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Revista Subjetividades

versão impressa ISSN 2359-0769versão On-line ISSN 2359-0777

Rev. Subj. vol.20 no.3 Fortaleza jul./dez. 2020

http://dx.doi.org/10.5020/23590777.rs.v20i3.e10750 

ESTUDOS TEÓRICOS

 

Banalização do Mal na Contemporaneidade e os Efeitos Necropolíticos na Sociedade Brasileira

 

Banality of Evil in Contemporaneity and the Necropolitical Effects on Brazilian Society

 

La Banalización del Mal en la Contemporaneidad y los Efectos Necropolíticos en la Sociedad Brasileña

 

Banalisation du Mal dans la Contemporanéité et les Effets Nécropolitiques dans la Société Brésilienne

 

 

Flávia Fernandes de CarvalhaesI; Rafael Bianchi SilvaII; Alexandre Bonetti LimaIII

IDoutora em Psicologia (UFSC). Docente do Departamento de Psicologia Social e Institucional e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Estadual de Londrina (UEL)
IIPós-Doutorado em Psicologia (UEM). Doutor em Educação (Unesp/Marília). Docente do Departamento de Psicologia Social e Institucional e Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Estadual de Londrina (UEL)
IIIDoutorado em Psicologia Social (PUC/SP). Docente do Departamento de Psicologia Social e Institucional e Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Estadual de Londrina (UEL)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A sociedade brasileira é atravessada por violências, preconceitos e autoritarismos, materializados em índices de morte e desigualdades sociais que se assemelham a um país em guerra. Os componentes capitais desses índices, invariavelmente, são as populações LGBTI (particularmente transexuais), pobres, indígenas, negros, mulheres, entre outros, que configuram as denominadas minorias sociais. Contemporaneamente, notamos que o autoritarismo, a violência e os preconceitos vêm assumindo materialidade explícita como política do Estado (em seus diferentes níveis de governo), e sendo apoiados por ampla parcela da população. Neste artigo, a partir de uma reflexão teórica, arguimos que tais ocorrências não se iniciam recentemente, mas têm matrizes históricas não devidamente elaboradas pela sociedade brasileira, atuando, dessa maneira, nas suas intersubjetividades. Para sustentar o argumento, o artigo está organizado em três blocos de análise inter-relacionados. Inicialmente, discorremos sobre a colonialidade moderna, que ainda persiste nas relações entre países periféricos e centrais. Em seguida, tendo como referência Hanna Arendt, problematizamos a potencialidade do mal banal a enredar e circunscrever o sistema colonial mediante a invisibilização da alteridade nas relações humanas. Finalizamos com o debate sobre os efeitos da violência colonial no Brasil, escamoteados mediante a circulação dos mitos da cordialidade e pacifismo da população brasileira e o da democracia racial, impondo esquecimentos de nossa história.

Palavras-chaves: violência; contemporaneidade; intersubjetividade; mal.


ABSTRACT

The brazilian society is crossed by violence, prejudice and authoritarianism, materialized in death rates and social inequalities that resemble a country at war. The main targets of these indexes, invariably, are the so-called social minorities formed by LGBTI (particularly transsexual), poor, indigenous, black, women, among others. At the same time, we note that authoritarianism, violence and prejudice have taken on explicit materiality as a State policy (at its different levels of government), and supported by a large portion of the population. Contemporaneously, can be note that authoritarianism, violence and prejudice have taken on explicit materiality as a State policy (at its different levels of government), and supported by a large portion of the population. In this article, from a theoretical reflection, we argue that such occurrences do not start recently, but have historical matrixes not properly elaborated by Brazilian society, acting in this way, in their intersubjectivities. To support the argument, the article is organized into three interrelated blocks of analysis. Initially, we discussed the modern coloniality that still persists in relations between peripheral and central countries. Then, using Hanna Arendt as a reference, we problematize the potential of banal evil to ensnare and circumscribe the colonial system through the invisibility of otherness in human relations. We ended with a debate on the effects of colonial violence in Brazil, concealed through the circulation of the myths of the cordiality and pacifism of the Brazilian population and that of racial democracy, imposing forgetfulness of our history.

Keywords: violence; contemporaneity; intersubjectivity; evil.


RESUMEN

La sociedad brasileña está atravesada por la violencia, los prejuicios y el autoritarismo, materializados en tasas de mortalidad y desigualdades sociales que se asemejan a un país en guerra. Los componentes de capital de estos índices, invariablemente, son las poblaciones LGBTI (particularmente transexuales), pobres, indígenas, negras, mujeres, entre otras, que conforman las llamadas minorías sociales. Al mismo tiempo, observamos que el autoritarismo, la violencia y los prejuicios han adquirido una materialidad explícita como política estatal (en sus diferentes niveles de gobierno), y respaldados por una gran parte de la población. En este artículo, desde una reflexión teórica, sostenemos que tales ocurrencias no comienzan recientemente, sino que tienen matrices históricas no elaboradas adecuadamente por la sociedad brasileña, actuando de esta manera, en sus intersubjetividades. Para apoyar el argumento, el artículo está organizado en tres bloques de análisis interrelacionados. Inicialmente, hablamos sobre la colonialidad moderna que aún persiste en las relaciones entre los países periféricos y centrales. Luego, utilizando a Hanna Arendt como referencia, problematizamos el potencial del mal banal para atrapar y circunscribir el sistema colonial a través de la invisibilidad de la otredad en las relaciones humanas. Concluimos con el debate sobre los efectos de la violencia colonial en Brasil, oculto a través de la circulación de los mitos de la cordialidad y el pacifismo de la población brasileña y el de la democracia racial, imponiendo el olvido de nuestra historia.

Palabras clave: violencia; contemporaneidade; intersubjetividade; mal.


RÉSUMÉ

La société brésilienne est traversée par la violence, des préjugés et l'autoritarisme, matérialisés par des taux de mortalité et des inégalités sociales qui ressemblent à un pays en guerre. Les composantes capitales de ces indices sont invariablement les LGBTI (en particulier les transsexuels), les pauvres, les autochtones, les femmes, les noires, entre autres, qui constituent les soi-disant minorités sociales. Dans le même temps, nous notons que l'autoritarisme, la violence et les préjugés ont pris une matérialité explicite en tant que politique de l'État (à ses différents niveaux de gouvernement) et soutenus par une grande partie de la population. Dans cet article, nous avons utilisé une réflexion théorique et nous soutenons que de telles occurrences n'ont pas commencé récemment, mais ont des matrices historiques mal élaborées par la société brésilienne, agissant ainsi sur leurs intersubjectivités. Pour étayer l'argumentation, l'article est organisé en trois blocs d'analyse interdépendants. Initialement, nous avons discuté de la colonisation moderne, qui persiste encore dans les relations entre les pays périphériques et centraux. Puis, en utilisant Hanna Arendt comme référence, nous problématisons le potentiel du mal banal à piéger et circonscrire le système colonial à travers l'invisibilité de l'altérité dans les relations humaines. Nous concluons par le débat sur les effets de la violence coloniale au Brésil, dissimulée par la circulation des mythes de cordialité et de pacifisme de la population brésilienne et celle de la démocratie raciale, imposant l'oubli de notre histoire.

Mots-clés: violence ; contemporanéité ; intersubjectivité ; mal.


 

 

No dia 20 de setembro de 2019, a menina Ágatha Félix, de apenas oito anos de idade, foi morta em uma operação policial no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro. Ela estava com sua mãe em uma Kombi quando recebeu um tiro nas costas. Foi a quinta criança a morrer dessa forma (em operação policial), neste ano, no Rio de Janeiro, somando 57 crianças desde o ano de 2007 (Lacerda, De Luca, & Pamplona, 2019).

No mesmo mês, um vídeo circulou amplamente nas redes sociais com imagens de tortura de um adolescente de 17 anos que vivia em situação de rua, aplicadas por seguranças de um supermercado na cidade de São Paulo. O vídeo viralizou rapidamente, e mostrava o adolescente nu, preso e amordaçado, enquanto era chicoteado com fios de cobre pelos seguranças. Ele foi apanhado depois de roubar uma barra de chocolate no supermercado em questão (Maia, 2019). Não é o único caso de tortura em supermercados. Recentemente, outro vídeo foi divulgado, no qual um homem adulto, amarrado e com as calças arriadas, recebia choques elétricos por seguranças de outro supermercado, também na cidade de São Paulo. O evento teria ocorrido, supostamente, no início de 2018 (Maia, 2020). Em fevereiro de 2019, no Rio de Janeiro, um garoto de 19 anos foi imobilizado e sufocado por um segurança de supermercado até a morte por parada cardíaca. O segurança supostamente imaginou que o garoto pretendia roubar sua arma, e mesmo após tê-lo imobilizado, o manteve em situação de sufocamento, apesar dos pedidos aflitos de sua mãe e de outros clientes do supermercado para soltá-lo, porque nitidamente o estava matando por falta de ar (Nunes, 2019).

Eventos como esse, protagonizados por seguranças de estabelecimentos comerciais no país, lamentavelmente não são raros e vão ao encontro de dados de violência que anunciam a história brasileira como um permanente estado de exceção, uma rotina de barbárie. Com efeito, em seu mais recente livro, a historiadora Lilia Schwarcz (2019) revela que, entre 2011 e 2015, morreram 260 mil pessoas no conflito bélico da Síria, sendo que, nesse mesmo período, 270 mil pessoas foram assassinadas no Brasil. Nos 20 anos da guerra do Vietnã (1955-1975) foram registradas 1,1 milhão de pessoas mortas devido ao conflito. Entre 1995 e 2015, no Brasil - mesmo intervalo de tempo -, foram registrados 1,2 milhão de assassinatos (Schwarcz, 2019). Não é preciso dizer que esses assassinatos têm território e cor. Concentram-se nas favelas e periferias das cidades brasileiras, ocupadas, sobretudo, por negros e negras. De fato, o Atlas de Violência de 2018 registra que, em 2017, a taxa de homicídios de negros no Brasil foi de 40,2 por 100 mil e a de não negros, de 16 por 100 mil, configurando uma situação na qual jovens negros têm 2,71 vezes mais probabilidades de serem assassinados do que jovens não negros. E, entre as jovens negras, as chances de serem assassinadas é 2,19 vezes maior do que entre as não negras (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada [IPEA], 2018). O Instituto da Mulher Negra (2017). ainda complementa essas informações com a denúncia de que, entre 2006 e 2016, o número de vítimas de feminicídio entre as mulheres brancas caiu 2,1% e entre as mulheres negras aumentou 35%.

Tendo em vista a gravidade do panorama descrito, bem como a evidente conjuntura política atual no Brasil, que oficializa o processo de exclusão e matabilidade como pautas governamentais, o presente artigo busca articular uma análise interdisciplinar de traçados totalitários que constituem os regimes modernos de colonialidade do poder e, mais especificamente, parte de seus efeitos no Brasil.

A partir de uma reflexão teórica, buscou-se realizar uma proposta integrativa dos temas a partir de três blocos analíticos que, embora sejam apresentados de modos distintos, mantêm correlações e ressonâncias entre si como forma de aproximar os elementos propostos na investigação com as questões vivenciadas na realidade brasileira.

Inicialmente, serão apresentados os traçados que constituíram (e ainda constituem) a noção de colonialidade moderna, que fornecerão as bases para a compreensão dos modos de existência e produção de subjetividades observados no contexto contemporâneo. Em seguida, tendo por base o primeiro ponto, será problematizada a potencialidade do mal como um sistema (colonial) que invisibiliza a alteridade como igualmente humana. Por fim, debate-se sobre efeitos da violência exploratória colonial no contexto do Brasil, que impõe esquecimento de nossa história, bem como a incidência e circulação de noções como o mito da democracia racial e da cordialidade e pacifismo da população brasileira, materializando a banalidade do mal e a necropolítica na materialidade na vida.

 

Algumas Considerações sobre a Colonialidade

Mignolo (2010) afirma que a modernidade se trata de uma complexa narrativa que teve a Europa como ponto de origem. Ela constrói a civilização ocidental ao realizar um duplo movimento: de um lado, celebrar as conquistas dos países europeus, e, ao mesmo tempo, esconder a colonialidade, elemento constitutivo da modernidade.

Por colonialidade, Quijano (2010), criador do conceito, refere-se ao processo de relações entre países centrais e periféricos que não se extinguiu após a independência das maneiras de administração colonial. O processo de colonialidade gerado pelas culturas coloniais e pelas estruturas do sistema-mundo capitalista moderno permaneceu (e ainda permanece) epistemologicamente e culturalmente hegemônico, além de impor relações de dependência econômica e política aos países periféricos (Grosfoguel, 2008), como aos da América Latina e Caribe, África, entre outros. Ela é o lado oculto da modernidade, sem o qual a Europa não poderia infundir a sociedade mundial como sistema-mundo em que imperou com amplo domínio (Quijano & Wallerstein, 1992).

Com efeito, a colonização do mundo pelos europeus e a expansão econômica mercantilista que protagonizaram geraram as bases materiais e filosóficas para a constituição colonial dos saberes, das linguagens, da memória e do imaginário. Melhor dizendo, foram produzidas as bases para a noção de que a particularidade da história europeia fosse lida como totalidade do tempo e espaço da experiência humana (Lander, 2005). O projeto iluminista, que lança seus fundamentos no século XVI, consolidando-se nos séculos XVIII e XIX, coloniza progressivamente o mundo com suas ideias e princípios, e delineia as ferramentas "que tornariam possível a comparação e, posteriormente, a classificação dos mais diferentes grupos humanos a partir de características físicas e culturais. Surge então a distinção filosófico-antropológica entre civilizado e selvagem" (Almeida, 2018, p. 20).

Tais distinções, por sua vez, caucionaram que o projeto de civilização iluminista, baseado na liberdade e igualdade universais, não fosse estendido a todos os seres humanos, mas apenas aos ditos civilizados, invariavelmente brancos europeus. O colonialismo, nessa medida, embora antagônico com relação aos princípios liberais iluministas, se justificaria. Logo, aos povos considerados selvagens, primitivos ou bárbaros, avaliados como racialmente inferiores, não é possível estender os cobertores da cidadania liberal iluminista, dada sua incivilidade e incapacidade cognitivo-intelectual de adentrar nos critérios de humanidade previamente demarcados.

Dessa maneira, a diferenciação e classificação dos seres humanos (selvagens/civilizados) teria como utilidade, mais do que a incumbência de produzir conhecimento científico e filosófico, produzir e avalizar os procedimentos de extrema violência aplicados aos territórios colonizados, que contemplam a exploração acintosa dos seus recursos naturais, a escravização forçada e o genocídio de sua população.

Com efeito, recorda Dussel (2010), o modo mais direto e eficaz de fundamentar a práxis da dominação colonial é revelar que a cultura dominante concede à dominada (logo, atrasada) os benefícios da civilização. Ele cita declaração de Ginés de Sepúlveda, aluno do filósofo renascentista Pomponazzi (1462-1524), para ilustrar tal práxis: "Será sempre justo e conforme ao direito natural que tais gentes [bárbaros] se submetam ao império de príncipes e nações mais cultas e humanas, para que, pelas suas virtudes e pela prudência de suas leis, abandonem a barbárie e se submetam a uma vida mais humana e ao culto da virtude" (Ginés de Sepúlveda citado em Dussel, 2010, p. 355). Tal forma de pensamento é corroborada por pensadores humanistas renascentistas como o Papa III, o qual, ao ser indagado sobre se os nativos das colônias possuíam alma, afirmava ser a alma dessas gentes um receptáculo vazio (Santos, B. S., 2010), a exigir o seu devido preenchimento com os valores da civilização superior (europeia), mesmo que à custa de violência sem igual.

Em síntese, o que podemos observar é que os regimes de colonialidade do poder se articulam, portanto, enquanto sistema que classifica diferentes grupos humanos a partir de características que demarcam diferenças (físicas, territoriais e culturais), consolidando um processo de banalização da potencialidade do mal que descredita e invisibiliza a alteridade como igualmente humana. Esse é o debate que se articula a seguir.

 

A Banalidade do Mal e o Vazio do Pensamento

Na década de 1960, acompanhando o julgamento de Eichmann, funcionário de alto escalão do partido nazista alemão durante o governo de Adolf Hitler, Hannah Arendt (1999) cunhou o conceito de banalidade do mal. Extensamente criticada na época, particularmente pela comunidade judaica, que via em Eichmann a figura de um monstro extraordinário e desumano, Arendt buscou compreender o que se passava na subjetividade desse homem que estava sendo julgado em sua responsabilidade pelo genocídio de milhões de judeus nos campos de concentração. Seu foco, para além da individualização do homem em questão, era, a partir dele, compreender a condição humana.

Para a autora, Eichmann era um indivíduo banal e comum, como qualquer pessoa que defende e executa seu trabalho com competência técnica e destreza, que ambicionava ascender na organização na qual trabalhava (no caso, o partido nazista). Ainda que a tarefa colocada em marcha no cotidiano do trabalho se configurasse como violência, mortal e aparentemente inusitada (em vista da dimensão burocrática), o trabalho empregado pelo oficial alemão torna-se, aos olhos de Arendt, um modo de compreender a condição humana como uma questão política, não apenas como uma substância individualizada na figura de Eichmann.

Acerca disso, é possível nos aproximarmos do caráter performativo da banalidade do mal. Tiburi (2014) remete à teoria dos atos de fala de Austin para afirmar que todo enunciado, toda frase é uma ação social e, portanto, gera efeitos objetivos e concretos na vida, o que inclui as subjetividades. Afinal, questiona a autora: haveria algo mais performativo, ou seja, capaz de nos faz agir de uma maneira ou outra, do que uma ideologia, uma crença, uma visão de mundo?

Como já dito, o mal banal, para Arendt (1999), não diz respeito à relação apenas com uma substância humana individualizada e perversa (o monstro nazista, o assassino serial, entre outros capazes de fazer monstruosidades desumanas que pessoas "de bem" não seriam capazes), mas, sim, ao mal passível na prática e ao alcance de todos. Nesse sentido, o mal, enquanto fenômeno, é democrático: ele percorre e está ao alcance da mais comum das pessoas. Sobre isso, Tiburi (2014) ainda argumenta:

A tese de Arendt sobre a banalidade do mal é, portanto, a tese da potencialidade do mal que pode ser praticado por cada um. A questão potencial, da escolha entre o bem e o mal, da escolha livre, é o seu ponto apavorante. Não que o mal banal represente algo ao nível de uma universalidade da natureza humana capaz de maldade, mas por representar a ação que deriva de uma compreensão do mundo no qual "o outro" e mesmo o "eu" não importa tanto assim. (pp. 47-48).

A banalidade do mal, nesse sentido, configura-se mediante a ação performática de invisibilização da alteridade. Se o outro não é visto, não pode ser sentido ou produz afetação. Se existente (em vista da sua corporeidade), torna-se necessário torná-lo desimportante, sublinhado e tatuado reiteradamente como minoria (Tiburi, 2014).

Logo, é evidente que determinadas parcelas da população são circunscritas como "abjetas", que não gozam do estatuto de sujeito, sendo tal produção política fundamental para delimitar aqueles considerados sujeitos de direitos. Aos demais, considerados como uma espécie de resto e dano colateral de um modelo societário totalitário, caberia a luta por garantias, o que, em muitos casos, significa reivindicar a própria sobrevivência.

Sobre essa racionalidade, Spivak (2010) problematiza a perspectiva colonial eurocêntrica, que representa determinadas populações (negras, homossexuais, indígenas, orientais, periféricas, venezuelanas, entre outras) desde perspectivas essencializadoras, caracterizando-as como subdesenvolvidas, bestiais, selvagens, previsíveis, idênticas entre si, ignorantes, supersticiosas, entre outras noções pejorativas. Nessa engrenagem, as populações delimitadas como anormais, desumanas e subalternas são promulgadas como perigosas para a norma política vigente, sendo necessário controlá-las e, se possível, extingui-las para retomada da ordem. Portanto, a partir disso, devem ser hostilmente combatidas e suas vozes devem ser silenciadas para que não possam ter nomes próprios. Dessa forma, extirpa-se o direito de reivindicação do estatuto de humanos, o que retroalimenta e justifica o processo de violência empreendido.

Nessa direção, Byung-Chul Han (2019) assinala um processo de turvamento da alteridade nas sociabilidades contemporâneas como efeito do que denomina de sociedade da transparência. O capitalismo neoliberal, hegemônico nos dias atuais, materializa-se, para o autor, como um buraco negro com vasto poder gravitacional que atrai todos os processos sociais, submetendo-os a uma transformação profunda, por meio da qual são constrangidos a ser transparentes. O autor alerta:

As coisas se tornam transparentes quando eliminam de si toda e qualquer negatividade, quando se tornam rasas e planas, quando se encaixam sem qualquer resistência ao curso raso do capital, da comunicação e da informação... As coisas tornam-se transparentes quando depõem sua singularidade e se expressam unicamente no preço. O dinheiro, que iguala tudo com tudo, desfaz qualquer incomensurabilidade, qualquer singularidade das coisas. Portanto, a sociedade da transparência é um abismo infernal do igual. (Byung-Chul Han, 2019, p. 10)

De fato, a negatividade intrínseca da alteridade, a singularidade resistente do outro, obstrui ou, no mínimo, retarda a velocidade da comunicação, a fluidez dinâmica das operações do capital, o fluxo vertiginoso das informações e a fugacidade das exposições de corpos e coisas (corpos-coisas) formatados enquanto mercadorias-engrenagens para otimização do sistema. Han (2019) afirma que o traço totalitário reside na negação do que é alteridade, materializado na resistência do outro. Assim, a transparência estabiliza o sistema e elimina o estranho e a diferença no outro.

Voltando ao julgamento de Eichmann - e buscando paralelos para estender o conceito de banalização do mal para além do âmbito do nazismo -, como já destacado, ele é definido por Arendt como um homem comum, que se tornara marionete do sistema, da máquina estatal nazista, a incorporar seu categórico ditame da morte ao outro (Arendt, 1999). Morte que, ademais, pode ser executada por meio de dispositivos burocráticos, técnicos e tecnológicos que enredam o outro em um processo asséptico e industrializado de sua eliminação em massa. Criam-se, assim, artefatos que permitem esquivar-se do risco do contato direto com o sofrimento, a agonia, o sangue, a súplica do outro, permitindo resguardar-se da culpa, efeito de reconhecimento da sua alteridade como igualmente humana.

Diferentes exemplos desse processo podem ser vistos em práticas cotidianas de nosso tempo presente. Políticas de austeridade, tão em voga nos planos político-econômicos neoliberais contemporâneos, e aplicadas em nome da manutenção de um modelo de desenvolvimento, são ilustrativas d esse universo. A drástica redução que promovem nos investimentos nas áreas de saúde pública, saneamento básico, habitação e assistência social, entre outras, provocam impactos expressivos nos níveis de vulnerabilidade social entre as populações mundiais mais pobres, sem que esboce qualquer indício de culpa, responsabilidade e autocrítica os responsáveis diretos e indiretos por tais políticas. Da mesma forma, executivos que intensificam mais e mais os processos de precarização do trabalho, intensificando indistinta e crescentemente a exploração e expropriação de cada um dos trabalhadores - ou mesmo os demitindo para recontratá-los com vínculos ainda mais frágeis e instáveis -, o fazem em resposta ao jogo capitalista de produção que é naturalizado como único modelo de existência e sociabilidade possíveis.

A esse fenômeno, Arendt (1993 qualificou como vazio de pensamento, efeito do processo de dessubjetivação humana, desdobrando-se em - e sendo, simultaneamente, desdobramento de - supressão da alteridade. Sem alteridade, como já dito, não há a negatividade própria de singularidades em diálogo; sem dialogia com o alter não há sujeito; sem sujeito não há pensamento reflexivo, apenas racionalidade técnica e naturalização unívoca e transparente do jogo jogado, mesmo quando suas regras banalizam o mal.

Nesse cenário, o pensamento crítico tem cada vez menos espaço para se fazer presente. A ruidosa negatividade que tal pensamento produz incomoda, na medida em que gera rachaduras nos espelhos que refletem e reproduzem verdades cristalizadas e naturalizadas. Com efeito, a crítica, quando efetiva, provoca crises - não por acaso, palavras de mesma raiz -, que, por sua vez, abrem novas condições de possibilidades, distintas do que até então era naturalizado como uma única e inevitável trajetória.

Nessa perspectiva, o debate que se desenha a seguir busca articular uma análise (crítica) da perspectiva colonial que demarca parte da história do Brasil a partir da chegada dos colonizadores, bem como efeitos desse regime em discursos e práticas que circulam no país.

 

O Mal Banal e a Sociedade Brasileira

Se o regime nazista produziu o genocídio em massa de judeus, ciganos e negros, os elevados índices de assassinato de indígenas, dos moradores pobres de favelas - sobretudo jovens e negros -, de homens e mulheres homossexuais e transexuais, além de ocorrências diárias de estupros, feminicídios, violência doméstica contra mulheres e crianças, entre outros eventos de acentuada violência, revelam que o mal banal também percorre ordinariamente o cotidiano do Brasil desde há muito tempo.

Apesar desse insistente quadro de brutalidade assombrosa no país, dois poderosos mitos permanecem paradoxalmente presentes e indistintamente inter-relacionados na sociabilidade brasileira: o mito da cordialidade e pacifismo do povo brasileiro e o da democracia racial (Fernandes, 2007). A preservação paradoxal de ambos os mitos (que se contrapõem a um país com biografia autoritária, cruel e sanguinária, além de efetivamente racista) pode ser compreendida por meio da noção de mito apresentada por Chauí (2012), diz ela:

Estou tomando a ideia de mito no sentido antropológico de solução imaginária para tensões, conflitos, contradições que não encontram caminhos para serem resolvidos no plano simbólico e muito menos no plano real. Falo também em mito na acepção psicanalítica, como impulso à repetição por impossibilidade de simbolização e, sobretudo, como bloqueio à passagem ao real. Um mito é fundador quando não cessa de encontrar novos meios para exprimir-se, novas linguagens, novos valores e ideias, de tal modo que quanto mais parece ser outra coisa, tanto mais é a repetição de si mesmo. (p. 156)

A reedição que temos acompanhado do discurso autoritário, violento, a roçar os beirais do fascismo que toma o país ultimamente é a materialização de matrizes históricas não sepultadas, que se reatualizam em novas linguagens e meios escondidos por debaixo dos mitos que nos identificam. Por meio desse discurso, matrizes históricas de uma oligarquia patriarcal, autoritária e racista reapresentam-se atualizadas e modernizadas. Como argumenta Schwarcz (2019):

Nosso presente anda, mesmo, cheio de passado, e a história não serve como prêmio de consolação... História não é bula de remédio nem produz efeitos rápidos de curta ou longa duração. Ajuda, porém, a tirar o véu do espanto e a produzir uma discussão mais crítica sobre nosso passado, nosso presente e sonho de futuro. (pp.25-26)

Sobre isso, ainda nos lembra Ginzburg (2010) que, no Brasil, o processo histórico, por ser constituído por dois traumas históricos - a violência exploratória colonial e a crueldade escravocrata -, propiciou condição para que regimes autoritários fossem facilmente instalados e permanecessem mesmo no período republicado.

Nessa medida, Gagnebin (2010) remete às noções de memória e esquecimento para construção de uma reflexão sobre o tema. Segundo a autora, esquecer não é somente o oposto de memorizar, como realizar um apagamento e produzir uma página em branco. Há o que ela chama de um manancial de lembranças não conscientes que pode se transformar num aliado no processo de recordação quando o sujeito do lembrar desiste de controlar a totalidade dos processos no campo da consciência.

A imposição ao esquecimento, no entanto, como ação de apagamento forçado da(s) experiência(s) ou evento(s) violento(s) e traumático(s), no dizer de Ginzburg (2010), tende a orientar-se para uma trajetória unívoca para a explicação e esclarecimento do evento em questão, a qual, por sua vez, escamoteia e falseia seu real acontecimento. "Impor um esquecimento", diz a autora, "significa, paradoxalmente, impor uma única maneira de lembrar - portanto um não lembrar, uma memória impedida" (p. 179). Essa memória impedida, essa amnésia institucionalmente produzida no caso aqui referido (o Brasil que se escamoteia por trás de seus mitos), impede a elaboração de eventos históricos importantes e traumáticos, dada sua violência muitas vezes assombrosa.

A referência à ideia de elaboração do passado, vale esclarecer, não significa mantê-lo no registro da culpabilização e da autopunição, tampouco da vitimização e das acusações mútuas, como ressalta Adorno (1995), mas ao seu esclarecimento denso e profundo, de modo a superar a ameaça do retorno contínuo das mesmas práticas, isto é, de modo a não cair nas malhas do ressentimento, a regressar tal como um espectro saído das catacumbas de uma história de autoritarismos e desmandos profusos.

Em recente estudo sobre a Lógica do Espectro, Marcus Vinícius Almeida refere-se ao canto 11, da Odisseia de Homero, quando Ulisses penetra a mansão de Hades, o mundo dos mortos. Nesse momento, surge para Ulisses o espírito de Elpenor, abandonado insepulto no palácio de Circe, que lhe pede: "peço que se lembre de mim. Não partas deixando-me para trás, sem pranteio e insepulto" (Almeida, M. V. L., 2018, p. 53). Elpenor, para Almeida, é o protótipo do espectro do qual fala. Insepulto, não tem lugar entre os mortos, e retorna, repete-se, a reclamar e reivindicar os rituais de seu sepultamento, revelando a falácia de um presente pacificado a progredir em direção a um futuro sem entraves e impedimentos.

Com efeito, o processo de sepultamento e do luto aos mortos é celebrado desde tempos remotos nas sociedades humanas. Conforme nos lembra Gagnebin (2010), nele os vivos são inscritos na continuidade de uma temporalidade que ultrapassa o espaço da atualidade imediata. Esse rito permite, assim como outras práticas de sepultamento e de luto, marcar uma separação entre o domínio dos mortos e dos vivos, de forma a evitar que os mortos voltem à luz do dia dos vivos. Em resumo, o sepultamento tem a função de honrar e de simbolizar o passado e, simultaneamente, abrir um espaço para o presente autônomo. No caso da sociedade brasileira, ocupa o lugar de situá-la temporalmente como sociedade, abrindo-lhe as correntes dos espectros de um passado ressentido.

Ora, com a imposição do esquecimento dos inúmeros eventos históricos sanguinários que ocorreram/ocorrem no Brasil, cujos alvos primordiais foram/são invariavelmente a população pobre, negra, indígena, homossexual e das mulheres, entre outras minorias, com a amnésia instituída e orientada para trajetórias únicas de explicação e esclarecimento de tais eventos, que são materializadas, por sua vez, pela acepção de mitos a que se refere Chauí (2012), sociabilidades que tendem a invisibilizar a alteridade, a obnubilar as minorias, empacotando-as em caixas de estigma viventes, têm terreno fértil para crescer.

O mal banal, de Arendt, nesse cenário, se faz presente e multiplica-se mediante relações dicotômicas com muros que demarcam espaços para uns e outros, nós e eles, que demarcam assimetrias abissais, como bem pontua Boaventura de Souza Santos (2010). Tais dicotomias, por sua vez, são enevoadas pelos mitos indicados acima. O não reconhecimento da materialização desses paradoxos (mitos/realidade histórica) nas sociabilidades brasileiras desdobra-se em subjetividades que tendem a dividir a população entre pessoas de bem (compreendidas como não racistas, gentis, solidárias e empáticas com o sofrimento alheio) e pessoas do mal (merecedoras de toda profusão de violência a que são submetidas), sendo o segundo grupo formado quase exclusivamente pelas populações consideradas à margem de uma pretensa normalidade social.

Ademais, embora o Brasil tenha singularidades históricas no processo de revivescência de seus espectros autoritários, ele não está desconectado do restante do mundo. Na contemporaneidade, as conexões e interpenetrações econômicas, políticas e culturais entre os países é cada vez mais próxima e rotineira, a assinalar uma crescente interdependência global, por muitos denominada de globalização. Neste planeta globalizado, o discurso autoritário cada vez mais se avoluma, imiscuído e legitimado pelos conteúdos hegemônicos do neoliberalismo (Santos, 2010).

A razão cínica da globalização neoliberal, conforme conceito de Sloterdijk (2012), produz um ethos, cujos efeitos tendem a tornar natural os princípios de competitividade entre as pessoas e da meritocracia como elementos que prometem abrir as portas ("as únicas portas", asseguram) para o sucesso de todos e todas. Como denuncia Pedrinho Guareschi (2013), ela - a razão cínica em questão - pretexta, com tons de argumento racional (basta olhar para os diversos manuais líderes de venda das ciências econômicas, de administração e marketing), que a humanidade somente progrediu e chegou ao atual estágio de desenvolvimento em razão da competitividade, elemento fulcral para o progresso. As tensões que ela provoca justificam tais manuais e favorecem a mobilização e docilidade disciplinada, que se inserem nas engrenagens do sistema para, então, virtualmente, adquirirem os méritos necessários para atingir o bem-estar social e o status de pessoas de bem e consumidoras qualificadas.

Invisibiliza-se, no entanto (por isso, a qualificação de razão cínica), a desigualdade das condições de cada um para participar da alentada competitividade, maquiada com a denominação de meritocracia. Do mesmo modo, invisibiliza-se também as motivações das regras do jogo da competição, naturalizando-as, ou seja, que as ferramentas das tecnologias e das técnicas já foram antes apropriadas pelas classes hegemônicas na dinâmica das correlações de força de dada sociedade, direcionando-as segundo seus interesses. Assim, nas sociedades capitalistas, elas são invariavelmente empregadas para a ampliação da mais valia, fazendo com que a produção de riqueza real se torne menos dependente do tempo da força de trabalho vivo. Se, de um lado, isso potencialmente viabilizaria a expressiva redução da jornada de trabalho, possibilitando mais tempo livre às pessoas, sem, contudo, desempregá-las; de outro, a concentração das técnicas e tecnologias nas mãos dos proprietários do capital voltam-se exclusivamente para a ampliação do lucro, produzindo cada vez mais mão de obra sobrante e desnecessária para a manutenção das engrenagens do sistema. Trata-se de uma equação perversa para a crescente materialização de desigualdades abissais.

Nesse cenário, a necropolítica tende a expandir-se como política de Estado e naturalizar-se nas sociabilidades cotidianas (Mbembe, 2018). Esta, como estratégia mais radicalmente violenta, eleva a efetividade do controle biopolítico das populações ao demarcar os corpos marcados para morrer, que são, invariavelmente, jovens negros das periferias urbanas. Na demarcação dos territórios em que a necropolítica é instituída, a vida é desqualificada e descartável. Aqui, o poder não se caracteriza pela administração da vida, pelo controle positivo dos corpos, para dócil e espontaneamente encaminharem-se às engrenagens do funcionamento otimizado do sistema, como afirma Foucault (2008), mas, sim, para produzir topografias de violência, nas quais a multidão de sobrantes é submetida à morte, à sub-humanidade, à vida nua.

Desse modo, a dimensão necropolítica não se configura como intencionalidade de controle da população, mas como política de exclusão/extermínio de grupos que, de fato, são circunscritos no sistema político como abjetos, desumanos, bestiais. A partir dessa análise, ao considerarmos a população brasileira, a necropolítica assume dimensão de governamentalidade, operando discursos e práticas que circunscrevem quem deve viver e quem deve morrer, ou seja, um poder de determinação sobre a existência de alguns sujeitos localizados politicamente como não humanos e, portanto, dispensáveis, pois, assim como analisa Lugones (2014), a hierarquia dicotômica entre o humano e o não humano se configura como a dicotomia central da modernidade colonial.

Nessa perspectiva, a racionalidade da matabilidade colonial engendra técnicas e aparatos tecnológicos organizados para a execução de uma política de morte e de produção de invisibilidades. Desse modo, a partir da leitura acima indicada, possibilita-se a problematização de traçados neocoloniais que imperam no Brasil na atualidade e que sustentam relações de poder assimétricas, opressoras e, em última instância, mortíferas, que são colocadas em marcha, por exemplo, nas periferias das grandes cidades do país.

No cenário brasileiro, deparamo-nos com esses corpos que são alvos das estratégicas necropolíticas, materializados na população carcerária, nos homossexuais (sobretudo transexuais), nos moradores de rua e/ou das periferias, nas emergências hospitalares, nos militantes de esquerda, entre outros exemplos (Lima, 2018). Nessa análise, é ainda possível estabelecer correlação entre a dimensão necropolítica e marcadores sociais de raça, classe e gênero, pois, segundo o Atlas da Violência 2018 (IPEA, 2018), o número de homicídios no ano de 2017 foi de 63.895. Nesse panorama, ressalta-se, também, a condição das mulheres brasileiras que, segundo dados publicados no relatório da pesquisa Visível e invisível: A vitimização de mulheres no Brasil (Datafolha, 2019), elaborada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e Instituto Datafolha, no ano de 2017, 16 milhões de mulheres sofreram algum tipo de violência e 4.539 foram assassinadas, sendo as mulheres pardas e negras os alvos "privilegiados" da violência.

Atento ao volume crescente de populações sobrantes na contemporaneidade, Achille Mbembe chama a atenção para o que denomina devir negro, que se preconiza como nunca nas últimas décadas, proporcionando que a política da morte seja cada vez mais preponderante, expandindo seus territórios de ação de maneira a aniquilar os sobrantes que crescem e multiplicam-se como inevitável desdobramento de um sistema excludente (Bauman, 2005; Mbembe, 2018). Com a noção de devir negro, então, o autor refere-se ao processo de descolamento progressivo do inexorável e exclusivo domínio da negritude entre os ocupantes da condição de sobrantes a ser eliminados.

Assim, dentro dessa geopolítica que se desenha contemporaneamente, o Brasil é colocado no lugar de uma neocolônia. E como neocolônia tem uma função estratégica: transformar-se em um grande feirão de commodities e territórios a serem consumidos e expropriados pelo grande capital. Como neocolônia, também deve submeter-se aos ditames das referências morais e da razão eurocêntricas, sem espaço, portanto, para epistemes não eurocêntricas, o que Boaventura de Souza Santos (2002) batizou de razão indolente, tendo em vista a pretensão de transformar interesses hegemônicos em conhecimentos verdadeiros e únicos qualificados como válidos.

Esse processo se constrói em três escalas: a global neoliberal, a do Estado e a do cotidiano, a promover mortes violentas veiculadas midiaticamente de forma ostensiva, mas sem se ocupar em debater as causas. Como bem argumenta Ribeiro (2019), embora nos dias atuais não seja abertamente permitido odiar negros, é autorizado (e mesmo incentivado) que se odeie criminosos. Em um país ainda fortemente açambarcado e assaltado pelos espectros de uma matriz histórica escravocrata, violenta e patriarcal não devidamente elaborada, as categorias (em relação aos) negros, pobres e criminosos são inadvertida e apressadamente associadas, midiática e cotidianamente, no imaginário social. Nesse percurso, a necropolítica materializa-se no dia a dia ordinário da vida, sendo vivida como realidade para parcelas significativas da população brasileira.

 

Conclusões Provisórias

Revisitar traçados totalitários de colonialidade que demarcaram (e, ainda hoje, demarcam) parte da história no Brasil, remete-nos ao exercício fundamental de tentar enxergar e nomear essa condição para elaborá-la e interromper - ou ao menos restringir - sua reprodução. Esse processo, somado à elaboração e modificação das situações relacionadas com essa concepção neocolonial do conhecimento, potencializa-se quando construímos o apreço consciente de si para fazer frente à vergonha de ser quem somos, quando miramos criticamente para o que fazemos e quando conectamos nosso fazer teórico e metodológico com outros de preocupações afins.

Resgatar a práxis desses pensadores, principalmente nesse momento em que se presentificam, de modos mais explícitos, discursos e práticas totalitárias no cenário governamental e em parcelas significativas da população brasileira, é premente. Consideramos que o processo de desenvolvimento de um pensamento crítico torna-se tarefa urgente, com pensar livre e autonomamente. Só desse modo a crítica densa poderá ser construída e disseminada, e implementar crises na embriaguez generalizada da estupidez consentida, sempre em defesa violenta das trajetórias unívocas. A estupidez não permite a crítica, logo, tampouco a autocrítica, pois a crítica requer o diálogo, e o diálogo demanda e reconhece a figura da alteridade.

A estupidez, porém, carece da alteridade. Desse modo, a invisibiliza, visto que não se importa com ela. No limite, a estigmatiza preconceituosamente, única maneira de vê-la, sem reconhecê-la contudo. Para o estúpido, o sujeito da personalidade autoritária (Adorno, 1995), o outro é reconhecido apenas para ser subjugado, dominado, utilizando-se, para tanto, os mais diversos artifícios retóricos ampla e amargamente corriqueiros na atualidade: a violência, os chistes desqualificantes, os gritos, os xingamentos, as fake news, etc; nada que se avizinhe a reflexões e argumentações dialógicas.

Nesse sentido, é necessário também reinventar a forma como nos posicionamos nas relações sociais que apontam para a dimensão do comum, ou seja, a forma como fazemos política. Colocar em segundo plano tal dimensão será relegar à morte a possibilidade de configurar a política baseada no diálogo, na dialética das trocas democráticas de argumentos, ideias e interesses, na democratização de uso dos espaços, visto que invadida pela supervelocidade dos fluxos digitais de informação das técnicas e tecnologias colonizadas pelo capital. Assim sendo, é fundamental repolitizar o tempo, os espaços, as técnicas e tecnologias e seus respectivos usos, bem como as relações sociais nos mais diversos cotidianos, enquanto condição necessária para barrar os totalitarismos da globalização financeira e seu modelo de subjetividade capitalística.

Ressalta-se que a produção de sujeições e liberdades implicam enfrentamentos diversos, em especial quando analisamos em termos de resistências. Nessa perspectiva, se aposta na crise como condição que possibilita a emergência de múltiplos efeitos na vida em sociedade e, em destaque, em movimentos de resistência aos regimes de colonialidade do poder. Foucault (1988, p.92) localiza as resistências como pontos "móveis e transitórios, que introduzem na sociedade clivagens que se deslocam, rompem unidades e suscitam reagrupamentos, percorrem os próprios indivíduos, recortando-os e os remodelando, traçando neles, em seus próprios corpos e almas, regiões irredutíveis".

Pode-se dizer então que, no campo de forças que circunscrevem sistemas coloniais no Brasil, há aquelas que ensaiam (e materializam) exercícios de resistência possíveis no país, afinal, "se há relações de poder em todo o campo social, é porque há liberdade por todo lado" (Foucault, 2011, p. 277). Assim, é preciso estar "atento e forte, não é tempo de temer a morte" (Veloso & Gil, 1969), pois, ainda que o sistema colonial circunscreva determinadas vidas como descartáveis, existem outros modos criativos de existir, assim como nos convoca o samba enredo da escola Estação Primeira da Mangueira, vencedora do Carnaval de 2019 no país, a lembrar de que "Brasil, chegou a vez de ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês".

 

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Endereço para correspondência:
Flávia Fernandes de Carvalhaes
E-mail: fcarvalhaes@uel.br

Rafael Bianchi Silva
E-mail: rafael.bianchi@uel.br

Alexandre Bonetti Lima
E-mail: bonetti@uel.br

Recebido em: 09/04/2020
Revisado em: 08/09/2020
Aceito em: 18/09/2020
Publicado online: 23/12/2020

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