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Revista Subjetividades

versión impresa ISSN 2359-0769versión On-line ISSN 2359-0777

Rev. Subj. vol.20 no.spe2 Fortaleza  2020

http://dx.doi.org/10.5020/23590777.rs.v20iesp2.e8975 

DOSSIÊ: O CONTEMPORÂNEO À LUZ DA PSICANÁLISE

 

Racismo, Violência e a Questão Das Drogas No Brasil: Faces da Segregação

 

Racism, Violence and the Drug Issue in Brazil: Faces of Segregation

 

Racismo, Violencia y la Cuestión de las Drogas no Brasil: Caras de la Segregación

 

Racisme, Violence et Problème de la Drogue au Brésil : Visages de la Ségrégation

 

 

Cynara Teixeira RibeiroI; Zaeth Aguiar do NascimentoII

IProfessora Associada do Departamento de Fundamentos e Políticas da Educação da UFRN. Graduação em Psicologia pela UFRN, mestrado em Psicologia Social pela PUC/SP e doutorado em Psicologia pela UFBA. Membro do GT Psicanálise, política e clínica da ANPEPP
IIProfessora Associada do Departamento de Psicologia da UFPB. Graduação em Psicologia pela UFRN, mestrado em Letras pela UFPB e doutorado em Letras pela UFPB (2005). Supervisora de estágio em Psicanálise e Saúde Mental. Membro do GT Psicanálise, política e clínica da ANPEPP. Tutora da Residência Multiprofissional em Saúde Mental/NESC/UFPB

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Trata-se de um artigo teórico no qual refletimos acerca dos atuais acontecimentos no campo do cuidado às pessoas que usam álcool e outras drogas no Brasil, articulando-os aos temas do racismo, da violência e da segregação. A partir do referencial freudiano e lacaniano, contextualiza-se como a questão do uso de álcool e outras drogas tem sido tratada no âmbito das políticas públicas brasileiras, em especial a partir do que ficou conhecido como reforma psiquiátrica. Discute-se também o dispositivo da internação compulsória, tendo em vista a visibilidade que esse adquiriu nos últimos anos por vir sendo apresentado por alguns segmentos do Estado como alternativa voltada a determinados usuários, notadamente àqueles que vivem em regiões conhecidas como cracolândias. Tais discursos e práticas, que promovem a exclusão e o isolamento sociais, são associados à noção de choque de gozos enquanto princípio básico do racismo, o qual se articula à biopolítica contemporânea e ao discurso do capitalista. A partir dessas discussões, é pensado o lugar da psicanálise e da formação do analista no século XXI, seus desafios e desdobramentos, articulando-se clínica e política na proposição de uma direção possível para fazer frente à segregação contemporânea: sustentar o um a um, operando torções onde impera a lógica segregativa do todos contra um.

Palavras-chave: saúde mental; internação compulsória; toxicomanias; crack; psicanálise.


ABSTRACT

It is a theoretical article in which we reflect on the current events in the field of care for people who use alcohol and other drugs in Brazil, articulating them to the themes of racism, violence, and segregation. From the Freudian and Lacanian framework, it is contextualized how the issue of the use of alcohol and other drugs has been treated within the scope of Brazilian public policies, especially from what became known as psychiatric reform. The device of compulsory hospitalization is also discussed, because of the visibility it has acquired in recent years as it has been presented by some segments of the State as an alternative aimed at certain users, notably those who live in regions known as cracolândias. Such discourses and practices, which promote social exclusion and isolation, are associated with the notion of the shock of enjoyment as a basic principle of racism, which is linked to contemporary biopolitics and the capitalist's discourse. Based on these discussions, the place of psychoanalysis and the training of the analyst in the 21st century is considered, its challenges and developments, articulating itself clinically and politically in the proposition of a possible direction to face contemporary segregation: sustaining the one by one, operating twists where the segregative logic of everyone prevails against one.

Keywords: mental health; compulsory hospitalization; drug addictions; crack; psychoanalysis.


RESUMEN

Se trata de un artículo teórico dónde reflexionamos sobre los actuales sucesos en el campo del cuidado de las personas que utilizan alcohol y otras drogas en Brasil, articulándolos a los temas del racismo, de la violencia y de la segregación. A partir del referencial freudiano y lacaniano, se contextualiza cómo la cuestión del uso de alcohol y otras drogas está siendo tratada en el ámbito de las políticas públicas brasileñas, en especial a partir de lo que se quedó conocido como reforma psiquiátrica. Se discute también el dispositivo del ingreso obligatório, teniendo en vista la visibilidad que este adquirió en los últimos años por ser presentado por algunos segmientos del Estado como alternativa dirigida a determinados usuários, notadamente a aquellos que viven en regiones conocidas como cracolandia. Estos discursos y prácticas, que promueven la exclusión y el aislamiento social, son asociados a la noción de choque de gozos mientras princípios básicosdel racismo, lo cual se articula a la biopolítica contemporánea y al discurso del capitalismo. A partir de estas discusiones se piensa el lugar del psicoanálisis y de la formación del analista en el siglo XXI, sus retos y desdoblamientos, articulándose clínica y política en la proposición de una dirección posible para hacer frente a la segregación contemporánea: sostener el uno a uno, operando torsiones dónde impera la lógica segregativa del todos contra uno.

Palabras clave: salud mental; ingreso obligatorio; toxicomanías; crack; psicoanálisis.


RÉSUMÉ

Il s'agit d'un article théorique dans lequel nous réfléchissons sur les événements en cours dans le domaine des soins aux personnes qui consomment de l'alcool et d'autres drogues au Brésil, en les articulant aux thèmes du racisme, de la violence et de la ségrégation. À partir du cadre freudien et lacanien, on a situé comment l'usage d'alcool et d'autres drogues a été traité dans le cadre des politiques publiques brésiliennes, en particulier à partir de ce que l'on a appelé la réforme psychiatrique. On discute, aussi, le dispositif d'hospitalisation sous contrainte en considérant la visibilité qu'il a eu ces dernières années car il a été présenté par certains segments de l'État comme une alternative à destination de certains usagers, notamment ceux qui vivent dans des régions dites «cracolândias». De tels discours et pratiques, qui favorisent l'exclusion sociale et l'isolement, sont associés à la notion de conflit de jouissance en tant que principe de base du racisme, qui est lié à la biopolitique contemporaine et au discours capitaliste. A partir de ces discussions, la place de la psychanalyse et de la formation de l'analyste, au XXIe siècle, sont considérées. Bien comme ses enjeux et ses évolutions qui s'articulent cliniquement et politiquement dans la proposition d'une direction possible pour faire face à la ségrégation contemporaine : soutenir la logique ségrégative de tous contre un.

Mots-clés : santé mentale ; hospitalisation obligatoire ; toxicomanie ; fissure ; psychanalyse.


 

 

Iniciamos este texto retomando a afirmação de Lacan (1998, p. 322), segundo a qual deve renunciar à prática da psicanálise todo analista que "não conseguir alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época". A partir dessa assertiva, sentimo-nos convocadas a refletir acerca dos atuais acontecimentos no campo do cuidado às pessoas que usam álcool e outras drogas no Brasil. Interessa-nos, em especial, analisar os embates e tensionamentos produzidos pela retomada de discursos conservadores que pareciam superados, bem como seus desdobramentos sociais e clínicos, articulando-os aos temas do racismo, da violência e da segregação, uma vez que essas questões têm implicações na subjetividade de nossa época e consistem em desafios a serem enfrentados pelos psicanalistas no século XXI.

Vivemos tempos de radicalização dos posicionamentos em torno do que é encarado como fora da norma social e, nesse contexto, testemunhamos a retomada da defesa da internação compulsória de pessoas que fazem uso de álcool e outras drogas por determinados setores da sociedade. A grande mídia repercute com alarde um anseio que, segundo pesquisas de opinião realizadas nos últimos anos, é compartilhado pela maioria dos brasileiros, que se mostram favoráveis à internação de usuários mesmo contra a própria vontade (Datafolha, 2017, 2019).

A justificativa para tal posicionamento é a crença de que os usuários de álcool e outras drogas, notadamente os que fazem uso de crack, em função dos efeitos produzidos pelas substâncias que consomem, encontram-se desprovidos da capacidade de gerir a própria existência e, consequentemente, decidir o que é melhor para si próprio. De maneira geral, esse discurso assenta-se na ideia de que determinadas drogas têm o poder de subsumir os indivíduos que as consomem, os quais, destituídos de si, passam a cometer crimes para 'sustentar o vício', tornando-se perigosos para a sociedade e para si mesmos. Assim, constróise uma narrativa que associa o uso de drogas à criminalidade, bem como se difunde uma noção de periculosidade atrelada ao consumo de determinadas substâncias psicoativas (Couto, Lemos, & Couto, 2013), legitimando uma visão que coloca em polos opostos o "cidadão de bem" e os usuários de drogas, estes últimos considerados marginais em potencial, principalmente quando oriundos de determinados extratos sociais. Situado desse modo, o uso de drogas configura-se como um problema do âmbito da justiça e da segurança pública.

Mas o campo da saúde, em especial o da saúde mental, também tem se ocupado, nas últimas décadas, do uso de álcool e outras drogas, situando-o enquanto um fenômeno que pode causar sofrimento psicossocial e elaborando diretrizes acerca do tratamento a ser ofertado para aqueles usuários com problemas decorrentes desse uso. Nesse campo, as políticas públicas pautam-se na perspectiva da redução de danos, que compreende o consumo de drogas como um fenômeno histórico e cultural, presente em todas as sociedades, preocupando-se não com a erradicação das drogas, mas com a redução dos males que determinadas substâncias podem ocasionar quando consumidas sob a perspectiva do abuso.

Enquanto diretriz predominante no tratamento para usuários de álcool e outras drogas, a redução de danos surgiu, no Brasil, no bojo dos avanços obtidos a partir da reforma psiquiátrica, notadamente com a promulgação de marcos legais voltados à organização de uma rede aberta de serviços de saúde mental, sendo os Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS-AD) considerados dispositivos estratégicos dessa rede (Ministério da Saúde [MS], 2005). Nesse sentido, a proposta de reduzir os danos contrapõe-se ao paradigma asilar, o qual prioriza o isolamento e confinamento das pessoas com transtornos mentais, inclusive daqueles associados ao uso prejudicial de substâncias psicoativas.

Temos, portanto, campos distintos, que se situam em perspectivas contrárias e disputam um lugar de saber/poder no que diz respeito às orientações sobre como lidar com a questão do uso de álcool e outras drogas no Brasil (Bastos & Alberti, 2018; Teixeira, Ramôa, Engstrom, & Ribeiro, 2017). Enquanto o campo da saúde aponta para estratégias de base comunitária, preocupa-se com a inserção social dos usuários e considera, de algum modo, os aspectos subjetivos envolvidos, o campo da segurança pública compreende o uso de substâncias psicoativas como um comportamento desviante que deve ser alvo de correção, com vistas à adequação à norma, e parece indicar um caminho que visa à gestão da vida pela via da segregação daquelas pessoas que são vistas como ameaça.

É importante ressaltar que a questão das drogas é perpassada por determinantes econômicos e sociais, havendo tratamentos diferenciados aos usuários provenientes de diferentes segmentos da sociedade. Nesse sentido, os atuais discursos que radicalizam posições acerca do tratamento dispensado às pessoas que usam drogas acabam afetando de formas distintas aqueles em situação de vulnerabilidade: população de rua, moradores das periferias das grandes cidades, pessoas em conflito com a lei etc., grupos nos quais se destacam numericamente a população negra (Paz & Cunda, 2017). Corroborando tal análise, dados de diversas pesquisas apontam que pobres e pretos são os mais diretamente atingidos por ações policiais, como prisões por porte e tráfico de drogas, o que revela uma face institucionalizada do racismo em nosso país, levando a refletir sobre como algumas políticas públicas atualizam ideais higienistas de limpeza urbana e social (Conselho Federal de Psicologia [CFP], 2019).

Maronna e Elias (2018) apontam que, depois da aprovação da Lei nº 11.343/2006, conhecida como a Lei de Drogas, o número de presos no país cresceu 81%, de modo que a população carcerária do Brasil foi alçada à terceira maior do mundo em 2017. De acordo com o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), 74% desses presos são negros e 45% não concluíram o ensino fundamental (Ministério da Justiça e da Segurança Pública [MJ], (2017). Portanto, conforme afirmam Telles, Arouca, e Santiago (2018)., "os custos da guerra às drogas recaem desproporcionalmente sobre os jovens negros, a maioria do sexo masculino" (p. 108).

Oliveira & Ribeiro (2018), autores que desenvolvem pesquisas e atuam no campo antiproibicionista, constatam o aumento "do número de mortes entre pessoas jovens e negras, justificado com base no combate ao crime organizado nas comunidades pobres do Brasil e no aumento do encarceramento por delitos relacionados às drogas" (p. 1). Os referidos autores também apontam ações que são propostas, justificadas a partir do paradigma da guerra às drogas, que "corroboram e acentuam vulnerabilidades e violações pré-existentes relacionadas às condições de raça, gênero, geração e classe no Brasil" (Oliveira & Ribeiro, 2018, p. 1).

Retomamos aqui a compreensão segundo a qual racismo "é, primeiro, o meio de introduzir afinal, nesse domínio da vida de que o poder se incumbiu, um corte: o corte entre o que deve viver e o que deve morrer" (Foucault, 2005, p. 304). Assim, "o racismo é a condição de aceitabilidade de tirar a vida numa sociedade de normalização" (Foucault, 2005, p. 306), sendo através dele que o Estado pode legitimar a morte de determinados grupos, sejam estes de negros, judeus, loucos, criminosos, drogaditos etc.

Nesse sentido, objetivamos compreender, à luz da psicanálise, como os atuais discursos e práticas em torno das pessoas que usam álcool e outras drogas no Brasil articulam-se ao racismo, à violência e à segregação, enquanto faces do anseio de dominação e aniquilação do outro - não qualquer outro, mas aqueles que, em cada época e sociedade, são eleitos como os matáveis. Esses "matáveis", que já foram os judeus na Alemanha de Hitler, mudam de características em cada época e lugar, mas são, em suma, pessoas ou grupos situados como inimigos a serem combatidos, os quais pode-se "não apenas tirar a vida diretamente, mas expor à morte, multiplicar o risco à morte" (Couto et al., 2013, p. 144). Fica, portanto, explícita a relação entre esses mecanismos de segregação e a pulsão de morte.

 

As Políticas de Saúde Mental no Brasil e a Contrarreforma em Curso

Ainda que a internação compulsória seja um dispositivo previsto na Lei nº 10.216/2001, que dispõe sobre os direitos das pessoas com transtornos mentais no Brasil e é considerada um marco da reforma psiquiátrica brasileira, chama atenção o fato de que as discussões recentes a seu respeito vêm recobertas por um viés jurídico e securitário, aparentemente mais comprometido com a manutenção da chamada ordem social do que com a perspectiva terapêutica e/ou do cuidado, defendida pelas políticas públicas de saúde mental elaboradas no início deste século (Assis, Barreiros, & Conceição, 2013; Coelho & Oliveira, 2014; Couto et al., 2013). Dessa forma, diferentemente do que é prescrito na legislação que a regulamenta, a internação compulsória de pessoas que usam álcool e outras drogas vem sendo muitas vezes defendida de forma generalizada, apresentada como primeiro e não como último recurso, sem haver preocupação com a reinserção social do paciente em seu meio nem com o seu acompanhamento clínico.

Prova disso é que as discussões atuais acerca desse dispositivo têm ganhado notoriedade, principalmente no meio jurídico, desencadeando posições controvérsias quanto a sua legalidade (Dalsenter & Timi, 2012). Porém, em tal âmbito, o foco de atenção são as contradições existentes entre as diversas normativas, de modo que os encaminhamentos adotados nessa esfera, em sua maioria, desconsideram os dados de pesquisas que apontam tanto a falta de evidências no que tange a eficácia dos tratamentos compulsórios quanto ao risco de ampliação dos danos causados pelo uso de álcool e outras drogas (United Nations Office on Drugs and Crime, 2017).

Estudos apontam que a defesa da internação compulsória voltou a ganhar força no Brasil, especialmente a partir do Decreto nº 7.637/2011, que propôs o programa Crack, é possível vencer, coordenado pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública, e da promulgação da Portaria nº 3.088/2011, do Ministério da Saúde, que institui a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Ambas as iniciativas, orquestradas no âmbito do Governo Federal, destacam o crack em relação às demais drogas, atribuindo-lhe um potencial maior de causar danos quando comparado a outras substâncias.

Articulamos esse destaque dado ao crack ao discurso que vem sendo produzido em torno do que vem sendo chamado de "epidemia de crack", noção que, cada vez mais, ganha espaço na mídia e entre a população em geral. Entretanto cabe salientar que essa afirmação de que o uso do crack atingiu um nível epidêmico é falaciosa, "uma vez que uma epidemia só pode ser caracterizada tecnicamente a partir de resultados obtidos de uma série histórica de registro de estimativas/contagens do fenômeno em análise" (Bertoni & Bastos, 2014, p. 145). Paradoxalmente, os dados oficiais reconhecem que, no Brasil, o consumo de crack é menor do que o de álcool e o de algumas outras drogas, bem como que o álcool e o tabaco são as que mais causam agravos à saúde e ônus ao poder público (Bastos & Alberti, 2018; Brandt, 2017).

A nós interessa, no entanto, ressaltar que a noção de que haveria uma epidemia de crack revela um deslocamento do foco de atenção para a substância, deixando em segundo plano a pessoa que dela faz uso por, supostamente, atribuir a essa droga a capacidade de viciar todos que a consomem. Vale lembrar que retirar a substância psicoativa do foco de atenção para focar a atenção no sujeito foi um dos grandes avanços promovidos a partir da reforma psiquiátrica e, mais especificamente, da proposição, pelo Ministério da Saúde, da Política de Atenção Integral aos Usuários de Álcool e Outras Drogas (Assis et al., 2013; Ministério da Saúde [MS], (2017). Sendo assim, a promulgação de planos e programas federais que retornem o foco de atenção para uma determinada substância é compreendido como uma mudança na direção que vinha sendo adotada no que diz respeito à compreensão do fenômeno do uso de drogas no Brasil.

Adicionalmente, a Portaria nº 3.088/2011, que institui a RAPS, ao prever o financiamento de leitos em comunidades terapêuticas (CTs) pelo SUS, para internações com duração de até 12 meses, respalda a retomada de tratamentos pela via do que Goffman (1974) nomeou como instituições totais: estruturas que promovem o isolamento de determinadas pessoas, proibindo-lhes ou limitando a relação social com o mundo externo, através de sanções que têm como propósito a normalização de condutas ou punição de comportamentos desviantes. Apesar de as CTs serem autônomas e bastante diversas entre si (De Leon, 2014), elas têm em comum a adoção da abstinência como meta do trabalho realizado com usuários de álcool e outras drogas, sustentando-se na ideia de uma sociedade sem drogas e contrapondo-se, assim, à perspectiva da redução de danos, a qual consta como orientação predominante nas políticas públicas de saúde mental ainda vigentes no que tange ao cuidado de pessoas que usam álcool e outras drogas (Ribeiro & Ribeiro, 2016).

Ainda assim, Teixeira et al. (2017), p. 1463) apontam, a partir de análises acerca do processo normativo das políticas sobre drogas no Brasil, que, desde 2011, "os dispositivos de base comunitária, como os CAPS-AD, tiveram menor investimento do que as Comunidades Terapêuticas". Além desse, outros dados apresentados pelos autores corroboram a constatação de que está em curso uma retomada do paradigma da guerra às drogas, evidenciando disputas entre modelos de assistência, bem como de espaços de poder, haja vista os diferentes setores que têm orientado a trajetória das políticas de drogas no Brasil.

Como exemplo, podemos citar o Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad) que, através das Resoluções nº 01/2015 e nº 01/2017, regulamentou as comunidades terapêuticas e reorientou a política de drogas para a lógica da abstinência, respectivamente, desprezando a redução de danos como estratégia terapêutica. Na mesma direção, no ano de 2017, o Ministério da Saúde instituiu uma nova Política Nacional de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas (MS, 2017), a qual estabelece o retorno do hospital psiquiátrico à rede de tratamento e passa a considerar a rede privada de comunidades terapêuticas como parte da rede de atenção ao uso problemático de drogas, "garantindo financiamento público para um tipo de isolamento social cujo sucesso não é amparado pela literatura" (Gallassi, 2018, p. 66).

Porém, no atual contexto, as CTs, ao mesmo tempo em que conseguiram um lugar de destaque em diversas normativas recentes acerca dos tratamentos para pessoas que usam álcool e outras drogas, têm sido alvo de diversas denúncias de práticas de maus-tratos e torturas que ocorrem no interior de algumas de suas instituições (CFP, 2011, 2018; Conselho Regional de Psicologia de São Paulo [CRP06], 2016). Mesmo que tais denúncias não possam ser generalizadas e, portanto, não sejam representativas de todas as CTs existentes, alertam para os riscos envolvidos em propostas terapêuticas pautadas no isolamento de determinados indivíduos em meios fechados, que remetem ao paradigma asilar, já exaustivamente denunciado pelos defensores da reforma psiquiátrica, tanto em função dos efeitos iatrogênicos causados como pela violação dos direitos humanos, que, muitas vezes, são decorrência das medidas de suspensão de direitos individuais implicadas na internação - principalmente quando se trata de internação determinada pela Justiça.

Desse modo, no corolário da retomada da defesa das internações compulsórias, parece haver, também, um descaso com os direitos humanos das pessoas que usam álcool e outras drogas, uma vez que, ainda havendo conhecimento de práticas espúrias em instituições de internamento, parcela significativa da sociedade defende a contenção compulsória dessas pessoas, sem demonstrar preocupação com o que, de fato, acontecerá com elas, mantendo uma postura que podemos chamar de cínica. O cinismo consiste em utilizar-se de um verniz moral para justificar algo imoral (Zizek, 1992, 2011), em uma lógica segundo a qual os fins - livrar a pessoa das drogas - parecem justificar os meios - retirada de direitos, maustratos, violência, segregação etc.

Assim, em nome desse fim, supostamente redentor de "livrar alguém do vício", nossa sociedade reascende a guerra às drogas, legitimando a segregação daquelas pessoas que se colocam do lado das drogas, seja traficante, seja "viciado", entretanto cabe lembrar que, "em toda guerra, o outro fica reduzido a objeto que pode ser torturado, isolado, encarcerado" (Bastos & Alberti, 2018, p. 216).

É exatamente o que tem ocorrido com diversas pessoas que usam álcool e outras drogas, alvos de medidas de internação compulsória. Como exemplo, podemos citar as diversas ações ocorridas no espaço conhecido como cracolândia na cidade de São Paulo, baseadas na proposta de que pessoas, identificadas como usuários, fossem encaminhadas para uma avaliação médica a fim de decidir pela "necessidade" ou não de sua internação compulsória. Conduzida dessa maneira, a internação compulsória contraria o disposto no Artigo 4º da Lei nº 10.216/2001, que estabelece que a internação, em qualquer de suas modalidades, só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes, e passaria a consistir no primeiro contato de muitas dessas pessoas com os serviços de saúde. Além disso, cabe ressaltar que os discursos que hoje retomam a defesa da internação compulsória desvalorizam a expertise acumulada pelos trabalhadores de saúde mental que há tempos atuam nos CAPS-AD e em outros dispositivos que ofertam tratamentos em meio aberto.

Nesse sentido, considerando os impasses existentes nas orientações, normativas e encaminhamentos do poder público acerca do tratamento dispensado às pessoas que usam álcool e outras drogas, fazemos nossa a pergunta sistematizada por Bastos e Alberti (2018, p. 215): "a que aspirações esse retrocesso de quase um século corresponde?". Tendo em vista que os atuais discursos sobre as drogas, em especial acerca do crack, têm levado à segregação e ao ódio, faz-se importante pensar em suas articulações com o que há de estrutural nos laços sociais, ou seja, com o que possibilita que, em diferentes momentos históricos, esse anseio de exclusão daquele que é visto como "inimigo comum" assuma diferentes roupagens. Assim, recorremos às contribuições da psicanálise para situar e compreender a maneira como a segregação e as novas formas de segregações têm se apresentado no século XXI.

 

Segregação e Novas Segregações no Século XXI: Racismo e Violência sob a ótica da Psicanálise

Analisando as civilizações existentes até o momento, é possível constatar, em praticamente todas elas, laços sociais pautados em tentativas de dominar o outro para, assim, garantir algum poder, seja através da força bruta, seja através de códigos hierárquicos rigidamente estabelecidos. Conforme afirmou Freud (1930/1996, p. 116) no texto O malestar na civilização,

os homens não são criaturas gentis que desejam ser amadas e que, no máximo, podem defender-se quando atacadas; pelo contrário, são criaturas entre cujos dotes instintivos deve-se levar em conta uma poderosa agressividade. Em resultado disso, o seu próximo é, para eles, não apenas um ajudante potencial ou um objeto sexual, mas também alguém que os tenta a satisfazer sobre ele a sua agressividade, a explorar sua capacidade de trabalho sem compensação, utilizá-lo sexualmente sem o seu consentimento, apoderar-se de suas posses, humilhá-lo, causar-lhe sofrimento, torturá-lo e matá-lo. - Homo homini lupus.

Por outras vias, Lacan, (1992) também apontou para a existência de uma estrutura de dominação nas relações sociais. Tomando como base a dialética hegeliana do senhor e do escravo, propôs sua teoria dos quatro discursos, na qual cada discurso representa uma modalidade de laço social, circunscrevendo sua estrutura a um agente que se dirige a outro para que este produza algo que será convertido em favor do próprio agente, ficando velada a verdade que sustenta o discurso. Nesse sentido, afirma que, em cada um dos discursos, há sempre uma dominante, o que "não implica a dominância no sentido de que essa dominância especificaria - o que não é seguro - o discurso do mestre" (Lacan, 1992, p. 41).

Ao discorrer sobre o discurso do mestre, o qual toma como ponto de partida por considerar tratar-se da primeira forma de laço social, Lacan (1992) afirma que esse discurso demonstra a lógica pela qual o sujeito se funda, por meio da introdução, na cadeia simbólica, do significante primeiro, produzindo uma perda de gozo e instituindo o sujeito dividido. Assim, o discurso do mestre funda o sujeito do inconsciente, o qual, analogamente ao escravo da dialética hegeliana, é assujeitado a um mestre, que é o Outro.

Portanto, certa estrutura de dominação sempre existirá enquanto houver linguagem, pois, para a psicanálise, o sujeito que fala é também falado pelo Outro, numa relação que remete à dialética do senhor e do escravo. Assim, a função que o Outro exerce sobre o falasser é estrutural. Historicamente, o que muda nessa relação é a forma como o sujeito constrói estratégias para lidar com essa relação de alienação ao Outro.

Ocorre que, no período atual, chamado por alguns de pós-modernidade, esse Outro se fragmentou, isto é, pluralizou-se, tornou-se volátil (Besset, Cohen, Coutinho, & Rubim, 2007; Cohen, 2004), de modo que os ideais são capitaneados pelo mercado, que oferece uma parafernália de objetos (entre eles, as drogas), com a promessa de aplacar o mal-estar estrutural oriundo da relação do sujeito ao Outro. A partir dessa oferta estandardizada de objetos e de diferentes formas de gozar, "a lógica capitalista põe etiquetas em cada um dos conjuntos (...): alcoólatras, toxicômanos, depressivos, doentes do pânico etc." (Henschel et al., 2015, p. 17).

O que é possível constatar, entretanto, é que essas partições dos modos de gozo têm levado ao acirramento dos processos de segregação. Isso ocorre porque, como advertem Bastos e Alberti (2018, p. 219), "se na forma de tratar o outro prevalece a rivalidade, isto é, se o outro é tratado como objeto e não como sujeito, então o diferente será alvo de segregação". É o que testemunhamos há algum tempo, tendo sido o nazismo uma das expressões extremas dessa ideologia, na medida em que "exterminava aqueles que não se enquadrassem no Um ariano" (Henschel et al., 2015, p. 11). Sob outros prismas, existem, atualmente, diferentes formas de exterminar - material ou simbolicamente - aqueles que não se enquadram no gozo do Um, entre as quais destacamos o racismo em sua acepção ampla.

No Seminário 19: ... ou pior, Lacan (2012, p. 227) profetiza a escalada do racismo e suas consequências para a civilização no século XXI ao afirmar que "saibam que o que vem aumentando, o que ainda não viu suas últimas consequências e que, por sua vez, se enraíza no corpo, na fraternidade do corpo, é o racismo". Na direção apontada por Lacan, Campos (2018, p. 1) traz a definição de racismo como:

um conjunto de crenças expressas em discurso para justificar a hierarquia de uma raça em prejuízo de outra. Essas crenças associadas a um conjunto de práticas e instituições discriminatórias proporcionam condições políticas e sociais a um determinado grupo em detrimento de outro.

Por sua vez, Santiago (2018, p. 1), fundamentado na defesa de que não existe raça, na medida em que, para ele, constituem um mito criado pelos discursos dominantes, destaca o que chama de "princípio básico do racismo: se o Outro não goza da mesma maneira, o Outro deve ser repelido e rechaçado". Em perspectiva semelhante, Laurent (2014) destaca que o que está no cerne do racismo é o choque de gozos. Segundo o autor, "o racismo muda seus objetos à medida em que as formas sociais se modificam, mas, conforme a perspectiva de Lacan, sempre jaz, numa comunidade humana, a rejeição de um gozo inassimilável, domínio de uma barbárie possível" (Laurent, 2014, p. 4).

A profecia de Lacan, apontada por Laurent (2014), indica a vinculação do racismo à segregação, pois Lacan (2003, p. 263) afirma que "nosso futuro de mercados comuns encontrará seu equilíbrio numa ampliação cada vez mais dura dos processos de segregação".

Essa perspectiva vai ao encontro da afirmação de Reymundo (2016, p. 105), segundo a qual a segregação "(...) desconhece toda e qualquer singularidade. Já não se trata aqui tão somente, de rejeitar, excluir, negar, julgar ou proibir a manifestação do singular; trata-se, acima de tudo, da foraclusão do singular". Macedo (2016). aponta para o surgimento, na contemporaneidade, de novas segregações a partir das mutações dos discursos, a mudança do discurso do mestre para o discurso do capitalista, o qual

(...) parece alimentar-se do rechaço ao simbólico, ganhando autonomia em relação às estruturas de discurso, o que poderá conferir à segregação um novo estatuto. Suas raízes estariam plantadas não mais no solo estável do "choque das civilizações", mas no pantanoso solo do "choque dos gozos", como bem nomeou Eric Laurent (2014), em seu artigo Racismo 2.0. Suas coordenadas situar-se-iam nos avatares do tratamento do real pelo real. (Macedo, 2016, p. 118)

Beneti (2014, p. 35) aponta também para o discurso da ciência, inerente ao discurso do capitalista, como responsável "pela produção dos gadgets, das drogas supostamente terapêuticas e por esse consumo impressionante de drogas, de químicas, de ascensão do saber químico ao comando, colocando os consumidores como objetos comandados por esse saber químico". Nesse sentido, apresenta o discurso da segregação, contrapondo-o ao discurso do inconsciente e articulando-o com a temática da toxicomania, de uma clínica segregativa à qual devemos nos contrapor.

Assim, constatamos que há uma preocupação com a criação de diretrizes de tratamento aos usuários de crack, álcool e outras drogas, porém, muitas vezes, têm sido construídas numa perspectiva segregativa centralizada no objeto droga e "tentam intervir no consumo de drogas, na substância etc., seguem a lógica da abstinência, reduzindo a questão das adicções a um problema de consumo" (Beneti, 2014, p. 35), sem contemplar a dimensão do sujeito do inconsciente. Nesse sentido, cabe destacar que a questão do "todos toxicômanos", ou da toxicomania contemporânea, é mais ampla do que a droga em si, na medida em que, "dentro do discurso capitalista, a vida só tem sentido intoxicada, ou pela química, ou pelos objetos de consumo" (Beneti, 2014, p. 35).

Verifica-se que essa nova face da biopolítica traz como consequência o consumo como marca homogeneizadora da cultura. Assim, uma série de acontecimentos surge no "horizonte do laço social, evidenciando uma primazia da pulsão de morte, a se manifestar por vias as mais deletérias e destrutivas, adicionando-se à cadeia do que poderíamos chamar, na esteira de Laurent, de segregação 2.0" (Macedo, 2016, p. 122). Constatamos, portanto, que o racismo, enquanto forma de segregação do outro, constitui uma das formas como a pulsão de morte se manifesta na civilização, apresentando-se de formas variadas no século passado e no século XXI (Laurent, 2013).

Jacques-Alain Miller (2010, p. 55), ao abordar o racismo articulado com o gozo, destaca que:

O assunto se coloca em outro nível, que é o da tolerância ou intolerância ao gozo do Outro, na medida em que é essencialmente aquele que me subtrai o meu. (...) é o ódio ao próprio gozo. Não há outro além desse. Se o Outro está no meu interior em posição de extimidade, é também meu próprio ódio. (...) Confessa-se que se ama o Outro desde que se torne o Mesmo. (...) saber se abandonará sua língua, sua crença, sua vestimenta, sua forma de falar, trata-se, de fato, de saber em que medida ele abandonaria seu Outro gozo.

Considerando o atual contexto de escalada da defesa das internações compulsórias e de outros tratamentos apontados pela literatura como contrários aos direitos humanos dos usuários de álcool e outras drogas, analisamos que o ódio dirigido, em especial, àqueles oriundos de determinados segmentos da sociedade, está articulado ao que Lacan (1976) localizou como risco de rompimento com o gozo fálico, possibilitado pelas drogas. Tendo em vista ser o gozo fálico o gozo universalizado da civilização, romper com ele implica em colocar-se como diferente, estranho e "êxtimo"; acirrando, dessa forma, os processos de segregação e de intolerância àqueles que gozam diferentemente de mim ou de uma determinada maioria socialmente legitimada.

 

À Guisa de Conclusão

Ao abordar a segregação, Lacan (2005) elegeu como paradigma o campo de concentração, definindo-o como precursor de outros modelos que se desenvolverão como consequência do remanejamento dos grupos sociais pela ciência. Foi nesse sentido que alertou para a possibilidade da ampliação cada vez mais dura dos processos segregacionistas (Lacan, 2003).

É possível estabelecer paralelos entre os campos de concentração e determinados guetos que são instaurados no Brasil com o intuito de delimitar física e simbolicamente determinadas populações. É nessa perspectiva que Generoso (2018, pp. ٤-٥) afirma que as cracolândias são uma das novas formas de segregação que testemunhamos na atualidade e acrescenta que "diante desses espaços fora da lei, que atualizam um modo de gozo estranho, sempre surgem tentativas de intervenções sociais, sejam de caráter de inserção social, sejam de medidas higienistas".

Consideramos aqui que os atuais discursos acerca da internação compulsória de usuários de álcool e outras drogas inserem-se no âmbito das medidas higienistas que, no mais das vezes, são tomadas supostamente em nome do bem do outro. Porém refletimos que a preocupação de tais medidas não é exatamente com o bem-estar dos usuários, mas sim com um gozo que ameaça, que aterroriza o gozo dos outros. Em outras palavras, o que está em jogo é o choque de gozos (Laurent, 2014) e, diante do insuportável do gozo do outro, resta à norma social a tentativa de aniquilar aquilo que a ameaça, aparentemente sem importar-se que, para tanto, seja necessário exterminar o próprio outro.

Vale lembrar que os discursos em torno da internação compulsória atingem, sobremaneira, pessoas que já estão marcadas por estigmas sociais. É o caso das pessoas em situação de rua, majoritariamente pertencentes à população negra, já alvo de um racismo velado e de uma violência implícita. Nesse sentido, Bezerra e Darriba (2016, p. 94) afirmam que ao "retomar a internação compulsória como tratamento princeps para todo [sujeito] em situação de rua ou mesmo para os toxicômanos é instaurar pequenos campos de concentração na polis".

É nesse sentido que o racismo e a violência, como sintomas sociais da nossa época (Laurent, 2013), bem como o ódio destinado às pessoas que fazem uso de álcool e outras drogas, e sua face de segregação irrompem nas instituições, nas ruas, nas relações familiares e atravessam, muitas vezes, o campo das políticas públicas. Tais questões comparecem, também, nos consultórios dos analistas, mostrando os vários pontos de interseção entre política e clínica.

Beneti (2014, p. 25) destaca que, no momento atual, é importante nos guiarmos pelo princípio ético não segregativo, de não segregação do sujeito do inconsciente, e que é "necessário hoje não recuar diante desse real contemporâneo que é o consumo de drogas". Em alguns países da América, constata-se que as autoridades recorrem aos psicanalistas buscando uma interlocução para a elaboração de políticas antissegregativas. Um exemplo disso foi o reconhecimento, pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 2012, da Associação Mundial de Psicanálise (AMP) como Organização Não Governamental, a partir da proposição de uma ação política da psicanálise de orientação lacaniana de contribuir com o debate político contra a segregação (Alvarenga, 2015).

Partindo da afirmação de que não há clínica do sujeito sem clínica da civilização, Tarrab (2015) aposta em uma encruzilhada entre a clínica psicanalítica e a clínica da civilização, e situa como condição para a psicanálise a impossibilidade de se isolar do que ocorre ao seu redor. Assim, psicanálise e psicanalistas têm como grandes desafios, em seus horizontes, se inserirem na cena da civilização contemporânea no século XXI e dialogarem com os campos da clínica e da política.

Defendemos que a articulação da dimensão da clínica e da política é fundamental na elaboração de diretrizes de tratamento para os usuários de drogas, contemplando a singularidade de cada caso. Concordamos que a psicanálise pode contribuir com o debate político sobre as drogas, trazendo para o horizonte os temas que atravessam essa questão e que, muitas vezes, ficam fora do debate, como o racismo, a violência e a segregação, tomando-os, em parte, como constitutivos da relação com o Outro.

Nesse sentido, consideramos como um novo desafio diante das toxicomanias "a oferta de uma clínica cidadã que descontrua e rompa com a política segregativa, buscando respostas solidárias e singulares, tendo como questão não a droga e o consumo, mas o sujeito" (Nascimento, Ribeiro, Farias, Monteiro, & Teixeira, 2018, p. 53), pois, como indica o psicanalista Laurent (2011, p. 61), "não há uma solução universal, teremos que passar ao múltiplo, a considerar os efeitos da droga em sua especificidade própria". Eis, portanto, uma direção possível, a partir da psicanálise, para fazer frente à segregação contemporânea: sustentar o um a um, operando torções onde impera a lógica segregativa do todos contra um.

 

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Endereço para correspondência:
Cynara Teixeira Ribeiro
E-mail: cynara_ribeiro@yahoo.com.br

Zaeth Aguiar do Nascimento
E-mail: zaethanascimento@gmail.com

Recebido em: 15/02/2019
Revisado em: 10/03/2020
Aceito em: 26/04/2020
Publicado online: 28/11/2020

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