimento sensorial. Entretanto o termo é logo confinado a uma área específica, sendo entendido como estudo da beleza ou do gosto (Costello, 2004).

Em suas obras, Freud fornece duas definições de estética. Uma ligada ao campo da beleza, explicitada no texto O Mal-Estar na Civilização, em que o autor diz que "a ciência da estética investiga as condições em que o belo é percebido, a natureza e a origem da beleza" (Freud, 1930/2010d, p. 40). Outra definição é apresentada no texto O Inquietante, em que o autor diz que a estética é "teoria das qualidades do nosso sentir" (Freud, 1919/2010a, p. 329). Essas duas definições parecem ser fruto de um duplo posicionamento de Freud a respeito do fenômeno estético: um ligado à arte como causadora de prazer e outro ligado à arte como causadora de inquietação.

Neste trabalho, apresentaremos essas duas perspectivas sobre a fruição estética presentes na obra de Freud e discutiremos as implicações que podem advir desses dois posicionamentos.

 

A Arte e o Prazer

Antes de apresentarmos essas duas concepções sobre o estético na obra freudiana, é preciso apresentar algumas premissas que estão na base do pensamento freudiano. A tese geral sobre o fenômeno artístico na obra de Freud (1913/2012b, 1924/2011) é que a arte é uma satisfação substitutiva de uma tendência inconsciente reprimida. Tal qual o sonho, a arte também daria vazão aos conteúdos reprimidos inconscientes, permitindo a expressão dos desejos inconscientes em sua criação. Entretanto a arte, diferentemente do sonho, seguiria um caminho distinto de expressão desse conteúdo por meio do mecanismo de sublimação. A importância de se explicitar essa tese geral sobre a arte advém do fato de que, para o autor, a fruição estética serviria aos mesmos propósitos da criação, a satisfação do desejo inconsciente, mas com um acréscimo: na fruição, o que estaria em jogo seria a repetição, no espectador, do desejo que possibilitou a criação da obra. Isto aparece explicitamente no texto O Moisés de Michelangelo, quando o autor diz:

No meu modo de ver, aquilo que nos emociona fortemente pode ser apenas a intenção do artista, na medida em que conseguiu expressá-la na obra e torná-la apreensível para nós. Sei que não pode se tratar de uma apreensão puramente intelectual; deve ser produzida em nós a disposição afetiva, a constelação psíquica que gerou no artista o impulso para a criação. (Freud, 1914/2012c, p. 375)

Vemos, nessa passagem, como o autor coloca a fruição estética como fenômeno que reproduz no espectador as disposições afetivas do artista presentes no momento da criação. A arte é, então, realização do desejo, a rigor do mesmo desejo, nos dois polos do fenômeno: tanto na criação quanto na fruição. Tal tese é reafirmada no texto O Humor, em que Freud (1927/2014b) afirma que a explicação do processo humorístico deve ser procurada no humorista, e que no espectador "cabe supor apenas um eco, uma cópia desse processo desconhecido" (p. 324).

Portanto, o autor irá supor, inicialmente, uma similitude entre aquilo que ocorre no sujeito que cria e no sujeito que frui a obra. Entretanto isso não esgota a explicação sobre a fruição, sendo necessário elucidar como esse eco se faz possível e quais as implicações desse processo. A partir dessas premissas veremos como Freud teoriza os dois posicionamentos sobre a fruição estética

Começaremos comentando o texto Os Chistes e sua Relação com o Inconsciente. Nesse trabalho, Freud (1905/1991) tem como principal objetivo explicar o mecanismo de funcionamento dos chistes, integrando-o aos mecanismos de funcionamento do inconsciente. Especificamente sobre nosso tema, a argumentação de Freud inicia-se com a definição do aspecto mais evidente da fruição do chiste: o riso. O autor argumenta que o riso acontece quando um montante de energia, antes aplicado em uma determinada função no psiquismo, torna-se inaplicável e, então, experimenta a livre descarga. Portanto, o riso seria uma economia psíquica.

Retomando a tese principal do trabalho, de que o chiste permite a realização de uma tendência inconsciente, essa economia psíquica realizada pelo riso seria referente à energia aplicada na repressão desse conteúdo. A suspensão da repressão permitiria que a energia que mantém a repressão em curso fosse liberada de sua função e descarregada na forma de riso, juntamente com o montante de energia investido no conteúdo reprimido. Assim, o riso é entendido como um processo de descarga de uma excitação ligada a uma representação ou a um grupo de representações, o qual seria acompanhado por uma experiência subjetiva de prazer. Então, para Freud, a fruição estética do chiste seria um ganho de prazer via descarga da energia psíquica, segundo o princípio de prazer.

O autor argumenta que, para que um montante de energia psíquica, investida e suscetível de descarga, seja liberado em uma terceira pessoa, ou seja, naquele que ouve o chiste, algumas condições desejáveis, como favorecedoras, devem que ser preenchidas. Em primeiro lugar, é necessário assegurar que essa terceira pessoa efetivamente realiza o investimento. Em segundo, é necessário impedir que, uma vez liberado, o montante de energia encontre outro uso psíquico que não a descarga motora. Por fim, o investimento energético, que está por ser liberado, deve ser intensificado ao máximo. Começaremos abordando a terceira condição, pois o autor considera que ela é uma condição desejável, mas não obrigatória, para que a fruição estética se concretize. Essa condição fala sobre uma possível maximização dos investimentos energéticos que serão, posteriormente, liberados no ouvinte, de forma a tornar a piada mais prazerosa. Isso pode ocorre através de recursos técnicos utilizados pelo artista na elaboração dos chistes, como os efeitos de sentido absurdo ou de contraste de representações, que aumentam o efeito do chiste e o tornam mais efetivo, aumentando a disponibilidade energética para descarga. Grosso modo, Freud está colocando que os recursos técnicos do chiste colaboram para que ele seja mais engraçado e, por conseguinte, gere mais prazer em sua fruição.

A primeira condição versa sobre aquilo que Freud (1905/1991) chama de "conformidade psíquica" entre o autor da obra e seu espectador. Como a criação é a realização de um desejo inconsciente expresso na obra e o riso se dá à custa da economia de um investimento psíquico no processo repressivo, é necessário que se garanta a existência do processo, no ouvinte, do chiste. A forma de se garantir isso é a "conformidade psíquica". Então, nesse contexto, "conformidade psíquica" significa que um investimento psíquico em uma repressão específica, engendrada por uma configuração cultural na qual o sujeito está imerso, ocorra também no ouvinte. É por essa razão que Freud (1905/1991) frisa que cada chiste requer um público específico, já que a existência de uma repressão a um conteúdo específico é uma condição necessária para que a fruição ocorra. Contudo o espectador não necessita ter essa repressão realizada, necessariamente, antes da fruição do chiste. Segundo Freud (1905/1991), o ouvinte do chiste "tem de ser capaz de estabelecer dentro de si, de forma habitual, a mesma inibição que o chiste superou na primeira pessoa, de modo que, ao ouvir o chiste, se desperte compulsivamente ou automaticamente esta inibição" (p. 144). Dessa forma, o ouvinte deve ser capaz de recriar, de forma automática, as condições que propiciaram o processo criativo do chiste no momento em que o está ouvindo. Assim, podemos entender que aspectos do processo de criação se repetem no psiquismo do ouvinte no exato momento da fruição e que esse processo é movido pelo próprio chiste, permanecendo inconsciente. No momento de sua criação, a obra de arte colocaria em movimento o aparelho psíquico do espectador na mesma direção do psiquismo do autor. Embora Freud considere que um público adequado seja necessário, isto não significa que a conformidade psíquica esteja previamente estabelecida. A obra de arte deve, por si só, estabelecer essa conformidade.

Algo que nos ajuda a entender como isso pode acontecer é aventado no texto Personagens psicopáticos no palco. Neste trabalho, Freud (1942/1992) argumenta que o propósito do drama teatral é "abrir fontes de prazer e de gozo em nossa vida afetiva" (p. 277). Para que isso seja possível, o fator primordial é "o alívio dos afetos do espectador" (p. 277). Essa argumentação nos parece consistente com o que vem sendo apresentado: o efeito de prazer ensejado na fruição estética é produto de um processo psíquico de descarga de energia vinculada a determinados complexos representacionais. Freud acrescenta que o ator-autor do drama possibilita que haja a identificação do público com o herói encenado. Assim, o espectador assimilaria algumas características daquilo que está sendo encenado no drama e, nesse processo, modificando a si mesmo, realiza a conformidade com o representado na obra. O mecanismo da identificação, que, em termos psicanalíticos, é definido como um "processo psicológico pelo qual um sujeito assimila um aspecto, uma propriedade, um atributo do outro e se transforma, total ou parcialmente, segundo o modelo desse outro" (Laplanche & Pontalis, 1998, p. 226), estaria, portanto, envolvido no processo de conformidade psíquica durante a fruição da obra de arte.

Freud (1905/1991) diz considerar a segunda condição a mais importante, já que ela que fornece o esclarecimento teórico sobre o efeito que o chiste produz nos ouvintes. É nesse momento que o autor teoriza o porquê de a energia investida nesse complexo representação-repressão ser liberada na forma do riso, em vez de ter outro destino no aparelho psíquico. Nesse ponto, entra em jogo o conceito de prazer preliminar, que é concebido como um processo de gatilho, no qual um ganho de prazer, menor e prévio, possibilita a liberação de um montante de prazer, maior, em outra fonte. No caso dos chistes, seria o prazer advindo da técnica de elaboração dele, a qual daria o aspecto essencial ao chiste, que engendraria a possibilidade da supressão da repressão, permitindo que a energia empregada nesse processo se descarregasse no riso. Esse prazer proveniente da técnica agiria como um suborno para o ouvinte, atenuando o caráter de realização de desejo próprio da produção do chiste e possibilitando a fruição estética. De outra forma, o chiste causaria asco e repulsa nos espectadores.

Esse mecanismo do prazer preliminar, que também é chamado de prendas de prazer (Freud, 1913/2012b, 1924/2011) ao longo da obra freudiana, é o aspecto mais importante na teorização sobre a fruição estética. É esse conceito que possibilita o entendimento de como um desejo reprimido pela instância moral do sujeito e jogado para o inconsciente pode ser expresso e ainda causar o efeito de prazer estético.

No texto O Escritor e a Fantasia, o mecanismo de prazer preliminar como ponto nodal para o entendimento da fruição estética é novamente discutido. Nesse trabalho, Freud recoloca essa problemática argumentando que as fantasias do autor, expressas na obra, nos causam prazer em vez de asco, como ocorre em comunicações verbais de fantasias proibidas, devido ao fato de que o artista atenua "o caráter do devaneio egoísta por meio de alterações e ocultamentos, e nos cativa pelo ganho de prazer puramente formal, ou seja, estético, que nos oferece na apresentação de suas fantasias" (1908/2015, p. 338). O prazer oferecido através da técnica da arte, da "forma" artística, propiciaria a liberação de um prazer maior oriundo das tendências inconscientes. Esse prazer prévio engendraria um prazer maior oriundo do desejo reprimido.

Essa teorização reaparece, de forma mais sintética, nas Conferências Introdutórias à Psicanálise. Nesse trabalho, Freud argumenta que o artista é capaz de elaborar seus sonhos diurnos e eliminar suas características muito pessoais e que desagradam aos estranhos, o que faz com que outras pessoas possam desfrutar a obra de arte. O artista é capaz de atenuar os sonhos diurnos para que suas fontes malvistas sejam facilmente reveladas. Além disso, ele tem:

o poder enigmático de conformar certo material até que este se torne imagem fiel de sua fantasia, e sabe vincular tamanha obtenção de prazer a essa representação de sua fantasia inconsciente que, ao menos temporariamente, as repressões são sobrepujadas e canceladas por ela. (Freud, 1917/2014a, p. 499)

Dessa forma, para Freud, o que permite a fruição das obras de arte pelas demais pessoas é o disfarce de elementos pessoais e repugnantes existentes nas fantasias que as constituem, e o que possibilitaria esse disfarce seria justamente a técnica da arte, conforme estamos discutindo. O autor destaca, também, que a obra permite que as repressões sejam "sobrepujadas e canceladas", deixando de agir sobre determinadas fantasias, possibilitando a realização do desejo e a descarga da energia sob a forma de prazer estético. Podemos, então, vislumbrar como o prazer preliminar estaria fortemente ligado à técnica artística e constituiria o ponto nodal do entendimento da fruição estética.

Em suma, Freud trabalha, nos textos acima apresentados, dois elementos principais para o entendimento da fruição estética: o primeiro é a conformidade psíquica, de mod que a obra move o aparelho psíquico do espectador na direção de reproduzir as condições do psiquismo do autor no momento da criação da obra; o segundo é a questão do prazer preliminar, pois desse gatilho, produzido pelas técnicas formais da arte, que atenua o caráter de formação do desejo inconsciente da obra, subornando o espectador e tornando a formação substitutiva aceitável para o aparelho mental do espectador, possibilitando a fruição da obra. Isto sintetiza a primeira posição de Freud, relativa às possibilidades da fruição estética. Passemos, então, para a segunda posição.

 

O Inquietante: Uma Estética Negativa

Vimos que Freud trabalha a experiência de vislumbre da arte como uma experiência de prazer, entretanto o autor também aborda outra possibilidade: o sentimento de inquietação, ou estranheza, no âmbito estético. O texto que aborda essa possibilidade é O Inquietante, publicado em 1919.

A tradução do termo alemão das Unheimliche não é consensual, podendo ser vertido por "estranho", "sinistro", "inquietante". A Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, editada pela Imago, optou pelo uso do termo "o estranho", que possui perdas significativas de sentido se comparado ao termo original (Hanns, 1996). A edição da editora Companhia das Letras, a fonte que estamos utilizando, opta pela tradução do termo por "inquietante", contudo o próprio tradutor (P. C. Souza, 2010, p. 329) aponta para a insuficiência da tradução do termo por inquietante e, durante boa parte do texto, coloca os termos em alemão. Como o próprio Freud faz uma discussão do termo do ponto de vista linguístico, são preservados, em boa medida, os sentidos que importam para a discussão. Ficaremos com a opção de Paulo Cesar para sermos coerentes com a edição fonte e para acompanhar as citações do texto, embora, por várias vezes, o termo apareça no idioma original.

Nesse trabalho, Freud (1919/2010a) discute o domínio estético do inquietante (das Unheimliche), o qual, segundo ele, teria sido negligenciado pelo estudo estético tradicional, focado principalmente no estudo da beleza. Esse domínio se relacionaria "ao que é terrível, ao que desperta angústia e horror" (Freud, 1919/2010a, p. 329) geralmente equivalendo ao angustiante. E. L. A. Souza (2001) argumenta que, nesse trabalho, Freud apresenta uma perspectiva de uma estética negativa, que se coloca em contraponto à estética tradicional, a qual, segundo Freud (1919/2010a), se ocupa mais das "belas, sublimes, atraentes - ou seja, positivas - sensibilidades, de suas condições e dos objetos que as provocam, do que daquelas contrárias, repulsivas, dolorosas" (p. 330). Assim, a estética negativa, na perspectiva de Souza, é uma estética do não belo.

O texto foi produzido em um período em que ocorreram grandes mudanças na teoria psicanalítica. Ele está próximo ao Além do princípio de prazer (1920/2010b), considerado um marco da chamada reviravolta dos anos 20, momento da introdução do conceito de instinto de morte e de uma reestruturação do edifício metapsicológico freudiano (Monzani, 1989). Portanto, essa segunda posição sobre a fruição estética vem junto a uma série de reformulações na teoria freudiana.

Freud (1919/2010a) desenvolve sua argumentação em duas vias distintas: uma via que traça os sentidos que a evolução da língua atribuiu ao termo unheimliche, e outra na qual explora as situações em que o sentimento inquietante se apresenta aos sujeitos e destaca o fator em comum presente em todas essas situações.

Inicialmente, Freud executa a análise dos significados linguísticos do termo unheimliche. Começa buscando os significados do adjetivo heimlich, do qual o substantivo unheimliche é derivado. Heimlich tem uma ampla gama de significados, que o autor separa em dois núcleos. Ele comenta que:

[...] o termo heimlich não é unívoco, mas pertence a dois grupos de ideias que, não sendo opostos, são alheios um ao outro: o do que é familiar, aconchegado, e do que é escondido, mantido oculto. (Freud, 1919/2010a, p. 388)

Portanto, é possível notar que o termo heimlich é dotado de certa ambiguidade, já que um dos seus núcleos de significado coincide com o significado de seu oposto: unheimliche. Embora unheimliche seja definido como antônimo de heimlich, só é antônimo do seu primeiro núcleo de significados, e não do segundo. Para Freud, o substantivo das Unheimliche é "aquela espécie de coisa assustadora que remonta ao que é há muito conhecido, ao bastante familiar" (Freud, 1919/2010a, p.331), ou seja, "seria tudo aquilo que deveria permanecer oculto, mas apareceu" (Freud, 1919/2010a, p. 338). Portanto, a definição do inquietante obtida nesse primeiro momento é de que aquilo que nos inquieta, que nos parece estranho, é algo há muito familiar, mas que deve permanecer oculto, escondido.

Com essa proposição em mãos, Freud (1919/2010a) passa a analisar as situações em que o sentimento do inquietante é vivenciado pelas pessoas. O autor divide tais situações em três categorias principais: a) o retorno do reprimido, principalmente proveniente do retorno do complexo de castração; b) o retorno de formas de pensar e de crenças superadas ao longo do desenvolvimento da humanidade, como o animismo, a magia e a onipotência dos pensamentos; c) da repetição não intencional, também conhecida como compulsão à repetição.

A primeira categoria tratada é a do retorno do reprimido, especificamente do retorno do complexo de castração. Para essa análise, o autor se apoia no conto O Homem de Areia de Ernst Hoffmann. Freud analisa o conto de Hoffmann tendo como premissa, inicialmente, a afirmação feita por outros autores de que o sentimento de inquietação do conto advém de uma situação, na qual não temos certeza se um ente está, de fato, vivo; se um ser, aparentemente animado, é um autômato mecânico; ou se um ser, aparentemente inanimado, tem vida.

Em síntese, a história gira em torno do estudante Nathaniel. Em sua infância, ele era ameaçado quando não queria dormir. Suas cuidadoras diziam que, se não dormisse, viria o homem de areia, que jogava areia nos olhos das crianças e fazia-os saltar. Embora com medo, o menino resolveu verificar a aparência do homem de areia escondendo-se no escritório de seu pai. Lá viu, junto ao seu pai, o repugnante advogado da família Coppelius. Nessa situação, acontece algo que não sabemos se é um delírio de Nathaniel ou uma situação real: o advogado vê o menino e ameaça jogar brasas em seus olhos, o que é impedido por seu pai. Um ano depois, durante uma visita de Coppelius, o pai de Nathaniel morre em uma explosão no escritório.

Avançando no tempo, Nathaniel identifica Coppelius na figura de um ótico italiano ambulante que lhe oferece barômetros. Quando o estudante recusa o produto, o ótico lhe diz: "Barômetro não, barômetro não? Tem também olho bonito, olho bonito!", aterrorizando o estudante. O medo diminui quando ele constata que o "olho bonito" é um simples par de óculos. Então, o estudante compra um binóculo de bolso e o utiliza para espiar o apartamento de seu professor Spalanzani. Ao espiar a casa do professor, Nathaniel apaixona-se por Olímpia, a filha do professor, e abandona sua noiva. Entretanto Olímpia é uma boneca, um autômato, da qual Spalanzani fez as engrenagens e Coppola, os olhos. Nathaniel surge na casa do professor durante uma discussão entre os dois profissionais e, ao fim, Coppola acaba por levar embora a boneca, enquanto o professor fica com os olhos jogados ao chão durante a discussão. Ao ver a cena, Nathaniel tem uma crise alucinatória e tenta estrangular o professor.

Um tempo depois, já recuperado, Nathaniel retoma sua vida com a noiva. Em um passeio com a jovem pela cidade, eles sobem em uma torre. Através do binóculo, Nathaniel vê o advogado Coppelius e entra, novamente, em crise. Ele acaba tentando atirar a garota de cima da construção, sendo contido pelo irmão da moça. Pouco depois, o jovem Nathaniel se atira da torre e morre.

Freud (1919/2010a) argumenta que, na leitura do conto, não há dúvidas de que a incerteza sobre a boneca Olímpia estar ou não viva não é o que possibilita a situação de inquietação. O sentimento do inquietante estaria diretamente ligado à figura do homem de areia, ou seja, à ideia de ter os próprios olhos roubados. Ele comenta também que fica claro que uma incerteza intelectual, como concebe Jentsch, não tem relação alguma com esse efeito. Para o autor, a experiência psicanalítica demonstra que o medo de perder e ferir os olhos é uma angústia infantil comum. Além disso, também afirma que: "O estudo dos sonhos, das fantasias e dos mitos nos ensinou que o medo em relação aos olhos, o medo de ficar cego, é frequentemente um substituto para o medo de castração" (Freud, 1919/2010a, p. 346). Para Freud (1919/2010b), é a revivescência do complexo de castração, reprimido ainda na infância, que gera a situação inquietante, motivo pelo qual o sentimento de inquietação se apresenta pela figura do homem de areia. É ele quem remete a um retorno desse complexo reprimido, de uma forma disfarçada, e propicia o sentimento de inquietação.

Outra categoria que gera o sentimento de inquietação é a apresentação na realidade de formas de pensar já superadas pela humanidade, como as existentes no animismo e na magia (Freud, 1919/2010a). A base sobre a qual esses dois fenômenos ocorrem é a chamada onipotência dos pensamentos: a crença de que uma ação pensada traz consequências para o mundo real. Em Totem e Tabu, Freud (1913/2012a) afirma que a onipotência dos pensamentos é produto do investimento do Eu pelo instinto sexual. Tal investimento teria um caráter universal, constituindo uma fase do desenvolvimento denominada de narcisismo. O narcisismo produziria uma superestimação dos processos psíquicos, que passariam a ser entendidos como passíveis de interferência no mundo real. Posteriormente, o narcisismo seria superado tendo dois destinos: o investimento objetal e a formação de ideal. Freud (1913/2012a) destaca que, embora superada, certa dimensão narcísica do sujeito nunca é abandonada totalmente.

Quando as formas de pensamento derivadas do narcisismo nos aparecem como possíveis, como confirmadas pela realidade, geram em nós o sentimento de inquietação. Segundo o autor, nós, ou nossos ancestrais, já tomamos essas possibilidades como realidades, embora hoje não acreditemos mais nelas, já as tenhamos superado. Contudo não temos segurança dessas novas convicções, e as antigas persistem em nós, à espera de confirmação.

Assim, podemos dizer que o sentimento de inquietante é produzido pelo retorno do primitivo, daquilo que um dia foi comum e, agora, toma um dos dois destinos possíveis: ou é superado, desdobrando-se em outros estados no aparelho psíquico, como ocorre com o narcisismo; ou reprimido, legado ao inconsciente, de onde exerce influência sobre o funcionamento do sujeito. O autor afirma explicitamente que: "o inquietante das vivências produz-se quando complexos infantis reprimidos são novamente avivados, ou quando crenças primitivas superadas aparecem novamente confirmadas" (Freud, 1919/2010a, p. 371). Esse caráter de retorno do primitivo se expressa, também, na análise linguística. "O inquietante [Unheimliche] é, também nesse caso, o que foi outrora familiar [heimlich], velho conhecido. O sufixo um, nessa palavra, é a marca da repressão" (Freud, 1919/2010a, p. 365).

Uma última categoria tratada pelo autor é a produção de inquietação nas situações de repetição não intencional. Freud (1919/2010a) exemplifica essa possibilidade por meio de uma situação, na qual ele entra em uma rua qualquer e constata que não deveria estar nela, já que era uma zona de meretrício. Para sair da rua, ele entra no primeiro cruzamento, seguindo a esmo pelas ruas e, quando se dá conta, está novamente na rua inicial. Tenta por mais duas vezes se retirar e acaba se encontrando novamente na mesma situação. Para o autor, esse caráter de fatalidade, produzido pela situação de repetição não intencional, faz emergir o sentimento de inquietação, como se algo exercesse um controle sobre o sujeito. Freud liga essa repetição não intencional, nomeada por ele de "compulsão à repetição", ao infantil, referindo-se ao princípio mais fundamental do funcionamento do inconsciente. De acordo com ele:

[...] no inconsciente psíquico nota-se a primazia da compulsão à repetição vinda dos impulsos instintuais, provavelmente ligada à íntima natureza dos instintos mesmos, e forte o suficiente para sobrepor-se ao princípio do prazer que confere a determinados aspectos da psique um caráter demoníaco, manifesta-se claramente ainda nas tendências do bebê e domina parte do transcurso da psicanálise do neurótico. (Freud, 1919/2010a, p. 356)

É possível, nessa passagem, vislumbrar a introdução do limite explicativo do princípio de prazer enquanto princípio dominante no aparelho psíquico, o que culmina na escrita de Além do Princípio de Prazer (Freud, 1920/2010b). Nesse texto, Freud propõe a existência de um funcionamento primário, que consistiria em uma compulsão à repetição de um estado anterior, a qual seria condição para a emergência do princípio do prazer e teria como função a ligação da excitação. Ao refletir sobre a relação entre a compulsão à repetição e o instintual, Freud chega ao conceito de instinto de morte. O estado inicial ao qual o psiquismo aspiraria regressar seria o estado de ausência de estímulos, ou seja, de ausência de vida (Caropreso & Simanke, 2008).

Essa dinâmica, que estaria além do princípio de prazer, seria da ordem de um funcionamento mais primitivo e fundamental do psiquismo, podendo se expressar afetivamente pela ocorrência do inquietante. Na obra freudiana, não há um desenvolvimento das implicações derivadas dessas hipóteses na questão da fruição estética. No restante do texto O Inquietante, Freud (1919/2010a) mantém a hipótese de retorno do mais primitivo, seja reprimido, seja superado, sem fazer ligações maiores com o instinto de morte e a compulsão à repetição. Entretanto isso abre possibilidade para que se pense como a dinâmica do irrepresentável, característica derivada da hipótese do instinto de morte e que diz respeito a essa noção de descarga radical que não está ligada a representações, pode influenciar a arte (Campos, 2014). A questão pode ser pensada como derivação das novas hipóteses, mas não é mencionada na obra freudiana.

Explanadas as situações em que o inquietante aparece, é necessário que isso seja levado para o campo da arte. Freud (1919/2010a) afirma que as situações de inquietação advindas do campo da arte, especificamente da literatura, necessitam de discussão à parte por terem suas especificidades. Segundo ele, uma vez que o reino da fantasia não está sujeito à prova de realidade, o contraste entre o reprimido e o superado não pode ser transposto para o inquietante da literatura sem uma profunda modificação.

Como exemplo, o autor comenta que os contos de fada trazem, abertamente, situações semelhantes às acreditadas pelos povos primitivos, derivadas da onipotência dos pensamentos, como a magia, entretanto não trazem o sentimento de inquietação. Para que haja o inquietante, é necessário "um conflito de julgamento sobre a possibilidade de aquilo superado e não mais digno de fé ser mesmo real" (Freud, 1919/2010a, p. 372), o que não é possível de acontecer em várias obras literárias e artísticas, uma vez que o artista nos apresenta as premissas do mundo subjacente a sua criação inviabilizando o conflito.

Por outro lado, a sensação de inquietante pode ser multiplicada pelo artista quando sua obra se move no âmbito da realidade comum e coloca na obra acontecimentos que raramente ou nunca aconteceriam na realidade, produzindo o conflito de julgamento. Então, o artista, através da manipulação das premissas do mundo em que a obra se passa, pode aumentar ou suprimir o inquietante de sua obra. Ele pode, ainda, não deixar explícitas as premissas escolhidas para o mundo subjacente à obra, deixando a revelação para um momento que considere mais oportuno. Assim, ele manipularia o sentimento do espectador. Freud destaca que essas situações se aplicam bem ao surgimento da inquietação diante daquilo que foi superado no curso do desenvolvimento da humanidade, contudo "o inquietante que vem de complexos reprimidos é mais resistente, e permanece tão inquietante na literatura [...] como nas vivências" (Freud, 1919/2010a, p. 374).

Apesar disso, o autor ressalta que, em algumas obras, aparecem elementos que mantêm relações com o reprimido sem que gerem, necessariamente, a inquietação. Como exemplo, Freud (1919/2010a) traz a narrativa de Hauff sobre o tesouro de Rampsinito. Nessa obra, um ladrão, para fugir de uma princesa que o interroga, deixa que ela agarre a mão de um cadáver que ele traz consigo escondida. Agarrar uma mão que se solta é, segundo o autor, uma situação de inquietação, entretanto isso não ocorre no leitor, porque vemos a história da perspectiva do ladrão, e não da princesa, e conhecemos de antemão os planos do ladrão. Freud diz que é possível deduzirmos que a princesa teve a sensação de inquietação, provavelmente desmaiando, mas nós, leitores, não partilhamos do mesmo sentimento.

Através desses exemplos, Freud (1919/2010a) sustenta que o artista pode manipular o material, gerando diferentes sentimentos no espectador. Ele ainda destaca que, em situações vivenciadas, estamos passivos e sucumbimos a elas. Na fruição artística, por outro lado, somos mais maleáveis, e o artista pode orientar nossos processos afetivos para diversas direções por meio das expectativas que cria ou do estado de ânimo em que nos coloca com sua obra. A questão que está em jogo aqui é de como a técnica artística, a manipulação feita pelo artista na obra, tem papel determinante em como se dará o processo de fruição estética. Embora não seja o único determinante, a técnica é de importância cabal naquilo que ocorrerá durante a fruição estética.

Encerrando, vemos que o texto do inquietante abre novas possibilidades no pensamento estético freudiano, saindo de uma perspectiva da arte pensada como um processo unicamente gerador de prazer e indo em direção a uma teorização que propicie pensar os mais diversos sentimentos gerados pela arte. Além disso, a ligação do sentimento do inquietante com o instinto de morte, embora marginal, coloca-nos a possibilidade de pensar a arte como passível de dar corpo ao irrepresentável e à agressividade, embora isso não seja desenvolvido na obra de Freud. Assim, a dimensão de estética negativa, trazida por Souza (2001), que vai em direção de uma estética para além do agradável e do belo, pode ganhar o reforço de um pensamento "negativo" que dê lugar ao irrepresentável, abrindo uma série de novas possibilidades de teorização.

 

Considerações Finais

Na obra freudiana, parece haver dois aspectos bem marcados sobre a fruição estética: o primeiro, ligado ao prazer advindo da fruição das obras de arte e, o outro, ligado ao sentimento de inquietante. Nesses dois aspectos, há dois pontos de convergência: a relação da fruição com o reprimido e o aspecto-chave da técnica artística.

Com relação ao primeiro ponto de convergência, é possível notar que Freud amarrou dois aspectos, prazer e inquietante, com o conteúdo reprimido inconsciente. Na experiência de prazer, o que está em jogo é a supressão do processo repressivo, o que possibilita a descarga energética investida no complexo de representações, gerando uma sensação prazerosa no espectador. Assim, é possível dizer que a obra de arte realiza, de forma indireta, o desejo inconsciente, dando livre vazão à energia instintual. Já no inquietante, há algo do retorno desse reprimido que não gera prazer, o que nos permite inferir que não ocorra esse movimento de supressão. Embora o desejo reprimido também se manifeste de forma disfarçada, algo do reprimido parece permanecer com mais força, gerando o efeito de inquietação.

Outro aspecto a ser pensado é a relação do inquietante com a compulsão à repetição e o instinto de morte. No texto de 1920, o autor salienta que a repetição de situações não prazerosas também acontece em função da compulsão à repetição. Nesse funcionamento mais primitivo, o desprazer não poderia ser evitado e as experiências desprazerosas seriam retomadas. Como exemplo, Freud (1920/2010b) invoca a repetição da investigação sexual infantil e situações relacionadas com o complexo de Édipo, que retornam constantemente na situação analítica por meio da transferência. Como o complexo de Édipo é o principal exemplo utilizado ao se teorizar sobre o retorno do reprimido na situação inquietante, como no conto O Homem de Areia, uma possibilidade é pensar o sentimento do inquietante como produto da ação do instinto de morte. Como Freud relaciona o inquietante com a compulsão à repetição, a qual estaria intimamente ligada ao instinto de morte, parece relevante pensarmos sobre as influências do instinto de morte na arte e se é somente ele que proporcionaria sentimentos de desprazer e de não belo na arte. De toda forma, a obra freudiana não nos traz qualquer menção a esse fato, que pretendemos explorar em trabalhos futuros.

Com relação ao segundo ponto de convergência, em ambos os casos, Freud parece conferir grande importância aos procedimentos técnicos da arte, que parecem influir fortemente na fruição estética. A técnica engendra o prazer preliminar que possibilita a suspensão da repressão e a sensação de prazer. Além disso, a técnica artística é capaz de influenciar quais os afetos que serão mobilizados na audiência. Vimos que, no texto sobre o inquietante (Freud, 1919/2010a), o autor demonstra como é o manejo técnico da obra que vai, ou não, despertar o inquietante no espectador. É possível deduzir que o manejo técnico na confecção da obra direciona os efeitos gerados sobre o espectador durante a fruição.

Entretanto é necessário destacarmos que o artista não possui consciência do desejo expresso na obra e que as suas técnicas são oriundas do seu treinamento enquanto artista. Embora ele se preocupe com os efeitos que gostaria de despertar no espectador e busque produzi-los embasado no conhecimento criado pela teoria da arte ao longo da história, os efeitos da obra sobre o espectador teriam uma dinâmica inconsciente que, invariavelmente, determinaria tanto sua construção quanto a sua fruição, e estariam, portanto, fora do controle do artista. É importante ressaltar, ainda, que a vinculação da técnica da arte aos efeitos gerados no espectador coloca, de certa forma, o espectador como passivo durante a fruição estética, o que pode trazer problemas de grande monta na perspectiva das teorias advindas da filosofia da estética. Mas este é um tema que deixaremos para outros trabalhos.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Diego Bertanha Novais
E-mail: bertanhanovais@hotmail.com

Érico Bruno Viana Campos
E-mail: ebcampos@fc.unesp.br

Fátima Siqueira Caropreso
E-mail: fatimacaropreso@uol.com.br

Recebido em: 05/02/2019
Revisado em: 05/02/2020
Aceito em: 14/05/2020
Publicado online: 15/10/2020

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