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Print version ISSN 2359-0769On-line version ISSN 2359-0777

Rev. Subj. vol.20 no.3 Fortaleza Jul./Dec. 2020

http://dx.doi.org/10.5020/23590777.rs.v20i3.e10269 

ESTUDOS TEÓRICOS

 

O Ato Como Tratamento para a Devastação Feminina

 

The Act as a Treatment for Female Devastation

 

El Acto como Tratamiento a la Devastación Femenina

 

L'Acte comme Traitement de la Dévastation Féminine

 

 

Thais Limp SilvaI; Cristina Moreira MarcosII

IPsicanalista, Doutora em Processos de Subjetivação pela PUC Minas, com bolsa pela FAPEMIG, Mestre em Teoria Psicanalítica pela UFMG. Professora universitária e pesquisadora dos temas: feminino, clínica psicanalítica e na interface entre psicanálise e política
IIDoutora em Psicopatologia Fundamental e Psicanálise pela Universidade de Paris 7, Professora Adjunto IV da Faculdade de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais/PUC Minas, Docente Permanente do Programa de Pós-graduação em Psicologia da PUC Minas, Pesquisadora Mineira FAPEMIG/Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo aborda, a partir da teoria de Jacques Lacan, a devastação feminina como uma consequência da localização da mulher como não-toda na lógica fálica. Interessa aqui demonstrar como um ato pode ser uma possibilidade de tratamento da devastação. Para tanto, faremos referência à peça Medeia, datada de 413 a.C., e ao relato de passe de Holk, publicado no livro intitulado Patu. A proposta lacaniana sobre o feminino utilizada é a formulada a partir de 1971, na qual a partição sexual se dá por meio de dois modos de gozo: gozo fálico, localizado no lado homem, e gozo feminino, localizado no lado mulher. O gozo feminino indica que a mulher é não-toda referida ao falo, o que pode ter como uma de suas consequências a devastação amorosa, que incide sobre o falasser feminino. Sobre o ato, faremos referência às proposições de 1969, nas quais o ato toma a dimensão de uma marca significante, que delimita um novo início para o sujeito: apagado no momento do ato, ele ressurge renovado. Assim, buscamos demonstrar como Medeia pôde sair da devastação na qual se encontrava após ser abandonada por Jasão, por meio do ato de matar os filhos, e como Holk encontra sua solução amorosa ao produzir na análise um novo significante: patu (um significante que cifrava o gozo feminino), estando em jogo aí a dimensão do ato analítico.

Palavras-chave: Ato; devastação; feminino.


ABSTRACT

This article approaches, based on Jacques Lacan's theory, the female devastation as a consequence of the woman's location as not-all in phallic logic. The point in this work is to find out how an act can be a possibility of treatment of the devastation. For this purpose, two resources were used to understand this proposal: the work Medea, dated 413 b.C., and the story of Holk, published in a book called Patu. The Lacanian proposal about the feminine used here is the one formulated in 1971, in which the sexual division occurs in two modes of jouissance: phallic enjoyment, located on the male side, and feminine enjoyment, located on the female side. The proposal of feminine enjoyment indicates that the woman is not all referred to the phallus, which can have as one of its consequences the devastation of love, that affects the feminine parlêtre. About the act, Lacan's theory is also used, especially the 1969 proposals, in which the act acquires the dimension of a significant mark, that delimits a new beginning for the subject, in which if it is erased at the moment of the act, resurfaces after the action. After presenting the two main theorizations, the article aims to demonstrate how Medea can emerge from the devastation that she was in, after being left by Jason, through the act of killing her children. And also, how Holk makes his way, moving the unconscious, forging a new signifier in the analysis: patu (a signifier that ciphered female enjoyment) the dimension of the analytic act is present here.

Keywords: Act; devastation; feminine.


RESUMEN

Este artículo trata, a partir de la teoría de Jacques Lacan, la devastación femenina como una consecuencia de la localización de la mujer como no-toda en la lógica fálica. Lo que interesa en el trabajo es localizar cómo un acto puede ser una posibilidad de tratamiento de la devastación y, para eso, se utilizó dos recursos para comprender la propuesta: la obra Medea, de 413 a.C, y también, el relato de pase de Holk, publicado en un libro con el título: Patu. La propuesta lacaniana sobre el femenino utilizada aquí es formulada a partir de 1971, en la cual la división sexual ocurre en dos modelos de goce: Goce fálico, ubicado en el lado hombre y, goce femenino, ubicado en el lado mujer. El goce femenino indica que la mujer no es toda referida al falo, lo que puede tener como consecuencia la devastación amorosa, que incide sobre el falasser femenino. Sobre el acto, también se recurre a la teoría de Lacan, principalmente a las propuestas de 1969, en que el acto adquiere la dimensión de una marca significante, delimitando un nuevo inicio para el sujeto, que si es borrado en el instante del acto, resurge después de su cometimiento. Presentada las dos principales teorizaciones, el artículo tiene el objetivo de demostrar cómo Medea puede salir de la devastación en que se encontraba, después de ser dejada por Jasón, a través del acto de matar a los hijos. Y también cómo Holk delimita su camino, a partir del acto analítico que, al poner en marcha el inconsciente, forja un nuevo significante en el análisis: patu (un significante que cifró el goce femenino), aquí está en juego la dimensión del acto analítico.

Palabras clave: Acto; devastación; femenino.


RÉSUMÉ

Cet article aborde, d'après la théorie de Jacques Lacan, la dévastation féminine en raison de l'emplacement des femmes comme pas-tout dans la logique phallique. Il est intéressant ici de démontrer comment un Acte peut être une possibilité de traiter la dévastation. À cette fin, nous nous référerons à la pièce Médée, datée de 413 à .C. et le compte de passe de Holk, publié dans le livre intitulé Patu. La proposition lacanienne sur le féminin utilisée est celle formulée depuis 1971, dans laquelle la partition sexuelle passe par deux modes de jouissance: la jouissance phallique, située du côté masculin, et la jouissance féminine, située du côté féminin. La jouissance féminine indique que la femme n'est pas toute référée au phallus, ce qui peut avoir pour conséquence la dévastation amoureuse, qui affecte le locuteur féminin. Concernant l'acte, nous nous référerons aux propositions de 1969, dans lesquelles l'acte prend la dimension d'une marque significative, qui délimite un nouveau départ pour le sujet: effacé au moment de l'acte, il réapparaît renouvelé. Ainsi, nous cherchons à démontrer comment Medeia a pu sortir de la dévastation dans laquelle elle s'est trouvée après avoir été abandonnée par Jason, par le fait de tuer ses enfants, et comment Holk trouve sa solution amoureuse en produisant dans l'analyse un nouveau signifiant: patu (un signifiant qui encodait la jouissance féminine), la dimension de l'acte analytique étant ici en jeu.

 Mots-clés : Acte ; dévastation ; féminin.


 

 

Neste artigo, apresentamos a hipótese de como um ato, tomado na perspectiva da teoria lacaniana, pode ser um modo de tratamento para a devastação feminina. Essa hipótese foi formulada tomando como paradigma o ato de Medeia, personagem do dramaturgo Eurípedes, que mata os filhos quando seu marido Jasão anuncia que irá abandoná-la para casar com outra mulher. Contudo também mostraremos que não é apenas um ato violento que pode constituir-se como uma saída, já que, no testemunho de passe da psicanalista Ana Lúcia Lutterbach Holk, ela demonstra como o forjamento de um novo significante faz com que a devastação ceda. Nesse caso, o ato que incide é o ato analítico.

Assim, seguiremos aqui o seguinte percurso: apresentaremos a peça Medeia; em seguida, trabalharemos nossos dois eixos teóricos - feminino e ato, para depois apresentarmos nossa hipótese de que um ato pode tratar uma devastação feminina.

 

Breve Apresentação da Peça Medeia

A peça "Medeia" data de 431 a.C. e foi escrita pelo dramaturgo grego Eurípedes. Ela conta a história da bruxa bárbara que leva o nome da peça. Antes de iniciar a apresentação da peça, é importante esclarecer que alude à expedição mitológica dos Argonautas. Jasão era o legítimo herdeiro do trono de Iolco, que havia sido usurpado de seu pai por seu tio Pélias. Ao completar a maioridade, ele decide reivindicar a posse do trono, mas Pélias coloca como condição para devolução do trono que Jasão vá a Cólquida e conquiste o tosão de ouro. Jasão aceita a condição e parte para a missão na nau Argo. Contudo, quando chega a Cólquida, o rei Eetes, pai de Medeia, lhe dá três tarefas impossíveis de cumprir como condição para o recebimento do tosão (Dutra, 1991).

Medeia, filha do rei, apaixona-se por Jasão e, por meio da magia, o ajuda a vencer as tarefas impostas por seu pai e foge com ele em direção a Iolco. Como meio de atrasar a embarcação do rei que lhes seguia, Medeia mata, esquarteja seu irmão e vai jogando as partes de seu corpo ao mar. Quando chegam na terra de Jasão, Pélias nega devolver o trono para o sobrinho e novamente Medeia entra em cena, convencendo, por meio da magia, as filhas de Pélias a cozinharem o pai, como forma de rejuvenescê-lo. Descoberto o crime, eles fogem para Corinto e são recebidos pelo rei Creonte (Dutra, 1991).

Em Corinto, o casal concebe dois filhos e a peça "Medeia" inicia-se quando o rei decide casar sua filha Creusa com Jasão. A peça tem início com Medeia devastada com a notícia do casamento. Seu estado é narrado pela nutriz:

Seu corpo carpe, inane ela se prostra, delonga o pranto grave assim que sabe o quanto fora injustiçada. O olhar sucumbe à terra, nada a faz erguê-lo feito escarcéu marinho, feito pedra, discerne o vozeiro amigo, exceto quando regira o colo ensimesmado, alvíssimo, em lamúrias pelo pai, pelo país natal, que atraiçoou por quem sem honra a tem agora. (Eurípedes, 2010, p. 25)

Creonte decide expulsar Medeia de Corinto temendo que ela possa fazer algo com sua filha. Após um longo diálogo, Medeia convence o rei a lhe dar um dia para que ela possa organizar sua partida e ele consente com o pedido. Após isso, ela decide se vingar:

Hei de fazer pai, marido e filha uma trinca sinistra, pois domino um imenso rol de vias morticidas, embora ignore por onde começo: meto fogo no ninho conjugal, enfio-lhes a lâmina no fígado, em passos silenciosos pela câmara? [. . .] Após a chacina que urbe me recebe? Que forasteiro me abrirá seu paço, zeloso de que o corpo nada sofra? Não há. Darei um tempo para ver se um torreão se me apresenta incólume e perpetro a matança quietamente. Presa do imponderável, mão na espada, num rasgo de coragem, matarei a corja à bruta, mesmo se morrer. (Eurípedes, 2010, p. 59)

Após ser acusada por Jasão de ser a responsável pelo próprio exílio e dizer a ele que levará os filhos consigo, Medeia o chama e afirma querer desculpar-se com o rei e a princesa, enviando a ela um véu e uma grinalda tecidos em ouro. Jasão acredita nela e diz que irá auxilia-la pedindo a Creonte que lhe dê asilo. Creusa recebe os presentes e ao tocar neles, morre envenenada. Creonte, ao tocar no corpo da filha, também morre.

Após saber da morte no castelo, Medeia decide matar os filhos e, num monólogo comovente, ela comete o ato:

O que farei? Sucumbe o coração ao brilho do semblante dos garotos. Mulheres, titubeio! Os planos periclitam. Vou-me, mas com meus dois filhos. Prejudicar crianças em prejuízo do pai não dobra o mal? Fará sentido? Comigo não: adeus, projetos árduos! O que se passa em mim? Aceitarei escárnio de inimigos impunidos? Que infâmia ouvir de mim reclamos típicos de gente frouxa! Ao rasgo de ousadia! Para dentro, meninos! Se a lei veta a presença de alguém no sacrifício, não é problema meu, o pulso agita-se! [. . .] Dobrou-me o mal, mirar os dois, não é possível: ide, entrai! Não é que ignore a horripilância do que perfarei, mas a emoção derrota raciocínios e é causa dos mais graves malefícios. (Eurípedes, 2010, pp. 119-120)

Após o assassinato dos filhos, Medeia é interpelada por Jasão, que questiona a razão de tal ato. Sua resposta é direta: "fiz o que deveria ao te atingir no íntimo" (Eurípedes, 2010, p. 147) e mais adiante na peça reitera que cometeu o ato "para que [Jasão] sofras" (p. 153). Em nenhum momento da peça há indícios de que Medeia não amasse seus filhos, e mesmo sabendo da atrocidade do ato, irá cometê-lo, pois matá-los "é a mordida que fere mais o esposo" (Eurípedes, 2010, p. 101).

Indicando todo seu amor aos filhos, Medeia os leva para serem enterrados em outro local, para que inimigos não possam violar o túmulo das crianças. A peça termina com Medeia partindo para encontrar Egeu. Filho do Pandion, oitavo rei da África, Egeu havia passado por Corinto para consultar-se com o Oráculo em busca de uma resposta para sua infertilidade e se deparou com Medeia devastada, que lhe contou o motivo de seu estado. Assim, após Medeia prometer a ele que seus fármacos lhe darão filhos, ele consente em acolhê-la em seu país. A peça termina com a personagem indo ao encontro de Egeu cumprir sua promessa.

 

O Feminino: Gozo, Amor e Devastação

Jacques Lacan formula importantes articulações sobre a questão da mulher e, ao longo de sua obra, vai delineando um novo modo de pensar a sexuação a partir de dois modos de gozo: o gozo fálico e o gozo feminino. Essa forma de abordar a sexuação passa por um longo processo de formalização teórica.

Em 1958, em "A significação do falo", Lacan (1958/1998) indica que "o falo como significante dá a razão do desejo" (p. 700), sendo que o termo razão é tomado na acepção matemática de medida, ou seja, a divisão entre os sexos se dá a partir da dialética fálica. Nesse momento, Lacan segue próximo à premissa freudiana, contudo já questiona alguns pressupostos sobre a questão da mulher.

Lembramos que Freud (1931/2018a) afirma que a inveja do pênis - Penisneid - deixa uma marca irreparável no inconsciente da menina, de forma que a saída feminina, por excelência, seria a maternidade, como um modo de suprir a falta fálica, via a equação simbólica falo - bebê. "A saída para muitas mulheres, frente à alteridade de seu corpo, frente ao feminino que encarnam, passa, muitas vezes, pela maternidade. A figura da mãe, nesses casos, vem para tamponar o horror ao feminino" (Marcos & Riguini, 2018, p.3). A solução freudiana marca a mulher com uma irremediável incompletude. Não podemos esquecer, no entanto, que o próprio Freud demonstra que não pôde desvendar os enigmas da feminilidade. Em sua conferência sobre a feminilidade, Freud (1933/2018b) afirma não ter ficado satisfeito com suas próprias conclusões sobre as questões femininas, apontando que quem quiser saber mais sobre as mulheres deve esperar o avanço da ciência, consultar a própria experiência de vida ou, então, consultar os poetas.

Lacan (1958/1998) acrescenta às assertivas freudianas que ao não ter o falo, a mulher pode ser o falo nas parcerias amorosas e, assim, despertar o desejo do parceiro. Em 1960, ele também coloca em xeque a proposição freudiana ao indagar se a mediação fálica poderia drenar tudo de pulsional na mulher. Um pouco antes, em 1957-58, no O Seminário, Livro 5: As Formações Do Inconsciente, ao retomar o complexo de Édipo, ele indica que, no final do processo edípico, ao menino cabe fazer a identificação viril ao pai, enquanto a menina não precisa disso, pois sabe que basta dirigir-se ao pai para ter acesso ao falo, e que, por isso, "nas verdadeiras mulheres, tem sempre algo de extraviado (Lacan, 1957-58/1999, p. 202).

Esclarecemos isso para indicar que, desde o início, a mulher aparece na obra de Lacan referida de modo lateral ao falo, no sentido de que ele, o falo, não tem para as mulheres a mesma operatividade que tem para os homens. Anos mais tarde, o psicanalista francês, ao recorrer às formulas lógicas para pensar a sexuação, dirá que a mulher é não-toda referida ao falo, discussão que nos interessa aqui.

Lacan inicia as fórmulas quânticas da sexuação em 1971 e no O Seminário, Livro 20: Mais, Ainda, de 1972-73, ele propõe a tábua da sexuação, que divide em dois lados: lado homem (à esquerda) e lado mulher (à direita).

 

 

Na parte superior da tábua encontramos as fórmulas que são lidas do lado homem da seguinte maneira: - existe um x para o qual a função fálica não se inscreve e - para todo x é verdadeiro que a função fálica se inscreva. Já do lado mulher consta: não existe um x para o qual a função fálica não se inscreve e: para não-todo x, a função fálica se inscreve.

Do lado homem, Lacan (1972-73/2008) remete-se ao texto freudiano "Totem e Tabu", que narra o mito da horda primitiva na qual um pai, não castrado, possuía acesso a todas as mulheres, negando a seus filhos o acesso a elas. Desse modo, é somente a partir da exceção desse pai não castrado que se funda o grupo dos irmãos. Assim, pode-se falar de um grupo dos homens. A sexualidade masculina, portanto, situa-se organizada pelo funcionamento fálico, localizada na universalidade, por isso pode-se dizer todo homem.

Já do lado mulher, Lacan (1972-73/2008) aponta que não se funda o grupo por não haver a mulher que faça exceção a regra. Desse modo, ele pôde afirmar que "a mulher não existe", uma vez que não há um significante que defina o que é uma mulher e esclarece:

Quando eu escrevo essa função inédita na qual a negação cai sobre o quantificador a ser lido não-todo, isto quer dizer que quando um ser falante qualquer se alinha sob a bandeira das mulheres, isto se dá a partir de que ele se funda por ser não-todo a se situar na função fálica. É isto que define a a o quê? - a mulher justamente, só que A mulher, isto só se pode escrever barrando-se o A. Não há A mulher, artigo definido para designar o universal. Não há A mulher, pois [] por sua essência ela não é toda. (Lacan, 1972-73/2008, p. 78-79)

Essa construção lacaniana não designa a mulher ausente na função fálica, pois "não é porque ela é não-toda na função fálica que ela deixe de estar nela de todo. Ela está lá a toda. Mas há algo mais" (p. 80). O que ocorre é que há uma lógica suplementar quando estamos do lado mulher. Trata-se de um gozo Outro, para além do falo. Lacan (1972-73/2008) sinaliza que desse gozo a mulher nada sabe, somente que o experimenta, pois trata-se do gozo do corpo e toma como paradigma o gozo místico, já que os místicos imputam a deus a experiência dele.

Esse gozo que poderia vir a ser uma essência feminina, no entanto, não permite criar uma identificação feminina a partir dele, não permite formar um grupo das mulheres que poderiam se especificar por esse gozo, pois "o gozo que se tem da mulher a divide, fazendo-a parceira da solidão" (Lacan, 1972/2003b, p. 467).

No segundo nível da tábua localiza-se o modo como a parceria amorosa se declina para cada lado. Do lado homem, basta que a parceira faça semblante de objeto a, de modo que para ele o que está em jogo é a fantasia. No lado mulher temos uma duplicidade: "a mulher tem relação com o S(Ⱥ), e já nisso que ela se duplica, que ela não é toda, pois, por outro lado, ela pode ter relação com o Φ" (Lacan, 1972-73/2008, p. 87). Há uma dupla face no registro da sexualidade da mulher: uma ligada ao falo e outra ao S(Ⱥ).

Uma consequência importante da ligação da mulher com o S(Ⱥ) e com a ausência de um significante feminino é que o amor aparece a ela como uma insistência. A mulher encontra, no amor, uma forma de especificar-se como uma, nem que seja como uma mulher de um homem. "É também por isso que é como única que ela quer ser reconhecida pela outra parte: isso é mais que sabido" (Lacan, 1972/2003b, p. 467). O amor toma, então, um lugar privilegiado para as mulheres, tendo como princípio o Ⱥ, o não-todo, o sem limites, e a devastação é seu outro nome, aponta Miller (2016).

Assim, enquanto do lado masculino temos como rubrica do modo de gozar o sintoma, já que o parceiro está ligado à fantasia; do lado feminino, temos a devastação. O sintoma, por sua estrutura própria, é um sofrimento localizável, limitado, por isso podemos fazer uma clínica do sintoma. Já na devastação trata-se de outra coisa: "não podemos classificar as devastações. Ser devastado!... Não vou me devastar por causa disso. O que é a devastação? É ser devastado" (Miller, 2016, p. 20). Tomando como metáfora o devastar uma região, a devastação é uma depredação sem limites.

Para a mulher, o valor do amor é essencial, pois o gozo feminino exige que seu objeto fale, ele é tecido no amor. "O ser sexuado dessas mulheres não-todas passa pelo corpo, mas pelo que resulta de uma exigência lógica da fala" (Lacan, 1972-73/2008, p. 16-17). Assim, o que está do lado da mulher é a exigência da fala de amor. Por mais que o gozo passe pelo corpo, esse corpo não faz uma unidade, de forma que a palavra de amor se torna uma exigência do lado feminino.

Souza e Vidal (2017) situam a devastação como sofrimento oriundo do encontro com a impossibilidade de representação do feminino no corpo. Se, por um lado, o amor testemunha a busca do laço com o Outro; por outro, sua perda pode deixar desvelada um desligamento do significante, convertendo-se em um sofrimento sem limite que "abrange a vida psíquica e resiste a elaborações e deslocamentos, numa espécie de loucura feminina. O que fica indicado nessa contingência é que, ao perder o lugar que o amor lhe concede no desejo de outro, uma mulher perde também algo de si." (p. 136).

Lacan (1975/2003c) aponta o seguinte sobre as mulheres em sua relação com o homem:

Ela se presta, antes, à perversão que considero ser d´O homem. O que leva à mascarada que conhecemos, e que não é a mentira que lhe imputam os ingratos, por aderir a O homem. É mais o haja-o-que-houver do preparar-se para que a fantasia d´O homem que há nela encontre sua hora da verdade. (Lacan, 1975/2003c, p. 538)

Entendemos que, na tentativa de se mascarar para se prestar à perversão d´O homem, para que assim possa obter sua palavra de amor, a mulher pode se devastar pelo fato da palavra que o homem lhe dá não ser suficiente. Assim, para tentar satisfazer a perversão do macho, não há limites para as concessões que uma mulher pode fazer a um homem.

Em função do ilimitado do gozo feminino, há também a incidência da demanda de amor sobre o ser parceiro da mulher, "e é isso que desnuda sua forma erotomaníaca - que o Outro me ame" (Miller, 1998, p. 111). O que ocorre é que essa demanda insistente de amor, que exige que o homem fale, retorna sobre o ser da mulher. Miller (1998) demonstra o falasser feminino dirigindo ao parceiro sua demanda de amor que retorna sobre ela como devastação. Ele localiza a devastação como a outra face do amor, uma vez que se trata do retorno da demanda de amor sobre a mulher.

Falamos de devastação quando há uma pilhagem que se estende a tudo, que não termina, que não conhece limites e é em função dessa estrutura que um homem pode ser o parceiro-devastação para a mulher, para o melhor e para o pior. (Miller, 1998, p. 115)

A devastação "toca os confins da marcação simbólica" (Brousse, 2004, p. 62), ou seja, toca a maneira como a emergência da linguagem se deu para cada sujeito, pois a devastação, que se estende pela vida amorosa de uma mulher, surge da relação da menina com sua mãe. Brousse (2004) toma essa relação como um ponto no qual muitas mulheres tropeçam durante a análise, já que numa mulher, qualquer que tenha sido sua história, há uma invariante destacável: "O x do desejo materno assumia sempre, num determinado momento da análise, o valor de morte. O significado para o sujeito era o filho cuja morte se desejara. Esse dado clínico vem esclarecer o termo 'devastação'" (Brousse, 2004, p. 63).

O que ocorre é que o desejo da mãe não pode ser saturado pelo significante falo. "Com efeito, o desejo da mãe está longe de ser inteiramente saturado pelo significante. Há na mãe, ao lado do desejo, um gozo desconhecido, feminino" (Brousse, 2004, p. 64). Ao operar uma disjunção entre a mãe e a mulher, Lacan nos permite progredir na via da devastação, não somente ao que remeteria ao desejo fálico, mas a um sem limite particular da sexuação feminina. Teríamos aí duas vertentes da devastação: uma ligada a uma demanda fálica inacessível, portanto, a uma zona de vacilação dos semblantes, e outra ligada ao gozo feminino.

Na realidade, podemos encontrar uma proposta sobre a devastação já em Freud, mas sob outra rubrica. Freud demonstrou que enquanto o complexo de castração encerra o Édipo nos meninos, nas meninas, não. Ele é seu ponto de partida, pois é somente ao se reconhecer castrada e também que a mãe o é que a menina direciona-se ao pai, localizando-se no triângulo edípico: "A passagem ao pai como objeto é realizada com auxilio dos anseios passivos, na medida em que estes escaparam à reriravolta" (Freud, 1931/2018a, p. 303).

A reviravolta é uma referência à relação pré-edipiana da menina com sua mãe. Marcos (2011) aponta que, portanto, "para Freud, a devastação está intimamente ligada ao destino do falo na menina e ao Penisneid" (p. 271). No O aturdito, Lacan (1972/2003b) destaca a relação do pré-Édipo com a devastação ao indicar que é "pela castração ser nela [na menina] ponto de partida" (p. 465) que podemos localizar a devastação. Brousse (2004) esclarece que a castração ser ponto de partida "tem como consequência uma ausência de limite, e a questão do corpo não se deixa reduzir na clínica totalmente à cicatriz que já é um nome fálico atribuído ao irrepresentável do feminino, ao que do corpo se deixa dificilmente reabsorver pelo corpo simbólico" (p. 64).

O que Lacan (1972/2003b) lê é que a menina esperava da mãe mais substância, e Freud propõe que as relações amorosas da futura mulher se pautarão sobre essa relação da menina com a mãe. Não à toa, a devastação estende-se para a vida amorosa das mulheres. Brousse (2004) propõe a tese de que a devastação está presa no arrebatamento. Arrebatamento é um termo que Lacan utiliza para comentar o texto de Marguerite Duras intitulado O arrebatamento de Lol. V. Stein. Segundo Laurent (2012), arrebatamento é um termo que vem da mística, introduzido no final do século XIII, que expressava extrair por força - raptar, transportar. É uma palavra que designa uma forma de êxtase, na qual a alma é tomada por Deus. Esse termo é retomado por Lacan como um nó lógico, "no qual, em um duplo movimento, o arrebatamento é a expulsão do sujeito de seu corpo, ao mesmo tempo em que aquele que assiste a essa expulsão é, ele mesmo, contaminado" (Laurent, 2012, p. 152).

Brousse (2004) toma esse termo apontando que se, de um lado, ele remete ao roubo ou ao rapto; de outro lado, ele remete a um ser arrebatado e, nessa linha, está ligado ao gozo feminino, já que "ser arrebatada é ser descompletada de seu corpo, com o efeito do gozo que acompanha a deslocalização" (p. 65). É nesse ponto que a autora aproxima o arrebatamento da devastação, já que nela o sujeito é despossuído de seu lugar. Se tomamos a peça Medeia, é disso que se trata. Antes de trabalharmos a devastação de Medeia, vamos ao esclarecimento da noção de ato na psicanálise lacaniana.

 

O Ato em Psicanálise

O ato faz sua entrada na teoria psicanalítica no início das produções de Freud, que, em 1901, dá aos atos acidentais uma importância significativa. Lacan (1967-68/inédito) indica que, contudo, os psicanalista deram pouco valor ao ato, e dedica um seminário ao ato analítico, o qual "parece apropriado a reverberar com mais luz sobre o ato, por ser o ato a ser reproduzido pelo próprio fazer que ele ordena" (Lacan, 1969/2003a, p. 371).

Para Guimarães (2009), podemos retirar de Lacan cinco teses fundamentais sobre o ato: 1) todo ato implica um correlato significante; 2) o Outro está no horizonte do ato; 3) no instante do ato, não há nem sujeito, nem Outro; 4) o sujeito encontra, após o ato, sua presença renovada; e 5) todo ato, exceto o suicídio, é falho.

Lacan (1967-68/inédito) toma a travessia que Caio Júlio César faz do rio Rubicão como paradigma para pensarmos o ato. Caio Júlio César nasceu em Roma, em 100 A.C., e tornou-se político, um grande militar, tendo papel decisivo na transformação da República Romana em Império. Como general, coordenou a campanha militar pela Gália, na qual obteve muito êxito. Suas conquistas militares lhe deram força e respeito, mas fizeram com que seu ex-aliado político, Pompeu Magno, que por vias conspiratórias havia se tornado governante dos romanos, se sentisse ameaçado, ordenando seu retorno a Roma e a desmobilização de suas legiões. É a partir dessa ordem que o ato de Júlio César se torna importante para Lacan. Ele não obedece a ordem dada por Pompeu e retorna a Roma atravessando o rio Rubicão, o que era proibido por lei. Essa restrição visava evitar que os generais ingressassem com suas forças bélicas no centro do governo romano, evitando o risco de golpes ao poder central. O Rubicão era um pequeno rio que marcava um limite seguro para circunscrever a área resguardada. Durante a travessia, ele teria dito "Alea Jacta est" - a sorte está lançada. Esse retorno inicia uma guerra civil, transformando Júlio César em rebelde.

A partir do ato de César, vamos às cinco dimensões que um ato comporta. A primeira direção trata-se de que todo ato implica um correlato significante e, portanto, marca um início. Lacan (1967-68/inédito) começa seu seminário diferenciando ato e ação, e afirma que "estamos então seguramente em uma postura de não podermos situar o ato nesta referência, nem à motricidade, nem à descarga" (lição de 15/11/67), ou seja, o ato está para além das referências motoras, ainda que precise da ação para ser realizado. Ele diz:

Pois na dimensão do ato vem logo à baila esse algo que implica um termo como este que acabo de mencionar, a saber: a inscrição, em algum lugar, o correlato de significante que, na verdade, não falta jamais no que constitui um ato. Se posso caminhar aqui de um lado para o outro falando para vocês, isso não se constitui um ato, mas se um dia ultrapassar um certo limiar onde me coloque fora da lei, esse dia minha motricidade terá valor de ato. (Lacan, 1967-68/inédito, lição de 15/11/1967)

Ainda em relação à primeira tese, Lacan (1967-68/inédito) indica que o texto freudiano sobre a psicopatologia da vida cotidiana mostra claramente o que está em jogo no ato: "sua dimensão significante, nada é introduzido em relação ao ato, nesses capítulos, senão isto: que ele é colocado como significante" (Lição de 22/11/1967), o que já demonstra que o ato ultrapassa a ação, precisando demarcar um ponto significante. "Digamos, primeiro: o ato (puro e simples) tem lugar por um dizer e pelo qual se modifica o sujeito. Andar só é ato desde que não diga apenas 'anda-se', ou mesmo 'andemos', mas faça com que 'cheguei' se verifique nele" (Lacan, 1969/2003a, p. 371).

Desde o início desse seminário, Lacan (1967-68/inédito) precisa que só é legítimo dizer que o ato analítico é um ato porque ele implica a consequência de um ato que tem por dimensão um dizer. A dimensão de um dizer sempre foi percebida na experiência e, para evocá-la, basta lembrarmos da seguinte fórmula "agir segundo sua consciência, para apreender de que se trata" (Lacan, 1967-68/inédito, lição de 17/01/68). Ele interpela, no entanto, por que se deve agir segundo sua consciência e diante de quem. E é essa interpelação que indica que, quando falamos do ato, a dimensão do Outro como testemunha não pode ser eliminada.

Essa não eliminação do Outro na dimensão do ato é solidária ao ato como um dizer. Antes desse seminário, Lacan já havia postulado a ideia de que o emissor recebe do Outro sua própria mensagem de forma invertida. Então, além da função de testemunho do Outro, está em jogo a dimensão da fala. Brodsky (2004) resume assim essa dimensão: "Deve-se traçar o limite, para se ver depois como retraçá-lo. É preciso a lei simbólica para que se possa ver como transgredi-la. Não há ato de outra forma" (p. 18).

Ainda que possa contradizer a dimensão anterior do ato - a de que o Outro está nele implicado -, a terceira tese sobre o ato é que, no instante do ato, não há nem sujeito nem Outro, já que o que está em jogo é a presença do objeto a formulação que encontramos no décimo seminário de Lacan, no qual ele aborda a angústia.

Lacan (1962-63/2005) aponta que a angústia é a tradução subjetiva do objeto a, de modo que o ato é a última barreira contra a angústia, o que significa que, quando a presença do objeto promove o apagamento do sujeito, o ato surge como um modo de evitar a transitoriedade da angústia. "A angústia surge quando um mecanismo faz aparecer alguma coisa no lugar do que chamarei, para me fazer entender, de natural, o lugar (-φ), [] pelo a do objeto do desejo. Eu disse alguma coisa - entendam uma coisa qualquer" (Lacan, 1962-63/2005, p. 51).

Isso ocorre porque o objeto a, causa de desejo, é um objeto desde sempre perdido e, portanto, inapreensível. "Na medida em que ele sobra, por assim dizer, da operação subjetiva, reconhecemos estruturalmente nesse resto, por analogia, o objeto perdido. É com isso que lidamos, por um lado, no desejo, por outro, na angústia" (Lacan, 1962-63/2005, p. 179).

Guimarães (2009) completa que se seguem quatro tempos desde o surgimento do objeto na cena até o reaparecimento do sujeito com a irrupção de um novo desejo:

1o) a angústia surge, desprovida de causa, mas não de objeto; 2o) a certeza engendrada pelo objeto da angústia - o objeto a - impulsiona o ato; 3o) o ato aplaca a angústia e, simultaneamente, reativa o desejo; 4o) a função da causa volta a se exercer, suscitando um novo desejo. (Guimarães, 2009, p. 297)

Por último, temos a quinta tese: todo ato, exceto o suicídio, é falho. A isso Miller (2014) propõe que, para Lacan, todo ato é um suicídio do sujeito, ou seja, há uma morte. Entretanto uma morte que não fica só nisso, engendrando um começo posterior. "Podemos colocar entre aspas para indicar que ele pode renascer disso, mas renasce diferente. É isto que constitui propriamente um ato: o sujeito não é mais o mesmo antes e depois" (Miller, 2014, p. 5).

Como dito anteriormente, há em todo ato um correlato significante, no entanto não há nenhuma garantia de que o ato comporte a mesma intenção que o moveu, então o ato malogra, pois nada assegura a verdade de sua intenção. Se não há Outro do Outro, não há um significante que garanta a verdade. Ainda, em sequência da assertiva anterior - o sujeito sempre reaparece renovado após o ato -, devemos afirmar que "todo ato encontra, inevitavelmente, uma inscrição no Outro, o que faz com que a própria ideia de corte absoluto fracasse" (Guimarães, 2009, p. 299).

Lacan coloca como exceção ao ato sempre falho o suicídio, pois nele não há a dimensão nem do Outro, nem do sujeito. É uma ruptura definitiva, havendo um apagamento irreparável do sujeito e, consequentemente, do campo do Outro. Brodsky (2004) acrescenta que no suicídio há um rechaço total do inconsciente. Miller (2014), por sua vez, diz que o autoextermínio é o único ato no qual o sujeito separa-se efetivamente dos equívocos da fala, opondo-se, assim, à psicanálise.

Vamos agora verificar como Medeia pode tratar sua devastação a partir do ato, e também como o ato analítico permite à Ana Lúcia Lutterbach Holk forjar um novo significante para também tratar sua devastação.

 

O Ato como Tratamento para a Devastação em Medeia

Jasão havia inscrito Medeia no campo da civilização, fazendo com que ela passasse de bruxa à mulher grega, mãe e esposa. Em nome do amor, ela abriu mão de sua terra natal ao preço de ser inscrita como mulher de Jasão. Lacan (1971-72/2012) diz que a universal só faz surgir para a mulher a função fálica do modo como sabemos que dela a mulher participa.

Mas ela só participa dela ao querer arrebatá-la do homem, ou então, meu Deus ao lhe impor o serviço dela no caso, ou pior, caberia dizer em que ela lhe devolvesse. Mas isso não universaliza a mulher, nem que seja por isso, que é a raiz do não toda: por ela encerrar em si um gozo diferente do gozo fálico, o gozo propriamente feminino, que não depende dele em absoluto. (p. 101)

Medeia se inscreve na função fálica por meio de sua parceria com Jasão. Essa seria a função arrebatadora do homem que, em seu caso, a havia retirado do mundo bárbaro. O que ocorre é que se isso, de algum modo, contorna o gozo feminino, não o encerra como todo. O gozo feminino, tecido no amor, demanda de Jasão mais ainda. Enquanto Jasão lhe dá substância, ela se localiza na função fálica, mas, ao anunciar que se casará com Creusa, a devastação se incide sobre o corpo de Medeia.

Durante o diálogo de Medeia com Jasão, antes do cometimento do ato, ele oferta que as crianças vivam com ele e possam ser criadas no castelo: "Obstino-me em propiciar aos filhos irmãos, reunir estirpes, congregar as duas numa. Eis como prosperamos. Por que precisas tanto de teus filhos?" (Eurípedes, 2010, p. 73). Nessa oferta de Jasão está localizado o que norteia seu desejo em relação à escolha de uma mulher: "ele quer desfrutar da casa real, quer ver seus filhos irmãos dos reis que nascerão desta união. Eis o gozo fálico que transparece e regula o desejo. É aí que a vingança de Medeia será selada" (Marcos, 2014, pp. 2-3). Contudo, nessa vingança, outra lógica aparece, pois "o feminino não-todo parece aqui anular a lei simbólica e subverter a lógica fálica" (Marcos, 2014, p. 3). O ato se inscreve no rastro do não-todo, já que por meio dele anulam-se homens e filhos.

Medeia encontra em Jasão o amor, mas, como adverte Lacan (1972-73/2008), em relação ao amor: "quando se olha para lá mais de perto, vêem-se as devastações" (p. 12), pois nele há uma demanda infinita que parte da falha do Outro, do S(Ⱥ). É essa direção que um homem pode ser uma devastação para uma mulher, quando ele não consegue suprir essa falta do modo de amar erotomaníaco.

A estrutura da devastação só pode ser encontrada na estrutura do infinito, por isso ela está do lado do não-todo. Miller (1998) aponta que também um homem pode ser para uma mulher um deslumbramento, outra tradução para arrebatamento. Ora, parece que é isso que acontece com Medeia. Ela é arrebatada por Jasão e não limita as concessões que faz para ele, desde que - essa é sua condição! - ele a faça sua mulher. No arrebatamento, trata-se de uma condução a uma felicidade extrema, e é nessa condição que podemos entender a ausência de limites das concessões que uma mulher pode fazer a um homem.

Assim, o universal que elas desejam é a loucura: todas as mulheres são loucas, como se diz. É por isso mesmo que não são todas, isto é, não loucas-de-todo, mas antes conciliadoras, a ponto de não haver limites às concessões que cada uma faz a um homem: de seu corpo, de sua alma, de seus bens. (Lacan, 1975/2003c, p. 538)

Essa ausência de limites que oferta a um homem retorna sobre seu ser de mulher na devastação. A devastação, portanto, é uma consequência do não-todo, e a localizamos no corpo inane de Medeia, apresentado no início da peça, assim que ela recebeu a notícia do casamento de Jasão com Creusa e de seu eminente exílio. O que temos em Medeia é que o ato a retira da devastação. Após matar os filhos, Medeia não apresenta mais o corpo inane, prostrado, mas dá início a uma nova história. Ela parte para encontrar Egeu e dar-lhes filhos com seus fármacos, e o ato lhe permite um novo começo. Seu ato, transgressor como deve ser para constituir-se como tal, comporta a dimensão de vingança, mas, sem ser sua intenção, ele faz mais. Ele trata a devastação da personagem.

Ao afirmamos que o ato pode se constituir como um tratamento para a devastação feminina, não o reduzimos apenas a atos violentos, como poderemos ver no passe da Ana Lúcia Lutterbach Holk, no qual o ato em jogo é o ato analítico.

Holk (2008), em seu livro que leva o título Patu, traz o testemunho de sua análise, no qual alguns eixos giram em torno da sua devastação. Ela demonstra como a criação de um novo significante, forjado a partir de uma interpretação dada por seu analista, dá a ela uma solução para seu corpo devastado.

O testemunho de Holk inicia com sua mudança de analista, com a necessidade de que este lhe fosse estranho, estivesse fora. É o significante estranho que marca o estabelecimento da transferência. A análise começa com Holk (2008): "uma vez mais devastada pelo amor, no começo era a angústia; não havia verbo, nem sujeito, nem predicado" (p. 107). Ela relata que, em sua casa, composta de muitas mulheres, a mãe havia construído a imagem de um pai herói. Era comum que a mãe a produzisse, colocando os melhores vestidos para que isso agradasse o olhar do pai. Produz-se, então, uma lembrança infantil durante a análise:

Aos 10 anos, sentada horas a fio sem uma palavra, deixa-se cair sem rede em um abismo ilimitado e sem sentido ao lado da cama da mãe, dilacerada pela perda no parto de seu quinto filho, o que seria o único menino. Identificada com o bebê morto, a menina cai abismada num desejo de desaparecer. (Holk, 2008, p. 107)

Bessa (2012) diz que parece que a posição de gozo de Holk será orientada ora por ser objeto caído, ora por ser bela. Esse bela trata-se do modo como a mãe vestia as filhas para fazer a família feliz em torno do "papai-sabe-tudo" (Holk, 2008, p. 107), no qual se organizava essa família cheia de mulheres. Seu primeiro amor, um primo, porta um traço paterno: o sobrenome. Um amor cortês, no qual ela era o objeto idealizado, e no qual a devastação se incide num excesso de sexualização. O seu segundo amor era da cidade do pai e, mesmo não sendo parente, tinha o mesmo sobrenome. Após escapar da primeira devastação, acabara por transmitir ao novo parceiro as coordenadas de seu gozo, de modo a novamente produzi-las, mas agora identificada à fantasia perversa do parceiro, sendo seu objeto. "Mas a identificação petrificante ao objeto da fantasia masculina e o gozo fálico não bastavam para recobrir o gozo feminino, que mais uma vez se transformava em angústia" (Holk, 2008, p. 108).

Dessa posição, tem-se uma duplicidade: ou se encontrava como vítima do Outro, adorando submeter-se a seu gosto, dando-lhe consistência, ou se encontrava como exilada do mundo, parceira de sua solidão, caída num abismo. Holk (2008) sinaliza o modo como a mulher se desdobra: ou submetida ao falo, como objeto a de seu parceiro, ou avassalada na solidão de seu gozo.

Numa primeira volta na análise, o S1 que ressurge é o "bela". O bela que era diante do olhar materno que a vestia, um significante advindo de um identificação fálica que dá um contorno ao seu ser feminino.

Se o significante bela tomou força e importância foi justamente porque vinha recobrir o que feio lhe parecia. Se por um lado, recobria o real da carne e, sob o significante fazia erigir A mulher que se alojava toda no furo do Outro, resultando na erotomania histérica e sedução; por outro lado, ao cair, identificava-se ao puro nada, devastada. (Holk, 2008, p. 109)

Ela conta um sonho: "um cachorro defecando um patê é olhado por um jovem" (Holk, 2008, p. 110), e este é interpretado assim pelo analista: "esse patê é você" (p. 111). O patê é o nome do gozo que ela encontrava na posição de objeto: "para se ter", seja na vertente do ideal, como bela, seja na vertente do dejeto, e dá a ele um sentido cômico: "bela como uma bela merda" (Holk, 2008, p. 111). O patê ganha um deslizamento de sentido - patê (para se ter), pavê (para ver), pacumê (para ser comida), e encontra seu limite no patu. Um significante novo que não está incluído na língua materna, significante da falta do Outro - S(Ⱥ) - que traz em seu bojo tanto a posição antiga, 'para tudo', como indica um lugar 'pastout', nãotoda, posição feminina. Do não ser por não tê-lo, do patê ao patu, revela-se o real da estrutura feminina.

Lacan (1967-68/inédito) pensa que é o ato analítico que coloca em marcha o inconsciente, e por meio desse ato que um novo significante pode surgir, de modo que essa pode ser uma saída para a devastação. No caso de Holk, a nomeação de seu gozo teve como efeito a promoção da extração do objeto que velava o furo. Se quando se identifica ao objeto ideal ou ao objeto perversão do parceiro a mulher satisfaz o gozo fálico, o gozo não-todo parece localizar-se na sua angústia, já que, diz Bessa (2012), nenhum dos dois dá consistência ao seu ser de mulher.

Holk (2008) traz mais um sonho que a desperta com um prazer indescritível, de pura satisfação sem sentido, ela conta: "atravesso meu corpo de um buraco a outro, me mexendo entre as entranhas, carne, sangue, bílis, excremento. Sou e estou no corpo. Esse corpo em pedaços é servido cru em uma bandeja" (p. 114). A psicanalista diz que esse sonho aponta para a ruptura com os semblantes, num encontro com o real. Bessa (2012) destaca que, nesse sonho, o encontro com o real de das Ding se dá sem que ela se assole com a angústia.

Segundo Bessa (2012), esse testemunho de passe demonstra como a travessia do processo analítico permite Holk assentir com a inconsistência do Outro, e o significante patu emerge não na tentativa de fazer A mulher existir, mas de cifar o S(Ⱥ). Ela indica que esse e outros testemunhos ajudam a esclarecer que a devastação está ligada ao gozo feminino e que a sexualidade feminina se estrutura em torno de um vazio - A mulher não existe. Por isso, a devastação se dá, já que as mulheres estão submetidas à foraclusão do significante que poderia definir o universal do grupo de mulheres. Ela afirma mais: que a devastação é um efeito dessa foraclusão, já que ela é um retorno do impossível de dizer A mulher, e conclui que:

O efeito de devastação da foraclusão d'A mulher acontece quando o sujeito não dispõe de um semblante que tenha essa função de cifra. A solução, num processo analítico, é a produção de um semblante que faça a função de suplência do S (Ⱥ), que não se confunda com o objeto a, tampouco com o falo, embora na condição de se servir dele. (Bessa, 2012, p. 150)

Parece que, na análise de Holk (2008), o tratamento da devastação vem do significante patu, que cifra o gozo feminino e o modula não mais com angústia. No entanto ele só se elabora após a interpretação do analista. No caso Medeia, temos, em um primeiro momento, o contrário, pois o significante que modulava o ser feminino, dando a ela uma sustentação no campo da norma fálica, cai e lhe resta a devastação.

Se a devastação alui diante da construção de um novo significante num tratamento analítico, no caso de Medeia, é o ato que permite que a devastação ceda. Se, no instante do ato, o sujeito se apaga, depois, ele surge renovado (Lacan, 1967-68/inédito). Se sujeito é sempre um significante, após o ato, Medeia encontra novos semblantes, que tamponam o vazio que o gozo feminino implica. Após o ato, a reconstrução de um novo semblante oferece sustentação ao sujeito. Por isso, ao dizer que a mulher é não-toda, não significa dizer que ela está excluída da norma fálica, pois o aparecimento da foraclusão d'A mulher se dá apenas num instante.

Algo deve ser reconstruído no campo dos semblantes. Trata-se de dizer que algo transborda, por isso esse momento que o feminino aparece é esporádico. Após o ato, a personagem Medeia muda seu destino. Ela vai encontrar-se com Egeu e dar-lhe filhos. Nossa hipótese se conclui no fato de que o ato de Medeia lhe tira da devastação, a fazendo ressurgir num novo ponto significante. Em sua falta de acesso ao recurso analítico, Medeia somente pode se reinscrever no campo fálico, que havia sido submerso pela devastação, após cometer o ato de matar os filhos como modo de atingir o homem que lhe abandonou. Holk (2008) nos mostra como existem outros recursos, mas, em seu caso, também advêm por um ato: o ato analítico.

Se pensarmos que o ato do lado homem pode ser um modo masculino de lidar com o medo da perda, derivado da angústia de castração, o ato como um tratamento para a devastação amorosa nos aponta para a particularidade do campo feminino: sua relação nãotoda com o falo. Desse modo, mais livre no campo dos semblantes, cabe a cada mulher a invenção.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Thais Limp Silva
E-mail: thaislimp@gmail.com

Cristina Moreira Marcos
E-mail: cristinammarcos@gmail.com

Recebido em: 02/12/2019
Revisado em: 09/08/2020
Aceito em: 23/08/2020
Publicado online: 23/12/2020

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