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Revista Subjetividades

versión impresa ISSN 2359-0769versión On-line ISSN 2359-0777

Rev. Subj. vol.21 no.2 Fortaleza mayo/ago. 2021

http://dx.doi.org/10.5020/23590777.rs.v21i2.e10034 

ESTUDOS TEÓRICOS

 

O Que Resta do Internamento: Loucura, Exclusão e Biopolítica em Michel Foucault e Giorgio Agamben

 

What's Left of Internment: Madness, Exclusion, and Biopolitics in Michel Foucault and Giorgio Agamben

 

Lo que Queda del Internamiento: Locura, Exclusión y Biopolítica en Michel Foucault y Giorgio Agamben

 

Ce qu'il Reste de l'Institutionnalisation : Folie, Exclusion et Biopolitique chez Michel Foucault et Giorgio Agamben

 

 

Felipe Dutra DemetriI; Maria Juracy Filgueiras ToneliII

IDoutorando em Psicologia na área de Psicologia Social e Cultura pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)
IIProfessora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo deste texto é problematizar o lugar destacado que o campo de concentração ocupa no pensamento do filósofo italiano Giorgio Agamben, especificamente nas primeiras obras da série Homo Sacer. Nesse sentido, retorna-se ao pensamento de Michel Foucault, nomeadamente em História da Loucura, identificando o Hospital Geral e o grande internamento à luz das noções de biopoder e poder soberano. Também analisamos como Agamben utiliza tais conceitos, questionando o espaço problemático que o filósofo italiano concede aos doentes mentais em O poder soberano e a vida nua, e as consequências de tal opção no restante do seu pensamento. Esperamos demonstrar que uma teoria sobre o biopoder e a tanatopolítica deve ter um escopo mais amplo, a fim de não omitir outras experiências do arbítrio.

Palavras-chave: biopoder; tanatopolítica; loucura; campos de concentração.


ABSTRACT

This text aims to problematize the prominent place that the concentration camp occupies in the thought of the Italian philosopher Giorgio Agamben, specifically in the first works of Homo Sacer series. In this sense, we return to Michel Foucault's thought, namely in History of Madness, identifying the General Hospital and the large internment in the light of biopower and sovereign power notions. We also analyze how Agamben uses such concepts questioning the problematic space that the Italian philosopher grants to the mentally ill in Sovereign Power and the Naked Life and the consequences of such an option in the rest of his thought. We hope to demonstrate that a theory about biopower and tanatopolitics should have a broader scope in order to not omit other experiences of will.

Keywords: biopower; tanatopolitics; craziness; concentration camps.


RESUMEN

El objetivo de este texto es problematizar el lugar de enfoque que el campo de concentración ocupa en el pensamiento del filósofo italiano Giorgio Agamben, específicamente en las primeras obras de la serie Homo Sacer. En este sentido, se vuelve al pensamiento de Michel Foucault, nombradamente en Historia de la Locura, identificando el Hospital General y el gran internamiento a la luz de las nociones de biopoder y poder soberano. También analizamos cómo Agamben utiliza tales conceptos, cuestionando el espacio problemático que el filósofo italiano concede a los enfermos mentales en El poder soberano y la nuda vida, y las consecuencias de tal opción en el restante de su pensamiento. Esperamos demostrar que una teoría, sobre el biopoder y la tanatopolítica, debe tener un alcance más amplio, con la intención de no omitir otras experiencias del arbitrio.

Palabras clave: biopoder; tanatopolítica; locura; campos de concentración.


RÉSUMÉ

L'objectif de ce texte est de discuter la place prépondérante que le camp de concentration occupe dans la pensée du philosophe italien Giorgio Agamben, plus précisément dans les premières œuvres de la série Homo Sacer. En ce sens, nous avons pris la pensée de Michel Foucault, à savoir dans histoire de la folie à l'âge classique, en identifiant l'Hôpital Général et le grand internement à la lumière des notions de biopouvoir et de pouvoir souverain. Nous avons également analysé comment Agamben utilise de tels concepts, en interrogeant l'espace problématique que le philosophe italien donne aux malades mentaux dans Le pouvoir souverain et la vie nue, et les conséquences d'une telle option dans le reste de sa pensée. Nous espérons démontrer qu'une théorie sur le biopouvoir et la thanatopolitique doit avoir une portée plus large, afin de ne pas omettre d'autres expériences de l'agence.

Mots-clé : biopouvoir ; thanatopolitique ; folie ; camps de concentration.


 

 

Prólogo

Já estão documentados alguns dos numerosos momentos históricos em que os loucos foram submetidos às arbitrariedades e injustiças: aprisionados, trancafiados, torturados, normalizados, medicalizados. Muitas injustiças continuam sendo praticadas, todas elas em nome do bem público, da saúde, da higiene e da boa convivência; vemos ganhar força debates acerca da internação compulsória, os investimentos em favor das comunidades terapêuticas e o fim da Política Nacional de Redução de Danos. Um livro recente, o Holocausto Brasileiro de Daniela Arbex (2013), colocou em evidência apenas uma pequena parte de uma grande história do arbítrio contra os loucos, situando-se no Hospital Colônia em Barbacena, Minas Gerais. Calcula-se que cerca de 60 mil pessoas foram mortas em decorrência dos maus tratos e das condições precárias. Uma história que atualize esses números, levando em consideração outros hospícios país afora, ainda está por ser escrita. É fato relevante, contudo, que conheçamos pelo menos um pequeno capítulo, no contexto brasileiro, de uma longa e cruel história da loucura - pertencente talvez aos contornos ainda maiores de uma história da gestão das vidas excluídas.

Há sempre o problema, contudo, das condições em que se pode comunicar essa história da loucura, e a repulsa que o pensamento cultivou em relação à loucura colocou óbices cuja superação só muito recentemente começou a ser empreendida. O presente texto, em linhas gerais, estará embrenhado nas dificuldades e as armadilhas que a exclusão da loucura impõe ao pensamento. Nesse sentido, História da loucura, de Michel Foucault (2017), entre outros livros-acontecimentos, nos legou a possibilidade de pensar a experiência da loucura criticamente. O livro constitui uma referência fundamental por se tratar de uma espécie de contra-arquivo da loucura, em que Foucault consulta fontes diretas, ordenamentos e regramentos de instituições, relatos, textos teóricos e, ao fazê-lo, reconstitui uma história outra que desafia a narrativa tradicional de "libertação" da loucura e a estabilidade médico, jurídica e científica da noção de "doença mental". Foucault se esforça em oferecer os meios de compreensão de como a "era clássica" (século XVII até XVIII) pôde ter acesso a uma experiência social da loucura que (e este é o ponto que nos interessa) é indissociável do internamento dos loucos, da constituição de um corpus de saber e de uma estrutura jurídico-política que participava dessa exclusão da vida política (ou talvez, como ficará mais claro adiante, a inclusão na esfera dos rejeitados socialmente).

Foucault sugere que existe uma relação de contiguidade entre as práticas de exclusão que fazem internar e o discurso filosófico que relega aos loucos o espaço da desrazão e do não saber. Podemos interpretar que a denúncia da exclusão da loucura do raciocínio filosófico fundador da modernidade serve como uma advertência para as dificuldades de conceber a loucura no interior do discurso da razão; seria dizer, então, que estamos no terreno de uma exclusão constitutiva da moderna razão filosófica e científica, e que na penumbra dessa razão está a loucura, tornada muda. O gesto filosófico mais amplo de Foucault, de vincular as práticas ao saber, nos impõe a exigência de tomar determinados enunciados com suspeição crítica: mais especificamente no caso da loucura, nos leva ao esforço de identificar se determinados enunciados são reproduzidos e se o apagamento da loucura é seu corolário. Como sugere o francês, no prefácio suprimido de História da loucura, temos uma tarefa ainda em aberto de realizar uma "arqueologia do silêncio" sobre a loucura (Foucault, 2010a). Se o atual esforço de determinados empreendimentos éticos1 é atravessado pela problemática da comunicabilidade - sua ausência, sua inevitabilidade ou sua possibilidade colocada em questão -, isso nos conduz a questionar a própria comunicabilidade e seus limites nos marcos dos textos filosóficos. Essa questão será retomada ao fim deste texto.

É partindo dessa preocupação que nos propomos, neste texto, a analisar pontualmente as primeiras obras da série Homo Sacer, de Giorgio Agamben (2002, 2008a, 2008b). Como mencionamos acima, se estamos no terreno dos debates acerca da gestão das vidas, estamos então no terreno da biopolítica; e se falamos de morte e exclusão, tanatopolítica e o estado de exceção. Agamben é um dos principais autores nessa seara, e procurando fazer tal debate avançar, suscitamos a problemática de eleger o campo (de concentração) como paradigma biopolítico moderno. Optamos por metodologicamente partir dos próprios conceitos e noções utilizadas por Agamben. O recurso às obras de Michel Foucault justifica-se pelo italiano se valer dos seus conceitos e declaradamente anunciar sua pesquisa como uma espécie de continuação - tendo em mente que um determinado grau de distanciamento e independência são esperados.

Procuramos questionar o locus diferenciado que o campo ocupa no pensamento do filósofo italiano, como uma espécie de paradigma da biopolítica atual. Argumentamos que a estrutura de internamento, aprisionamento e concentração são mais antigas, elas próprias, em certo sentido, paradigmáticas para o campo de concentração moderno, e que o recurso demasiado à substancial diferença dos campos da Segunda Guerra oclui uma história prévia - a história da loucura, em, pelo menos, dois pontos específicos: o advento do Hospital Geral e a grande internação que se seguiu, e os experimentos do Aktion T4, um programa extermínio que precedeu a política de morte praticada nos campos. Procuramos demonstrar que eleger o campo como paradigma biopolítico planetário realiza o mesmo gesto problemático de exclusão da loucura, e que isso suscita um problema no interior de uma discussão sobre o poder soberano e a tanatopolítica.

As dificuldades que surgem neste encontro entre os autores, porém, não se resumem ao cotejamento entre empreendimentos teóricos diferentes, por mais próximos que eles sejam. Também existe a problemática de se trabalhar, dentro do léxico foucaultiano, um conceito - no caso, a biopolítica/o biopoder - que ainda não havia sido desenvolvido na ocasião da escrita de História da loucura (aproximadamente em 1960), uma vez que o rastreamento mais antigo que nos consta é de O nascimento da medicina social, originalmente de 1974 (Foucault, 1998). Nesse caso, será preciso fazer duas apostas, cujos riscos e perigos não são subestimados: admite-se a preponderância maior que Agamben confere ao poder soberano no entrelaçamento entre o poder e a vida. Agamben "corrige" (a palavra é do italiano) Foucault ao pôr em relevo o elo essencial que liga a existência "biológica" (o mero fato de ser vivente) ao poder constituído soberano, que pode dispor da vida.

Paradoxalmente, é utilizando essa lente que Agamben nos confere - a de enfatizar o aspecto soberano da biopolítica - que poderemos reler determinadas passagens da História da loucura, para então nos colocarmos em posição distinta, de problematização do texto agambeniano. Esta será a primeira aposta (a mais perigosa): um modo agambeniano de ler Foucault; para então retornar criticamente ao próprio Agamben. Uma segunda aposta é a de enxergar, com todas as justas ressalvas, uma coerência temática - que não se confunde com unidade sistemática - que une os trabalhos de Foucault.2 Sendo assim, podemos entender que também a gestão dos loucos e da loucura, sua eventual subsunção ao poder psiquiátrico, pode ser lida à luz (diacrônica) da biopolítica.

 

Biopoder, tanatopolítica

Desde a introdução da noção de biopoder no vocabulário de Michel Foucault, muitas têm sido as derivas produtivas que o conceito sofreu pelas mãos de outros autores, como Antonio Negri, Achille Mbembe, Roberto Esposito, Judith Butler e o próprio Agamben. O conceito ganhou especial relevância após os atentados de 11 de setembro de 2001, nos Estados Unidos da América, e a guerra ao terrorismo que se seguiu. Muitos autores, incluindo Agamben, denunciaram o alcance global e potencialmente perigoso das técnicas de exceção de que os Estados Unidos lançaram mão, que têm no Patriot Act o seu ato (jurídico) de fundação (Agamben, 2008a). Sendo assim, se a análise de Foucault em relação ao biopoder estava centrada nos esforços que cuidam de incrementar as forças da vida, passou-se a dar maior destaque para outro lado, o lado obscuro e renegado do biopoder: aquele de causar a morte, que, na avaliação de alguns desses pensadores, teria recebido pouca atenção do francês.3

Foucault inaugurou, a partir da década de 1970, nos cursos ministrados no Collège de France, um empreendimento denominado de genealógico, um desvio sutil em relação às suas pesquisas precedentes, nomeadamente sobre a loucura, a clínica e a ciência moderna. Está em jogo agora, de forma mais explícita, uma modalidade de investigação que percorrerá saberes e experiências subjugadas - de forma ainda mais radical do que antes. É nesse período, portanto, que as investigações de Foucault avançam amiúde em direção às formas de governo, mas não à maneira clássica, aquela que diferencia as tipologias de governo. Trata-se justamente de desviar da forma jurídica de conceber o governo, isto é, a primazia da soberania do Estado.

Foucault investiga o poder do Estado partindo não da sua qualidade de ente jurídico, mas na dispersão das instâncias que lhe é imanente; daí a análise das suas "periferias", a prisão, a escola, o próprio hospício. O escopo de análise não se resume, porém, às instituições: também o corpus de saber que perpassa a administração do Estado, nas suas mais variadas vertentes, constitui material de pesquisa. No decorrer dos anos 1970, poderíamos dizer que Foucault caminha em direção a uma investigação sobre como se governa, chegando à última etapa de seu pensamento, nomeadamente, sobre o governo de si e o governo dos vivos. É no decorrer dessas investigações que aparece a noção de biopoder, como uma forma de denotar a entrada do elemento biológico, isto é, das ciências e os saberes da vida, nos cálculos e nas estratégias dos poderes instituídos.

O ponto de virada do surgimento da noção de biopoder no vocabulário de Foucault marca o momento em que se denuncia a mirada "jurídica" e metafisicamente orientada de conceber o aparato do Estado. Descentraliza-se o olhar metodológico, renegando a própria soberania do conceito de soberania, para, no mesmo processo, sugerir o advento de uma nova forma de gerir o Estado que viria a "complementar" a velha soberania. Para Foucault, as exigências das formas manifestas de poder se deslocam: estratégias que visavam saquear os indivíduos, suas dívidas, seus bens, sua cabeça, seu corpo, serão gradativamente suplantadas em favor de um poder que investirá nas capacidades produtivas da vida. A partir da "era clássica", isto é, após o Renascimento, com o advento de um capitalismo cada vez mais industrializado e que demandava mão de obra e forças cada vez mais produtivas, a mirada do Estado não mais se apoiará em torturar, matar e saquear os indivíduos; agora, é preciso torná-lo útil, dócil, adestrado. Para isso, ações em dois âmbitos diferentes do poder: nas disciplinas do corpo (anatomopolítica) e nas estratégias populacionais (biopolítica). A vida passa a ser gerida, portanto, em dois níveis: como corpo adestrável e como população (Foucault, 2012).

É inegável que tais conceitos tomaram uma vida própria e que foram reanimados e modificados por outros autores. Após a virada do milênio, momento em que crescentemente os cálculos de poder parecem se investir sobre a vida, e que técnicas de matar eficaz e silenciosamente se desenvolvem no interior dos aparatos militares globais, não surpreende que teorizações sobre o biopoder tenham retornado com intensidade. A guerra e o apagamento da vida que ela provoca por meio da instauração de um regime de invisibilidade - que leva invariavelmente a uma matabilidade - parece ser a tônica de trabalhos teóricos inovadores na grande seara das teorias críticas. E, pioneiro e influente nessa empreitada, figura o filósofo italiano Giorgio Agamben.

Autor prolífico no campo da linguagem, da literatura e da arte, durante a década de 1990 ocorre uma inflexão no pensamento de Agamben, nomeadamente com A comunidade que vem (2013 [1990]), Meios sem fim (2015 [1996]) e Homo Sacer: O poder soberano e a vida nua (2002 [1995]). Este último, que marca o início da série de obras, tem como ponto de início justamente uma discussão a respeito da biopolítica, reconduzindo a soberania - ou poder soberano - ao lugar central de reflexão. Se Foucault subordina sua análise do biopoder às estratégias "vitalistas" do Estado - que coincidem com o advento decisivo do capitalismo na sua forma industrial (Foucault, 2012) -, para Agamben, a biopolítica passa a existir no momento em que se configura um poder soberano. Em suas palavras, um poder de matar sem que se cometa homicídio (ou seja, um crime). É justamente a situação-limite que designa o conceito jurídico romano homo sacer, uma vida que, por ser sagrada, já abandonou o reino dos homens, estando, portanto, em máxima situação de vulnerabilidade.

Convém dar um passo atrás: em Meios sem fim, livro que reúne ensaios sobre política, estão presentes os textos que serão as centelhas para o projeto subsequente de Agamben. As primeiras obras publicadas da série Homo sacer, nomeadamente, Homo sacer I (O poder soberano e a vida nua), II (Estado de Exceção) e III (O que resta de Auschwitz), têm como pano de fundo discussões a respeito da forma jurídico-política do Estado nazista. No ensaio O que é um campo, contido em Meios sem fim, Agamben enuncia claramente o motivo de tal escolha, dimensionando o tamanho do desafio que se anuncia - e, na mesma medida, a projeção e o alcance que sua obra futura deverá ter. O primeiro parágrafo do texto nos informa os contornos gerais da problemática, destacando a importância de se pensar o campo (de concentração) nazista:

O que aconteceu nos campos supera de tal modo o conceito jurídico de crime que com frequência se omitiu simplesmente de considerar a estrutura jurídico-política na qual aqueles acontecimentos se produziram. O campo é somente o lugar no qual se realizou a mais absoluta condicio inhumana que já se deu sobre a terra: isso é, em última análise, aquilo que conta, para as vítimas e para seus pósteros. Seguiremos, aqui, deliberadamente uma orientação contrária. Em vez de deduzir a definição do campo dos eventos que se deram ali, iremos nos perguntar antes: o que é um campo, qual é sua estrutura jurídico-política, por que acontecimentos semelhantes puderam ter tido lugar ali? Isso nos levará a olhar para o campo não como um fato histórico e uma anomalia pertencente ao passado (mesmo que, eventualmente, ainda verificável), mas, de algum modo, como a matriz oculta, o nomos do espaço político no qual ainda vivemos. (Agamben, 2015, p. 41)

O trecho não poderia ser mais claro e sintético. Para Agamben, no campo se realizaram as maiores atrocidades de que se tem notícia; uma análise que parta dos seus efeitos oculta outra pergunta inquietante, qual seja: quais são as condições (político-jurídicas) de possibilidade do campo? Dar a devida importância ao que aconteceu nos campos convoca Agamben a compreender seus mecanismos de funcionamento e sua forma jurídica e política. A sua pesquisa tem como norte, enfim, não um preciosismo histórico, mas uma exigência que surge do presente: iluminar os mecanismos mortíferos operantes ainda hoje, que animam nosso "espaço político". O tema reaparece na introdução de Homo Sacer I, em que Agamben inicia seu trabalho de "correção"4 de Foucault, referindo-se à superação das dificuldades do pensamento, nomeadamente, o problemático abandono que Hannah Arendt teria efetuado sobre suas próprias análises do totalitarismo e o fato que Foucault jamais se reportou àquela autora. Para Agamben (2002), a consequência desse "silêncio" de Foucault sobre a obra de Hannah Arendt (dificilmente o único silêncio famoso do filósofo) leva a uma circunstância inquietante, qual seja, que "Foucault jamais tenha deslocado a sua investigação para as áreas por excelência da biopolítica moderna: o campo de concentração e a estrutura dos grandes estados totalitários do Novecentos" (p. 11).

Continua Agamben:

A presente pesquisa concerne precisamente este oculto ponto de intersecção entre o modelo jurídico-institucional e o modelo biopolítico do poder. O que ela teve de registrar entre os seus prováveis resultados é precisamente que as duas análises não podem ser separadas e que a implicação da vida nua na esfera política constitui o núcleo originário - ainda que encoberto - do poder soberano. Pode-se dizer, aliás, que a produção de um corpo biopolítico seja a contribuição original do poder soberano. A biopolítica é, nesse sentido, pelo menos tão antiga quanto a exceção soberana. (Agamben, 2002, p. 14)

Eis, portanto, a volta da soberania, do poder soberano. Em Agamben, a soberania precisa ser compreendida à luz da estrutura da exceção, isto é, como aquilo que está "fora" de um conjunto, mas que, ao mesmo tempo, estabelece uma ligação íntima e essencial com este. Ocorre que a exceção soberana não é, em realidade, um fora, mas, mais propriamente, a operação de captura de uma dimensão desse fora para dentro. Em outras palavras, e exemplificando o raciocínio, o poder soberano, ao se apropriar sobre uma vida biológica, inclui no âmbito do seu poder, mediante operações de exclusão, uma determinada esfera da vida, que é o que Agamben chama de vida nua. A vida nua é essa abertura ao poder de matar, vida reduzida à sua condição de matabilidade. Somos submetidos ao poder soberano através de nossa disponibilidade a ele a partir de um elemento essencial: o próprio fato de ser vivente. É por isso que, em Estado de exceção (2008a), uma espécie de continuação direta de Homo Sacer I, Agamben radicaliza seu pensamento sobre a exceção soberana. Em harmonia com o que havia anunciado em Meios sem fim, dizer que o campo se tornou o paradigma oculto de nossa política importa em reconhecer, igualmente, que o estado de exceção, a suspensão do direito, atinge escala planetária e, ainda, que os Estados modernos operam a partir da mesma técnica ostensiva que culminou no Estado nazista, qual seja, a produção indiferenciada de vidas nuas, vidas matáveis. Desse modo, chega-se a uma indistinção definitiva entre o direito positivo e a exceção.

A análise de Agamben possui o mérito de reativar a noção de soberania sob novas bases; é uma reflexão que ataca frontalmente um problema com o qual Foucault (2012) se via às voltas, a de que "jamais as guerras foram tão sangrentas como a partir do século XIX, e nunca, guardadas as proporções, os regimes haviam, até então, praticado tais holocaustos em suas populações" (p. 149). Se Foucault (2010b) enfatizava que a novidade do biopoder consistia em ser uma "regulamentação" da vida, cuidando de aumentar suas forças para cumprir as crescentes exigências produtivas, Agamben destaca este lado obscuro que Foucault apenas tateou e nomeou hesitantemente: a tanatopolítica, as estratégias e políticas de fazer morrer. Em Agamben adquirimos ferramentas para sair desse paradoxo, a suposta oposição entre soberania (fazer morrer) e biopoder (fazer viver) em Foucault. Mesmo que o francês insista que o advento do biopoder não significa o fim ou o desaparecimento da soberania, é notório que essa noção permanece em segundo plano. A expansão do controle sobre as vidas seria, com Agamben "corrigindo" Foucault, portanto, a expansão da própria soberania.

 

O Hospital, soberano

Se o pensamento de Agamben mostra-se importante para os problemas que enfrentamos, isto é, a contínua prática de criar e manter territórios - campos - em que a vida é destituída de qualificadores políticos - ou, mais corretamente, em que uma desumanização é produzida (sendo essa uma das razões que, talvez, tenha facilitado a recepção de seu pensamento no Brasil) -, este pensamento não é, contudo, imune às críticas. Seguimos aqui uma linha semelhante à Judith Butler, autora que, em alguns momentos, converge com o filósofo, mas que, depois da virada do milênio, afasta-se gradativamente de algumas das conclusões de Homo Sacer, nomeadamente no tocante à vida nua.5 Para Butler, parte do trabalho teórico consiste em testar e questionar os pressupostos de determinadas teorias (Butler, 1998). A vida nua, na sua compreensão, pressupõe uma heurística sem saída, sem possibilidades de resistência (Butler, 2015). O trabalho de Butler passa não apenas por denunciar os atuais mecanismos dos poderes instituídos, mas também as próprias insuficiências do pensamento. É com essas preocupações em mente que nos propomos a questionar o campo como paradigma biopolítico. Para isso, será necessário retornar, mais uma vez, a Foucault, em um livro que, prima facie, não discorre sobre a biopolítica - afinal, História da loucura é publicado na década de 1960 -, mas que, se estamos munidos de um olhar agambeniano, ficamos em posição de enxergar operações genuinamente biopolíticas.

Já aludimos brevemente sobre a importância do livro História da loucura (Foucault, 2017). É no primeiro capítulo que Foucault discorre sobre o que chamou de grande internação e o surgimento do Hospital Geral. A estrutura correcional desses hospitais gerais e, além disso, a montagem de uma estrutura extralegal, semijurídica, que garante e justifica o internamento não só dos loucos, mas de toda uma sorte de excluídos (pobres, pequenos infratores, homossexuais, ateus, criminosos), parece constituir um movimento na história que requer atenção arqueológica no seu sentido filosófico. Sobretudo, esse período nos fala do desenvolvimento de técnicas que aqui podemos interpretar como biopolíticas de exclusão da vida social, produzindo um apagamento dos indesejados sociais. Mais tarde na sua obra, em Vigiar e punir (2018 [1975]), Foucault comenta acerca da importância das técnicas de exílio herdeiras da lepra para a constituição da sociedade de estilo disciplinar. E o Hospital Geral é, propriamente, um herdeiro legítimo dos leprosários, estando na difusa zona histórica de precedência das prisões e dos campos de concentração.

Para Foucault (2017), no horizonte da modernidade europeia - e, importante notar, sua análise é situada histórica e temporalmente - a loucura é sujeita a diferentes regimes de visibilidade. Durante a Renascença, havia certa hospitalidade, uma receptividade com a loucura, uma vez que se atribuía a ela um espaço social particular. Assim, na ordem das coisas, na disposição dos seres, na conjunção dos espíritos, a loucura prefigurava como mais um dos discursos que, à sua maneira, continha uma verdade - mesmo que ameaçasse outras verdades. Era, contudo, verdade talvez em um sentido mais particular, mais fundamental, no nível de uma legitimidade do dizer.

Foucault (2017) sugere que, na "era clássica" (novamente ela), um "estranho golpe de força" (p. 45) acontece. O sentido do argumento de Foucault sugere que, no mover das placas tectônicas da sociedade europeia, em que grandes mudanças nas formas de produção e de poder estão se operando, algo ocorre conjuntamente, extensivamente, entre os poderes instituídos e o saber. É o período da grande internação, acontecimento histórico caracterizado pelo surgimento de hospitais gerais, instituições encarregadas de internar, mesmo que à força, os desajustados de uma sociedade, e, assim, também os loucos. Essas instituições recebem amplos poderes de atuação e seus administradores, liberdade para aprisionar um contingente não inexpressivo de pessoas. O golpe de força que viria a acorrentar os loucos repete-se nas páginas de Descartes. A razão, o domínio do corpo e das sensações, seria assombrada por sua radical exterioridade: a loucura. Sono, sonho, meras interrupções passageiras do fluxo da consciência. A loucura, porém, é a própria negação da razão; "a loucura é excluída pelo sujeito que duvida" (Foucault, 2017, p. 46). Como sabemos, o sujeito que duvida é a descrição heurística da razão cartesiana. E no fundamento de sua argumentação, uma exclusão constitutiva: o banimento da loucura.

Com efeito, o texto de Foucault oferece um tecido complexo, em que dificilmente se pode intuir uma causa única para a grande internação. Menciona-se a mudança de paradigma moral em relação aos pobres, representado pelo conflito entre o mundo protestante e o católico, e a visão mais pragmática daquele no tocante à questão dos excluídos; depois, uma vitória parlamentar na França como resposta aos altos índices de mendicância; e, por último, uma resposta à grave crise econômica que assolava a Europa, provavelmente causada pelo desaquecimento da economia espanhola - Foucault observa que provavelmente essa crise está associada ao esgotamento de minas das Américas. Estranha coincidência a que une o empreendimento colonizador, que açoitou, aprisionou e aniquilou vidas, com a resposta na metrópole. O fato é que podemos distinguir três grandes mudanças: no quadro de referências intelectuais, consideradas aí tanto a filosofia quanto a teologia; no sentido econômico, em que as crises jogaram milhares de pessoas na mendicância e na pobreza; e, enfim, uma reorganização do aparato policial e administrativo do Estado. Três grandes movimentos em que dificilmente um desponta com proeminência; como resultado, a loucura é banida da cena social da polis, banida igualmente das luzes do pensamento.

Foucault enfatiza diversas vezes em que consistia a novidade dos hospitais gerais: precisamente na soberania do seu alcance e no seu estatuto jurídico indefinido. Essas instituições serviam ao propósito de internar não só os loucos, mas os pobres, os desvalidos, os mendigos, as mulheres, as crianças. Essas estruturas de internação espalham-se nos principais Estados europeus: Alemanha, Inglaterra, Espanha, além de França. Na Inglaterra, analogamente, surge outro vestíbulo dessas experiências modernas, as workhouses, lugares em que um ofício deveria ser ensinado, e onde se obedecia à rigorosa e diligente rotina. É conhecida a contiguidade entre as workhouses e as prisões modernas, argumento do clássico Cárcere e Fábrica de Melossi e Pavarini (2010). Assim como Agamben interroga a estrutura jurídico-política do campo, Foucault (2017) percorre os decretos, as ordenações e as leis que criaram e deram sustentação ao Hospital Geral, enfatizando que seu lugar também se situa nessa zona cinzenta entre a legitimidade e a força soberana: "De saída, um fato é evidente: o Hospital Geral não é um estabelecimento médico. É antes uma estrutura semijurídica, uma espécie de entidade administrativa que, ao lado dos poderes já constituídos, e além dos tribunais, decide, julga e executa" (p. 50).

Com efeito, colocar o Hospital Geral no âmbito da soberania não se trata de uma mera interpretação nossa. Diz Foucault (2017): "Soberania quase absoluta, jurisdição sem apelações, direito de execução contra o qual nada pode prevalecer - o Hospital Geral é um estranho poder que o rei estabelece entre a política e a justiça nos limites da lei: é a terceira ordem da repressão" (p. 50). Trata-se de um "hospital" em que lá ainda não há cura, talvez porque ainda não exista "doença mental" como categoria sanitária. O Hospital Geral está mais próximo do que conhecemos como prisão, uma instituição de internamento de desvalidos, pobres e loucos. O "tratamento" é moral: penitências, trabalho, rezas, expiação. Diversas são as experiências, em toda a Europa, de atender às exigências do trabalho e da produtividade no interior Hospital Geral, transformando-o, também, em um campo de trabalhos forçados. É preciso que inúteis sejam úteis. Para Foucault (2017), a loucura prefigura como uma espécie de índice geral das desordens éticas, sendo nesse sentido que infratores, ateus, desocupados, mendigos são reportados como loucos: "A prática do internamento designa uma nova reação à miséria, um novo patético - de modo mais amplo, um outro relacionamento do homem com aquilo que pode haver de inumano em sua existência" (p. 56), e, mais adiante, "o Hospital Geral tem um estatuto ético" (p. 74).

De um livro rico em tantos temas e argumentos, muitos são os possíveis ângulos de análise. Com efeito, o viés da soberania exercida pelo hospital, seus poderes "semijurídicos", parece não receber muita atenção da crítica e dos comentadores. Mas o próprio Foucault, posteriormente, conferiu a essa descoberta alguma importância. Em uma entrevista de 1972, intitulada O Grande Internamento, Foucault (2010a), a respeito desse massivo gesto de aprisionamento, reporta-se ao funcionamento da polícia daquele período, "que foi aperfeiçoada nessa época e que preenchia uma função quase judicial" (p. 287.). Esse tema reaparece, mesmo que brevemente, na sua famosa Resposta a Derrida (2010a), datada do mesmo ano, em que censura Derrida, com ironia, por não considerar a magnitude dos eventos narrados em História da loucura: "[] meu livro é bastante ingênuo, segundo ele, por querer fazer essa história a partir desses acontecimentos irrisórios que são o internamento de algumas dezenas de milhares de pessoas, ou a organização de uma polícia de Estado extrajudicial" (p. 270). O advento desse aparato extrajudicial, soberano, não é, portanto, irrelevante; no mínimo, ele acompanha e dá condições ao grande internamento.

 

Os Silêncios e suas Consequências

A definição clara de operações soberanas de internamento em instituições que, numa linha genealógica evidente, precedem o campo de concentração, que trancafiaram a loucura e a desordem generalizada: poderia essa história ter sido ignorada por Agamben? O autor menciona o grande internamento e o Hospital Geral em algumas passagens de O poder soberano e a vida nua, mas sempre brevemente, e de forma que, como resultado, seu surgimento seja uma espécie de epifenômeno, cujo alcance completo só poderá ser compreendido à luz do campo de concentração. No início do terceiro capítulo, em que discorre justamente sobre o campo como paradigma biopolítico moderno, em um trecho que, é importante observar, reconhece a linhagem que une o Hospital Geral ao campo, Agamben afirma que Foucault

não transferiu suas próprias escavações, como teria sido até mesmo legítimo esperar, ao que poderia apresentar-se como o local por excelência da biopolítica moderna: a política dos grandes Estados totalitários do Novecentos. A pesquisa, que iniciou-se com a reconstrução do grand enfermement nos hospitais e nas prisões, não se conclui com uma análise do campo de concentração. (Agamben, 2002, p. 125)

O que Foucault enxergava como um corte mais ou menos definido, que se inicia com a centralização dos Estados europeus e o desenvolvimento de técnicas que inserem a vida biológica no cálculo do poder, para Agamben nada mais é do que apenas um dos capítulos de uma biopolítica cujos traços rastreamos desde pelo menos o homo sacer na Antiguidade. Mas decisivo é o fato, para Agamben, que o próprio corpo passa a ser cada vez um espaço biopolítico, a ponto de se tornar uma espécie de substância indiscernível com o poder, e que o tecido biopolítico atravessa instituições, juristas, médicos. É dizer que o poder sobre a vida, e a sua expressão máxima, o limiar que decreta a vida e a morte, é "democratizado" ou, mais precisamente, radicalmente expandido. Assim se explicaria, por exemplo, os debates médicos sobre temas como eugenia e eutanásia, analisados no último capítulo de O poder soberano e a vida nua (2002). O campo, nessa perspectiva, é o espaço em que esse movimento encontra seu zênite, sendo a máxima expressão de onde a vida está entregue ao poder. Desde a queda do nazismo, para Agamben, o campo paira como uma norma oculta, articulando nossas políticas atuais. Assim, por exemplo, poderíamos enxergar Guantánamo como um local em que Auschwitz permanece vivo e operante. Nesse sentido, é agora o campo que opera um corte na história do poder sobre a vida, como marco que divide uma biopolítica de uma tanatopolítica.

Mas, e se a pergunta que norteia Agamben, que interroga as condições de possibilidade do campo, fosse finalmente confrontada com uma história da loucura que se perde entre suas páginas? Há outro fato inquietante, que não escapa ao filósofo, mas que, se lido à luz de uma história da loucura, desestabilizaria algumas de suas próprias conclusões: o Aktion T4 (Agamben chama-o apenas de "programa de eutanásia"). Agamben recupera as discussões do início do século XX sobre eutanásia e eugenia, que procuravam definir o limiar de uma vida que valesse a pena ser vivida e, nesse mesmo processo, aquela que, desprovida de determinadas condições mínimas, poderia ser sujeita à eutanásia, isto é, uma morte sem homicídio. Essa formulação, que através dos escritos daqueles médicos ganhava contornos de genuína preocupação social, para Agamben mostra o alcance máximo do poder de decisão sobre a vida. É a própria soberania, então, infiltrando-se em áreas cada vez mais abrangentes. Eugenia e eutanásia, nesse sentido, foram políticas declaradas e incentivadas durante o período nazista. Antes da Solução Final, outra medida do governo nazista iniciou, portanto, a morte aplicada em larga escala, a morte como política institucional e em escala industrial: o programa de eutanásia para os doentes mentais. Naquela Alemanha, toda e qualquer forma de degenerescência orgânica não deveria ter espaço no corpo social. Sendo assim, um infame programa de genocídio de doentes mentais começa a ser aplicado:

Os testemunhos prestados pelos imputados e testemunhas no processo de Nuremberg nos informam com suficiente precisão sobre a organização do programa em Grafeneck. O instituto recebia a cada dia cerca de setenta pessoas (em idade variável de 6 a 93 anos), escolhidas entre os doentes mentais incuráveis espalhados pelos vários manicômios alemães. Os doutores Schumann e Baumhardt, que tinham a responsabilidade do programa em Grafeneck, submetiam os doentes a uma consulta sumária e decidiam se estes apresentavam os requisitos exigidos pelo programa. Na maior parte dos casos, os doentes eram mortos nas 24 horas seguintes à chegada a Grafeneck; primeiro era-lhes ministrada urna dose de 2 cm de Morphium-Escopolamina e depois eram introduzidos em uma câmara de gás. Em outros institutos (como, por exemplo, em Hadamer), os doentes eram mortos com uma forte dose de Luminal, Veronal e Morphium. Calcula-se que deste modo foram eliminadas cerca de sessenta mil pessoas. (Agamben, 2002, p. 147)

Agamben não deixa dúvidas que o programa de eutanásia marca o limiar de uma biopolítica que se converte em tanatopolítica6, afinal, tal política não se sustentava do ponto de vista eugênico, visto que aqueles doentes mentais não podiam se reproduzir. Ainda, era um programa custoso e que inspirava críticas nos meios eclesiásticos e na própria população. A sua execução explica-se, para Agamben, somente pelo alcance biopolítico do Estado nazista: "Não resta outra explicação além daquela segundo a qual, sob a aparência de um programa humanitário, no programa estivesse em questão o exercício, no horizonte da nova vocação biopolítica do estado nacional-socialista, do poder soberano de decidir sobre a vida nua" (Agamben, 2002, p. 148). Foram nessas instituições em que se aplicaram as técnicas de extermínio ulteriormente utilizadas nos campos. A morte dos doentes mentais não foi uma espécie de "teste" ou "preparação" para o extermínio em massa; ele atendia às exigências próprias e estratégicas do Estado nazista. É bem verdade que as mesmas técnicas - como a câmara de gás - foram ali aperfeiçoadas e depois utilizadas em outros campos. O extermínio que caracterizou o campo, dentro das técnicas do Estado nazista, já acontecia, portanto, antes; e, se como Agamben diz, foram naqueles hospícios, e não nos campos, em que se marcou a virada definitiva de um Estado biopolítico para o tanatopolítico, resta perguntar, então, por qual motivo o campo ocupa esse lócus diferenciado, como o nomos oculto biopolítico. Ao realizar essa escolha em favor dos campos de concentração, ela imediatamente tem efeitos no restante do texto do filósofo. Já no capítulo seguinte, ao falar da politização do conceito de raça, desaparecem de suas considerações os doentes mentais e os loucos. Logo, quando Agamben (2002) discorre sobre as leis racistas daquele período - em que a doença mental aparece como categoria decisiva -, está muito mais em questão o fato que tais leis atingiram os judeus alemães, pois foram com elas que "o regime transformou os hebreus em cidadãos de segunda classe" (p. 156).

A última parte do terceiro capítulo de O poder soberano e a vida nua (2002), que serve para demonstrar o espaço diferenciado que o campo ocupa - como uma matriz da política atual -, é, pelo menos no início, praticamente uma reedição do texto O que é um campo, já contido em Meios sem fim (Agamben, 2015). Sendo assim, em O poder soberano e a vida nua, esse texto não oferece propriamente um encerramento da questão, pois é desse lócus textual que, em primeiro lugar, parecem ter surgido as ideias desenvolvidas no capítulo mais genericamente. Portanto, não há, dentro do livro, uma demonstração mais clara da culminação que o campo representa, a não ser o argumento de que lá se produziu a maior "condicio inhumana", já adiantado anteriormente. É no segundo parágrafo, e essa consideração vale para os dois textos, que Agamben realiza uma espantosa história do campo de concentração, que se resume a apenas algumas linhas:

Os historiadores discutem se a primeira aparição dos campos deve ser identificada nos campos de concentraciones criados pelos espanhóis em Cuba, em 1896, para reprimir a insurreição da população da colônia, ou nos concentration camps nos quais os ingleses no início do século [século XX] amontoaram os bôeres; o que aqui importa é que, em ambos os casos, trata-se da extensão, a uma inteira população civil, de urn estado de exceção ligado a uma guerra colonial. Os campos nascem, portanto, não do direito ordinário (e menos ainda, como se poderia inclusive crer, de uma transformação e um desenvolvimento do direito carcerário), mas do estado de exceção e da lei marcial. (Agamben, 2002, p. 173)

Essa formulação é espantosa pois ela parece entrar em contradição com o que fora anunciado anteriormente. Afinal, era a pesquisa do próprio Agamben que deveria "corrigir" os rumos da pesquisa de Foucault, que se iniciou com o grande internamento e o Hospital Geral; deveria restar provado, enfim, o fato facilmente demonstrável que o campo, que seria o paradigma da nossa política, é ele próprio inspirado no paradigma do Hospital Geral e na soberania do internamento. Não entramos no mérito, embora ele seja fundamental, de outra história que parece permanecer também nas sombras, a do empreendimento colonial, novamente mencionada apenas passageiramente. Em um gesto soberano, a história do campo, em Agamben, resume-se a uma discussão de historiadores, isto é, se nasceram primeiro em Cuba ou em África do Sul. Já não se persegue mais a origem outrora mencionada, nos Hospitais Gerais, essas instituições que sabidamente estão no ponto de início do que hoje conhecemos como prisões e, mais distantemente, campos de concentração. Por último, vale mencionar que na passagem em que vai descrever a estrutura da exceção soberana, Agamben (2002, p. 26) cita Blanchot, que viu, por meio de História da loucura, o gesto da soberania de capturar (e, no mesmo processo, constituir) o que é designado como fora; sua análise, porém, não segue por essa linhagem, e assim vemos desaparecer definitivamente o Hospital Geral.

Já a afirmação que Foucault teria ignorado o campo e, por extensão, a estrutura jurídicopolítica do nazismo é menos evidente e, no limite, incorreta. As recentes publicações de seus cursos no Collège de France, além do compêndio de textos e entrevistas, o Dits et Écrits, revelam que, embora não seja um tema analisado sistematicamente, o nazismo e suas políticas constituem uma preocupação não menos importante para o autor francês. Com efeito, o curso Em defesa da sociedade (Foucault, 2010b) narra o que qualificou como "racismo de Estado", que culmina, nas suas últimas aulas, com uma análise sobre o nazismo e a União Soviética. Além disso, na já aludida entrevista O Grande Internamento, Foucault recapitula uma história da grande internação, atualizando-a numa resposta ao seu entrevistador que, ao contrário de Agamben, não coloca o campo como uma espécie de norma oculta de nossa política, mas como mais uma das instâncias em que se internou os inimigos do Estado, da "sociedade". Portanto, não uma "culminação" cabal e determinante, mas uma longa e complexa história da decisão soberana de aprisionar. Comentando o clima político da época (1972), momento de forte atuação política no GIP, seu grupo de informações sobre a prisão, notamos que sua afirmação é presciente, ainda mais considerando o que chamamos hoje de "encarceramento em massa":

Pois tínhamos a impressão, e isso, aliás, já antes de Maio de 1968, de que se retornava a essa espécie de internamento bastante comum que já existia no século XVII: uma política com amplos poderes discricionários. Naquela época, internavam-se sem qualquer discriminação os velhos, os enfermos, as pessoas que não queriam ou não podiam trabalhar, os homossexuais, os doentes mentais, os pais dilapidadores, os filhos pródigos; eram encarcerados todos juntos no mesmo espaço. Depois, no final do século XVIII e no início do século XIX, na época da Revolução Francesa, fizeram-se distinções: os doentes mentais, no asilo, os jovens, em estabelecimentos de educação, os delinquentes, na prisão, ao que se acrescenta todo um arsenal de medidas discriminatórias, interdição de salvo-conduto etc. E, hoje, por razões que não compreendo ainda muito, retorna-se a uma espécie de internamento geral indiferenciado. Os campos de concentração nazistas fizeram conhecer a variante sangrenta, violenta, inumana desse novo internamento - judeus, homossexuais, comunistas, vagabundos, ciganos, agitadores políticos, operários, todos no mesmo campo. E, hoje, vê-se a mesma coisa desenhar-se sob uma forma mais discreta, mais velada, de um modo aparentemente científico. Os célebres asilos psiquiátricos da União Soviética começam a funcionar dessa maneira. Todas essas instituições que, na França, parecem tão humanitárias, tão medicas, tão científicas, os centros profiláticos, os centros para jovens em perigo, os reformatórios, dirigidos por pessoas com jeito de assistentes sociais, educadores, médicos, mas que, finalmente, são policiais: nesse grande leque de profissões tão diferentes em aparência, constata-se uma função comum que os encadeia juntos, a de carcereiro. Todas essas profissões têm por função comum a vigilância, a manutenção aferrolhada das existências marginais que não são nem verdadeiramente criminais nem verdadeiramente patológicas. (Foucault, 2010a, p. 288)

Se Agamben visava se afastar daquele tipo de análise que vê o campo como uma anomalia, o resultado geral que sua investigação produz, nesse ponto em específico, é justamente a mistificação que tencionava combater.

 

Epílogo: a comunicabilidade

É bem verdade que Franco Basaglia (1972, cit. por Arbex, 2013), ao visitar o Hospital Colônia em Barbacena - o relato está contido no livro de Daniela Arbex (2013) -, afirmou que ali se tratava de um "campo de concentração nazista. Em lugar nenhum do mundo presenciei uma tragédia como esta" (p. 207). Essa afirmação poderia ser lida como dando razão à Agamben, que enxerga no campo a lógica oculta das técnicas de exceção do presente; o campo como uma nota basal, ressoando nas atuais formas de exclusão dos indesejáveis. Mas há outra história, muito mais antiga, que liga o Hospital Colônia - esse nome terrível que consegue reunir dois avatares do arbítrio - não só aos Konzentrationslager (campos de concentração) nazistas, mas a toda uma história prévia de internamentos e de atrocidades. Os loucos de Barbacena estão ligados não apenas aos judeus, aos homossexuais e aos ciganos de Auschwitz, mas também a todos os outros loucos, desajustados, os rejeitados socialmente que foram trancafiados, de forma mais ou menos sistemática, desde o advento do Hospital Geral e dos ordenamentos de defesa social. O peso da história que ali os trancafiou tem seu ímpeto tanatopolítico de origem não apenas nas políticas nazistas, mas em toda uma maquinaria montada, esparsa e difundida de quando começou a se decidir que os inúteis deveriam, de alguma forma, sumir.

Falou-se que Agamben não desenvolve, em O poder soberano e a vida nua (2002), sobre o motivo pelo qual os campos de concentração constituem o nomos oculto da política moderna. Talvez somente em O que resta de Auschwitz (2008b) tal assertiva ganhe contornos mais definidos, quando o filósofo adentra no terreno da ética e do testemunho, pois foi no campo que se produziu uma espécie de ponto zero do encontro entre a biopolítica e a subjetividade, o muselmann. Este, no léxico dos campos de concentração, é aquele aprisionado que estaria num limiar entre a vida e a morte; prostrado, acometido pela fome e pela dor, aqueles que o observam lembram-se de um muçulmano agachado, rezando. Esse sujeito foi a tal ponto dessubjetivado pelo campo que, em certo sentido, testemunhar essa experiência constitui uma impossibilidade. É precisamente nessa impossibilidade que Agamben observa um problema ético, das impossibilidades do testemunho, da fragilidade do relato, da fratura que atravessa a comunicabilidade, pois o muselmann é a testemunha completa do campo e, ocupando tal condição, estaria incapacitado de relatar o que é inenarrável: a completa dessubjetivação. Com o muselmann teríamos agora, pelo menos, uma razão que elevaria o campo a patamar diferenciado na história da soberania e da exclusão.

Porém, se Agamben questiona os limites de como se pode comunicar, isso também poderia valer não só para os muselmann, mas também para os loucos de Barbacena, para os doentes mentais exterminados no Aktion T4. Qual a possibilidade de proferir um testemunho quando sequer o próprio pensamento filosófico o admite? O problema da tanatopolítica, hoje, não passa apenas por identificar as técnicas que causam a morte, pois também deverá estar em questão, radicalmente, o estatuto epistemológico de determinadas vidas. Judith Butler é quem parece ter melhor suscitado essa questão, retomando a noção de Levinas de rosto (Butler, 2004). A partir desse conceito, Butler interroga as matrizes normativas que regem o que é admitido, na nossa discursividade, como vida. O rosto, em Levinas, "comunica" e demanda uma obrigação de não matar. As vidas matáveis, mais expostas à ação do soberano, não produzem, na nossa inteligibilidade, a demanda que o rosto suscita, sendo daí que Butler sugere, portanto, que essa "não produção" do rosto está subordinada às operações produtivas de poder encarregadas de expor à morte. Nesse sentido, Butler vai além de O poder soberano e a vida nua. A questão do limiar da vida e da morte não pode ser subsumida aos ditames de apenas mais um dos capítulos da história do poder soberano (indubitavelmente, um dos mais violentos); como procuramos demonstrar, ao submeter a valoração da vida ao campo, imediatamente os doentes mentais somem das considerações de Agamben.

Agamben estabelece, inadvertidamente, uma comunicabilidade da exceção que sutura e desqualifica outras experiências do arbítrio. Poder-se-ia objetar: que Agamben menciona os loucos e doentes mentais; que o campo já estava "presente" nos hospícios do Aktion T4; que o muselmann "fala" através dos loucos, pois é um índice geral do problema do testemunho; e que sua análise é paradigmática7, e que, portanto, espraia-se para todas as áreas em que se produz a vida nua. Com efeito, não se pretendeu aqui "corrigir" Agamben, nem colocar em questão um complexo projeto filosófico na sua totalidade, tampouco adentrar em determinadas minúcias históricas, pois é justamente por meio de Agamben que podemos enxergar o alcance que a soberania assume atualmente. Nesse sentido, justifica-se a crítica que não só o italiano, mas também outros autores suscitaram, em relação ao biopoder demasiadamente centrado nas forças da vida. Se sair das lentes da soberania fora importante para Foucault enxergar a dispersão do poder que atravessava o tecido social, retornar a ela se mostra oportuno para analisar os agenciamentos políticos que precarizam populações.

Mas o contínuo esforço de denunciar as situações em que vidas são rejeitadas deve passar também pelas discussões da teoria. A crítica que aqui se empreendeu surge inserida em um esforço de procurar limitar, teoricamente, o alcance do que hoje se discute como tanatopolítica ou estado de exceção, e como determinadas afirmações teóricas podem encobrir operações de poder. É por isso que se mostra necessário contestar alguns pontos problemáticos na obra do filósofo italiano, com o intuito de fazer aparecer pressupostos que não receberam devida atenção crítica. Até que ponto nos é útil equalizar toda experiência do arbítrio ao campo? Não correríamos o risco de perder de vista outras operações de poder, igualmente encarregadas de produzir a morte? Não correríamos também o risco de limitar o alcance crítico de uma obra decididamente inovadora?

Se Agamben menciona os doentes mentais e os loucos, a função que eles ocupam no texto é de uma espécie de espectro que, no seu esquema de valoração das vidas, estariam, paradoxalmente, aquém dos muselmann, pois sequer tiveram espaço para articular - mesmo pelas palavras daquele que escreve - algo como um testemunho. Embora Agamben remeta a impossibilidade do testemunho aos muselmann, já foi observado que o autor, em O que resta de Auschwitz, em certo sentido, fala por eles (Davis, 2004) - e seu livro ainda termina com testemunhos escritos de alguns desses muselmann, mesmo que os relatos estejam relacionados à dificuldade de testemunhar.

Com efeito, os murmúrios que ecoam na história do poder soberano - exemplificativamente, no caso brasileiro, os índios expulsos de suas terras, os negros escravizados, os loucos esquecidos nos hospícios, entre outros grupos levados ao limite - estão permanentemente em risco, e dão razão a uma das maiores temeridades de Walter Benjamin: que nem os mortos estejam a salvo.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Felipe Dutra Demetri
E-mail: fdemetri@gmail.com

Maria Juracy Filgueiras Toneli
E-mail: juracy@cfh.ufsc.br

Recebido em: 27/09/2019
Revisado em: 12/03/2021
Aceito em: 01/04/2021
Publicado online: 15/09/2021

 

 

1 Voltaremos a este ponto na conclusão. Para uma discussão aprofundada sobre este tema, ver Butler (2005). A autora retoma o último pensamento de Michel Foucault, sobre a ética e a subjetivação. Esta problemática atravessa também o Homo Sacer III de Agamben (2008b).
2 Este tema foi abordado pelo próprio Foucault em Beyond structuralism and hermeneutics, em Dreyfus e Rabinow (1983).
3 Agamben, antes do atentado, já havia lançado as bases do seu pensamento em Homo Sacer (2002) e Meios sem fim (2015), publicados originalmente em 1995 e 1996, respectivamente, chamando atenção para a tanatopolítica e o estado de exceção. Agamben adverte, sobre a publicação cronologicamente posterior de Meios sem fim, que naquele livro estão as sementes do projeto futuro: "Os textos aqui reunidos se referem todos, de vários modos e segundo as ocasiões das quais nascem, a um espaço de trabalho ainda em aberto [...] do qual antecipam, às vezes, os núcleos originais" (Agamben, 2015, p. 10). Butler, em Sexual Inversions, de 1992 (in Stanton, 1992), já denunciava a problemática da morte no biopoder, que a epidemia de AIDS, naquele período, apenas evidenciava.
4 Agamben define a "correção" da seguinte maneira: "A tese foucaultiana deverá, então, ser corrigida ou, pelo menos, integrada, no sentido de que aquilo que caracteriza a política moderna não é tanto a inclusão da zoé na pólis, em si antiguíssima, nem simplesmente o fato de que a vida como tal venha a ser um objeto eminente dos cálculos e das previsões do poder estatal; decisivo é, sobretudo, o fata de que, lado a lado com o processo pelo qual a exceção se torna em todos os lugares a regra, o espaço da vida nua, situado originariamente à margem do ordenamento, vem progressivamente a coincidir com o espaço político, e exclusão e inclusão, externo e interno, bíos e zoé, direito e fato entram em uma zona de irredutível indistinção" (Agamben, 2002, p. 16).
5 Na segunda metade da década de 1990, os conceitos do filósofo italiano passam a surgir na obra de Butler, para caracterizar essas vidas matáveis. Já em Precarious Life (2004) aparecem primeiras críticas ao italiano, que se intensificam Notes toward a performative theory of assembly (2015).
6 "A 'vida indigna de ser vivida' não é, com toda evidência, um conceito ético, que concerne às expectativas e legítimos desejos do indivíduo: é, sobretudo, um conceito político, no qual está em questão a extrema metamorfose da vida matavel e insacrificavel do homo sacer, sobre a qual se baseia o poder soberano. Se a eutanásia se presta a uma troca, isto ocorre porque nela um homem encontra-se na situação de dever separar em um outro homem a zoé da bíos e de isolar nele algo como uma vida nua, uma vida matável. Mas, na perspectiva da biopolítica moderna, ela se coloca sobretudo na intersecção entre a decisão soberana sobre a vida matável e a tarefa assumida de zelar pelo corpo biológico da nação, e assinala o ponto em que a biopolítica converte-se necessariamente em tanatopolítica" (Agamben, 2002, p. 149).
7 Para uma discussão sobre o método em Agamben, em que o autor sublinha a importância, na sua obra, da análise paradigmática, ver Signatura rerum (Agamben, 2019).

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