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Revista Subjetividades

versão impressa ISSN 2359-0769versão On-line ISSN 2359-0777

Rev. Subj. vol.21 no.1 Fortaleza jan./abr. 2021

http://dx.doi.org/10.5020/23590777.rs.v21i1.e10577 

RELATOS DE PESQUISA

 

"Corpos encaliçados de prisão": mulheres e subjetividades em exceção

 

"Hardened prison bodies": Women and Subjectivities in Exception

 

"Cuerpos encalizados de prisión": Mujeres y Subjetividades en Excepción

 

« Corps de prison coincés »: Femmes et Subjectivités en Exception

 

 

Caroline Cabral NunesI; João Paulo MacedoII

IMestra em Psicologia pela Universidade Federal do Piauí
IIProfessor Associado da Universidade Federal do Delta do Parnaíba (UFDPar). Vinculado aos Programas de Pós-Graduação em Psicologia da UFDPar e UFC. Bolsista de Produtividade do CNPq

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo objetiva analisar a rede de poderes na prisão e os vetores de sujeição sobre os corpos de mulheres presas em uma penitenciária mista localizada no município de Parnaíba, no Piauí. Por meio das estratégias metodológicas de observação participante e de diálogos com essas mulheres são analisadas suas dimensões da vida, como saúde, sexualidade, trabalho, bem como outros comportamentos. Para isso, utiliza os conceitos de biopolítica, apresentado por Michel Foucault, e necropolítica, proposto por Achille Mbembe, como conceitos-chave de leitura para compreender o sistema prisional brasileiro, mais especificamente o massivo encarceramento feminino. Observa-se o controle biopolítico e necropolítico dos corpos femininos, como a ausência ou insuficiência dos serviços específicos para saúde feminina, a precária alimentação fornecida, a limitação de suas sexualidades, além do abandono ou esquecimento a que muitas são submetidas no cárcere. Constatou-se que o sistema penal opera por meio de práticas machistas, classistas e racistas, prolongamento da estruturação social excludente e discriminatória, concedendo às mulheres presas pesos maiores em suas penalizações. Mas também há resistência, como a organização e solidariedade do grupo, as transgressões de normas e a construção de amizades.

Palavras-chave: mulher; prisão; bipolítica; necropolítica; poder.


ABSTRACT

The article aims to analyze the network of powers in prison and the vectors of subjection on the bodies of women arrested in a mixed prison located in the municipality of Parnaíba, Piauí. Through participatory observation methodological strategies; and dialogues with these women, their dimensions of life are analyzed, such as health, sexuality, work, and other behaviors. For that, it uses the concepts of biopolitics, presented by Michel Foucault, and necropolitics, proposed by Achille Mbembe, as key reading concepts to understand the Brazilian prison system, most specifically massive female incarceration. The biopolitical and necropolitical control of female bodies is observed, such as the absence or insufficiency of specific services for female health, the precarious food provided the limitation of their sexualities, in addition to the abandonment or forgetfulness to which many are subjected in prison. It found that the penal system operates through sexist, classist, and racist practices, prolonging the exclusionary and discriminatory social structure, granting women heavier weight in their penalties. But, there is also resistance, such as the organization and solidarity of the group, the transgression of norms, and the friendship building.

Keywords: woman; prison; biopolitics; necropolitics; power.


RESUMEN

El artículo objetiva analizar la red de poderes en la cárcel y los vectores de sujeción sobre los cuerpos de mujeres encarceladas en una cárcel mista ubicada en el municipio de Parnaíba, en Piauí. Por medio de las estrategias metodológicas de observación participante y de diálogos con estas mujeres son analizadas sus dimensiones de la vida, como salud, sexualidad, trabajo, y otros comportamientos. Para eso, se utiliza los conceptos de biopolítica, presentado por Michel Foucault, y necropolítica, propuesto por Achille Mbembe, como conceptos-clave de lectura para comprender el sistema carcelario brasileño, más específicamente el masivo encarcelamiento femenino. Se observa el control biopolítico y necropolítico de los cuerpos femeninos, como la ausencia o insuficiencia de los servicios específicos para la salud femenina, la precaria alimentación ofrecida, la limitación de sus sexualidades, además del desamparo u olvido al que muchas son sometidas en la cárcel. Se constató que el sistema penal opera por medio de prácticas machista, clasista y racista, alargamiento de la estructuración social excluyente y discriminatoria, otorgando a las mujeres encarceladas pesos mayores en sus penas. Pero también hay resistencia, como la organización y solidaridad del conjunto, las transgresiones de reglas y la construcción de amistades.

Palabras clave: mujer; cárcel; biopolítica; necropolítica; poder.


RÉSUMÉ

L'article vise à analyser le réseau des pouvoirs en prison et les vecteurs de sujétion sur les corps des femmes incarcérées dans une prison mixte située dans la municipalité de Parnaíba, dans l'état du Piauí, au Brésil. À partir des stratégies méthodologiques d'observation des participantes et des dialogues avec ces femmes, des dimensions des leurs vies sont analysées : la santé, la sexualité, le travail, ainsi que d'autres comportements. Pour cela, on utilise les concepts de biopolitique, présentés par Michel Foucault, et de nécro politiques, proposés par Achille Mbembe, comme concepts clés de lecture pour comprendre le système carcéral brésilien, plus spécifiquement l'incarcération massive des femmes. Le contrôle biopolitique et nécro politique des corps féminins est observé, par moyen de l'absence ou de l'insuffisance de services spécifiques pour la santé des femmes, de la précarité de la nourriture fournie, de la limitation de leur sexualité, et aussi, de l'abandon ou de l'oubli dont beaucoup sont victimes en prison. Il a été constaté que le système pénal fonctionne selon des pratiques sexistes, classistes et racistes, en prolongeant la structure sociale d'exclusion et de discrimination, ce qui résulte, aux femmes prisonnières, plus de poids dans leurs sanctions. Mais il y a aussi des résistances: des organisations et la solidarité du propre groupe, bien comme la transgression des normes et la construction d'amitiés.

Mots-clés: femme; prison; biopolitique; nécro politiques; puissance.


 

 

Este estudo tem o objetivo de analisar a rede de poderes na prisão e os vetores de sujeição sobre os corpos de mulheres presas em uma penitenciária mista localizada no município de Parnaíba, no Piauí. Por meio das estratégias metodológicas de observação participante e de diálogos acompanhados de entrevistas coletivas com essas mulheres são analisadas suas dimensões da vida, como saúde, sexualidade, trabalho etc. Para isso, utiliza os conceitos de biopolítica, apresentado por Michel Foucault (1988/1999), e necropolítica, proposto por Achille Mbembe (2018), como conceitos-chave de leitura para compreender o sistema prisional brasileiro, mais especificamente o massivo encarceramento feminino.

Nas últimas décadas, a crise do sistema penitenciário brasileiro tem demonstrado sua realidade mais cruel, configurando a prisão como um local de exclusão e morte. A precarização generalizada que estrutura as prisões no Brasil se materializa no encarceramento em massa, na superpopulação e na insalubridade das unidades prisionais, acompanhada pela oferta de má alimentação, pela falta ou baixa oferta de programas/ações de trabalho, renda e atividades alternativas, pelo tráfico e consumo de drogas, pela falta de cuidados em saúde, além do sofrimento psíquico e adoecimento mental diante do contexto de insegurança e violência que impera (Soares Filho & Bueno, 2016).

De acordo com o último Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, 726.354 pessoas encontravam-se presas no país até o ano de 2017 (Depen, 2017), dado que coloca o Brasil como o terceiro país que mais encarcera pessoas no mundo (Ferraz & Joffily, 2019). No caso do encarceramento feminino, o quadro é mais preocupante: registraram-se 42 mil mulheres presas em todo o país em 2016, sendo o quarto país que mais encarcera mulheres no mundo (Depen, 2018). Entre os anos 2000 e 2016 houve um aumento da ordem de 656% na população carcerária feminina, índice bastante superior, em termos proporcionais, ao crescimento da população carcerária masculina, que foi de 293% no mesmo período (Depen, 2018).

Os dados relativos ao encarceramento feminino apontam ainda que essa população é composta predominantemente por mulheres jovens (50%), negras (62%), com ensino fundamental incompleto (45%), solteiras (62%), mães (74%) e condenadas por tráfico de drogas (62%) (Depen, 2018). Trata-se de um perfil que evidencia o fenômeno de feminização e criminalização da pobreza, reforçando, conforme veremos posteriormente, o controle social e, também, sexual dos corpos femininos a partir de práticas de disciplinamento, vigilância e normalização impostas por ações ou políticas morais, religiosas, pedagógicas e medicalizantes, dentro e fora da prisão (Germano, Monteiro, & Liberato, 2018).

Assim sendo, entendemos que o aumento no encarceramento feminino reforça, por meio do braço penal do Estado, estratégias de sustentação de uma estrutura social sob o viés do patriarcado, em que impera a dominação e a exploração das mulheres. Além de expressar a seletividade com que age o sistema penal ao criminalizar sujeitos a partir da raça e da classe social, ficando evidente como este marginaliza determinadas mulheres e outras não, haja vista que a maioria das mulheres presas responde por crimes sem violência e relacionados ao tráfico ou porte de drogas ilícitas (Lima & Miranda, 2019). Fora das prisões, tal seletividade também se faz presente, sendo imposta pelas forças de segurança púbica, que recaem sob a população negra e periférica, a exemplo das situações de invasão policial às casas de mulheres negras e do racismo estrutural e institucional que sofrem diariamente nas comunidades (Germano et al., 2018).

Esse panorama explicita as teias de poderes entrelaçadas ao sistema prisional e que fornecem analisadores sobre o atual quadro do encarceramento feminino no Brasil. Daí nos embasarmos na perspectiva foucaultiana acerca do poder para entendê-lo como uma operação que se dá por meio de uma estratégia, não por posse, a partir de relações de forças multidirecionais em uma contínua relação de tensionamentos e produção de subjetividades (Foucault, 1975/2014). Partindo disso, é possível compreender como as tecnologias de controle no cárcere vão conferindo visibilidade para certo diagrama de poder que não se efetua somente por meio de disciplinas e normativas, mas por meio de uma biopolítica dos corpos, como atentou Foucault (1988/1999). Para o filósofo, há linhas de poder que visam à regulamentação dos processos biológicos, um mecanismo de controle das populações que se desenvolve ao nível da espécie e da raça. Foucault (1975/2005) denomina essa estratégia política do poder de biopolítica e defende que sua centralidade está na gestão dos fenômenos, como a natalidade, a longevidade, a sexualidade, a saúde e a mortalidade, entre outros.

Logo, se nos regimes soberanos imperava a máxima "deixar viver e fazer morrer", do ponto de vista da biopolítica, a lógica inverte-se para um "fazer viver e deixar morrer" (Foucault, 1975/2005, p.294). Trata-se de uma racionalidade que investe em certas vidas, por meio de ações de proteção e conservação, em detrimento de outras, descartáveis, com o gerenciamento das desigualdades e a precarização da vida, como no caso de pessoas negras, mulheres, indígenas, gays e transsexuais, entre outras (Caponi, 2014). Foucault (1975/2010) ainda alertava para a emergência das técnicas de normalização da vida que, historicamente amparadas pela intersecção entre o saber médico-psiquiátrico e o poder judiciário, se articulam enquanto tecnologia que institui relações de "verdade-justiça". Como efeito, recaem sob tais populações rótulos, como desviantes e perigosas à segurança social, portanto passíveis de serem excluídas ou, até mesmo, deixadas morrer ou exterminadas.

O debate sobre biopoder/biopolítica foi retomado mais recentemente por Mbembe (2018) para, a partir da analítica foucaultiana, dar visibilidade a outra forma de poder, que vem se estruturando ao longo da história e ganhando contornos diferentes na contemporaneidade. O autor camaronês chamou de necropolítica esse poder de morte ao compreender que existe um entrelaçamento da soberania, da disciplina e da biopolítica, como em um novelo, que conforma um paradigma de práticas de suspenção de direitos e que acaba fazendo da exceção uma regra. Para tanto, recupera as análises de Agamben (2004) sobre Estado de exceção, nas quais o filósofo italiano remete a uma determinada conjuntura jurídica e política que justifica a suspenção de direitos, sendo a vida reduzida ao seu mínimo biológico, justificando-se inclusive, a morte. É com base na experiência concentracionária dos campos de extermínio nazistas ao longo da Segunda Grande Guerra que Agamben (2007) visualiza o disposto jurídico-político do Estado de exceção em sua forma mais acabada, com o estabelecimento de uma zona cinzenta de indistinção entre a suspensão do ordenamento jurídico de direitos e a ordem soberana, entre o lícito e o ilícito, cuja condição de banimento e morte, no caso de judeus, testemunhas de Jeová, mulçumanos, entre outros, não estaria em desacordo com a ordem.

Pensando a partir de territórios marcados pela lógica do colonialismo e do neocolonismo, Mbembe (2018) propõe a necropolítica enquanto conceito analisador para o presente e refere-se à colônia, com seu sistema escravocrata e amplamente fincado em ideologias racistas, como "uma das primeiras manifestações da experimentação biopolítica", cuja estrutura remete a um Estado de exceção (Mbembe, 2018, p.27). Assim, o autor fornece pistas substanciais para reflexões acerca de territórios habitados por populações negras ou racializadas em exceção e toma a colônia como paradigma da política contemporânea. Neste estudo, utilizamos esse conceito para lançar a discussão no âmbito da prisão sobre um tipo de racionalidade que expõe o chamado "sujeito criminoso" (e tantos outros), a ser designado como inimigo de todos, desqualificado enquanto cidadão, como se transportasse um segmento selvagem da natureza, não reconhecido por certa ideia de humanidade.

Partindo dessas formulações, no cenário caótico das prisões brasileiras e suas operações marcadamente classistas, racistas e sexistas, este trabalho entende que as prisões brasileiras podem ser analisadas por elementos que se aproximam daquilo que Mbembe (2018) denominou como constituição tardia de colônia, ou por colônias contemporâneas, haja vista a estreita conexão entre as expressões históricas do racismo, cruelmente ampliadas na escravidão, e o papel do sistema prisional hoje, que tem se mostrado uma indústria lucrativa da punição (Davis, 2003/2018). Tais apontamentos podem ser demonstrados pelo encarceramento em massa de pessoas que se encontram às margens de uma classe social branca e dominante e, com maior ênfase na atualidade, com o encarceramento de mulheres, sobretudo aquelas advindas de contextos de miséria e vulnerabilidade social.

Este artigo busca analisar a rede de poderes, e os vetores de sujeição, a partir do diagrama biopolítico e necropolítico que incide sobre os corpos femininos na prisão. Além disso, tendo em vista a histórica invisibilidade social imposta sobre as mulheres, potencializada nos espaços prisionais, entende-se que há a necessidade de destacar essa pauta nos debates sobre as questões prisionais e a importância de tornar visível as mobilizações e vivências cotidianas das mulheres nesses espaços, compreensão que justifica o presente o estudo.

 

Método

Trata-se de uma pesquisa qualitativa, descritivo-exploratória, realizada com mulheres em cumprimento de pena de privação de liberdade na penitenciária Juiz Fontes Ibiapina, no município de Parnaíba-PI. A penitenciária é uma unidade prisional de modelo misto, com alas/celas específicas para o aprisionamento de mulheres em um estabelecimento originalmente masculino. Durante a pesquisa, registramos 613 detentos, dos quais 56 eram mulheres, sendo que a capacidade inicial é de 180 vagas. As mulheres ficam alojadas em um único pavilhão, composto por 17 celas, um corredor e um pequeno pátio, aos fundos, para o banho de sol. Além da superlotação, as instalações foram construídas no espaço de um mercado público inativo, o que contribui para a precária estrutura da instituição.

Como instrumentos para a produção dos dados, utilizaram-se diários de campo para o registro das observações das cenas vividas e conversas realizadas ao longo de dez meses de inserção no campo durante o ano de 2019. O diário se constitui como importante ferramenta analítica no processo de produção do trabalho, em que, a partir das leituras e releituras dos registros, foi possível estabelecer um diálogo com diferentes vozes que se intercruzaram ao longo do percurso da pesquisa (Kastrup & Barros, 2009; Pozzana de Barros & Kastrup, 2009). Também foram utilizadas entrevistas coletivas, que ocorreram em seis encontros, tendo como ponto de partida temas pensados durante a inserção em campo e na releitura dos diários, de acordo com os objetivos da pesquisa, sendo eles: relação com a justiça/ingresso no sistema prisional, saúde, maternidade, sexualidade, relacionamentos e "ser mulher" na prisão.

O convite para a participação nas entrevistas coletivas foi realizado durante as visitas ao pavilhão, momento em que também eram informados os objetivos da pesquisa e datas em que ocorreriam os encontros. Devido à dinâmica da instituição, os encontros possuíram caráter aberto, não sendo fixada uma quantidade de participantes, tendo como único critério de inclusão o interesse em participar. Assim, em cada encontro, houve uma média de 10 a 12 participantes, que nem sempre eram as mesmas do anterior. As identidades das participantes foram preservadas com nomes fictícios.

Os resultados apresentados a seguir são trechos dos diários de campo e das entrevistas coletivas e estão estruturados em dois eixos: a) "A gente só pode se ver na sombra": poderes que fazem viver e deixam morrer, em que abordamos os vetores de sujeição feminina no cárcere, como corpo, saúde e sexualidade; e b) "A ação da gente é bater nas grades": entre o poder e a resistência na prisão, cujas análises tratam das estratégias de enfrentamento e resistência feminina na prisão. Foram cumpridos todos os aspectos éticos pertinentes à pesquisa, contando com aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Piauí.

"A gente só pode se ver na sombra": poderes que fazem viver e deixam morrer

As cenas vivenciadas e os relatos das mulheres presas que detalharemos a seguir permitem visualizar diferentes marcas e sujeições a partir da disciplina e do controle dos seus corpos para o direcionamento de suas condutas ao instituir certas verdades sobre si e o mundo. São corpos tecidos nas relações cotidianas por incidências minuciosas e capilarizadas de poderes a partir da vigilância não apenas por parte dos operadores do sistema penitenciário, mas, por vezes, expressa entre os/as próprios/os presos/as, além do controle do tempo, das atividades e das sanções e rotinas a que são submetidos pelos agentes penitenciários e equipes de saúde, educação etc. (Foucault, 1975/2014).

Os corpos nas prisões, por esse aspecto, são os que falam e que carregam consigo as histórias vividas no cárcere, espécie de um corpo-diário, permeado de inscrições e marcas. Foi nesse sentido que Marilena, participante da pesquisa, declarou: "Já chega, não dá mais pra mim, não! Meu corpo já está encaliçado de prisão". Encaliçar significa revestir de caliça. No sentido apresentado, refere-se ao material de argamassa popularmente conhecido como "cal", um pó branco que se utiliza em construções. Marilena foi precisa ao utilizar o termo, com seu saber testemunhal e que, muitas vezes, é desqualificado pela rede de poderes hegemônicos, ao dar visibilidade à sobreposição de práticas, procedimentos e dinâmicas que recaem sobre os corpos na prisão, atravessados por regras rígidas, punições, constrangimentos e violências. Como caliça, que vai se justapondo e revestindo os corpos de pó, a rede de poderes com suas linhas disciplinar, biopolítica e necropolítica avançam sobre os corpos e as subjetividades na prisão, sob o julgo de um Estado de exceção permanente.

Ao longo das andanças e diálogos no presídio, foi notável a interface dessa rede de poderes com o racismo e o sexismo presente entre os muros da prisão, e o quanto estes se apresentavam como um prolongamento do controle generalizado sobre corpos antes mesmo da condição do cárcere.

A minha menstruação é muito forte, chego a usar de oito pacotes de absorvente, e esses são pequenos, tenho que botar de dois. Quando tô menstruada, não ando nem lá fora. (...) Acho que foi por causa da cirurgia que fiz. Com 16 anos fui ligada, porque eu tive meu primeiro filho com 13 e o segundo, com 16. Aí, meu irmão ficava brigando, dizendo que eu ia parir uns seis filhos. Como eu tinha um tio que era médico, ele fez a ligação. No hospital, botou lá no papel como se eu fosse tirar um cisto e fez a ligação (Helenira, Diário de Campo, 13.02.2019).

O controle da vida, da biologia e da sexualidade de quem está presa é realizado sob tecnologias de poder que vão se apossando de suas existências, com uma força que se coloca com maior intensidade quanto mais marcadores sociais existirem sobre esses corpos. Nesse sentido, embora a biopolítica, com suas extensões necropolíticas, exerça seu controle de forma geral e ampliada sobre as populações, evidentemente que ela se dá de forma diferente quando analisada a partir da categoria gênero, especialmente na condição do cárcere, posto que sobre o corpo feminino pesam estigmas sociais e culturais de como a mulher deveria se comportar, isto é, passiva e submissa ao homem, voltada para o cuidado e proteção dos filhos, do lar e com sexualidade controlada ou regulada (Carvalho & Mayorga, 2017).

A denúncia de Helenira diz de uma vida marcada por intervenções científicas e morais a partir do controle, da repressão de sua vida sexual e da sua própria condição de mulher. Nesse sentido, a prisão segue como um espaço de intensificação das práticas de controle sobre a existência feminina, que se tornam bem mais desumanizadoras ali dentro, contudo a gestão da saúde das mulheres presas não se dava apenas no que se refere à saúde ginecológica, mas generalizava-se para outras situações

Aqui os remédios que eles dão pra gente é pra gente ficar pior! Eu fiz uma cirurgia de hérnia antes de vir pra cá, mas acho que algo saiu errado, porque fica sangrando como se eu estivesse menstruada. Já procurei atendimento aqui, mas só sabem passar dipirona! E tem mais: das próximas vezes que eu for lá, não deixo ninguém tocar na minha barriga, porque, da última vez, aquele doutor apertou demais no local (Dinaelza).

Uma vez eu tava doente, com febre, dor, e a agente mandou eu tomar banho e deitar. Ela só falou isso! Acho que era bem pra eu morrer banhadinha (Alceri)

(Diário de Campo, 29.04.2019).

Vê-se o resultado da biopolítica, que valoriza algumas vidas e renega a existência de outras, possibilitando, inclusive, que sejam descartadas. Portanto, não é exagero pensar a prisão como uma visibilização da instância de poder que se exerce sobre esses corpos e que assume configurações de um processo de produção de vidas matáveis. A prisão passou, então, a possuir função de depósito daqueles considerados indesejáveis (Davis, 2003/2018).

Percebe-se, pelo exposto, o entrelaçamento da biopolítica com a necropolítica, potencializando a sujeição desses corpos femininos, pois, assim como o corpo das escravas, o corpo das mulheres presas é destituído de qualquer direito, tratado como objeto e sem nenhum valor (Pessanha & Nascimento, 2018). É um corpo "mantido vivo, mas em 'estado de injúria', em um mundo espectral de horrores, crueldade e profanidade intensos" (Mbembe, 2018, p.28)

A gente somos seres humanos, entendeu? Não é porque a gente tá presa que a gente é um animal, que a gente é um bicho, não! Por que a gente é desclassificado? A gente tem que ser tratado conforme são os direitos no presídio. Muitas das vezes, quando a gente tá precisando de um comprimido, as agentes até pensa que é brincadeira da cara da gente, pensa que a gente não tá doente, mas a gente tá! A gente precisa, pô! (Dinalva)

Aqui dentro [na penitenciária] a gente já encontramos [na comida] pedra, já encontramos plástico, pedaço de sacola, cabelo. Ah, e o ovo vem roxinho! (Marilena)

Cabelo é o que mais encontramos na comida. Mas a gente tá com fome e tem que comer assim mesmo, num vai passar fome. Daqui um dia, a gente vai achar um dente (...) Daqui um dia, a gente tá passando fome. Só a comida do presídio não sustenta, não. O caso é sério! Aí, agora, tá tendo umas mudanças, disse que a visita vai ser de 15 em 15 dias... Meu amigo, era melhor abrir os portão e dizer assim "tá todo mundo liberado, pode embora", porque tá difícil. (Dinalva)

(Entrevista coletiva, 11.10.2019).

O estado de injúria e crueldade descrito por Mbembe (2018) ao tratar da realidade colonial também se faz presente na prisão, apesar dos reclames cotidianos das mulheres sobre se sentirem humilhadas, tratadas como bichos, que não aceitam que "não sejam tratadas como gente". Afinal, essa condição não deveria retirar-lhes direitos básicos, como saúde, alimentação adequada, entre outros. Assim como restava aos povos colonizados uma condição de inferioridade e de penúria, conforme aponta o autor camaronês, elas assumem a condição de vidas desqualificadas, matáveis, uma vez que são deixadas ao adoecimento e, por vezes, à fome. O descaso do Estado com necessidades tão básicas evidencia esse Estado de exceção permanente do qual fala Mbembe (2018). Se a situação é mantida sem que ninguém seja responsabilizado e ainda é agravada, como denunciam as mulheres, é possível pensar a prisão, de fato, como uma atualização da lógica colonial, em que os corpos que ali se encontram confinados são destituídos de seu valor político e humanidade.

Tô há 6 meses com dor na barriga e o médico vem dizer que é psicológico, que não posso fazer exame, porque agora só vai pra exame quem estiver com urgência. Ignorante! Ele disse "isso aqui é um presídio agora, não uma colônia de férias". (Áurea, Diário de Campo, 22.08.2019)

A gente se revolta, porque é tipo como se a gente não fosse gente. Eu aqui tenho certeza que já vi gente fingir que tava passando mal, mas eu também já vi gente que tava passando mal e ficou quieto. E por aquelas que fingem que tão passando mal, todas pagam. Aí, por aquilo, ela [a agente] tira por todas. Nem todas as agentes. Tem umas que, quando vêm, elas levam, mas tem algumas que ficam com deboche: "ah, dá uma droga pra ela que ela fica boa". Só acham que tá passando mal quando tá pra morrer. (Labibe)

"Cadê? Já morreu? Ah, então não tá doente, não, que ainda não morreu". "Teve o dia todinho e vem passar mal agora?" (Maria Célia)

Muitas das vezes dizem que é abstinência de droga ou dizem assim: "e hoje ninguém é pra passar mal, não, que o plantão é meu!". (Marilena)

"Não é pra adoecer à noite, só durante o dia". É o que elas falam. (Solange)

(Entrevista coletiva, 11.10.2019)

A política de morte que encaliça os corpos na prisão, como refere Marilena, apresenta-se no visível descaso com que eram tratadas as questões de saúde na unidade prisional investigada, fosse dificultando o acesso aos serviços médicos ou de enfermagem, ou com a compulsória "regra" de terem que provar que estavam doentes. A saúde, que deveria ser um direito inalienável, era, por vezes, entendida pelos operadores da unidade prisional como um suposto benefício, ou seja, teriam direito, mesmo que precário, se as presas fossem julgadas como merecedoras. Por vezes, precisavam lidar com a indiferença por parte dos agentes quando estes sugeriam que até para ficar doente havia horário.

Pessanha e Nascimento (2018) salientam que o Estado executa seu controle social por meio das instituições de saúde, educação e de segurança. Este se materializa em práticas discriminatórias e excludentes; por vezes, assassinas. O racismo se torna um mecanismo de regulação biopolítica e necropolítica dos corpos e da vida, "beneficiando o grupo racial hegemônico em detrimento do grupo racial indesejado, considerado inferior e que não somente será deixado desprotegido como também pode ser alvo de extermínio pelas mãos do Estado se este assim o desejar" (Pessanha & Nascimento, 2018, p.151). Logo, como demonstrado nas falas anteriores, essas lógicas que deixavam morrer não passavam despercebidas pelas mulheres desta pesquisa, pelo contrário, eram sentidas e declaradas com revolta:

A gente morre aqui dentro e ninguém faz nada! (Ana Maria)

(Diário de Campo, 26.07.2019).

Às vezes, gente nem pode falar nada, porque a gente é punida, né? (Marilena)

Às vezes não, qualquer hora! (Dinalva)

Se a gente disser, "mas isso aqui não é o caso de parar essa dor por muito tempo, é forte", se a gente falar, "se cale, senão você vai pra triagem1! Você quer ir pra triagem1!. E a gente tem que se calar com a dor. É suportar! (Marilena)

É só deitar com a dor e tentar esquecer ela. (Labibe)

(Entrevista coletiva, 11.10.2019)

A afetividade e a sexualidade também eram alvo de controle, regulação e sujeição na prisão. As vidas das mulheres na prisão são marcadas por histórias de abandono, quer seja por parte dos parceiros, quer seja por familiares e filhos. As mães e as filhas das presas são quem ainda mantêm certa "regularidade" nas visitas familiares, mas, no caso de algumas presas, nem isso. Além disso, são submetidas a terem que comprovar oficialmente serem casadas ou terem união estável para o direito à visita íntima, inclusive no caso de os parceiros serem da mesma unidade prisional. No caso das relações homoafetivas, da mesma forma, sendo ainda mais constrangedoras. Mas tais regras não tinham o mesmo peso e exigência no caso dos homens, inclusive se as visitas íntimas fossem com as parentes de outros (as) presos(as).

Trata-se de normas que incidem de forma diferente entre as relações de gênero e o exercício da sexualidade na prisão, corroborando com a percepção foucaultiana sobre o quanto o sexo, enquanto objeto de poder e saber, é utilizado não apenas para um disciplinamento em nível individual, mas como tecnologia para a administração de todo o corpo social (Candiotto, 2011). No caso das mulheres, a vigilância e a disciplina sobre seus corpos e sexualidade na prisão se dá em prol da manutenção de instituições e papéis sociais, como família, matrimônio e maternidade, preservando a superioridade masculina sobre a feminina (Bittencourt, 2015).

Ressalta-se que não era apenas sobre o ato sexual em si que esse monitoramento e sanções se dava, mas também sobre como se embelezavam ao fazerem uso de maquiagens e adereços; ou sobre as roupas que usavam; assim como nos comportamentos e gestos, por exemplo: as mulheres deveriam caminhar pelas áreas de circulação da penitenciária sem olhar para os homens, de cabeça baixa durante o trajeto.

O mínimo que é pra gente se sentir mulher, eles tão proibindo. O básico. Ninguém vai matar ninguém com um lápis de olho ou com um batom, um esmalte. Vamos virar bicho da caverna. Porque nós já tamo presa, só falta virar bicho. (Pauline)

Se eles verem um espelho, eles tomam! Pode nem saber como que tá o rosto, não. Aqui a gente não pode saber como a gente é, não. Se olhar no espelho, eles [os agentes]: "me dê aqui!". Quem tem um pedacinho, tem que esconder. Pode nem saber se tá bonito ou se tá feio. A menina tinha um pedacinho de CD. Só porque ela se olhou, a agente L. passou e levou. Não pode! Não pode se ver! Tem que se conhecer assim. A gente só pode se ver na sombra quando vem aqui fora. E olhe lá! Se estiver fazendo sol! (Maria Augusta)

(Entrevista coletiva, 08.11.2019)

O controle e as sujeições vividos pela condição feminina no cárcere são traduzidos na pele e pelo testemunho das participantes, com relatos permeados de sentimentos e percepções de como se estivessem mortas, anuladas, como se fossem bichos, selvagens, e não se reconhecessem. As estratégias de não reconhecimento e despersonalização impostas às mulheres no cárcere alinham vetores racistas, classistas e misóginos, uma vez que as mulheres vão tendo suas subjetividades apagadas a tal ponto que o que resta é o sentimento de morte. Por essa lógica, entende-se o quanto que o novelo disciplina, biopolítica e necropolítica, presente na realidade das prisões brasileiras, reduz a pluralidade humana ao nível biológico e, dessa forma, ao usurpar a dimensão política e múltipla de existência do sujeito, o deixa nas sombras de uma vida sem valor (Caponi, 2014).

Ao só poderem se ver nas sombras, as mulheres vão sendo obrigadas a se desconhecerem, esquecerem-se de si, de seus rostos, seus sorrisos. Através das sombras, vão sendo vagarosamente esquecidas pelo Estado e, às vezes, até mesmo por seus pares. Assim, as teias dos poderes percorrem seus corpos expondo relações de força sobre força, ação sobre ação, como remete Foucault (1975/2014), e vão se infiltrando na pele, pelas veias e percorrendo as subjetividades dessas mulheres, assumindo, mesmo que sutilmente, ou não, um caráter mais brutal sobre seus corpos. São marcas que se amontoam e se sedimentam, encaliçando seus corpos de tal maneira que os expõem à morte, mesmo que simbólica, tornando a prisão uma espécie de máquina de enterrar vidas.

Eu, sinceramente, morri e falta só enterrar. Aqui dentro eu não sou nada. Eu não me sinto mulher. Nem mulher e nem ser humano. Me sinto mais um animal trancado, por querer uma coisa e não poder. Isso não é nem ser mulher nem ser humano. Privado de tudo! Quando entra aquele monte de gente pra olhar pra gente, eu me sinto um animal dentro do zoológico. Não tem os estudantes que vêm? Quando eles entram, eu tô lá em cima, na cama e me lembro de quando vou pro Canindé, que a gente fica passando e vendo aqueles animais dentro das jaulas. Assim eu me sinto quando aqueles estudantes entram. Pra mim, eles tão tudo olhando assim "olha, essa daqui matou, roubou, traficou. Aquele dali é isso..." Pra mim, eu me sinto um animal. Um animal num tem hora pra comer? Alguns deles, tipo um cachorro, num tem hora certa pra levar pra passear? Nós aqui também, tem horas pra vir aqui. (Pauline. Entrevista coletiva, 08.11.2019)

Goffman (1961/2010) faz referência sobre essa perda de autonomia, escolha pessoal e de referências a partir do que chamou de despersonalização, que se produz em instituições como a prisão. Para as mulheres desta pesquisa, não poderem ter o mínimo de autonomia possível sobre suas vidas, ainda que em situação de cárcere, as fazia sentirem-se menos mulher, menos humana.

Importante atentar o quanto as relações de poder disciplinar, biopolítico e necropolítica nas prisões brasileiras se anovelam com matrizes interseccionais de dominação de raça, etnia, classe, gênero, sexualidade e idade. Por interseccionalidade, Crenshaw (1994), também debatido no Brasil por Akotirene (2019), compreende uma lente de análise que incorpora as várias maneiras pelas quais o gênero, a raça e demais dimensões políticas se inter-relacionam e moldam as experiências de distintos grupos, por exemplo, de mulheres, e circunscrevem diferentes relações de exploração e dominação. A vida de Aurora, uma das participantes da pesquisa, mulher pobre, mãe de quatro filhos, negra e com baixa escolaridade, nos permite visualizar um pouco melhor isto:

Perdi minha mãe. Depois, meus irmãos foram se envolvendo com droga, roubo e tudo. Hoje em dia, aconteceu a mesma coisa comigo, de eu tá aqui [Se emociona e permanece um período em silêncio]. (Aurora)

É, tipo assim, a vida dela é complicada. A mãe dela faleceu, os irmãos se envolveram no crime. Um irmão acabou matando o outro por causa da morte do pai. Tudo por causa disso, deles estarem drogados. A mãe dela começou a beber muito, foi pra rua e não dava mais conta dos filhos. Uma irmã dela morreu no parto e deixou as crianças pequenas. A mãe, pra cuidar das crianças, começou a beber muito, aí eram os filhos que precisavam dar conta. Foram se envolvendo com droga. Foi assim. (Maria Célia)

(Entrevista coletiva, 02.10.2019)

Não obstante ao regime da prisão, alguns dos marcadores sociais que compõem esse ambiente vão se estabelecendo como tecnologias de morte/mortificação. Essa lógica de encarceramento, que se exerce principalmente sobre determinados corpos, era facilmente perceptível pelas mulheres que se encontravam atrás das grades. Os corpos eram negros. E quando não eram, se tratavam de corpos produzidos em contextos de exclusão social. Não que não houvesse mulheres brancas presas, e sobre estas não houvesse violações de direitos ou que fossem mais brandas. Mas sobre as mulheres brancas não recai o peso de uma história marcada (e que ainda se faz presente) pela colonização, exclusão, indiferença, violência e extermínio de seus corpos. Esse cenário faz visível a relação "senzala-favela-prisão situando-a no continuum penal que marca a transição entre escravidão e democracia" no Brasil (Alves, 2017, p.107).

Assim sendo, o diagrama de poderes na prisão permite a compreensão de que o sistema penal e as dinâmicas no cotidiano de mulheres em privação de liberdade representam uma cadeia de múltiplas violências que as mulheres sofrem no seu cotidiano, e que, de tão estruturadas e institucionalizadas, fazem ver e dizer os modos como o sistema penal é racializado; e como a maioria negra e pobre que constitui a população carcerária, especialmente a feminina, é submetida não somente a uma dominação por seu gênero, mas também por sua cor de pele e classe (Davis, 2003/2018).

 

"A ação da gente é bater nas grades": entre o poder e a resistência na prisão

Foucault (1975/2014) indica que é necessário analisar os mecanismos de poder a partir de um campo de correlações de forças, ou seja, da mesma forma que essas relações por parte dos dominantes atravessam as instituições e, mais microfisicamente, os corpo ali localizados, também há resistências, forças que se chocam, que disputam e, nesse sentido, são contrapoderes dentro desse jogo de forças (Foucault, 1988/1999).

No campo de investigação deste estudo, as relações de poder vão sendo atravessadas não apenas unilateralmente: as mulheres ali resistem! Por isso, a análise das relações de força na prisão passa pela compreensão de que "onde há poder, há resistência e, no entanto (ou melhor, por isso mesmo), esta nunca se encontra em posição de exterioridade em relação ao poder" (Foucault, 1988/1999, p.91).

Os enfrentamentos acontecem na prisão mesmo sob o risco de serem punidas. Assim, as mulheres conduzem suas rotinas permeadas de movimentos insurgentes, seja na denúncia da precariedade da estrutura da unidade ou dos serviços de saúde e de alimentação; seja pelas alternativas encontradas para expressar suas sexualidades; seja, ainda, na solidariedade existente entre as participantes do grupo, ainda que entre elas existam adversidades no dia a dia.

Por exemplo, era comum que, devido à divisão das celas e às regras existentes, o grupo expressasse o quanto as ações de ajuda e comunicação entre elas eram enfraquecidas ou barradas. No entanto isso não as impossibilitava de reivindicarem seus direitos, como nas situações em que alguma delas passa por algum problema de saúde na cela:

É uma situação chata. Você vê que existe pessoa que tá precisando ser socorrida, que tá precisando de ajuda, e você não pode chegar e dizer "vem, vem, eu vou te levantar desse lugar e vou fazer alguma coisa por você", não poder fazer nada. A ação da gente é bater nas grades até aparecer alguém que destranque o cadeado e tire aquela pessoa que tá ali (Dinalva. Entrevista coletiva, 02.10.2019)

Nesse sentido, por já saberem como funcionava a máquina de morte da prisão, ainda que pudessem ser punidas, lutam para se esquivar de suas engrenagens ou desviar de suas capturas. Isso faz atentar que o "encaliçado" de Marilena não se referia somente ao apagamento e assujeitamento imposto pela prisão, mas também ao corpo que criou calos, cicatrizes resultantes de um atrito repetitivo, de uma violência sobre áreas da pele cuja dor o corpo precisou sobreviver. Calejar significa endurecer, tornar a pele resistente ao atrito, à dor e ao sofrimento. Calejar significa um corpo que, diante de uma situação repetidamente violenta, teve que aprender a resistir, criar uma superfície grossa e dura sobre a pele, teve que aprender a se proteger. Logo, o encaliçado não significa apenas silenciar, docilizar e sujeitar os corpos, mas também indica pistas de como tais corpos femininos na prisão produzem resistências e contracondutas diante das disciplinas, dos controles e das práticas de governo, ou mesmo que se pretendem necropolíticas na prisão.

A gente ver uma pessoa que tá passando mal, precisando de socorro e a gente não poder fazer nada porque tá trancada? Não sei se você soube da situação de uma vir a falecer aqui dentro do presídio por conta de umas queimaduras. Foi devido à demora. Acabou que ela veio a óbito, não aqui, mas, pra quem viu, aquela cena foi uma situação muito desesperadora, sabe? A gente não tá gritando por gritar, pra ser chamada atenção, pra ir parar na triagem. Algum motivo a gente tem por tá batendo nas grades, por tá se alterando. (Dinalva)

Geralmente, a gente pega até umas broncas das agentes por a gente tá gritando e elas falam assim "tem horário até pra adoecer aqui!". (Marilena)

(Entrevista coletiva, 02.10.2019)

Não poder ajudar as companheiras é algo desesperador para as mulheres. Seus gritos não eram sem motivo! Os gritos de socorro não eram somente por atendimento médico, mas de revolta contra a situação desumana e devastada do sistema prisional. Gritos de denúncia contra a exceção transformada em norma em que vivem. Essa condição necropolítica em que se estrutura a prisão é entendida por elas de forma testemunhal ao explicarem o quanto, às vezes, parece em vão lutar contra a violência institucional.

A gente tá aqui pra se ajudar. (Dinalva)

Mas, agora, não pode mais ajudar, tem que deixar morrer. (Maria Célia)

Se juntar todo mundo, tem que meter o grito tudo igual, pra ser alto, porque se triscar na cela, é spray de pimenta na cara ou bala de borracha. (Maria Augusta) (Entrevista coletiva em 02.10.2019)

Mas, sabiamente, as mulheres logo percebem que, na correlação de forças que circulam pelo cotidiano da prisão e que tentam se inscrever sobre seus corpos nua e cruelmente, ao investirem contra a lógica institucional, mesmo que suas lutas e ações sejam desmobilizadas ou sofram fragmentação em algum momento, é preciso novas investidas de contrapoderes e invenção de táticas para continuarem a resistir e respirar por dentro da estrutura prisional.

O "fazer matar" da prisão, quando não duramente violento, não se refere a um acontecimento rápido. O tempo de produção de morte/mortificação na prisão acontece de forma lenta e prolongada (Bento, 2018), no entanto a organização das mulheres para tentarem sobreviver às malhas do poder dialoga diretamente com aquilo proposto por Pelbart (2013) quando refere que seria um erro falar apenas de uma vida sem valor, de exceção em detrimento das resistências. Para o autor, interessa bem mais falar de uma potência de vida. Por esse aspecto, é exatamente no extremo que se dá a resistência, ou seja, que se produz uma vida, novas virtualidades, coletivo de forças, novas formas, novos territórios e singularidades.

Ao retomarmos as passagens das entrevistas em que as mulheres fizeram referência ao fato de se sentirem como animais, percebemos, naquele momento, que expressavam se sentirem indefesas e acuadas pelas malhas do poder, porém não podemos ignorar a potência em resistirem às ameaças e violências ao transgredirem normas e romperem com as estruturas de comando e de poder (Pelbart, 2007).

Eu vou falar um assunto muito importante. Eu não sei se devo ou não devo, mas aí quem tem boca fala o que quer, quem tem ouvido ouve o que não quer. A boca é minha via, então eu vou falar! Uma coisa que eu acho muito errado, sem brincadeira nenhuma. Antes, não existiam essas leis. Hoje, se você bater na grade, você vai pra triagem. Meu amor, se é caso de saúde, num quer saber se tá batendo na grade, não. (Dinalva, Entrevista Coletiva, 02.10.2019)

Nesses termos, para pensar a prisão a partir das múltiplas linhas de força que atravessam os corpos femininos no cárcere faz-se necessário entender como os poderes circunscrevem modos de (re)existir e como esses modos são materializados e recolocados a partir da prática de contracondutas e insubordinações diante das tentativas de sujeição dos seus corpos e produção de subjetividades em exceção.

Assim sendo, apesar dos marcadores de gênero, raça, etnia, classe e sexualidade serem vetores de desigualdade e violência, eles também produzem mobilizações coletivas, uma "escapatória frente às tentativas de traduzir a existência pelo crivo dominante do capital" (Mansano, 2009, p.112). Com isso, as mulheres utilizam a boca como via, assim como referiu Dinalva, ao denunciar, gritar e quebrar as grades da prisão.

Ademais, é a partir da partilha de uma realidade comum, das lutas, das relações de solidariedade, que também emergem a amizade e o cuidado umas com as outras como formar de promover vida, de se divertirem, sorrirem, dividirem sonhos e tentarem esquecer, pelo menos por alguns segundos, a situação de cárcere a que são submetidas. "A gente brinca assim, a gente ri porque a gente tem que brincar com a situação às vezes. Só sei de uma coisa: nós tá rindo aqui, mas a vida tá toda lascada lá dentro" (Marilena. Entrevista coletiva, 11.10.2019).

Por esse aspecto, a prisão figura como lugar de exclusão e morte/mortificação também de produção de resistências, pois, como coloca Ribeiro (2018), as "subjetividades marginalizadas" pelo capital e engendradas em contextos de exceção e vulnerabilidade, sobretudo aquelas atravessadas por marcadores de raça, gênero e classe, reclamam pra si estratégias de sobrevivência e enfrentamento, e fazem surgir possibilidades de desvio das ações políticas (p.193). Assim, mesmo sendo obrigadas a se verem nas sombras, há os dias em que o sol sai e, nestes, as mulheres vão se enxergando como pontos de luz que, mesmo com uma energia oscilante, se mantêm acesos e reluzentes, pois "ao poder sobre a vida responde a potência de vida" (Pelbart, 2007, p.58).

 

Considerações Finais

Diante das discussões apresentadas, nosso objetivo era analisar a rede de poderes na prisão e os vetores de sujeição sobre os corpos de mulheres presas. Com isso, foi possível visualizar como o diagrama de forças em nosso campo de investigação vai sendo produzido por poderes que se enlaçam no campo das disciplinas e da gestão da vida, por meio de uma biopolítica e também da morte, aspectos da necropolítica, produzindo subjetividades em exceção. Essas técnicas de controle e de governo de condutas ganham outras dimensões quando falamos de existências consideradas à margem daquelas cujas vidas são protegidas e validadas. Esse é o caso dos corpos que são mais intensamente expostos e marcados pelas tecnologias dos poderes e de controle, conforme expõem as estatísticas que tratam do grande encarceramento da população pobre, negra, jovem e periférica, o que inclui também as mulheres.

Observamos, ao longo do estudo, inúmeras práticas que tentam neutralizar os corpos das mulheres presas, regular seus processos de saúde, suas sexualidades, relacionamentos e subjetividades. No entanto, nesse diagrama de poderes, também se faz presente contrapoderes, por parte das mulheres, de modo que constantemente subvertem a ordem e criam formas de existir para conseguirem produzir resistência e sustentarem-se na vida, mesmo na condição do cárcere. Mesmo sob a imagem de "corpos encaliçados", cujas sujeições pretendem silenciar, apagar, enterrar ainda que simbolicamente ou aniquilar tais corpos, visualizamos resistências. Nesse sentido, são corpos que apresentam a potência para deslocar, em alguma medida, o pó da caliça impregnado de prisão; e, de outro ponto de vista, que calejaram diante da condição do cárcere, produzindo novas dobras em suas subjetividades e resistências ao produzirem outras formas de si verem, pensarem e agirem na prisão ao provocarem tensões, fissuras e rachaduras por entre as malhas do poder, provocando aberturas, por onde passa a potência de vida, expressa por sua força e gritos de resistência que ressoam para além dos muros da prisão.

Por fim, o presente trabalho se mostrou potente ao nos aproximar da realidade vivenciada por mulheres presas e suas lutas cotidianas. Realidade essa que, muito provavelmente, não se limita apenas a essa unidade prisional especificamente, mas que confere visibilidade para demais fenômenos que se estendem por todo o sistema prisional brasileiro: infraestrutura precária, alimentação inadequada, procedimentos invasivos e humilhantes, dificuldade no acesso à saúde, violência estrutural e institucional, e seletividade penal, entre outros.

Além disso, os desafios de um estudo em uma instituição cuja dinâmica é operada por procedimentos rígidos e sistemáticos impôs uma série de limitações e burocracias que obstaculizaram o desenvolvimento da pesquisa, por exemplo: alterações nas regras e impedimentos de acesso e realização de atividades de campo sem que fôssemos informados; interferência nas atividades e realização das entrevistas coletivas por parte da equipe de agentes penitenciários; ou mesmo na insegurança que a própria instituição prisional representa em função da precariedade das instalações e de pessoal. No entanto tais desafios exigiram abertura para um novo processo formativo no ato de pesquisar, produzindo aprendizados e experimentações de si e do outro. Sem dúvida, foi uma experiência que proporcionou singularizações para a própria pesquisa, e que nos impactou enquanto pesquisadores ao entrar em contato mais de perto com o cotidiano institucional de uma unidade prisional, além de abrir espaço para a construção de pontes, diálogos e políticas de amizade com as participantes da pesquisa.

 

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Endereço para correspondência:
Caroline Cabral Nunes
E-mail: carolcabral_n@hotmail.com

João Paulo Macedo
E-mail: jpamcedo@ufpi.edu.br

Recebido em: 21/02/2020
Revisado em: 16/07/2020
Aceito em: 26/07/2020
Publicado online: 22/03/2021

 

 

1 Celas específicas para alojamento de presas durante algum período de punição devido ao descumprimento de alguma regra. Durante esse período, há a perda de benefícios, a exemplos de: visitas, banho de sol, participação em eventos e projetos.

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