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Revista Subjetividades

Print version ISSN 2359-0769On-line version ISSN 2359-0777

Rev. Subj. vol.21 no.1 Fortaleza Jan./Apr. 2021

http://dx.doi.org/10.5020/23590777.rs.v21i1.e9710 

RELATOS DE PESQUISA

 

Neoliberalismo e teoria dos discursos: os usos do corpo na contemporaneidade

 

Neoliberalism and Discourse Theory: The Uses of the Body in Contemporary Times

 

Neoliberalismo y Teoría de los Discursos: Los Usos del Cuerpo en la Contemporaneidad

 

Néolibéralisme et Théorie du Discours : Les Usages du Corps dans la Contemporanéité

 

 

Tiago Humberto Rodrigues Rocha

Psicólogo, Psicanalista, Doutor com dupla titulação em Psicologia Social (USP-SP) e pela Université de Rennes 2 (França). Professor Adjunto do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Triângulo Mineiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

De acordo com a Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica, nos últimos anos houve um salto de 5% para 30% do número de homens que se submetem à cirurgia plástica com finalidade estética. Estes números refletem uma mudança nas formas do uso do corpo masculino na contemporaneidade. O neoliberalismo extrapolou os limites da economia, invadiu os modos de agir e desejar e tornou o corpo um bem a mais a ser produzido e consumido. O presente artigo é fruto de uma pesquisa que procurou tensionar o neoliberalismo à teoria dos discursos de Lacan a fim de perceber os possíveis efeitos subjetivos sobre os corpos na contemporaneidade. Para isto, traçamos um panorama geral do neoliberalismo apoiados nas teorias de Roland Gori, Christian Laval, Pierre Dardot e Dany-Robert Dufour que conjugam uma concepção semelhante sobre o atual momento histórico: modos de subjetivação seduzidos pela possibilidade de se autogerir. O desenvolvimento da pesquisa segue com a teoria dos discursos de Jacques Lacan, com especial destaque para dois de seus principais desdobramentos: o discurso do capitalista e o discurso da ciência. Para embasar tal discussão, a pesquisa tomou como pano de fundo uma entrevista realizada com um sujeito que apresentava um uso particular de seu corpo: o faz em confluência com as exigências do mercado, procurando através das modificações estéticas manejar a incidência da castração. Diante da inevitabilidade desta, percebemos que o alargamento do imaginário contemporâneo - alimentado pelos avanços das tecnociências - pode conduzir o indivíduo a tornar o próprio corpo um objeto a mais a ser consumido.

Palavras chave: neoliberalismo; teoria dos discursos; corpo; contemporaneidade


ABSTRACT

According to the Brazilian Society of Plastic Surgery, in recent years there has been a jump from 5% to 30% in the number of men who undergo plastic surgery for aesthetic purposes. These figures reflect a change in how the male body is used today. Neoliberalism went beyond the limits of the economy, invaded the ways of acting and desiring, and made the body an additional good to be produced and consumed. The present article results from a research that sought to tension neoliberalism to Lacan's theory of discourses to perceive the possible subjective effects on bodies in contemporary times. For this, we draw an overview of neoliberalism-based on the theories of Roland Gori, Christian Laval, Pierre Dardot, and Dany-Robert Dufour that combine a similar conception of the current historical moment: modes of subjectivation seduced by the possibility of self-management. The research development continues with Jacques Lacan's theory of discourses, with particular emphasis on two of his main developments: the capitalist discourse and the discourse of science. For supporting this discussion, the research took as a backdrop an interview with a subject who had a particular use of his body: he does it in confluence with the market demands, seeking over aesthetic changes to manage the incidence of castration. Given the inevitability of this, we realize that the widening of the contemporary imagination - fueled by advances in technoscience - can lead the individual to make his own body one more object to be consumed.

Keywords: neoliberalism; discourse theory; body; contemporaneity


RESUMEN

De acuerdo con la Sociedad Brasileña de Cirugía Plástica, en los últimos años hubo un salto de 5% para 30% del número de hombres que se someten a la cirugía plástica con finalidad estética. Estos números reflejan un cambio en las formas del uso del cuerpo masculino en la contemporaneidad. El Neoliberalismo ultrapasó los límites de la economía, invadió los modos de actuar y desear y convirtió el cuerpo en algo a más a ser producido y consumido. El presente trabajo es fruto de una investigación que buscó tensionar el neoliberalismo a la teoría de los discursos de Lacan para percibir los posibles efectos subjetivos sobre los cuerpos en la contemporaneidad. Para esto, definimos un panorama general del neoliberalismo apoyados en las teorías de Roland Gori, Christian Laval, Pierre Dardot y Dany-Robert Dufour que conjugan una concepción semejante sobre el actual momento histórico: modos de subjetivación seducidos por la posibilidad de autogestionar. El desarrollo de la investigación sigue con la teoría de los discursos de Jacques Lacan, con enfoque especial para dos de sus principales desdoblamientos: el discurso del capitalista y el discurso de la ciencia. Para la base de la discusión, la investigación tomó como telón de fondo una entrevista realizada con un sujeto que presentaba un uso particular de su cuerpo: lo hace de acuerdo con las exigencias del mercado, buscando por medio de los cambios estéticos manejar la incidencia de la castración. Ante la inevitabilidad de esta, percibimos que la expansión del imaginario contemporáneo - alimentado por los avances de las tecnociencias - puede conducir el individuo a convertir el propio cuerpo en un objeto a más a ser consumido.

Palabras clave: neoliberalismo; teoría de los discursos; cuerpo; contemporaneidad.


RÉSUMÉ

Selon la Société brésilienne de chirurgie plastique, pendant ces dernières années, il y a eu un saut de 5% à 30% du nombre d'hommes qui sont soumis à une chirurgie plastique à des fins esthétiques. Ces chiffres reflètent un changement dans la manière dont le corps masculin est utilisé aujourd'hui. Le néolibéralisme a dépassé les limites de l'économie, a envahi les manières d'agir et de désirer et a fait du corps un marchandise supplémentaire à produire et à consommer. Le présent article est le résultat de recherches qui ont essayé à mettre en tension le néolibéralisme à la théorie des discours de Lacan afin de comprendre les effets subjectifs possibles sur les corps aujourd'hui. Pour cela, nous avons dessiné un panorama du néolibéralisme à partir des théories de Roland Gori, Christian Laval, Pierre Dardot et Dany-Robert Dufour, lesquelles combinent une conception similaire du moment historique actuel : des modes de subjectivation séduits par la possibilité de l'autogestion. Le développement de la recherche suit la théorie des discours de Jacques Lacan, avec un accent particulier sur deux de ses principaux développements : le discours capitaliste et le discours de la science. Pour baser telle discussion, la recherche a pris comme arrière-plan un entretien mené avec un sujet qui avait une utilisation particulière de son corps : il le fait en confluence avec les demandes du marché, cherchant à travers des changements esthétiques pour gérer l'incidence de la castration. Devant l'inévitabilité de cela, on se rend compte que l'élargissement de l'imaginaire contemporain - alimenté par les progrès des technosciences - peut conduire l'individu à faire de son propre corps un objet de plus à consommer.

Mots-clés: néolibéralisme; théorie du discours; corps; contemporanéité.


 

 

O Sujeito Neoliberal: Um Autogestor Empreendedor de Si

A dessacralização da união entre corpo e espírito permitiu que o sujeito deixasse de ser para ter um corpo, mas, sob outro ponto de vista, não se tratou "de uma passagem romântica do ser um corpo, visto que este é sempre de uma ordem imaginária, para se ter o corpo. O que acontece é que este corpo perde sua tessitura simbólica para ganhar certo alargamento imaginário" (Gori, 2015, p. 37) Este passará a ser ofertado como um bem a ser consumido tanto a homens quanto a mulheres. Como bem recorda Dufour (2007), se o biopoder foucaultiano ainda encontrava no próprio corpo e na ciência da época algum limite, o acúmulo de um saber "psi" e o alargamento do saber científico permitiu a máxima potencialização desses corpos, indo para uma concepção menos humana que maquínica da subjetividade.

A construção de uma nova verdade sobre o corpo e a possibilidade de ir além do que biologicamente possa ser ofertado com o avanço do saber científico ampliou os horizontes sobre os limites do que pode um corpo. A cirurgia estética, a possibilidade de redesignação do sexo, a hipertrofia sobre-humana com o uso de esteroides e anabolizantes, por exemplo, tornaram o corpo capitalizável, submetido à forma de gestão neoliberal da vida, isto é, como parte de um empreendedorismo empresarial.

Dessa forma, o neoliberalismo criou novos modos de subjetivação que podem afetar a relação do sujeito com o próprio corpo e determinar uma nova composição do laço social. Assim, trabalharemos, ainda que rapidamente, a partir de três autores que consideramos de generosa relevância por conjugarem três importantes campos do saber: economia, filosofia e psicanálise.

Modos de Subjetivação Neoliberal

A partir da obra de Gori (2015) é possível relacionar o que do neoliberalismo - como modo de funcionamento não só econômico, mas também social - tensiona a condição pulsional de cada sujeito. A aposta do autor trata da impossibilidade de um acerto de contas entre o automatismo das ações voltadas à produção do indivíduo empreendedor e a liberdade que o neoliberalismo ideologicamente exige do indivíduo. Passemos aos fatos.

Antes de avançarmos, pensamos ser recomendável retroceder minimamente na história para compreendermos o que foi o liberalismo que vigorou até o século XX. Nascido a partir da crise do mercantilismo, que punha em xeque o pleno funcionamento do capitalismo, o modelo liberal ganhou força de expressão especialmente durante a Revolução Francesa, datando seu início, porém, por volta da Idade Média e conhecendo seu pleno desenvolvimento durante a Revolução Industrial e auge do taylorismo.

Tendo como principais pressupostos o livre comércio, a garantia de direitos civis, a liberdade individual e a propriedade privada, esse modelo vigorou especialmente durante a Revolução Industrial inglesa. Assim,

entendemos aqui por 'liberalismo' a ideologia, a visão do mundo, as práticas de poder em cujo nome os governos liberais tentam impor durante todo o século XIX, na Europa, as políticas fundadas sobre as liberdades públicas, as liberdades econômicas e uma certa confiança no 'indivíduo que busca seu interesse'. (Gori, 2015, pp. 69-70)

Porém esse modo liberal de governar perdeu força e começou a dar ares de sua falência ao não impossibilitar o crescimento das desigualdades sociais. O final do século XIX é profundamente marcado pela pauperização da crescente população urbana, levando ao aumento do proletariado e ao acúmulo da riqueza nas mãos de uma pequena burguesia industrial. Para Gori, a crise do liberalismo apoia-se justamente na contradição entre uma igualdade formal, própria à ideologia liberal, e uma igualdade real, que não é observada na prática. Assim, o liberalismo foi responsável por criar uma ilusão de suposta liberdade e que aos poucos minou a fé na razão e no Estado enquanto formas de baliza para a estrutura subjetiva. A fragilidade do laço social se dá no momento mesmo da queda de metanarrativas que poderiam sustentar um local para o sujeito no meio social (Rocha, Paravidini, & Silva Júnior, 2014).

A entrada na linguagem e a consequente produção de um sujeito político são tentativas de regulação por meio dos laços sociais da condição ingovernável própria ao pulsional. Se a pulsão tende sempre ao silenciamento das tensões psíquicas, o trabalhador, reduzido à condição de um autômato, um operário acrítico, possui uma mesma lógica de gestão da vida, em que entrega seu corpo a um funcionamento maquínico, gerando divisas e consumo. O problema central desse funcionamento é que esse autômato esbarra na ideia de liberdade defendida pela doutrina neoliberal. Assim, a liberdade torna-se obstruída pelo colapso a que conduz o automatismo.

Aí se encontra a solução aos enigmas singulares e coletivos que constitui o abandono às forças de destruição de si e dos outros: o caráter 'novo' da vida se vê sacrificado para responder às necessidades reais ou imaginárias de 'adaptações'. Para além das normas sociais e técnicas que as exige, estas 'adaptações', que procedem mais do automatismo que da inovação, se alimentam pela fonte de certas tendências do psiquismo. [...] Estas tendências provêm da aspiração do psiquismo de reduzir à nada a excitação do vivente. (Gori, 2015, p. 59)

O autor denomina por "totalitarismo cultural" esse estado de estabilidade e de sacrifício do que é novo e que ganha força no neoliberalismo. Para Laval (2007), o neoliberalismo liga o homem a um estado de existência individualizada que tem no máximo de satisfação o seu ponto alto. Os princípios de organização coletiva introduzidos pelo neoliberalismo norteiam-se por toda ação que possa resultar em consumo, haja vista a decisão sobre o que será o bem-estar coletivo ter ficado nas mãos daqueles que detêm os meios de produção. Se, para Gori (2015), a problemática neoliberal evidencia o conflito entre automatismo e liberdade, Laval (2007) a desloca para a problemática da contabilidade, a que o sujeito adentra ao tornar a própria existência um objeto a mais a ser contabilizado pelo mercado.

Aproximando o pensamento de Laval com a teoria psicanalítica de Lacan, podemos encontrar no conceito de latusa alguma ressonância no campo psíquico sobre as consequências de tal modo de funcionamento contemporâneo. Lacan utiliza-se da ironia para consagrar seu neologismo ao referi-lo às quinquilharias técnicas, aos gadgets da vida contemporânea criados pela ciência como forma de obliterar a falha estrutural deste ser.

E quanto aos pequenos objetos a que vão encontrar ao sair, no pavimento de todas as esquinas, atrás de todas as vitrines, na proliferação desses objetos feitos para causar o desejo de vocês, na medida em que agora é a ciência que o governa, pensem neles como latusas. (Lacan, 1969-70/1991, p .153)

Trata-se de uma sociedade de consumo em que o próprio ser tornou-se produto consumível tanto quanto todos os demais (Lacan, 1972/1978).

Desse modo, o neoliberalismo cria uma espécie de instrumentalização do desejo que deixa de obedecer a predicados éticos, relativos à singularidade do inconsciente, e morais, relativos à coletividade. Essa representação imaginária de um indivíduo autônomo cujos conflitos podem ser resolvidos a partir do ajustamento da conduta prevista no cerne do utilitarismo tem como efeito o indivíduo empreendedor de si. Quanto a isto, Laval se coloca algumas questões:

O que tornou então o homem econômico? Chegando à idade madura, terá ele mudado desde as formações iniciais que marcaram seu nascimento? Em sua forma contemporânea, ele não findou de ser contável e o gestionário de suas penas e seus prazeres, de seus custos e de suas vantagens. (Laval, 2007, 332-333)

É justamente nesse momento mesmo que vemos a ideia do empreendedor tomar fôlego e cair numa espécie de gosto popular, rompendo os limites dos espaços empresariais para engrossar o tom dos discursos capazes de agregar sem, no entanto, garantir o laço social.

O corpo é agora o produto de uma escolha, um estilo, uma modelagem. Cada um é contável a partir de seu corpo, que se reinventa e transforma de seu próprio jeito. É o novo discurso do gozo e da performance que obriga a se dar um corpo tal que ele possa ir sempre além de suas capacidades atuais de produção e prazer (Dardot & Laval, 2015, p. 438)

Para nosso texto, consideramos que tais modos de subjetivação alimentam o imaginário a partir da promessa de superação da noção de divisão subjetiva, da ilusória capacidade de tamponamento da falta e atravessamento pela castração do Outro. Assim, poder chegar a uma nova representação de sujeito não cindida, autônoma e autogerida.

 

Tensões entre Neoliberalismo e Teoria dos Discursos

Na seção anterior apresentamos rapidamente algumas considerações sobre o atual momento sócio-histórico. O neoliberalismo e seu alcance rizomático sobre as mais variadas dimensões da vida nos conduzem a tensionar as implicações intrasubjetivas e o valor do corpo como regulador do laço social. Interessa-nos sobremaneira as implicações subjetivas do aprimoramento da técnica e suas consequências através do que ficou conhecido pelo sintagma discurso da ciência. Passemos aos discursos.

Discurso e Laço Social

Para Lacan, todo discurso é uma forma de aparelhagem do gozo que determina o laço social fundado na linguagem. Dito de outra maneira, o discurso é uma maneira de manter os sujeitos em relação dentro de um mesmo contexto social, permitindo-lhes aí se alojar e regular suas modalidades de gozo (Gaspard, 2012).

Os quatro discursos são estabelecidos em referencia aos três impossíveis de Freud: governar (discurso do mestre/senhor), educar (discurso universitário) e psicanalisar (discurso do analista), ao qual Lacan acrescenta o impossível de fazer desejar (discurso da histérica). Para cada um dos discursos podemos pensar o lugar do corpo como uma espécie de envelopamento da pulsão. Algo de inassimilável que escapa à significação e que pode ser traduzido em cada um dos discursos como um dos impossíveis, tal como pensado por Freud.

Assim, os quatro discursos serão organizados da seguinte forma:

 

 

Dado o limite do nosso texto e aos objetivos desta pesquisa, iremos nos ater às especificidades apenas do discurso do mestre e de seus desdobramentos. Nesse discurso, o cerne da questão está na relação entre o senhor e o escravo, da qual Lacan (1969-70/1991) utilizará para expor a particularidade da relação entre os dois lugares. Nele, o mestre (S1) é aquele que coloca em marcha o discurso, obliterando sua própria castração ($). O escravo, no lugar do outro (S2), detém o saber (savoir-faire) que o mestre não pode alcançar, por isso a relação pressupõe um mestre alienado ao saber do escravo. O que é produzido (a) escapa à possibilidade de restituição pelo escravo, sendo apreendido apenas como um excedente que lhe escapa (mais-de-gozar), colocando em andamento o circuito necessário à produção. O produto não toca a verdade do senhor devido à barreira da impotência de tudo poder representar, a barreira de gozo imposta entre a verdade e a produção. O que o discurso escamoteia na relação entre a verdade e o mestre é que existe um sujeito que sustenta o governar ($S1), cuja lei encarna no mestre como representante da dominação.

O Sujeito Neoliberal e o Corpo no Discurso da Ciência

Nesta subseção pretendemos tensionar o que foi anteriormente apresentado sobre a teoria de Roland Gori, Christian Laval e Pierre Dardot com a teoria lacaniana dos discursos.

Se a subjetividade condiz com um determinado contexto histórico que relativiza as contingências e problemáticas que concernem ao gozo do sujeito, este precisa se sustentar como um corpo coletivo dentro da sociedade. Assim,

nada pode negar [...] que as diferentes modalidades de 'fazer sustentar os corpos juntos' se encontram confrontadas à colusão de uma ideologia administrativa e consumista (discurso do capitalista) de uma parte, e, de outra, de um discurso em processo de tornar-se hegemônico, o discurso da ciência. (Gaspard, 2012, p. 362 [grifos do autor])

Destarte, podemos esquematizar o eco da teoria dos discursos que reverbera sobre nossa montagem do homem econômico autogestor e empreendedor de si, apresentado anteriormente e que se faz comandar pelo discurso da ciência e do capitalista.

O discurso do mestre antigo trata do comando da ordem de produção em que o escravo, alienado de seu saber, é um excedente que enriquece o senhor. Por outro lado, é também o reservatório libidinal próprio à posição objetalizada do escravo em sua ânsia de recuperar o lucro. Esse modo de produção liberal, representante do discurso do mestre, encontra sua insuficiência no momento mesmo em que o saber passa a se autonomizar como um produto a ser, ele próprio, consumido. O saber que encontraremos na forma de otimizar a administração que o sujeito realiza é uma produção a mais nessa seriação de saberes sobre si.

Convém esclarecermos, ainda que brevemente, o que compreendemos por discurso da ciência e como ele afeta a subjetividade de uma época. Gaspard (2012) alerta sobre o risco de confundirmos a ciência moderna com o que denominamos por discurso da ciência. Para o autor, a ciência moderna nasce a partir do questionamento da escolástica. O fazer ciência dessa época liga-se estritamente à possibilidade de generalização e universalização do saber. Data desse período a produção de um fazer científico ligado ao surgimento das universidades de direito e medicina, ao que Lacan nomeia discurso universitário.

Lacan, ao longo do Seminário XVII, não estabelece um discurso da ciência, uma vez que ele compreendia que a ciência está presente em todos os discursos. De tal maneira, "a expressão 'discurso da ciência', trata de capturar os efeitos produzidos sobre os modos de relação dos corpos atravessados pela linguagem e, então, no laço social pela profusão de instrumentos e gadgets produzidos graças ao mercado" (Gaspard, 2012, p. 364).

Assim, como um empreendedor de si e que busca a autogestão

sob a influência de novas palavras de ordem do discurso da ciência (inovação, prevenção, verificação, segurança, avaliação, experimentação, etc.), o sujeito, deslocado do lugar da verdade que ele ocupava no discurso do mestre se encontra sob a obrigação de uma auto-fundação (sic), ou mesmo de uma autocelebração de si que abrem frequentemente à uma desordem e levam à procura de práticas compensatórias (Gaspard, 2012, p. 365)

Gostaríamos, neste ponto, de estender essa procura por práticas compensatórias àquelas que envolvem o cuidado estético com o corpo, objetalizando-o à condição de latusa. Para um país tropical como o Brasil, a exposição maciça de corpos bronzeados e torneados, as práticas esportivas ao ar livre, a exaltação do corpo durante o carnaval etc contribuem para a congruência de práticas e hábitos de vida que valorizam sobremaneira o sentido estético. Assim, a subjetividade de nossa época irá encontrar uma série de "práticas compensatórias" que alargam o imaginário quanto à possibilidade de um corpo perfeito.

Assim, por discurso da ciência compreendemos uma série de práticas que se multiplicam de forma difusa em nossa cultura. Estas, especialmente por privilegiarem a virtualidade dos atuais meios de comunicação, inflam o imaginário sobre possibilidades de silenciar o sofrimento oriundo do destino natural da vida: a morte. Um ponto importante a ressaltar é o modo sutil desse discurso se fazer presente em nossa cultura. Não existe uma espécie de "autonomização de um discurso da ciência", uma vez que ele depende do laço social supostamente existente pelas outras modalidades de discurso. O que é percebido é, justamente, a forma particular de cada discurso utilizar-se da ciência como uma ideologia sob a qual se abriga a promessa de uma salvação.

Essa relação de consumo de gadgets à livre disposição torna o sujeito um crente na ciência, expressão utilizada pelo próprio Lacan (1969-70/1991) ao longo do Seminário XVII.

Discurso do Capitalista: O Mestre Moderno e a Tirania da Beleza do Corpo que se Consome

Ao longo do Seminário XVII, Lacan apresenta a ideia de que sua época estava marcada pela emergência de uma nova forma de discurso do mestre, o discurso do capitalista, discurso do mestre moderno ou ainda discurso do mestre pervertido. Sem uma formalização tão precisa como no caso dos outros quatro discursos, Lacan o formaliza apenas em 1972, à ocasião de uma alocução na Universidade de Milão, na Itália (Lacan, 1972/1978). Como uma variante do discurso do mestre, sua formalização tornou-se conhecida como discurso de Milão.

O discurso do capitalista, tal como apresentado na Figura 2, pode ser obtido a partir de uma torção das posições entre S1 e $ e da modificação no sentido das flechas em que no primeiro quadrante toma agora o sentido descendente e a ausência da ligação direta em agente e outro, na primeira linha. Não sem efeito, veremos como tal processo implicará a relação que o sujeito estabelece com o próprio corpo alçado à categoria de latusa, tal como observado ao tratarmos o discurso da ciência. Tais implicações referem-se à castração, podendo se tratar de sua foraclusão ou de um discurso cínico sobre a mesma; da produção da falta-a-gozar a partir da contabilização do mais-de-gozar; e da superação do matema da fantasia $ a na relação com o corpo por meio da ilusão em que $ a - sujeito barrado congruente à a.

 

 

Com o reposicionamento das flechas, a circulação entre os quatro lugares no algoritmo torna-se contínua ($ S1 S2 a $...). Não há uma posição inicial nítida, como o agente nos outros discursos. O movimento é uniforme: não há mais a disjunção de impossibilidade entre o agente e o outro. Nenhuma posição está isolada, cada termo alimenta outro e é alimentado por outro: não há mais a disjunção de impotência entre a produção e a verdade. (Castro, 2012, p. 3)

Assim, desaparece a limitação ao gozo, uma vez que há a composição de um circuito fechado, "um discurso sem perda; sem entropia" (Bruno, 2010, p. 209). Com a inversão no sentido das flechas, a verdade perde sua proteção, tornando-se acessível ao "tudo-saber", efeito último do discurso universitário. Outra chave de leitura possível do discurso do capitalista e seu efeito sobre a castração é tomar o cinismo a modalidade de laço social privilegiada. Cinismo "é o nome correto dessa posição subjetiva que é capaz de sustentar identificações socialmente disponibilizadas, ao mesmo tempo em que ironiza toda e qualquer determinidade (por reconhecer seu caráter descartável)" (Safatle, 2008, p. 138). Ora, se, por um lado, o discurso do capitalista aponta para a não incidência da castração do sujeito, tornando-o um autômato que incansavelmente consome numa posição de onipotência; por outro lado, o cinismo seria uma forma de reconhecimento da castração. Esta se daria pelo uso do artifício cínico e da ironia, em que o reconhecimento da castração se dá de maneira cínica, dissimulada, na forma de um consumo desenfreado que, por si só, é o próprio reconhecimento da castração.

O efeito é a produção da falta-a-gozar e sua subsequente contabilização. "Produzir para consumir, e consumir para que a produção faça sentido. Produzir e consumir gera a falta-a-gozar. E, principalmente, não só de um lado" (Soler, 2011, p. 58). Assim, o senhor e o escravo subjugam-se à condição do proletário, como aquele que se encontra destituído do laço social. Por mais contraditório que possa parecer, a contabilização do mais-de-gozar produz exatamente uma falta-a-gozar, já que as latusas são produzidas com a principal função de manter o desejo insatisfeito.

Trata-se de uma forma de superação do matema da fantasia $ a, para uma relação de ilusão com o corpo, em que $ a. Com a foraclusão da castração e o circuito se retroalimentando, o discurso do capitalista cria a ilusão de que o sujeito castrado pode encontrar no consumo das latusas a cura para o seu mal-estar. A disjunção da relação entre o $ e o objeto a do matema da fantasia é posto de lado por uma idealização da relação com o objeto.

Nosso sujeito mergulhado no discurso capitalista é aquele que nada quer saber da experiência do impossível. Com seu desejo governado / ordenado / causado pelos objetos - mercadorias - pelas latusas cuja construção é viabilizada pela ciência - ele é aquele para quem não existe nem o real, nem o inconsciente: aquele que 'não quer saber nada disso'; aquele que constrói ao redor disso a barreira da sua "paixão da ignorância". (Pacheco Filho, 2015, pp. 37-8)

Assim, pela exclusão do Outro, do inconsciente, o sujeito encontra na dimensão dos objetos oferecidos pelo mercado sua fonte de salvação em um circuito que não faz baliza ou que permita outras manobras ao desejo que não sejam aquelas que visam o consumo. Passemos agora ao tensionamento dessas considerações teóricas com um uso particular do corpo na contemporaneidade.

 

A Escolha do Método

A partir de agora, passaremos a análise de um caso que acreditamos colocar em evidência os tensionamentos até aqui apresentados, bem como seus possíveis impasses. Tratase de uma entrevista realizada para fins de uma pesquisa de doutorado. Cabe ressaltar que todos os procedimentos éticos foram atendidos (Número de registro CAAE: 40680714.6. 0000.5561). Tratou-se de uma entrevista semiestruturada audiogravada, com duração de aproximadamente duas horas e meia, realizada em ambiente sigiloso e na residência do próprio entrevistado. Por tratar-se de uma pesquisa qualitativa e de natureza exploratória, não buscamos aqui qualquer generalização possível, mas sim ampliar o campo de discussões em torno dos usos dos corpos na contemporaneidade, de modo a fomentar um considerável número de conjecturas que os resultados podem suscitar. Desse modo, compreende-se que a importância das relações aqui estabelecidas vale mais por sua capacidade ilustrativa dos modos de subjetivação do que por uma possível extrapolação da problemática abordada na entrevista.

O método utilizado para a análise dos resultados foi o referencial psicanalítico de orientação lacaniana. Assim, como destaca Nogueira (2004), ao propor o método de investigação psicanalítico, Freud permitiu uma experiência de desvelamento do inconsciente a partir da livre associação. Ao propor uma entrevista semiestruturada, pode-se antever que o entrevistador terá liberdade para lidar com o material que emergir, sem ter que limitar-se ao enredo de uma entrevista estruturada. Assim, tal como na situação analítica, o analistapesquisador torna-se responsável por uma escuta mais criteriosa, flutuante, corroborando o pensamento freudiano.

Quanto à justificativa desta pesquisa, destaca-se que, de acordo com a Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica, nos últimos anos, houve um salto de 5% para 30% no número de homens que se submetem à cirurgia plástica com finalidade estética. Esses números refletem uma mudança nas formas do uso do corpo masculino na contemporaneidade. O aumento do número de cirurgias plásticas e o interesse em produtos dedicados à estética masculina e às novas formas de reconhecimento da masculinidade, especialmente após o surgimento do fenômeno metrossexual, nos pareceu um índice de mudança ocasionado pela influência do avanço das atuais tecnociências dos corpos no neoliberalismo. O aumento da preocupação estética por parte dos homens nos remeteu ao que o discurso do capitalista demonstra efetivar na prática: que, no neoliberalismo, o mundo torna-se mensurável a partir das relações de consumo.

 

Usos do Corpo na Contemporaneidade

Para esta discussão, apresentamos o caso de Igor (nome fictício), que havia acabado de completar sessenta e um anos um dia antes da realização da entrevista. De origem humilde, tornou-se um bem-sucedido empresário no ramo moveleiro. É casado com uma mulher dez anos mais jovem, com quem tem duas filhas. Igor é ainda avô de duas jovens garotinhas.

O relato de sua história se assemelha ao enredo de um filme em que ele é o personagem principal que vence todas as adversidades, disputa e conquista várias mulheres, sobrevive a dois tiros em decorrência de uma discussão no trânsito, tira "racha de carro pelas ruas" (sic) e que não deixa de ser um homem generoso com a família. Uma história contada com o entusiasmo de quem construiu um pequeno império na vida, apesar da origem humilde e demais adversidades.

Igor iniciou as intervenções estéticas a partir da influência das filhas e da esposa. Ao ser questionado sobre quais procedimentos havia realizado, retirou seu telefone celular do bolso e começou a ler os nomes e a data em que os havia realizado. De forma bastante entusiasmada, foi lendo os nomes dos procedimentos, como aplicação de botox, peeling facial e aplicação de ácido hialurônico, até o momento em que fez uma "esculpida em toda a face com uma cirurgia plástica no ano de 2010" (sic).

Igor apresenta uma relação de consumo com a indústria da beleza em que os procedimentos estéticos entram como um elemento a mais a ser contado na seriação de seus bens, tais como imóveis espalhados pelo país e também fora dele, e demais bens consumíveis. Carregar o nome de todas as intervenções estéticas consigo, em seu telefone, nos dá a dimensão do quanto servem para transformar a relação que ele tem com seu corpo em uma relação de customização de um bem de consumo.

O consumo de intervenções estéticas se dá em espiral, em que a contabilização de suas intervenções transforma um procedimento médico em um bem mercadológico que segue os princípios descritos por Marx em O capital (1867/2012). Sem querermos aprofundar na teoria marxista, tomaremos emprestado apenas o que nos interessa para compreendermos como um processo estético pode ser transformado em um bem equiparável a um objeto de consumo.

Segundo Marx, as mercadorias possuem um valor de uso que satisfaz necessidades humanas, não importando tratar-se de necessidades reais, que surgem a partir de determinado órgão, ou se satisfazem unicamente a fantasia. Possuem também um valor de troca, que corresponde à medida social da mercadoria nos processos de troca. Por fim, há o trabalho envolvido para que a mercadoria seja produzida. Contudo não se trata apenas da relação de diferença entre esses três componentes. Marx nos lembra sobre a possibilidade de expressão do valor de uma mercadoria apenas por meio de seu equivalente, pois "a mercadoria, na forma relativa, oculta o próprio valor, que só se apresenta no corpo do equivalente; isto é, representa-se nele" (Pacheco Filho, 2015, p. 32).

Para o exemplo de Igor vale notar que, em raros momentos, ele comenta sobre o valor pago nas cirurgias. O equivalente aparece na forma de reconhecimento por parte dos demais e, em especial, em ocultar que está se submetendo a alguma forma de tratamento estético. Assim, segue o relato sobre uma das aplicações de botox:

Eh, comecei a fazer [aplicação de botox] e melhorou... porra, assim, da noite pro dia, e cada dia fica melhor... entendeu? E fica melhor! E fazer coisas que... ninguém perceba. Né, hoje... [engasga procurando palavras] meus amigos aqui embaixo [do prédio onde estávamos], ninguém sabe! [...] Com quem eu convivo, ninguém sabe! 'Pô Igor, que que você faz?' 'Porra, você tá cada dia mais jovem! Eu vejo você, tá cada dia mais jovem... Pô, o que que você faz?' Eh, então a gente acaba brincando. Eu falei: 'É namorada nova rapaz, isso aí é namorada nova... tem que se cuidar!' Então, às vezes, acaba brincando, mas não tem nada a ver. Porra, isso é uma satisfação, uma satisfação! (sic)

Merece ser notado como Igor reproduz um discurso que é bastante utilizado pelo marketing ao equiparar bem-estar emocional com estratégias dedicadas para evitar o envelhecimento. Neste momento, seu discurso é bastante contraditório, e compreendemo-lo como expressão do conflito apresentado anteriormente por Gori (2015) ao apresentar as contradições de alguém que perde em sua tessitura simbólica para ganhar em alargamento imaginário. Assim, o discurso ganha uma tonalidade falaciosa, em que o sujeito precisa afirmar algo para desmentir-se logo no momento seguinte, revelando a falácia em obliterar sua condição castrada em vistas de se fazer um indivíduo; uma substância racional e autogestora de seus atos.

O desejo de garantir um lugar como um suposto autor de sua própria história, desprovida de passado e apartada de uma fração considerável da realidade (por exemplo, em poder assumir o envelhecimento), permite ao sujeito a construção de inúmeros roteiros para a própria vida, sempre em vistas de recuperar sua ideia de unidade. Quanto à liberdade que a doutrina neoliberal empresta ao sujeito, é justamente esse pequeno romance cotidiano, o qual o sujeito possa contar a si próprio numa espécie de engano de menor gravidade, uma vez que o discurso não provoca maiores estragos. Esta é a oferta da liberdade mínima, questionada por Gori, que o neoliberalismo oferece de maneira fantasiosa, mas sem lastro com a realidade que possa lhe conferir algum valor.

Igor comemora ao perceber que "quer dizer que o que eu fiz e o que eu achei que devia fazer, eu tô, eu tô me sentindo feliz, porque eu estava certo! Eu não errei!" (sic). Trata-se da busca pela medida exata do indivíduo autogestor do comportamento do assim denominado "homem e econômico" (Laval, 2007), em que cada atitude tomada é sempre mensurada como uma medida de valor que deve lhe conferir determinado prazer. A satisfação no relato do reconhecimento de sua aparência mais jovial e de sentir que "não errou" (sic) desvela mais uma das possibilidades de cálculo do modo de autogestão da própria vida. A meritocracia neoliberal aparece nesses momentos em que o sujeito aparenta assenhorear de seus méritos, como autor único dos destinos de sua existência. O limite imposto pelo envelhecimento do corpo imaginariamente vai para a berlinda graças ao avanço tecnocientífico representado pelo alcance do discurso da ciência naquilo que se faz enquanto efeito no discurso médico.

Se Lacan (1969-70/1991) toma a produção de latusas como exemplo do alcance do discurso da ciência no meio social, seus efeitos não poderiam deixar de atingir o próprio corpo do vivente ao mercantilizá-lo. Tomamos o reconhecimento da jovialidade de Igor como uma das formas de expressão da produção de que um corpo como latusa pode ser consumido. Sua realidade torna-se regulada pela tentativa de burlar os efeitos da presença do Outro, como marca da diferença, representante da castração, a qual ele vai embelezando, maquiando, disfarçando imperfeições, sem que ela deixe de sinalizar sua presença pela constante insatisfação com a própria aparência.

Assim, percebemos que o valor de troca aparece naquilo que flerta quanto ao reconhecimento social do sujeito por seus pares. O prazer extraído em ocultar a realização do botox soma-se à satisfação em se sentir aceito pelo grupo mais jovem. Todas as sextasfeiras, ele e seus amigos se reúnem para a "sexta alegre" (sic), ocasião em que vão para seu apartamento (que ele faz questão de designar como "sede", em alusão ao tamanho do apartamento, localizado em uma cobertura de um bairro nobre da cidade) para conversar, beber, cozinhar e comer. A busca por reconhecimento aparece marcadamente em dois momentos que merecem maior destaque: ao dizer do relacionamento com os amigos e funcionários.

Nós somos tudo de igual pra igual. Eles sentem falta no dia em que eu não estou presente, tá! Eh... senão, eu estaria com uma, com uma, uma [gagueja], com um aspecto bem mais velho... Então, você já não consegue... se juntar com os... mais jovens [...] Não de eu sentir mais à vontade, não... porque eu sempre me sinto à vontade, em qualquer lugar, entendeu? Eh... é de você saber que você está... que você se sente aceito naquele grupo, né?! Você foi aceito no grupo. Tanto isso nas reuniões que eu faço na fábrica... nas reuniões com fornecedores... hoje, por exemplo, o meu relacionamento com, com meus genros... é de igual pra igual, como se fosse da mesma idade (sic).

Ao todo, Igor já realizou mais de vinte procedimentos estéticos durante dez anos de tratamento. A questão de sustentar uma aparência mais jovial é o plano ao qual ele parece manter-se mais fortemente atado, tal como podemos observar:

Muita gente me pergunta quantos anos eu tenho. Eu digo: 'sessenta e um!' 'Nossa, sessenta e um?!' Eu vou ao teatro. Ao teatro eu levo... eu compro meia, né?! [...] Então, isso é gostoso, isso é gostoso [se empolga]. Isso é gostoso! (sic).

Trata-se da captura, pelo plano do imaginário, de um dos efeitos do discurso do capitalista. Esse apelo ao imaginário pode ser compreendido como uma possível resposta "a despeito de certa homogeneização da subjetividade contemporânea operada especialmente pelos meios de comunicação de massa e os novos suportes tecnológicos, é uma busca identitária sempre mais angustiante a que se encontra confrontado cada indivíduo" (Gaspard, 2012, p. 367). No caso de Igor, pode-se dizer que essa busca por uma reafirmação do eu aparece no contorno desse personagem que ele vai criando, dando corpo, ampliando o alcance do que ele possa fazer operar.

Daí o discurso do capitalista ser o modo privilegiado de inserção do sujeito em um contexto de ausência de laço social. Vale lembrar que o conceito de discurso em Lacan foi estabelecido em torno de um impossível nomeado por Freud como mal-estar. Por discurso compreendemos o aparelhamento de gozo em virtude da castração, como impotência do saber produzido tocar a verdade do sujeito. É justamente nesse plano imaginário que o discurso do capitalista faz girar a demanda de Igor, identificado-a a um ideal ao qual ele procura dar consistência, demandando constante reconhecimento por parte do outro.

A ideia do homem econômico, autogestor e empreendedor de Dardot e Laval (2015), apresentado anteriormente, encontra eco em nosso caso. Ao analisarmos o sentido das setas no discurso do capitalista, "o sujeito ($), na posição do agente, parece comandar os significantes-mestres (S1), na posição da verdade" (Castro, 2012, p. 4). Trata-se, no caso de Igor, de um sujeito que, na posição de agente, busca comandar e orientar o que possa determiná-lo (S1). A seta que sai de S1 para S2 coloca o outro - no caso, aqui, a médica responsável pela produção de um corpo / a - subjugado à verdade do sujeito alienado de sua castração ($), que, no caso do discurso do capitalista, "conjuga-se como um artefato técnico e mercantil" (Castro, 2012), ou seja, o consumo das cirurgias ocorre de modo mercantil, cujo reconhecimento se dá no gozo que Igor revela ao nos dizer sobre suas pequenas conquistas diárias de reconhecimento.

A partir de mais um quarto de volta nos elementos do discurso do mestre, temos a produção do discurso da histérica, que é um dos discursos que marca a impotência. De uma forma geral, podemos situar essa forma de discurso como um dos modos de organização da relação que o sujeito pode facilmente encontrar na contemporaneidade dada sua condição de estar constantemente insatisfeito com o próprio corpo. Assim, o discurso do capitalista ganha força no atual momento neoliberal por lidar com um sujeito em sua condição histericizada. A promessa de satisfação ofertada pelas latusas do contemporâneo dá ao sujeito a ilusão de poder ter o objeto fálico ao qual o sujeito histérico almeja. A ilusão aqui é posta no momento em que ele acaba por identificar-se ao objeto, tornando-se aquele que imaginariamente satisfará o gozo do outro.

É em torno de um desejo de ser tomado pelo outro, de provocar o desejo no outro, que o sujeito passa a orientar suas ações em sua ânsia de ser um autogestor - ou mesmo um investidor - que pode expandir seu capital de beleza física. Se o discurso do capitalista faz girar as engrenagens que colocam o sujeito na posição de tudo poder, ao foracluir a castração, seu retorno se dá na posição insatisfeita, tal como no discurso histérico que sempre denuncia a impotência. No nosso caso, ela aparece a partir da queixa de insatisfação com o próprio corpo, com as marcas da ação do tempo etc.

Trata-se de pensar o discurso histérico como modalidade privilegiada de entrada do sujeito que busca produzir um mestre sobre o qual ele possa governar (Lacan, 1969-70/1991), aqui representado pelo lugar do médico na relação com o paciente. É pela via do discurso histérico que o sujeito interpela o outro (S1) para a produção de um saber (S2) - para a aplicação do uso da técnica e produção de um novo corpo. Esse corpo que envelhece e deixa seus rastros por meio de rugas e marcas de expressão da presença do Real, jamais simbolizável, e que se anuncia pela impotência entre produção (S2 - o corpo após a intervenção da técnica) e verdade (objeto a - reservatório pulsional que afeta o sujeito ($).

Igor parece estar em acordo com essas modalidades de sofrimento neurótico contemporâneo. "Esse lugar aparentemente privilegiado do sujeito, que se crê autônomo, está ligado ao narcisismo, o qual encontra terreno especialmente propício para florescer na sociedade de consumo" (Castro, 2012, p. 4). O narcisismo desse sujeito, supostamente autônomo, flerta com o substrato escópico da pulsão. Os modos de subjetivação contemporâneos passam pelo crivo da sedução pela imagem, uma vez que têm seu correspondente psíquico calcado na condição pulsional que privilegia o retorno do olhar sobre o próprio sujeito. Isto que Igor nomeia por "satisfação enorme" (sic), no momento em que é percebido pelo outro como alguém mais jovem, é o emolduramento da fantasia sobre a qual a religião do mercado - tal como postulado por Dufour (2007) - pode atuar. Tocar o narcisismo do sujeito contemporâneo é o artifício que a insatisfação promovida pelo discurso do capitalista alcança, colocando-o numa incansável busca por reconhecimento.

Esse apelo ao gozo não é algo inédito no modo de regulação da economia capitalista. Assim, em torno da mercadoria há um conjunto infinito de fantasias que estimulam o gozo, sendo "uma rede de significantes que remetem, por exemplo, à busca de aceitação e de prestígio social, fornecendo coordenadas externas que contextualizam cada mercadoria" (Castro, 2012, p. 5). É curioso notar que, ainda que Igor afirme inúmeras vezes "não precisar provar mais nada para ninguém" (sic), ele afirma sentir-se melhor ao se perceber mais jovem e poder ser assim aceito pelos mais jovens. A contradição no discurso é o que desnuda a divisão do sujeito.

Lacan (1972/1978) afirma que o discurso do capitalista produz a degradação do laço social ao transformar cada indivíduo num sujeito despossuído, em proletário. Proletário no sentido de nada possuir, nem mesmo o capitalista, que possa ser oferecido ao outro como suporte à castração. Assim, "a ideologia que prevalece neste semblante de discurso corrói de fato todos os laços sociais (fabricação de dejetos e resíduos de todas as espécies). O discurso do capitalista é um discurso sem ética que exila o sujeito de seus laços significantes" (Gaspard, 2012, p. 363).

Pois bem, a partir de mais um quarto de giro no discurso da histérica, temos a produção do discurso do analista. Embora não seja o eixo central de discussão desta pesquisa, há algo que merece ser, mesmo que brevemente, discutido. Lacan (1969-70/1991), ao pensar sobre o conceito de latusa, oferece, de acordo com Alomo (2014), a possibilidade de encontrarmos aí uma entrada também para o analista, a partir de seu lugar discursivo. Na situação em que Igor se coloca, identificando-se ao objeto a por meio de suas práticas de consumo, de efusivo júbilo diante dos olhos do outro, ele torna-se esse objeto que goza para além de certos limites. Ao tomarmos em conta o discurso do analista, este pode se servir:

(...) da posição de objeto a como causa de desejo para escutar o 'mais... quero mais..." que o mais-de-gozar torna presente, mas não para satisfazer à pulsão com um objeto adequado à demanda de consumo e sim para fazer lugar, no sujeito, a emergência - leia-se produção - dos significantes mestres que comandam e comandaram sua existência. (Alomo, 2014, p. 108)

Embora Igor não esteja em uma situação analítica, é possível traçar alguma elucubração em torno do seguinte ponto: Igor é um ávido consumidor de imensa quantidade de gadgets, fazendo, inclusive, de seu próprio corpo este "algo a mais" na seriação do consumo. Seu não querer saber sobre a castração faz com que ele passe a ocupar o lugar objetalizado na relação com o outro, ao passo que, a partir do discurso analítico, o objeto a do matema pode se fazer posição de objeto, e não encarnar-se no sujeito do analista. Ao contrário das identificações significantes que Igor encontra no contemporâneo em torno das promessas ofertadas pelas tecnologias sobre o corpo, a condição de análise permitira, como bem destaca Alomo (2014), conferir outro status ao conceito de latusa, não como um objeto, mas sim como um lugar a ser ocupado.

Das Coisas do Amor ao Amor pelas Coisas

Igor, ao transformar o próprio corpo em latusa, se busca equivaler ao lugar de objeto a. A impossibilidade de tal equivalência é desmascarada por esse modo de se relacionar que o sujeito encontra no laço social, que se torna destituído do que Lacan denomina "coisas do amor":

O que distingue o discurso do capitalista é a Verwerfung, a rejeição; a rejeição fora de todos os campos do simbólico com aquilo que eu já disse que tem como consequência a rejeição de quê? Da castração. Toda ordem, todo discurso aparentado ao capitalismo deixa de lado o que chamaremos, simplesmente, as coisas do amor, meus bons amigos. Vocês veem isso, hein, não é pouca coisa! (Lacan, 1972/1978, p. 49)

Portanto, no sentido em que o laço social se degrada, Igor identifica-se a um ideal narcísico que demanda o olhar do outro sobre si como véu da própria castração. O corpo como objeto fetiche, mais no sentido marxista que freudiano, serve de conforto narcísico à morte, aqui representada pelas marcas da idade. É aqui que o deixar de lado as coisas do amor encontra eco no sujeito "provedor da família, bem aceito e bem relacionando com todos" (sic), cujo corpo faz parte do enredo montado por si mesmo para dar vida a um personagem, despossuído até mesmo de sua própria castração como bem de oferta simbólica. Ao contrário da alteridade, temos um discurso marcado pelo excesso de afirmação do eu, que busca excluir a diferença.

De tal sorte que o amor pode ser definido como:

Experiência de uma possível passagem da pura singularidade do acaso para um elemento que possui um valor universal. Tendo como ponto de partida algo que, reduzido a si mesmo, é um encontro apenas, quase nada, aprendemos que é possível experimentar o mundo a partir da diferença, e não só da identidade (...) ele nos conduz ao campo de uma experiência fundamental daquilo que é a diferença. (Cevasco, 2014, p. 117)

A diferença a que se refere o autor é o que marca a entrada do sujeito na linguagem. Por outro lado, a identidade (marca presença constante no discurso de Igor) é o que reúne um conglomerado de identificações que se tornam excessivas na medida em que demandam um lugar de não possibilidade de perda, de reificação da presença do eu e aniquiliação da diferença. A necessidade de ocultar e o gozo que extrai daí é o que sinaliza a presença do Outro, do semblante que despotencializa o laço social.

Ao introduzirmos a questão das identificações, cabe aqui colocarmos uma pedra de espera e melhor definirmos o que Lacan (1961/1962/2003) considera por identificação significante. Segundo o autor, para o estabelecimento de processos de identificação - ainda primários na formação do psiquismo -, é necessário que haja um componente afetivo envolvendo a relação do sujeito com o significante. Para a discussão em tela, fica evidenciado o investimento afetivo que alguns significantes ganham em torno do seu estilo de vida e das modificações em torno de seu corpo.

Sem mais delongas, tal situação remete a uma valiosa observação feita por Starnino (2016) a respeito da obra de Machado de Assis intitulada O espelho (1882 / 2008). O conto gira em torno do dilema vivido por Jacobina que, após um longo período de isolamento e solidão, experimentou uma grave crise de identidade, experimentando confusão a respeito de quem ele de fato era. Ao narrar tal episódio a alguns amigos, o protagonista conta como pode sair de tal infortúnio: vestiu-se com os trajes de alferes, sua insígnia maior recebida nos tempos de exército. Starnino (2016) ilustra tal desfecho - feliz para Jacobina - como uma forma de saída pela via do signticante, uma vez que, ao se vestir e olhar-se no espelho, Jacobina recobre a memória sobre quem ele era: eu sou o Sr. Alferes.

Assim como o Sr. Alferes, Igor apresenta a estruturação de seu processo identitário a partir do encadeamento dos significantes vividamente narrados, afetivamente sentidos e que permitem o surgimento como forma de efeito de tal processo. Assim, tal como apresentado por Lacan (1961/1962/2003), tal estrutura se dá a partir da relação entre sujeito, significante e afeto. Dado tais esclarecimentos, retomemos a discussão em torno das particularidades do laço social observadas no caso de Igor.

Para designar essa forma particular de relacionar-se, típica do discurso do capitalista, Colette Soler forjou um termo: o narcinismo (narcisismo + cinismo), uma forma de pseudolaço social para designar o individualismo que toma conta dos tempos atuais. Narciso, uma figura já bem conhecida e incorporada por Freud à psicanálise para designar, grosso modo, aquele que tem por causa somente a si mesmo, e o cínico, que designa o sujeito devoto apenas aos próprios gozos. Soler busca designar um cinismo que não possui nada em si de subversivo, mas sim uma espécie de cinismo de má qualidade, que não busca qualquer espécie de causa estrangeira a si. "Uma situação da civilização a qual os sujeitos não têm diante deles como projeto senão o sucesso pessoal, a promoção pessoal ou a derrota. [Um nome para este] individualismo a um só tempo louco e forçado" (Soler, 2011, p. 62) que Igor sustenta ao seriar seus bens materiais e colocar-se como um objeto a mais nessa conta.

Seguindo na mesma esteira de pensamento, podemos pensar o cinismo, a partir do campo da filosofia, como uma possível chave de leitura para compreendermos como o sujeito pode lidar com a castração na contemporaneidade. O cinismo é a posição subjetiva que sustenta identificações que estejam socialmente disponibilizadas e aceitas, ao mesmo tempo em que ironiza qualquer senso de determinação (Safatle, 2008). Novamente, podemos tomar o ocultamento e a satisfação que Igor possui ao ser reconhecido como mais jovem e justificando, para isto, que "está de namorada nova" (sic), mesmo não sendo condizente com a realidade. É uma posição subjetiva que "nega reflexivamente aquilo ao qual se vincula, criando assim um universo social 'carnavalesco' de aparências reflexivas, ou seja, aparências postas como aparências" (Safatle, 2008, p. 138, grifos do autor]). Para além dessa distorção que Igor promove ao utilizar da ironia para justificar as modificações estéticas, seu discurso toca a contradição e usa o cinismo para criar um enredo em que "não precisa provar mais nada para ninguém" (sic), ao mesmo tempo que tem que "ser bem aceito por todos" (sic).

Trata-se de uma forma de compreensão sobre como o neoliberalismo que afeta o cotidiano no sentido mais vulgar, mais banal, do sujeito, permitindo-o ser socialmente reconhecido. Destituir-se desse senso de determinação torna-se um recurso possível para sustentar o homem desprovido de passado, o qual Dardot e Laval (2015) colocam como o autogestor da própria existência. Não se trata de tomar o cinismo e a ironia como problemáticas particulares do discurso do capitalista, pelo contrário. Ironia e cinismo são recursos da linguagem que servem ao funcionamento e modulam também todos os outros discursos. Não há como o mestre dominar e fazer o circuito funcionar no discurso do mestre;o burocrata mercadorizar o saber no discurso universitário; e a histérica seduzir e, ao mesmo tempo, fazer falhar seu mestre no discurso da histérica, sem que tais modos privilegiados de uso da linguagem estejam presentes nas narrativas que se constroem. A modificação que ocorre aqui é em torno da instrumentalização que se faz do uso de tais artifícios, a ponto de emperrar o processo reflexivo sobre o próprio desejo e a impossibilidade de haver um giro discursivo, haja vista a superação da impotência no circuito fechado do discurso do capitalista.

O corpo que se torna um produto no mercado de técnicas de embelezamento é um exemplo da legitimação de um discurso que promete um ideal já o sabendo impossível, apesar do suporte social que sustenta tal identificação, como aponta Safatle (2008). É a sutileza da presença do discurso do capitalista nos meios de comunicação mass media que emperra a capacidade reflexiva daquele que se coloca à disposição de servir-se da "falta-a-gozar" (Soler, 2011).

Em um texto bastante preciso, o qual recomendamos vivamente a leitura, Soler apresenta a tese de que no discurso do capitalista "quando a mais-valia é a causa do desejo de toda uma economia, isso engendra o que ele [Lacan] chama 'a produção extensiva, logo insaciável, da falta-a-gozar'" (Soler, 2011, p. 58). É precioso salientar que essa falta-a-gozar não coincide com a produção extensiva da castração. Lacan (1972/1978) é enfático ao mostrar que, dado o circuito fechado do discurso do capitalista, o efeito último deste será a foraclusão da castração. Quanto a esta, "através do amor Lacan mostra o valor da falta e, curiosamente, vincula o amor à castração" (Miller, 1997, p. 499). Assim, o amor desvela a castração e tem seu suporte nela. O que está em jogo não é o suporte que a falta, ela mesma, possa implicar no desejo, mas a falta de gozo e seu impacto sobre a subjetividade. A maisvalia, ao conjugar-se com o objeto a, faz das latusas meros semblantes de amor, sempre desqualificados em sua potência de satisfazer o desejo do sujeito, porém potentes em apontar a falta-a-gozar. Assim, a tese de Soler sobre a falta-a-gozar é que ela se mostra no discurso do capitalista, uma vez que "um discurso que exclui as coisas do amor também exclui a castração" (Prudente, 2015, p. 211).

Assim, Igor demonstra como o neoliberalismo pautado na autogestão, na meritocracia e na autopromoção, na destituição do passado e ilusão de um presente autorreferente, é sustentado no discurso do capitalista por meio do alargamento do imaginário, preterindo os recursos simbólicos da fala e da ação. Compreender o uso que Igor faz das técnicas de modificação do corpo nos permite acompanhar como a indústria da beleza pode mercadorizar o corpo ao torná-lo essa mais-valia congruente ao objeto a, ($ a).

 

Neoliberalismo, Discurso da Ciência e Narcisismo

O discurso de Igor deixa patente que existe uma condição narcísica que é tocada por um saber. Este se oferece como uma espécie de promessa de resgate narcísico, um pacto, que aparece sob a forma de discursos sobre a saúde e o bem-estar. Nesta seção, analisaremos o lugar desse saber médico ao tensionar o narcisismo de nosso personagem. Nossa análise partirá do lugar do discurso da ciência na organização de vida neoliberal.

Ela [a cirurgiã] entrou em primeiro lugar na Pinheiros [Faculdade de Medicina na USP], se formou em primeiro lugar. Foi uma das melhores alunas que já passaram por lá. Pela Faculdade de Medicina da USP [FMUSP], em Pinheiros, né, uma Faculdade brilhante. Eu fiquei muito feliz de fazer a cirurgia com ela [sic].

O discurso da histérica é aquele que evidencia a castração, em que a queixa é sempre orientada para marcar a falta no outro, mas que tem como efeito desvelar a própria castração. O DH é justamente o avesso do discurso universitário e "faz objeção ao totalitarismo perverso do saber, seja ele qual for" (Quinet, 2009, p. 37). No discurso universitário, a dominante é esse saber que se torna burocratizado.

No fragmento acima temos especificamente essa forma de burocratização do saber que vemos aparecer. Uma forma de saber que possui autonomia, que serve como insígnia fálica. Funciona como se o fato de a cirurgiã ser proveniente da referida universidade servisse como espécie de indumentária, como signo de um saber dominante que valida uma discursividade. No caso de nosso entrevistado, a condição de insuficiência do saber da cirurgiã plástica que realizou os procedimentos não é evidenciada. Pelo contrário, há uma constante valorização e uma espécie de relação fetichista com a mesma. Quanto a esse lugar de prestígio e proximidade à médica, em sua posição de mestria, é digno de nota o lugar em que, por exemplo, Igor procura mantê-la. Ao ser questionado sobre de que modo conheceu a médica que lhe operou, ele respondeu, prontamente interrompendo, que:

Ah, a doutora já nem é doutora, né, ela é uma amiga nossa [...] Nós nos conhecemos por intermédio de outra amiga... faz alguns anos... e, de tanto ir, conversar, hoje a gente acaba convidando ela pra um, um, [gagueja] aniversário ou pra alguma coisa (sic).

O entusiasmo ao enaltecer as competências da formação só não é mais notório do que quando se gaba de sua relação de maior proximidade. Assim, encarnar o saber serve como uma espécie de manto sob o qual a posição de mestria se coloca para tornar-se hegemônico. Lacan, no Seminário 17 (1969-70/1991), por vezes aproxima o que ele chama de discurso do mestre moderno tanto ao discurso universitário quanto ao discurso do capitalista. Tal variação é mais perceptível neste seminário, uma vez que, na Conferência de Milão (1972/1978), a fórmula do discurso do capitalista já se encontra bem definida, sendo diferenciada apenas do discurso do mestre. Uma chave de possibilidade para minorar essa confusão demanda que se localize a variação do lugar e do estatuto do saber nos discursos.

Ao discutir a modificação do lugar do saber, Lacan parece seguir certa vereda teórica marxista, cujo percurso já aparece no Seminário 16 (1968-69/2006), em que ele iguala o saber ao que chamamos de valor, o qual, às vezes, se encarna no dinheiro, não se esquecendo de que o saber também vale dinheiro. No processo de atribuição de um valor de troca, cuja medida está na base de seu reconhecimento social, deve-se considerar o trabalho envolvido no processo de fabricação da mercadoria. Ora, é exatamente a expressão do valor desse trabalho que os enunciados de nosso entrevistado expressam no momento em que enaltece a formação da cirurgiã e a proximidade com a médica. Em torno do saber médico e do lugar de reconhecido prestígio social, cria-se uma relação de fetiche, em que o reconhecimento do trabalho agrega valor de troca na produção do corpo-mercadoria.

E o que distingue o modo capitalista de outros modos de produção não é o fato em si da produção de mercadorias, mas sim o fato de que o "ser mercadoria" constitui o caráter dominante e determinante dos seus produtos, com a implicação adicional de que o próprio trabalhador somente aparece como um vendedor de mercadorias (o seu trabalho) e, ele mesmo, como mais uma mercadoria entre as outras (lembre-se da expressão, muito apropriada, "mercado de trabalho"). (Pacheco Filho, 2015, p. 31)

Trata-se de uma modificação da relação que o sujeito constrói com o próprio corpo por meio de discursos que alternam a relação entre mercado e corpo. O sujeito torna-se mais "valorizado" por tabela, como diríamos. É como se as insígnias fálicas que conferem uma posição privilegiada ao saber da médica também o tocassem de forma tangencial. Como se obtivesse um determinado valor a mais por ter sido operado por alguém que advém de uma instituição amplamente reconhecida.

Quanto à mestria que ocupa o saber médico, damos especial destaque a uma contradição que Igor acaba trazendo. Quando discorria sobre os procedimentos que havia feito ele afirmou:

Aí, num momento depois dessa cirurgia que eu fiz [gagueja bastante]... ela [a médica] nunca induziu a nada! Nunca a nada! E a doutora nunca quis fazer coisas que as pessoas notem que você fez. Tem que fazer sem as pessoas notarem que você fez algum procedimento (sic). [...] Aí, quando eu vou lá, é: 'vou fazer isso daqui.' No laser lá, que ela tem o laser, né?! Vou lá pra fazer isso aqui! Mas, chega lá na hora... 'Então, doutora, e aí?'. [A médica:] 'Ah, se você quiser pode fazer isso e fazer isso!' 'Ah, então manda bala!'" (sic).

Ainda que de modo sutil, a médica acaba por sugerir alguns procedimentos que são imediatamente acatados. Vejamos o que acontece. Durante a entrevista, ficou evidente o receio de envelhecer, algo que toca o narcisismo e o coloca diante da inevitabilidade da castração, representada pelo envelhecimento e pela morte. Na contemporaneidade, marcada por discursos de exaltação narcísica, em que os próprios corpos se tornam latusas consumíveis, é necessário considerar o lugar do impacto da castração nesses modos de estruturação subjetiva.

Sim, acho que é muito importante... você tem... ir bem arrumado e tem um aspecto bom. Enfim, ficar velho é horroroso. [...] Você, em parte, é rejeitado! É velho, haha... é isso, é aquilo, é... [abaixa o tom da fala]. Entendeu? (sic).

Essa espécie de horror diante da ação do tempo fica ainda mais evidenciada quando notamos a popularidade que o botox ganhou entre o sexo masculino. O narcisismo em risco demanda possíveis formas de solução em uma sociedade que parece ter criado uma verdadeira aversão a tudo o que remeta à velhice. Trata-se do momento de triunfo do discurso da ciência. Lembrando que não se trata de uma formalização como os demais discursos, mas sim uma forma de manifestação da ciência dentro da cultura (Beer, 2015), o que permite um alcance rizomático muito maior. O discurso da ciência encontra, na contemporaneidade, a exposição de certa fragilidade narcísica, em que o sujeito é desafiado a se autogerir, tal como vimos anteriormente com Dardot e Laval (2015), mas que, invariavelmente, irá se deparar com o "rochedo da castração" em suas mais diversas formas. Pela falência da autogestão da felicidade via psicotrópicos, do corpo ideal desejado e insaciavelmente satisfeito ou da presença das marcas do tempo que despertam um intenso mal-estar subjetivo, a ciência é sempre invocada a responder aos atuais dilemas do corpo e da alma.

Em O Mal-estar na civilização (1930/1996), Freud é incansável em tentar nomear as diversas formas pelas quais o ser humano é convocado a responder com algum antídoto diante do mal-estar oriundo da condição castrada. No mesmo texto o autor também nos apresenta algumas possíveis fórmulas supostamente capazes de remediar o mal-estar, mas que não o aniquilam. A relação do homem com a passagem do tempo é incontornável, porém não para os preceitos do neoliberalismo e do uso que o mesmo faz da ciência.

Gaspard nos fala sobre as palavras de ordem do discurso da ciência que produzem como efeito um sujeito "à procura de práticas compensatórias" (2012, p. 365), buscando autofundação ou mesmo uma autocelebração. Tal forma de laço social encontra no atual cenário neoliberal um solo fértil, pronto para a proliferação de discursos e práticas que excluem a subjetividade em prol de uma existência em que discursos se tornam hegemônicos por abrigarem formas de organização coletiva. Nas palavras de Igor:

Eu acho que a gente deve aproveitar tudo que a modernidade oferece, a gente deve aproveitar... Hoje, vive-se mais, porque a gente tem mais recurso, dentro da medicina, tem muita medicação... Você pode tomar uma série de precauções em termos de tomar remédio para isso, para aquilo, tomar vitaminas... uma série de coisas para se manter, né, não engordar em demasia, né?! Eu acho que isso é importante, é saudável... Qualquer coisa que possa ajudar eu faria para me sentir melhor (sic).

A ciência torna-se esse algo impessoal, que despreza o tempo, que é sedutora e que gera um gozo pelo simples fator neofílico,1 em que coloca como uma espécie de obrigação de se atrair pela novidade: "vamos tá fazendo, tudo que é coisa nova, vamos tá fazendo..." (sic). É a fórmula discursiva que produz a latusa lacaniana de uma forma dissimulada e que coloca o sujeito conjugado ao objeto. Ao ser questionado sobre a relação que possuía com o próprio corpo, Igor responde da mesma maneira que Laval (2007) estabelece em seu texto sobre o homem econômico: "É o meu dia a dia! Tem uma coisa moderna... Vamos lá, vamos trocar [ao falar sobre seu corpo e sobre como lida com as coisas que possui]! Por exemplo, agora tô querendo comprar uma casa em Orlando" (sic).

Nas mãos do mestre moderno, o discurso da ciência se faz "meio de gozo". Toda produção de conhecimento se vê submissa aos princípios da eficácia e da performance. O saber que era o instrumento da dominação do político sobre o econômico (discurso do mestre antigo), agora se tornou questão principal de uma confrontação econômica generalizada a serviço exclusivo das tecnociências e da engenharia financeira (Gaspard, 2012, p. 365 [grifos do autor])

A doutrina neoliberal oferece abrigo a essa espécie de "operários de si", que se dedicam a tentar reparar a fragilidade de um narcisismo que facilmente fica capturado nas armadilhas provocadas pelo alargamento do imaginário contemporâneo. De maneira rígida, encaram a vida se autofundando sobre andaimes que descartam o passado e atiram-se à predação do saber pelo modo rizomático, que o discurso da ciência entranha nas mais diversas esferas da vida.

 

Considerações Finais

Em nosso trabalho procuramos desenvolver a ideia a respeito dos novos modos de subjetivação que o neoliberalismo acabou por produzir. Cabe, mais uma vez, ressaltar que os resultados aqui expostos não são possíveis de alcançarem grandes generalizações.

Contudo, ao considerarmos os tensionamentos propostos a partir da montagem desse modo de subjetivação neoliberal e sua possível leitura a partir da teoria dos discursos de Lacan, podemos perceber como o corpo do sujeito toma o lugar do objeto a no processo de circulação discursiva. A partir de uma condição de excesso de gozo, o corpo passa a ser customizado, construído de modo solitário, uma vez que, tal como apresentado, o sujeito torna-se um proletariado de sua própria castração.

Quanto mais nosso personagem, Igor, busca modos de burlar as lacunas entreabertas, tanto pela linguagem quanto pela própria condição inexorável do destino da carne, mais ele precisa produzir um excedente que se torna aquilo do que ele se localiza à deriva. Dos recursos do cinismo à ironia, o sujeito faz uma montagem em que ele precisa ser o escritor, roteirista e diretor da própria trama, um autogestor, que organiza o cálculo de seu gozo a partir de uma exaustiva busca por reconhecimento.

 

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Endereço para correspondência:
Tiago Humberto Rodrigues Rocha
E-mail: tiago.rocha@uftm.edu.br

Recebido em: 11/07/2019
Revisado em: 09/08/2020
Aceito em: 09/11/2020
Publicado online: 18/03/2021

 

 

1 Termo utilizado por Melman (2005) em referência à sedução contemporânea por tudo aquilo que aparece como novidade.

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