SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.20 número3Ser "Cam Girl" en la Contemporaneidad: Reflexiones sobre Ocio Digital en Servicios Interpersonales en el Ciberespacio índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Revista Subjetividades

versión impresa ISSN 2359-0769versión On-line ISSN 2359-0777

Rev. Subj. vol.20 no.3 Fortaleza jul./dic. 2020

http://dx.doi.org/10.5020/23590777.rs.v20i3.e10609 

RESENHAS DE FILMES

 

Neurose e Crueldade do Coringa de Phoenix

 

Phoenix Joker Neurosis and Cruelty

 

Neurosis y Crueldad del Joker de Phoenix

 

Joker de Phoenix: Névrose et Cruauté

 

 

Adelma do Socorro Gonçalves Pimentel

Titular na Universidade Federal do Pará. Pós-doutorado em psicologia e psicopatologia pela Universidade de Évora/ PT; coordenadora do Núcleo de Pesquisas Fenomenológicas NUFEN; orientadora de mestrado e doutorado no programa de pós-graduação em psicologia desde 2005, ano de sua criação na UFPA

Endereço para correspondência

 

 

Resenha do Filme Coringa, dezembro de 2018 (Todd Phillips [Diretor], Todd Phillips & Scott Silver [Roteiro]).

No filme Coringa, em que Arthur Fleck foi interpretado por Joaquin Phoenix, abordamos as máscaras, a dança, a forma e a postura corporal, o riso e a raiva expressos pelo personagem central. Estabelecemos diálogo com algumas pontes da compreensão fenomenológica da experiência humana e do conceito gestáltico de ajustamento criativo. Perls, Hefferline, e Goodman, (1997) nomearam de ajustamento criativo o contato que o indivíduo mantém na fronteira organismo/ambiente, objetivando sua autorregulação. D'Acri (2014 citado por Pimentel & Castro, 2019, p. 120) assevera que "não devemos considerar como mera adaptação a algo que já está aí, posto, mas o processo de transformação do indivíduo, oriundo da transmutação relacional do ambiente e do indivíduo".

Portanto, criatividade é uma estratégia de enfrentamento existencial que as pessoas em psicoterapia adquirem na medida em que as intervenções clínicas gestálticas favorecem a atualização da autocompreensão e o desvelamento dos jogos de poder presentes na cultura em que elas estão inseridas. Para a fenomenologia, "ter o homem como centro implica recolocar o sujeito da ciência na posição de ator" (Holanda, 2014, p.116). Recolocar é assentar, tornar figura prioritária da vida social, cultural, econômica, humana. Porém, para tal, haveremos que retirar os escombros da existência íntima e pessoal, ou seja, as camadas de significação contidas nas definições, prescrições, metas, protótipos, modelos do que é ser humano, o que impõe um elevado patamar de "realizações" a cumprir. Na linguagem do espetáculo, adquirir um capital social de celebridade.

Quando a realocação do ser humano como centro na cultura falta, o mesmo é mantido na periferia, ou seja, na borda, nos escombros acumulados, nas metas não cumpridas, que se impõem a quem falha na qualificação externa de "fracassado". Essa qualificação, quando introjetada cronicamente, guiando as percepções como referência única, contribui para o acúmulo de sentimentos negativamente projetados para quem ou para aqueles na função de algozes - sobretudo a raiva e o desejo de vingar-se.

Coberta por normas, prescrições, enquadramentos, restrições e roupas "baratas", a pessoa é alocada na margem da cultura pelo grupo hegemônico, que está no controle para impedir o acesso aos bens econômicos da chamada "alta cultura". Assim, Arthur Fleck elaborou suas percepções e conceitos do seu mundo, em que foi reduzido à invisibilidade e à exclusão, afinal, não desejamos a amizade de pessoas desinteressantes e fracassadas. Na abordagem fenomenológica desse cenário, há que ser apreendida a "experiência do mundo e do outro" (Holanda, 2014, p. 116).

Quais as justificativas cênicas para a gênese da violência que norteia os atos do Coringa? Abandono psicológico, pobreza, desamparo físico, distúrbio psicopatológico? Falta de acolhimento e de inclusão? Esta última foi uma explicação que circulou nas mídias massivas e pós-massivas: Arthur Fleck requeria empatia e compreensão. Dada a complexidade do fenômeno, não é possível emitir uma relação causal entre uma e outra das dimensões mencionadas, entretanto a observação não escamoteia a responsabilidade com o ser humano dos que agenciam as violências nos âmbitos privado, público, de saúde e da indústria do lazer.

Na escrita desta resenha, rememoramos o filme. Convidamos o leitor a fazer o mesmo durante a leitura para acompanhar a alegoria. Todas as cenas do Coringa carregam uma demonstração ora sutil, ora plena de ausência de empatia mútua entre vários dos personagens: Thomas Wayne, que enseja ser eleito prefeito de Gothan; a assistente social burocrata; a gang que bateu em Arthur Fleck com seu próprio material de trabalho e ganha pão do momento, uma surra aplicada em um beco de uma cidade que exalava intimidação, desconhecimento e desrespeito pelo outro; os yuppies, funcionários da Wayne Company (modelo de Wall Street), que, viajando no trem do metrô, assediavam a moça que não respondia ao ataque do macho "irresistível" em seu encanto, cena presenciada por Arthur Fleck, cuja reação foi a emissão da gargalhada desconexa ao contexto, avesso à reprimenda aos importunadores "sedutores".

Na placa de propaganda carregada por Fleck há uma inscrição, em tradução livre: "Tudo deve ir". Objeto que requer complemento: Ir para onde? Para casa? Ir para o afeto compartilhado? Ir para o cinema assistir um filme e relaxar da jornada do dia? Ir ouvir música? Nada disso. A imagem da placa evoca pessoas que circulam apressadas sem ver o músico tocando piano para a parede. Então, Fleck ri.

Coringa tem roteiro escrito, em dezembro de 2018, pela dupla Todd Phillips e Scott Silver (2018). O roteiro está disponível on-line, em inglês, na íntegra (Menezes, 2019; Torres, 2019). Os personagens do filme são figuras adequadas à burocracia, ao descaso e à tentativa de monetização das limitações de uns e de outros. Embora ambientado nos anos de 1981, no século XX, sua atualidade, no que concerne às manifestações de inúmeras formas de desinteresse pelo outro, violências físicas, psicológicas, simbólica e estrutural, aplica-se às relações desumanas do século XXI.

A assistente social comunica sobre o último encontro. Fleck responde com uma sagacidade ímpar, inteligente; ironicamente contrapondo-se à mecânica tonalidade das repetidas indagações feitas por ela: você tem pensamentos negativos? A pergunta demonstra ausência de escuta, empatia e diálogo. Entretanto, em um átimo de segundo, a fronteira de contato de Fleck se expande e ele replica, com uma expressão facial que transmite a percepção clara da cruel burocracia do sistema social de saúde que ela representa: Você faz as mesmas perguntas toda semana. Só tenho pensamentos negativos. Você não me ouve. Fleck recebe a receita do medicamento que altera a bioquímica de sua consciência e alimenta a indústria farmacológica. E o cuidado?

Para Heidegger (2013), ser-no-mundo é ser de cuidado. É ser-com-o-outro. O cuidar é um dos marcos que contribuem para o redimensionamento da existência, em seu sentido mais amplo, da convivência com o outro, e na solicitude em sua mais profunda caracterização. O filósofo distingue dois modos básicos do cuidado: por ocupação, que se revela a partir da utilidade instrumental, e por preocupação para com os outros seres humanos. Esta última forma nunca esteve nas cenas do Coringa.

Dançando com a mãe, movimenta os ombros vigorosamente, parecendo exprimir alegria, zelo e sedução. Não à moda edípica, mas intentando alegrar a mulher que repete o discurso sobre a suposta paternidade de Fleck, filho do Wayne, candidato a prefeito de Gotham. Foliando de cueca, expõe em sua casa um corpo magro, que não transmite fragilidade, e sim, novamente, uma sugestão de alegria íntima, subjetiva, consigo próprio. Dançando nas escadas, há uma mudança de postura, com assunção egóica da identidade de quem o próprio Fleck é, ou seja, gestalticamente, tornou-se quem era: de persona a personalidade, de andar cabisbaixo com ombros caídos para arrogante, seguro, confiante, quase flanando. Assim, a forma e a postura corporal reconfiguram o seu lugar no mundo. As narrativas ilustram: Eu nem sabia se realmente existia, mas eu existo sim, as pessoas estão começando a perceber. O Coringa nasceu e Arthur Fleck começou a se fortalecer.

O riso não se iniciou patológico ou como enunciação de uma doença. Foi inteiro em várias pequenas ocasiões: em que banhava sua mãe esmaecida por viver no passado, viver de expectativas, viver uma aliteração eterna do autoengano pensado e proferido. E se Wayne/o futuro quase prefeito fosse pai de Arthur Fleck, ele se tornaria o Coringa? Essa pergunta não torna a presença do pai "redentora", bem como sua ausência não o torna "monstro", e sim aponta questões do desenvolvimento emocional, das referências identitárias associadas ao signo do masculino paterno.

Phoenix ressaltou a humanidade do ser-com em Arthur Fleck em algumas situações ante crianças. Por exemplo, com seu suposto irmão, Bruce Waine, e quando, no ônibus, tenta interagir socialmente com uma criança, sentada no banco à sua frente. Faz uma careta para ela, que responde sorrindo, apreciando o gesto. Fleck tem uma expressão suave, que sugere o desejo de afeto, como se quisesse instituir um laço de amizade. Em outras ocasiões, o riso, com os dentes à mostra e a boca arreganhada, era como sinônimo da agressiva passividade. Na maior parte das ocorrências, o riso não iluminava os olhos, apenas era uma réplica do dito por sua mãe: Põe um sorriso nessa cara. Ramos (2004, p. 15) considera que "é quase impossível existir liberdade de ser quando uma neurose, ou quando um complexo interfere todo o tempo, fazendo com que os comportamentos patológicos se repitam eternamente".

No filme Coringa, indagando acerca da personalidade de Arthur Fleck, observamos que ele seguia com as vestes da persona na rua, no metro e no trabalho, se perdendo nas prescrições introjetadas. Sua raiva acumulada pela primeira vez escorre livremente pelos poros quando chuta os latões de lixo e urra, quando mata a mãe adotiva pelas mentiras proferidas, suponho que a raiva se transmutou em prazer quando matou, em rede televisiva, o comediante Murray-De Niro, que debochava dele para ganhar likes e audiência, aumentando o seu capital social de celebridade. Fleck contou que ele matou, no metrô, os funcionários da Wayne Enterprises. Assumiu a responsabilidade, não teme mais ser preso. Ganhou "força" com o apoio obtido da população de iguais. Ante a admiração alcançada com a repercussão dos seus feitos de "justiceiro" nas mídias massivas, ele ganha "proteção" de outros anônimos, já que a população usa a máscara de palhaço no dia a dia daquele contexto tumultuado. Parece que todos querem a morte dos que julgam ser os seus algozes. Há máscaras no lixo, no táxi, no metrô. Há gozo do Coringa vivo na transmissão televisiva.

Por sua vez, as relações são da ordem do idealizado: a desejada namorada com que sonha com o beijo, o abraço acolhedor para a superação da jornada difícil no cotidiano da incompreensão. Arthur Fleck manifesta carinho ao cuidar da mãe, fisicamente debilitada, banhando-a, com ela dançando e alimentando-a, até o dia em que "descobre" que ela o "enganou", não sendo sua mãe biológica, mas sim adotiva. Nesse dia, extingue a vida dela, em rito sumário. Com o anão Gary, Fleck conseguiu estabelecer uma relação de complacência, pois Gary também vivenciava a exclusão social. Durante a visita, em seu apartamento, juntamente com Randall, "Arthur mata Randall, mas poupa Gary, pois este o tratava bem no passado." (Amarilis. 2019). Ao perceber o medo de morrer de Gary, Fleck o consola e o libera para ir embora.

Ao longo do filme foram mantidas a intolerância ao outro e limitadas cenas de compaixão e empatia. Não foram suficientes a narrativa sobre as ausências familiares, bem como de um trabalho precariamente remunerado que resultasse para Fleck moradia, saúde e lazer dignos. Tais elementos cênicos foram escassos para alcançar traços de solidão e sofrimento humano em Arthur Fleck. Consideramos, em uma apreensão geral, que Arthur Fleck era um homem voraz, com vontade férrea, de personalidade tenaz, que sentiu prazer em assassinar. Não como o "justiceiro" que procura "vingar" os pobres pela expropriação que os ricos, donos dos bens econômicos, impingem à maioria da população pauperizada, mas como um homem que se empoderou.

Conjecturamos que a persona estava em transição: primeiro, Fleck usava a máscara do palhaço, seguida do riso agudo e do riso gutural, acompanhada pelo riso camuflagem, conforme a intensidade da pressão sentida e, por fim, o Coringa sorriu. Arthur Fleck integrou a sua personalidade neurótica aos traços de impotência, fracasso, passividade-agressiva. Ramos (2004, p 16) afirma que "bom humor é sinal de saúde porque cura a humilhação. Pessoas mentalmente perturbadas não têm senso de humor. Elas trabalham com exigências inúteis, vaidades feridas, ressentimentos e raiva há anos curtidos".

Ponderando que Arthur Fleck é um personagem construído como alguém cruel, não como louco, a dinâmica de sua personalidade implicou em assumir a pintura da máscara. Liberto por ela, tornou-a pele, desvelando o sentido neurótico da vida, encontrado quando se tornou o Coringa. Qual? Eliminar absolutamente o outro que provoca incômodo.

Pela via da compreensão gestáltica, Fleck não realizou a síntese de contato de si mesmo, "sempre que um indivíduo reconhece um aspecto de si mesmo, a presença de sua antítese, ou qualidade polar está implícita, dando dimensão à experiencia presente, e forte o bastante para emergir como figura, caso obtenha força necessária para fazê-lo" (Polster & Polster, 1979, p. 71). Ficou ausente a bondade, qualidade polar da crueldade. Consoante Polster e Polster (1979, p 71), "cada pessoa cria suas próprias polaridades. Deve-se ajudar cada parte a viver a sua força plena, ao mesmo tempo entrando em contato com a sua contraparte polar. Isto reduz a probabilidade de que uma parte fique atolada em sua própria impotência, prendendo-se ao status quo".

Em nossa hermenêutica do filme, Arthur Fleck era um homem inteligente, com mau humor crônico e uma percepção negativa da vida, fundada pelas vivências de abandono psicológico, pobreza, desamparo físico, exclusão social e distúrbios neuróticos de comportamento, de contato, de consciência. Sim, pela retração da fronteira de expressividade e falta de acolhimento ao outro, presentes na intencionalidade dos assassinatos cometidos.

O parâmetro para a condição da normalidade da ação humana não é estatístico, mas o bem-querer a si mesmo e ao outro, bem como o agir ético. Desse modo, "a neurose impede a compaixão, limitando a experiência do comportamento ao patológico. É quase impossível existir liberdade de ser quando uma neurose, ou quando um complexo interfere todo o tempo, fazendo com que os comportamentos patológicos se repitam eternamente" (Ramos, 2004, p 16).

 

Referências

Amarilis. (2019). Coringa (Joker): Crítica sem spoilers. Link        [ Links ]

D'Acri, G. (2014) Contato: Funções, fases e ciclo de contato. In L. M. Frazão & K. O. Fukumitsu (Orgs.), Gestalt: Conceitos fundamentais (pp. 31-46). São Paulo: Summus Editorial.         [ Links ]

Heidegger, M. (2013). Ser e tempo. Petrópolis, RJ: Vozes.         [ Links ]

Holanda, A. (2014). Gênese e histórico da psicopatologia fenomenológica. In V. Camon & V. A. Angerami (Orgs.), Psicoterapia e brasilidade (pp. 115-160). São Paulo: Cortez.         [ Links ]

Menezes, B. (2019). Resenha Coringa. Link        [ Links ]

Perls, F., Hefferline, R. F., & Goodman, P. (1997). Gestalt-Terapia. São Paulo: Summus.         [ Links ]

Phillips, T. (Diretor). (2019). Coringa [Filme]. Burbank, CA: Warner Bros Pictures.         [ Links ]

Phillips, T., & Silver, S. (2018). Joker: An origin [Roteiro]. Link        [ Links ]

Pimentel, A., & Castro, E. H. B. (2019). Ajustamento criativo e enfrentamento: A subalternidade por mulheres negras e lésbicas. Pluralidades em Saúde Mental, 8(1), 113-126.         [ Links ]

Polster, E., & Polster, M. (1979). Gestalt-terapia integrada. Belo Horizonte: Interlivros.         [ Links ]

Ramos, D. G. (2004). Bom humor e saúde. In Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (Org.), Simpósio Faces da Alegria. Núcleo de estudos Junguianos. São Paulo: PUC. Link        [ Links ]

Torres, A. (2019). Roteiro de 'Coringa' é oficialmente divulgado online. Link        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Adelma do Socorro Gonçalves Pimentel
E-mail: adelmapi@ufpa.br

Recebido em: 03/03/2020
Revisado em: 28/07/2020
Aceito em: 28/07/2020
Publicado online: 23/12/2020

Creative Commons License